#158 António Tavares - Além da Política: devíamos pensar mais a Administração Pública?

Click on a part of the transcription, to jump to its video, and get an anchor to it in the address bar

José Maria Pimentel
Olá, sejam bem-vindos a mais episódio do 45 Graus. O meu nome é José Maria Pimentel. Como de costume, começamos com os agradecimentos aos novos mecenas, Luís Branquinho, João Gil, Pedro Alves, Bárbara Sousa Coutinho, também ao Julien Roll, ao Nuno Sousa, à Andréa Cabral, ao Vasco Herédia, à Leonor Santa Clara e, last but not least, ao André Parreiral. Lembro ainda que continuam abertas as inscrições para o mini curso em pensamento crítico para o novo módulo chamado As causas das coisas sobre explicações causais em várias áreas da nossa vida, seja na vida pessoal, profissional ou na política. Entretanto, Uma vez que as sessões que tinha aberto do outro módulo, Argumentar com Lógica, esgotaram rapidamente, lancei também uma nova sessão deste módulo, na verdade dupla, que será em Março e vai realizar-se online. Caso tenham interesse num ou no outro módulo, vejam como se escrever em josemariapimentel.pt. E agora vamos ao episódio de hoje sobre administração pública. Tema que eu já queria trazer algum tempo ao 45°, sobretudo desde o episódio 139, que gravei há precisamente ano, no qual o convidado foi Boo Rothstein, que é dos maiores investigadores mundiais sobre qualidade da governação. Na altura falámos sobre como, para país ter boa governação, é necessário não apenas uma democracia de qualidade e bons políticos, mas também instituições públicas que sejam dotadas de técnicos competentes e imparciais. Ou seja, para termos boas políticas públicas, é essencial que tenhamos uma administração pública, no sentido mais amplo deste termo, que seja capaz, para desde logo ajudar com o seu conhecimento e experiência os decisores políticos a desenhar melhores políticas públicas, até porque os dirigentes superiores da administração pública estão lá provavelmente há muito mais tempo do que o ministro que normalmente não dura sequer mandato na pasta. E em segundo lugar é, em grande medida, através da administração pública que as medidas decididas pelo Governo e pela Assembleia vão ser implementadas e por isso é necessário que isso aconteça de maneira eficaz e também imparcial, ou seja, não apenas para o eleitorado do partido que está neste momento no poder. A verdade, no entanto, é que tendemos a olhar pouco para a administração pública, ou seja, tendemos, no debate no espaço público, a desvalorizar esta condição necessária da boa governação. Falamos muito de política e muito também de políticas públicas, mas discutimos pouco a estrutura que vai ter de implementá-las. Já há algum tempo que andava irritado com esta lacuna e, portanto, decidi que estava na altura de supri-la, pelo menos no 45°. Eu sei bem o que muitos de vocês estão a pensar. A administração pública não parece propriamente o tema mais sexy do mundo, parece menos interessante do que o que se passa nas empresas privadas e muito menos interessante do que a atualidade política, sempre sumarenta e muito rica em novidades, mas acreditem que depois deste episódio vão ficar a olhar para este tema com olhos diferentes. Ao tentar escolher o convidado ou convidada para este episódio, fiz alguma pesquisa por este tema e recebi até algumas sugestões de ouvintes do podcast e de amigos, a quem agradeço, e acabei por decidir trazer alguém de fora da administração pública que pudesse ter uma perspectiva simultaneamente ampla e distanciada sobre o tema. Definido este critério, o nome do convidado, António Tavares, era a escolha óbvia. O António doutorou-se em Administração Pública nos Estados Unidos pela Florida State University e é atualmente professor associado com agregação na Universidade do Minho. Colabora em vários programas de formação executiva para Administração Pública, nomeadamente o SEADAP e o FORGEP, e escreveu em 2019 ensaio chamado, precisamente, Administração Pública Portuguesa, que foi publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Como vão ver, este é episódio muito esclarecedor e que nos faz pensar e foi, ao mesmo tempo, uma conversa que desafia preconcepções ideológicas sobre a administração pública, seja de lado, seja do outro. É que, por lado, discutimos muitas lacunas que existem na administração pública em relação ao que se passa em muitas áreas do privado. Por exemplo, desde alguns benefícios anacrónicos, como o facto de ser quase impossível ser despedido de emprego público, à praga das Jobs for the Boys ou Girls ou ainda a dificuldade que persiste em implementar no Estado sistema de avaliação de desempenho eficaz. Mas falamos também do outro lado, ou seja, de como é importante capacitarmos a nossa administração pública se queremos, lá está, políticas públicas melhores e mais eficazes. Aspecto muito importante que tem faltado desde sempre em Portugal é uma administração pública que tenha a capacidade de analisar a eficácia e o impacto das políticas públicas depois de elas serem implementadas. E depois há outros aspectos que têm mesmo piorado nas últimas décadas, como a perda de prestígio da função pública, o envelhecimento do corpo de funcionários públicos e o gap crescente de competências que existe em algumas áreas muito importantes entre o setor público e o setor privado, sobretudo nas áreas mais complexas e naquelas que mais têm mudado nos últimos anos. Estas tendências manifestam-se já hoje de maneira bem visível, seja na escola pública, por exemplo, através do envelhecimento do corpo docente e da diminuição da motivação de muitos professores, e também noutros aspectos, como por exemplo os casos em que o Estado se revela incapaz de desenhar contratos de concessão ou de privatização que o protejam e acabem muitos casos por sair prejudicado a prazo. Aliás, as privatizações é precisamente tema em que, aviso já, se tiverem dogmas prévios muito fortes num sentido ou no outro, vão sair desta conversa algo confusos. Portanto, espero que gostem desta conversa sobre Administração Pública com o António Tavares. O convidado fez uma série de referências ao longo da nossa conversa que, como sempre, podem encontrar na descrição deste episódio. Uma última nota para os ouvintes que trabalhem na função pública ou tenham conhecimento direto da administração pública. Se houver algum aspecto que achem interessante complementar ou que porventura tenham uma opinião diferente, não hesitem em partilhá-la através das redes sociais do podcast, sobretudo no Twitter ou no Instagram, ou se quiserem, pelo contacto habitual 45graus.jmp.com. Até à próxima. António Tavares, muito bem-vindo ao 45 Graus. Muito obrigado pelo convite. Vamos falar de administração pública e há aspecto engraçado sobre a administração pública e é a razão, na verdade, porque eu queria trazer este tema ao podcast já há muito tempo, é que há uma espécie de paradoxo, não é? Nós falamos muito de política, política está em todo lado, não é? Falamos muito mais de política do que de outros aspectos da vida em sociedade, inclusivamente do que até das empresas, e isto é mesmo verdade em cooperação com outros países, mas falamos pouco da administração pública. Falamos muito de política, mas pouco da administração pública, o que é certo paradoxo, quer dizer, é peculiar, é como se fosse uma realidade que vive à parte e eu acho que a maior parte das pessoas que não tenham esse contacto direto, não conhece bem, tem pouca ideia do que se passa dentro da administração pública. E a ideia que eu tenho é que também não é. Mesmo em Portugal é uma área muito investigada. O teu percurso, embora a tua investigação não esteja longe de ser só sobre a administração pública, mas o teu percurso é singular, não é peculiar nesse aspecto, porque tens vindo parar a esta área. Como é que isso aconteceu?
António Tavares
É, isso é uma história singular nesse sentido. Eu comecei por me licenciar em Sociologia das Organizações, na Universidade do Minho, e parecia que estava encaminhado para uma carreira no setor privado, provavelmente gestante de recursos humanos numa organização de setor privado. E eu não sei se posso mencionar nomes de empresas, mas eu acabei na Continental Mabor, uma empresa que hoje em dia é muito conhecida, multinacional, a Continental, fabrica pneus. E na altura a Mabor estava numa fase de transição, passar de propriedade puramente portuguesa para a mão dos alemães. E a produção era alemã, mas os recursos humanos ainda eram portugueses. Portanto a direção dos Recursos Humanos ainda era portuguesa. E eu acabei a estagiar na direção de Recursos Humanos e, logo no primeiro dia, a mim e a mais três estagiários puseram-nos na CAVE. Foi uma experiência estranha, eu não estava à espera disto, Pensei, bom, quadros recém ou quase formados da universidade, provavelmente querem nos aproveitar, nem que seja para fazer tarefas de rotina e que precisam de ser feitas e que não têm mais ninguém para as fazer. Enfim, nós estivemos muito tempo desocupados, com relativamente pouca coisa para fazer, mas houve uma altura em que era necessário selecionar dois motoristas para fazer rondas para a questão das vendas, para a parte comercial, e puseram anúncio no jornal em que diziam que uma das condições preferenciais era de 18 a 35 anos. Portanto, pessoas jovens que queriam contratar. Tivemos 80 candidaturas e o papel dos estagiários foi fazer uma seleção de 12 para a primeira entrevista. Perdemos uns dias com aquilo. Quando nós apresentámos a seleção dos 12 candidatos, o diretor de Recursos Humanos disse-nos, ah, isso já não é preciso, porque nós contratámos dois motoristas, de 49 e outro de 55 anos, à concorrência, porque eles já sabem as rotas. Eu fiquei tão chocado com aquilo, porque eu tinha aprendido recursos humanos na universidade e como se devem fazer as coisas. E aquilo era resultado completamente oposto àquilo que eu achava que devia ser a gestão de recursos humanos. Fiquei tão chateado que tomei duas decisões. A primeira é que nunca trabalharia em recursos humanos, fosse a fazer investigação, fosse em empresas, fosse onde fosse. E a segunda decisão foi que não me interessaria tanto por como as coisas devem ser, mas mais como elas são. E isto depois tem relevância para a investigação posterior, porque quando se faz investigação em ciências sociais há tipicamente duas abordagens. Uma que é muitas vezes descrita como positiva, em que começamos da teoria e com conjunto de hipóteses e vamos ao terreno depois de testar se essa teoria se verifica ou não, que é a perspectiva que eu adoto. E depois há uma que é muito própria dos sociólogos, que é mais da investigação à ação, no sentido que tu és cientista também para mudar a realidade. E essa, para mim, essa perspectiva mais normativa era menos interessante e isto é quase sacrilégio de dizer isto em relação aos sociólogos, não levam isto muito bem, mas a verdade é que essa parte da investigação à ação não estava na minha perspectiva. Portanto, essas duas quase decisões que influenciaram muito a carreira vêm daí. Depois entretanto fui contratado candidato a TEME, fui contratado como assistente estagiário na Universidade do Minho, inicialmente para dar cadeiras de recursos humanos. A ironia das ironias. Mas entrei no mestrado em Administração Pública porque fazia falta pessoas que lecionassem ao curso de licenciatura em Administração Pública. Depois de entrar no mestrado comecei a lecionar Administração Pública Portuguesa e Políticas Públicas, que são disciplinas que até hoje, de vez em quando, ainda leciono Políticas Públicas, aliás muito regularmente. E foi assim e depois, entretanto, eu tinha a ambição de tirar o doutoramento nos Estados Unidos e o catedrático da área da altura, o professor José António Oliveira Rocha, incentivou-me a falar com alguns professores estrangeiros que estavam de visita. A Universidade do Mimgo e a Escola de Economia e Gestão tinham uma relação histórica próxima da Universidade da Carolina do Sul, porque muitos economistas eram doutorados por lá. E então desses professores aconselhou-me conjunto de escolas às quais me candidatar e eu entrei em duas. Acabei por escolher a Florida State University porque estava muito bem classificada em rankings da área de administração pública que eram totalmente desconhecidos em Portugal, portanto ninguém sabia o que era bom programa de administração pública nos Estados Unidos. Eu depois de consultar rankings e depois também com base nas minhas notas, eu acabei por optar por uma solução mais pragmática. E foi assim que eu tirei o doutoramento e depois regressei em 2002, aliás, tecnicamente a 19 de setembro de 2001, uma semana depois do 11 de setembro. E comecei a lecionar na universidade, eventualmente como professor auxiliar e depois o resto num percurso mais linear. Mas a pergunta sobre porquê que se fala menos da administração pública por comparação com outras áreas e em particular com
José Maria Pimentel
o público político. Se é que é verdade. Se é que tu partilhas esta minha percepção.
António Tavares
Parcialmente sim. Eu concordo que se fala menos em parte porque a ciência política é, como dizia Lasswell, a ciência de quem recebe o quê, quando e como.
José Maria Pimentel
Exatamente. Eu ainda não outrodiuza essa situação.
António Tavares
E essa definição, que é bastante conhecida, tem implícito a existência de vencedores e perdedores na política. E isso é verdade em muitas decisões. Se nós pensarmos ter ou não ter hospitais PPP, ou a localização de aeroporto, Todo conjunto de exemplos que necessariamente agradam a algumas pessoas e desagradam a outras. E isso torna-se muito apaixonante para quem não só investiga a ciência política, mas também para o público em geral. O público interessa-se por este tipo de questões. Os brands mais, os mídias interessam-se mais. Toda essa questão. Em relação à administração pública, a questão é bastante menos clara. Porquê? Porque os procedimentos para se tirar passaporte, ou para se obter uma licença de pesca ou de caça, ou até uma coisa tão simples quanto foi a operacionalização das declarações eletrónicas do IRS, que é uma coisa útil e que facilita muito a vida aos contribuintes, são atos bastante mais mundanos. Ou seja, nós não temos grandes paixões em relação a procedimentos administrativos. E embora tenha impacto na vida das pessoas, o impacto apenas ocorre quando ele é negativo.
José Maria Pimentel
Quando corre mal. Exatamente.
António Tavares
Todos os dias imitem-se, provavelmente, centenas ou milhares de cartões de cidadão e passaportes e outros documentos, mas se tudo corre bem, ninguém se preocupa muito com isso. E por isso há uma menor tendência para se falar de administração pública. Mas também tudo depende do que é que consideramos administração pública. E a verdade é que Quando eu falo sobre administração pública em público, as pessoas pensam sempre que a administração pública é apenas os funcionários ao balcão, ou seja, são as pessoas que nos atendem e que depois vão tratar os processos em back office e isso é a administração pública. Ora, os professores, os médicos, os enfermeiros, os polícias, todas essas profissões fazem parte da administração pública e são relevantes para a administração pública. E por isso, e também por influência anglo-saxónica, a minha definição de administração pública é bastante mais ampla. Eu tenho uma noção de que a administração pública é a decisão sobre políticas públicas, sobre orientações estratégicas, direções das políticas nos diferentes setores, educação, saúde, ambiente, etc. Mas é também depois a implementação dessas mesmas políticas. Fala-se muito mais da adoção do que se fala da implementação, isso é verdade. E quase não se fala da avaliação, Isso é uma coisa que podemos discutir pouco
José Maria Pimentel
mais à frente. Sim, já lá vemos.
António Tavares
Mas esse é, eu até acho, o calcanhar daqueles mesmo da administração pública portuguesa. E falar da adoção é, obviamente, mais apelativa. As pessoas gostam mais de falar sobre políticas públicas do que falar sobre implementação.
José Maria Pimentel
Tu casta aí num ponto importante que a administração pública é muita coisa, não é? Lá está desde as pessoas que atendem os cidadãos ao balcão, que são a face mais comum, mas também lá está a polícia, os professores, Depois também a administração pública indireta, portanto, empresas do setor público, por exemplo, até reguladores, e também envolve, obviamente, a administração pública central. Ou seja, essa está mais distante dos cidadãos, mas está próxima do poder político. E aí há uma questão interessante em relação à qual eu tinha curiosidade de saber a tua opinião que é da relação entre o governo e a administração pública central. Ou seja, como é que estas duas entidades interagem ou como é que elas interagem em Portugal, como é que elas interagem em outros países e como é que elas idealmente devem interagir. Porque há aqui uma espécie de dança, num certo sentido, teoricamente elas têm ramos de ação separados, em que o governo, o governo e o parlamento, decide legislação em políticas e a administração pública implementa-as, não é? Mas obviamente na prática há aqui uma grande sobreposição e a administração pública tem muitas vezes tanta capacidade de influenciar as políticas do governo, porque tem conhecimento muito maior de causa, não é? São, enfim, burocratas, normalmente é termo com uma carga negativa, não é? Mas, na verdade, nesta literatura não é. São burocratas, no sentido de ser pessoas que trabalham lá há muitos anos, conhecem o sistema e, por outro lado, também depois, uma vez implementando, conseguem influenciar a maneira como essas... Consegue até mudar, implementar as políticas de maneira diferente ao que está na legislação. Por exemplo, tu dás no livro o exemplo dos polícias, que é o exemplo namush, a questão do radar, que o radar diz 120 mas depois os polícias têm noção de que a tecnologia é falível e, portanto, na prática o limite que eles garantem, o limite que eles verificam não é o limite de 120, é o limite acima, portanto, há ali uma margem para atuar. Nesta literatura, às vezes, até se fala da relação entre a política, ou seja, governo e assembleia e a administração pública como uma espécie de outros checks and balances, a administração pública como sendo aí numa camada adicional de chamados freios e contrapesos em relação ao poder político. Ou seja, a coisa muitas vezes vai até esse ponto. E pronto, tenho curiosidade de saber como é o caso português, como é que compara com outros países e qual é o ideal a este nível?
António Tavares
Essa pergunta não é uma pergunta de resposta fácil, sobretudo porque tem várias perguntas envolvidas, várias subquestões envolvidas na mesma. Mas genericamente a nossa administração pública responde perante o governo em Portugal. Não é assim em todos os países. Aliás, nos Estados Unidos, a administração pública responde fundamentalmente perante o Congresso. Há uma relação hierárquica, evidentemente, do presidente para a administração, mas a administração pública responde fundamentalmente perante o Congresso e os dirigentes da administração pública americana respondem perante o Congresso.
José Maria Pimentel
E desculpa interromper-te, e nos outros países europeus? Há uma variação grande ou tende a ser próximo do nosso modelo?
António Tavares
Muito mais próximo do nosso modelo. O nosso modelo é inspirado no modelo do Westminster. Nós temos perfil muito próximo do britânico. Embora haja uma variação importante. Na série Sim, Senhor Ministro nós vemos muito bem a relação que se estabelece entre o dirigente da administração pública, do topo, o dirigente superior, e o ministro. E a série é muito esclarecedora porque ela caracteriza o dirigente superior como essencialmente o decisor. O ministro está lá, mas é pássaro de passagem. Ou seja, está lá hoje, mas amanhã está outro e o dirigente permanece. Isso foi, por exemplo, verdade na nossa administração pública no tempo do Estado Novo, ou seja, os diretores gerais tinham peso muito grande, muito significativo nas políticas. Contando-se até que Salazar reunia diretamente com os diretores gerais, fazendo barra de paça aos ministros. Mas esta relação entre, se quiseres, a política e a administração, é uma relação complexa. E é complexa de há muitos anos. Historicamente e sobretudo no mundo da common law e das administrações públicas anglosaxónicas, a tradição era muito próxima do seguinte. A administração pública entrava e saía todos os funcionários em bruto com os governos. E esta era a tradição do século XIX. Sempre que era eleito novo governo saíam todos os funcionários públicos, milhares de pessoas e entravam outros, digamos, apaniguados, apoiados do governo do dia. Isto a certa altura tornava-se inviável porque havia uma perda muito significativa de know-how e não contribuía para a estabilidade da administração.
José Maria Pimentel
Para não falar da ingerência política...
António Tavares
Exato, já para não falar disso, no mínimo dos detalhes, porque evidentemente tem que haver direção política, mas não nos níveis e hierárquicos mais baixos da administração pública. Mas duas leis, uma em Inglaterra, na verdade em Inglaterra foi relatório que deu origem a uma lei, o North Coast Travel Iron Report e o chamado Pendleton Act nos Estados Unidos, uma de 1854, a outra de 1883, vieram revolucionar isto e vieram criar sistema em que a admissão para a administração pública se faz através do mérito e com base em exames de admissão, com base nas competências que os candidatos possuem e em que se proíbe o despedimento por razões políticas, ou seja, em que o emprego é para toda a vida na expectativa que o funcionário não pode ser demitido se o governo mudar. Claro que este sistema, que resulta bem para garantir a manutenção do know-how na administração pública, tem problema crucial e que explica parte das críticas que são feitas à administração pública, que é o mesmo sistema que impede o despedimento por razões políticas também impede muitas vezes o despedimento por razões de incompetência. E isso torna A administração pública alvo de uma crítica fácil a esse nível.
José Maria Pimentel
Mas é assim em todo o lado?
António Tavares
É tendencialmente assim em todo o lado, mas evidentemente pior nos países com tradição mais próxima do direito administrativo. E por isso a Europa continental tem esse problema de uma forma mais acentuada do que os países anglo-saxónicos. É muito mais fácil despedir pessoas da administração pública nos Estados Unidos do que é em Portugal. Mas ainda assim mais difícil do que no setor privado.
José Maria Pimentel
Do que no setor privado, sim. Mas há uma questão que eu nunca percebi em relação a isso, que é, esse ponto de partida faz sentido, ou seja, de teres uma proteção dos funcionários públicos para impedir que eles sejam demitidos por razões políticas, precisamente para impedir que isso possa ser uma retaliação para eles não estarem a implementar medidas, sei lá, clientelistas, por exemplo, do partido estar no governo, Mas é assim tão difícil separar os dois motivos de demissão? Do motivo político, do motivo de incompetência, para não referir a outro tipo de razões que até podiam ser aceitáveis, não é? Mas pelo menos esses dois extremos é assim tão difícil separar?
António Tavares
Não é difícil separá-los conceptualmente.
José Maria Pimentel
Mas depois na
António Tavares
prática torna-se bastante complicado. Torna-se bastante complicado e são processos muito lentos. O processo de despedimento de funcionário público é uma coisa absolutamente tenebrosa em termos do tempo que demora. Porque tem que haver, primeiro, alguém, dirigente, presumivelmente, que manifeste uma vontade de colocar processo disciplinar ao funcionário, por algum motivo, presumivelmente, por algum problema de competência. Não basta isto. É necessário que haja, num contexto de avaliação de desempenho, imagina que estamos numa organização em que toda a gente tem classificações relativamente boas, de suficiente para cima, inclusive o funcionário que será alvo de despedimento, isto imediatamente inviabiliza o despedimento. Porquê? Porque então a pessoa era competente no momento em que foi avaliado o desempenho e que muitas vezes a nota é atribuída só porque as pessoas não se querem chatear com o desempenho das pessoas. E depois, no momento em que se está a levantar, a pôr em causa a pessoa, abrindo processo disciplinar, vai-se ver exatamente o que é que foi o desempenho da pessoa. E o que conta é o formal. Haver dirigente que diz que o desempenho é mau não chega, não basta. E por isso os processos arrastam-se muito, e podem arrastar-se anos.
José Maria Pimentel
Mas isso também é uma pescadinha, enfim, isso agora seria uma tangente ao nosso tema central, mas também é bocado uma pescadinha de rabo na boca, não é? Ou seja, é precisamente por os dirigentes intermédios, por exemplo, ou até superiores, dependendo de quem está a ser avaliado, saberem que as pessoas nunca serão despedidas, que não investem especialmente na avaliação. Eu não estou para comprar uma guerra para dar uma nota baixa. É pouco isso.
António Tavares
Mas há problema, digamos, amontante. Muitas vezes os dirigentes não estão interessados em comprar essa guerra. E isso também nos pode levar a pensar que os dirigentes também não têm a qualidade que deveriam ter. À partida, a avaliação de desempenho. Assumindo que estamos apenas a falar de questões relacionadas com o desempenho e não outros motivos políticos, por exemplo, a avaliação de desempenho é suposto refletir aquilo que é o desempenho do funcionário. Se não reflete, então alguma coisa está errada no processo. E o problema é que muitas vezes há coisas erradas no processo, na avaliação de desempenho na administração pública. Então, mas vamos a
José Maria Pimentel
esse aspecto que eu também queria falar, da questão da organização interna da administração pública, da questão da avaliação de desempenho, políticas de gestão no fundo. Mas antes disso, para fechar o tema em que nós estávamos, dir-se, portanto, que em Portugal, tendo nós, porventura até em excesso, esta questão da proteção do emprego, ou seja, a proteção no fundo da independência da administração pública, que nós temos uma administração pública interventiva comparativamente com o que se passa até noutros países. Interventiva no sentido desta capacidade de agir autonomamente face ao governo, independentemente da cor política do governo. É o caso?
António Tavares
Bom, a administração, se estivermos a pensar nos funcionários do Estado, não nos dirigentes, a administração rege-se por conjunto de regras e regulamentos em que, digamos, a discricionariedade que está associada ao desempenho varia muito com o suante da profissão. Ou seja, médicos e professores têm grau de discricionariedade obviamente muito mais significativo do que os funcionários que atendem pessoas para solicitar documentos. Por exemplo, Se eu vou tirar o cartão do cidadão, há conjunto de procedimentos que têm que ser seguidos e não há grande discrecionalidade e não há grande coisa para inventar, se quisermos.
José Maria Pimentel
Claro, claro. Mas a minha pergunta, António, desculpa, a minha pergunta era... Isso é relevante, não é? Essa questão dessa autonomia operacional, se chamemos-lhe assim. Mas a minha pergunta vinha no seguimento daquela questão da proteção dos funcionários da administração pública de serem despedidos por razões políticas e onde isso se manifesta é na administração central e sobretudo nos dirigentes. Ou seja, onde eu pergunto é, eu estou-me a lembrar, por exemplo, tenho vários amigos que trabalham na administração pública, embora, provavelmente também vamos dizer esse tema, não tantos como teria se tivesse nascido uns 20 anos antes, porque a administração pública está bastante envelhecida, mas tenho alguns, e sobretudo na administração pública central, ou seja, em ministérios ou entidades semelhantes. E muitas vezes o que acontece, o que é típico é que há ministro que chega, ainda por cima nós temos governos muito instáveis, e mesmo dentro do mesmo governo muitas vezes muda o ministro, e há ministro que chega e tem sempre umas ideias novas e há ali trabalho, que é difícil, eu não sei como é que isso compara com outros países por isso é que estou a perguntar de no fundo mostrar ao ministro que ele já é se calhar o décimo ministro com aquela ideia não é por acaso que ela nunca foi implementada ao mesmo tempo também tentar influenciar as medidas que aquele ministro está a adotar ou seja há ali uma capacidade que eu não sei quão grande é na prática, lá está, e como é que compara com outros países, mas pelo menos coloca-se a situação de os funcionários, e aqui estou a incluir, obviamente, os dirigentes, que já lá estão há muito tempo e conhecem bem, poderíamos dizer, em certo sentido, sobreporem-se ao ministro, não é sobreporem-se ao ministro porque O ministro é que tem a autoridade final, mas é pelo menos tirar partido desse conhecimento para influenciar a governação. E em Portugal como é que nós comparamos com outros países a esse nível?
António Tavares
Essa percepção é correta para o caso português e nós estamos mais próximos do caso inglês do que de outros países. Ou seja, os nossos diretores regiais têm poder significativo de adiar, atrasar, dilatar os prazos de implementação de decisões que os ministros podem querer implementar, mas que são desacelerados por efeito desses efeitos.
José Maria Pimentel
E com jeitinho, se eles desacelerarem pouco, quando deram por ela o ministro já foi substituído. O ministro
António Tavares
é substituído, aliás, muitas vezes é mesmo essa a intenção. Se calhar convém voltar bocadinho atrás e pensar, mas isso é assim que funciona a administração pública em todo o lado?" E a resposta é não. E a razão é muito histórica, está relacionada com a tradição de cada país. Nós tivemos regime muito estável durante muitos anos, o regime do Estado Novo, que contribuiu muito para desenvolver este tipo de prática e que depois não sofreu o corte que se calhar uma revolução mais profunda teria operado. Mas a chave disto aqui são os dirigentes. Porquê? Porque nós esperamos que haja uma espécie de cadeia de relações entre o cidadão que vota e vota em programas eleitorais e há programa eleitoral que vence as eleições do partido vencedor, vamos imaginar que é partido que vence as eleições em maioria, e Esse programa é depois convertido em programa de governo e o governo, à partida, deseja governar com base no seu programa eleitoral e implementar as medidas que foram propostas aos cidadãos no momento das eleições. Acontece que dos dirigentes espera-se, e sobretudo dos dirigentes superiores, espera-se que façam a ligação entre a dimensão política e a administração. No caso dos dirigentes superiores, isto muitas vezes acontece porque os dirigentes superiores têm mesmo este papel estratégico de ligar as duas vertentes. Se depois ligam ou não, isso varia muito de área para área, portanto não podemos dizer que a tendência é puramente próxima da britânica ou mais próxima, por exemplo, da francesa, em que o diretor-geral cumpre de uma forma mais imediata e mais deferente aquilo que é a vontade do ministro. Onde não é frequente acontecer é aos níveis intermédios e mais baixos da hierarquia. Ou seja, aí não se espera que haja criação de políticas públicas. Os funcionários públicos não criam políticas públicas, implementam.
José Maria Pimentel
Apenas implementam, claro.
António Tavares
Claro que há uma componente importante que é preciso notar. É que a Nossa administração pública está extremamente politizada ao nível da gestão intermédia.
José Maria Pimentel
Também ia falar disso.
António Tavares
E essa politização é excecível. Ao nível da gestão intermédia não é desejável. E eu explico porquê. Porque nós esperamos que haja politização no nível superior, porque o nível superior à partida é quem estrategicamente implementa aquilo que é decidido pelos políticos. No nível intermédio espera-se boa gestão. Acontece que, e isto é demonstrado muito bem pela Patrícia Silva no livro da Fundação Francisco Emanuel Santos Jobs for the Boys, em que ela ilustra o facto da gestão intermédia ser das mais politizadas. Porquê? Porque é menos visível do que a gestão de topo. Note-se que a gestão de topo vai à comissão de recrutamento e seleção para a administração pública, à Cresap, enquanto a gestão intermédia não vai. E, portanto, é muito mais fácil colocar nos níveis intermédios boys ou girls, dependendo do seu caso. E isso, à partida, é problema, porque ao nível da gestão intermédia nós queremos bons gestores e não necessariamente bons apoiantes do governo do dia. Não quer dizer que não haja boa gestão ao nível intermédio. Claro que estamos a falar de quase 10 mil cargos de gestão intermédia e portanto há tudo, na verdade.
José Maria Pimentel
Claro, claro, como é evidente. Mas é engraçado porque o que estás a dizer coincide exatamente com outra queixa que eu me lembro de ouvir desses amigos que trabalham na administração pública que é precisamente certo desagrado com a gestão intermédia e com a... Lembro-me perfeitamente de estar até a falar com amigo, que ainda por cima é tipo de esquerda, portanto é tipo que está ali com certo espírito de missão, ou seja, de trabalhar para o Estado, e ele estava muito desanimado com a falta de meritocracia, com certo clientelismo interno, não é? Mas ao mesmo tempo eu não sei de onde é que isso vem, ou seja, por exemplo, quando tu dizes politização e a Patrícia Silva nesse livro que referiste, eu confesso que não li o livro porque senão saberia a resposta, não é? Isso quer dizer o quê, não é? Quer dizer que essas pessoas mudam com o suporte a cor do governo ou que cada governo mete lá os seus sempre que tem hipótese. Portanto, essa é uma politização que altera rapidamente com o suporte a cor do governo ou que altera lentamente e, portanto, é meio heterogênea. Se nós vamos olhar, provavelmente temos muita gente que entrou nestes últimos anos no governo PS, mas talvez ainda temos lá alguns que tiveram no último governo PSD. É mais cenário ou mais o outro?
António Tavares
É heterogênea. É heterogênea. Aliás, as críticas ao Bloco Central muitas vezes vão nesse sentido. Precisamos perceber que muitas vezes quem está a ocupar cargos ou é do PS ou é do PSD. Mas note-se que quando se fala de politização, muitas vezes o que nós queremos dizer é que pessoas que apoiaram as campanhas e que ajudaram os partidos a vencerem as eleições são depois recompensados com cargos de gestão intermédia. É disso que falámos, não falámos de outra coisa. O que não significa que algumas dessas pessoas não sejam competentes. Porque muitas vezes há a ideia de que se está ligado a este partido, logo só está naquela posição porque é, ou só vai ser nomeado dirigente porque é do partido. Muitas vezes não, muitas vezes há pessoas que são competentes e até têm currículo para o demonstrar. O que está em causa é que a nomeação de incompetentes é mesmo problemática e pode causar dano significativo na reputação de serviço. E muitas vezes o que acontece, e isso é uma coisa que se nota muito na administração pública portuguesa, é que as pessoas são muitas vezes nomeados para cargo e depois passados uns anos para o outro e depois para o outro. Ou seja, ocupam muitos cargos de gestão intermédia porque acumulam currículo por via das nomeações políticas. Por essa lógica eu, por exemplo, nunca seria nomeado para nada, porque não tenho experiência nenhuma no setor. Até posso conhecer a administração pública, mas o meu currículo não vale porque nunca ocupei nenhum cargo. E por isso há certo reforçar sempre das mesmas pessoas nos cargos, porque elas já têm experiência anterior. Isso é muito visível. E acontece sobretudo a estes níveis de gestão intermédia. Para mim é muito menos chocante que haja partidarização no topo. O topo é mesmo para isso. Ou seja, nós queremos diretores gerais que de alguma forma reflitam aquilo que é a vontade do governo do dia. Para que depois...
José Maria Pimentel
Ah, ses, Por acaso não sei se concordo com isso.
António Tavares
Pois eu sei, esta posição não é… Os meus colegas que estudam administração política também não concordam com isso. Mas alguém tem que espelhar na administração aquilo que é vontade política. Se entra novo governo, e agora vai entrar pode ter a mesma orientação política do anterior ou não, mas vai entrar novo governo, este novo governo tem uma orientação para aquilo que quer nos diferentes setores de atividade. E por isso é expectável que quem vai ser o responsável máximo na administração, o dirigente superior, para implementar essas ideias, tenha alguma solidariedade e lealdade em relação ao ministro. Se é alguém que tem uma posição ideológica totalmente oposta ao ministro, isso não faz sentido nenhum, não é?
José Maria Pimentel
Não, isso absolutamente, claro. A minha objeção é que isso depois não é sustentável, não é? Os governos vão alterando naturalmente a cor política, não é? E a única maneira de tu ter sempre esse alinhamento é ir demitindo e substituindo diretores gerais à medida que muda a cor do governo, o que é uma grande instabilidade. E depois há aquela questão que eu referi no início de que, obviamente, que o objetivo não é que os dirigentes superiores da administração pública tenham uma ideologia diferente do governo, porque isso, como tu dizes, seria complicado, não é? Mas eu acho bom, não me parece mal, que haja essa espécie de freios e contrapesos feitos por uma administração pública que é pouco mais estável e que tem sobretudo... É a ver, que é menos ideológica, digamos assim, não é? Que tem sobretudo uma questão de conhecimento e de uma carreira longa naquela área.
António Tavares
Certo, Mas também aí depende muito do setor da administração que estamos a falar. Nós tivemos Diretor-Geral da Saúde durante, não sei, 20, 30 anos, o Francisco Jorge, toda a gente menciona esse exemplo. E que se saiba, nunca houve questões quanto à sua competência. A questão, e é aqui que entra a questão da avaliação, é que a avaliação das pessoas nos lugares é importante, mesmo que, presumivelmente, aquilo que se percebe é que o Francisco Jorge não era nem para OPS, nem para OPSD, Era técnico que estava num lugar e servia o ministro do dia. E isso é a situação ideal. O problema é que muitas vezes, e sobretudo em setores em que a orientação ideológica, eu estou a lembrar da educação, que é sector muito óbvio em que isso é muito visível. A orientação ideológica conta muito. Aquilo que nós queremos para a educação conta muito. E por isso é normal que haja uma nomeação diferente quando entra novo governo. E provavelmente alguém que tem uma visão diferente para o setor da educação. Isso não significa que a instabilidade tenha que ser permanente e com todos os novos governos. Pode haver alguma continuidade, mas também não significa que tem que haver continuidade durante 30 anos. Aliás, eu gosto muito da lei de limitação de mandatos dos presidentes de câmara, porque eu acho que a eternização dos cargos não é uma coisa boa. Não é uma coisa boa para ninguém. Mesmo para a minha profissão, a eternização do cargo não é uma coisa boa. E é bocado esse o argumento, não é tanto o que a competência técnica não deve ser valorizada, evidentemente que deve.
José Maria Pimentel
Este é tema interessante, não é? Porque também depende bocado da nossa perspectiva em relação ao modo como deve funcionar a governação. Eu confesso que tenho talvez viés a favor de... Que impeça essa instabilidade de políticas, sendo que obviamente com isso pagas o risco de as alterações demorarem mais tempo a ser feitas, não é? Mas ao mesmo tempo consegues... Sei lá, havia o exemplo, por exemplo, de Itália, era muito referido na altura do Berlusconi e não só, que aquilo era meio caótico, mas que havia uma administração pública forte, qualificada, competente, independente e que assegurava que a governação se mantinha, apesar dos bunga-bungas e lá das histórias do Bélarusconi. E caso mais ou menos análogo, embora este menos inesperado, é o caso da Bélgica, quando eles tiveram aquele tempo sem governo.
António Tavares
Mas nós temos o caso português no pós 25 de abril, é exemplo disso. Nós tivemos 10 anos, 10 governos e tivemos estabilidade em termos de administração pública. Precisamente com a mesma lógica. Uma boa administração pública garante essa estabilidade. O problema também é que muitas vezes também contribui para a letargia. Ou seja, se nós não temos alterações suficientes, as coisas não mudam. E eu acho que há mais problemas de estabilidade excessiva na administração, se me permitem, do que de mudança excessiva. Eu não acho que haja mudança excessiva na administração pública portuguesa. Muitas vezes há a estabilidade excessiva. Que, aliás, é uma tendência normal nas instituições. Elas tendem para a estabilidade. Esse é argumento do novo livro e precisamente no mesmo sentido.
José Maria Pimentel
Interessante. Eu, por exemplo, na educação não diria. Mas noutras áreas percebo, não é? Mas na educação nós até temos alguma...
António Tavares
Sim, na educação é se calhar exemplo contrário. Temos demasiada instabilidade. É disso que os pais e professores queijam muitas vezes.
José Maria Pimentel
Exatamente, é disso que eles queijam. Mas de facto há outras áreas em que não. Eu percebo o que queres dizer.
António Tavares
Isto é bocadinho à parte do que estávamos a dizer, mas eu não resisto. Eu tenho aqui uns exemplos. Porque a relação entre política e administração é uma relação muito complexa. E eu acho que a relação entre aquilo que é decidido politicamente nos parlamentos e nos conselhos de ministros e aquilo que depois é implementado na prática muitas vezes difere e difere às vezes de forma dramática. Isto só é possível porque nós, com o crescimento do Estado de bem-estar, do Estado social na Europa, cresceram também as funções dos Estados e a certa altura nós não podíamos ter ministros especialistas e passamos a ter ministros que são, sobretudo, políticos e que têm que confiar naquilo que é a preparação técnica dos dirigentes da administração. E depois também há a grande quantidade de informação que é necessário processar e que hoje em dia é mesmo gigantesca em muitos setores, na qual o grau da segurança social, em que não só a necessidade de funcionários é imensa, mas também a quantidade de informação a processar e tudo isto é demasiado técnico para a pessoa que lidera ministério. Tem necessariamente que confiar nos seus dirigentes e nos seus funcionários. E o meu ponto é que muitas vezes aquilo que é provado em termos de legislação é muito dificilmente implementado. E há umas histórias caricatas, isto é uma espécie de best-seller das minhas almas, há umas histórias completamente caricatas que vale a pena falar. Conta quantas. Vou contar várias, mas todas elas com ensinamento. Há uma que é sobre a natureza humana, que eu acho que é caricata e vale a pena contar, mas é extremamente heterodoxa, é uma coisa estranha. Que é o facto de eu, quando estava em Tallahassee, na Flórida, amigo meu mexicano veio-me dizer que há empreendedor mexicano que abriu restaurante no Leon County, que é o condado onde fica a cidade mas que é, digamos assim, a parte mais rural da área, da região. Abriu restaurante em que as funcionárias serviam topless. Porquê? Porque isto, para quem conhece a Flórida, se vocês conduzirem nas autostradas da Flórida, é muito frequente aparecerem, assim, uns restaurantes destes na beira da estrada, nem em zonas mais rurais. Mas Lyon County é condado muito liberal e não liberal no sentido americano, de esquerda, e não gosta muito destas coisas porque é diminuir o estatuto da mulher, etc. E então ficaram escandalizados e O County Council, que é o equivalente à nossa Câmara Municipal, reuniu de emergência para passar uma Ordinance, que é uma espécie de postura municipal, proibindo a abertura de restaurantes em que as empregadas servem topless. E então o que é que o empresário mexicano muito criativo decidiu fazer? Bom, a Ordinance diz que não podem servir topless, mas não diz nada sobre bottomless. Então as empregadas passaram a usar sutiã, mas despidas para baixo. A natureza humana é muitas vezes resistente àquilo que o Estado, ou que neste caso o município, manda fazer. E isto não para de me surpreender. Eu lembro-me que quando foi aprovada a lei do tabaco, fui a Mirandela, saí à noite e fui a bar. O bar fumava-se como se não houvesse amanhã. E eu disse mas a lei já foi aprovada há ano, porquê que se continua a fumar? E eles diziam, ah mas não vem aqui ninguém fiscalizar, portanto nós não queremos saber. As pessoas que querem fumar podem fumar à vontade.
José Maria Pimentel
Mas depois, desculpa interromper, é caso interessante o caso da lei do tabaco porque eu lembro perfeitamente disso. Portanto, parecia que aquilo não ia lá a nenhum, até que...
António Tavares
Porque nós demoramos muito, nós não reagimos imediatamente às leis. Mas nós aprovamos leis que são borderline estúpidas E há uma em particular, o decreto-lei nº 82, barra 2019 de 27 de junho. Sabes o que é que isto é?
José Maria Pimentel
Não.
António Tavares
Claro. Isto é conhecido, é a famosa lei dos microchips nos gatos. Isto foi uma lei aprovada por alguém que tem gatos em apartamentos. Faz sentido. Tens gato num apartamento, pões chip no gato e o levam ao veterinário regularmente, etc. Mas demonstra bastante desconhecimento do que é que se passa no resto do país. Em pequenos lugares, em aldeias, etc, os gatos são comunitários. Comem numa casa, dormem noutra, andam num território. É preciso uma administração pública para implementar e para monitorizar a implementação desta lei. Onde é que nós vamos arranjar organismo que vá garantir que os gatos de todo o país têm chip? Isso é absolutamente inviável e irreal. Muitas vezes eu acho que há desconhecimento de como é que as pessoas reagem a leis que são destituídas de bom senso. Para muitas pessoas em zonas rurais isto é absurdo, não faz sentido nenhum. As pessoas riem. Os malucos de Lisboa aprovaram aqui uma lei que não faz sentido nenhum. E a verdade é que isso sucede. Quer dizer, vais a qualquer sítio, aqui a minha zona é mais rural e eu percebo isso bem. Eu vejo que os gatos andam por aí na rua e toda a gente acha normal. Os meus vizinhos andam-nos de comer e eles dormem num sítio. Então é uma coisa normal. Existe decreto de lei, houve alguém que se deu ao trabalho de aprovar decreto de lei sem pensar muito bem como é que depois a implementação vai ocorrer.
José Maria Pimentel
Nós temos muito jeito para criar legislação, menos para as implementar, não é? E como tu dizes no livro, menos ainda para depois avaliar.
António Tavares
Pois, menos ainda para avaliação. E algumas coisas, eu estou a brincar, foram alguns exemplos caricatos, mas há questões mais sérias. Também nos Estados Unidos eu tive contacto com uma situação em que a Câmara Municipal de Tallahassee decidiu contratar uma empresa privada para fazer a recolha do lixo. Mas escreveu no contrato que a recompensa à empresa seria feita com base no peso. O custo da recolha do lixo triplicou da produção pública para a produção privada. Porquê? Porque a empresa, os caminhões passavam na sede para serem regados antes de serem pesados na câmara municipal. E isto é não compreender muitas vezes a natureza humana e a tentação de conseguir lucro à custa do...
José Maria Pimentel
Os incentivos, no fundo, não
António Tavares
é? São incentivos.
José Maria Pimentel
Isso lembra aquela história que deves conhecer do... Isto acho que se passou na Índia, que havia uma praga de ratos, ratos ou ratazanas, e o governo, acho que na altura isto era durante a ocupação britânica, no tempo da Índia britânica, como se chamava, e o governo passou a dar prémio a quem matasse os ratos. Mas para as pessoas não estarem a levar o rato inteiro e ficou todo o problema de saúde pública que isso implicaria, eles basicamente pagavam pela calda. Obviamente o que aconteceu foi que as pessoas começaram a criar ratos em casa para depois lhe cortar a calda. Acho que a história é assim, acho que não estou a contar mal, mas no fundo o princípio é o mesmo.
António Tavares
Mas isso é não compreender muito bem a natureza humana e eu tendo a pensar que muitas vezes os legisladores não compreendem a natureza humana e também não compreendem a dimensão da tarefa que é monitorizar a legislação ou implementá-la. E claro, o exemplo da recolha de resíduos sólidos em Tallahassee é apenas exemplo que ilustra problema atual da administração pública, que é no... Nos casos em que o serviço público é prestado por privados, tem que haver muito cuidado nos contratos que se fazem e na forma como é que as cláusulas de rescisão são acionáveis. O problema é que existe desfazamento muito grande entre a capacidade, em termos jurídicos, das empresas versus o Estado. Eu acho que o Estado tem manifestas insuficiências ao nível da capacidade jurídica dos seus quadros. E isso depois revela-se em contratos muito desequilibrados, em que é tudo muito protetor do interesse do privado e o interesse público muitas vezes fica sacrificado. Aliás, o Nuno Ferreira da Cruz, que não sei se conheces, escreveu uma tese que tem diversos artigos e em que realça precisamente este ponto. Ou seja, que os contratos que são elaborados entre o setor público e o setor privado para abstenção de serviços muitas vezes estão mal calibrados. Protegem muito aquilo que é o risco do privado e, no fundo, atribuem o risco todo ao setor público.
José Maria Pimentel
Por desconhecimento, não é? Por falta de... Muitas vezes
António Tavares
por desconhecimento. É evidente que eu não estou a falar de questões relacionadas com a corrupção, nem nada desse género. Claro, claro. Estamos a falar muitas vezes de preparação técnica e desconhecimento.
José Maria Pimentel
Sim. Eu quero ir a esse ponto, era dos pontos que eu queria falar, porque esse é ponto muito relevante e acho que se fala pouco. A questão da, aquilo que se chama na literatura, state capacity, capacidade de estado, e que no fundo tem a ver com isso e acho que é desafio grande porque é uma coisa que o pessoal brasileiro perdeu-se nos últimos anos e ao mesmo tempo o mundo tem mudado muito, tem se tornado mais complexo e por isso até esse gap, esse desvio tem aumentado. Mas já lá vamos, só para seguir aqui a nossa ordem, deixa-me voltar, para fechar aquele tema que estávamos a discutir há bocadinho, da ligação entre a política no fundo e a administração pública, há uma coisa que eu já reflito, há duas vezes eu fiquei curioso, que é o facto do nosso modelo ser inspirado no modelo britânico. E eu imagino que a gente que esteja a ouvir tenha tido a mesma dúvida porque a maior parte da nossa, quer dizer, aquilo que nós fomos copiar na maior parte das áreas da nossa organização, da nossa legislação, entre outras coisas, é o modelo francês. Portanto, é curioso termos, eu não fazia ideia disso, termos ido copiar o modelo britânico no que toca à administração pública. Como é que isso aconteceu? Foi no Estado Novo? Foi copiar isto é, inspirar-nos?
António Tavares
Vamos lá ver. Não é bem assim. O nosso modelo político, digamos assim, de parlamento, é inspirado no modelo Westminster, mas a administração pública é fortemente inspirada no modelo francês. Portanto, aí não há que não haja dúvidas.
José Maria Pimentel
Ah, ok. Ok, ok.
António Tavares
Quando eu estava a falar da inspiração no modelo britânico, referia-me mais à questão da relação que se estabelece entre o ministro e o dirigente. Essa relação é que é mais próxima do modelo britânico. Toda a administração pública portuguesa é fortemente influenciada pelo direito administrativo. E isso, nós no início foi ponto que não abordamos, mas isso explica também o porquê da menorização da área da administração pública em termos de ensino e investigação perante outras áreas e, em particular, do direito. A administração pública em Portugal foi ensinada sempre em faculdades de direito. Exato, exatamente. E foi menorizada. Ela na verdade é a administração pública é quase uma disciplina do direito administrativo. É quase uma nota rodapé dos livros do professor Freitas do Amaral. E nesse aspecto, isso não contribui nada para o crescimento da área enquanto área de investigação. E nós ainda hoje lutamos com bastantes dificuldades em termos de quadros e, em particular, doutorados em administração pública pura, digamos assim. Porque há muita gente que é doutorado em ciências sociais e que depois faz teses com uma vertente de administração pública. Mas doutorados em administração pública são raros. Eu, na altura, tive que ir para o estrangeiro
José Maria Pimentel
para me doutorar. Pois é, e como é que é o modelo... Ou seja, no nosso modelo, no fundo, a administração pública está mais próxima do direito. E eu lembro-me, aliás, lembro-me de estar na faculdade e salvo erro tinha acabado de surgir o curso de administração pública, não sei se chamava exatamente assim, na faculdade de Direito. Em outros países está associado a quê? Às ciências sociais, está associado à gestão, tende a estar mais na orla de cursos.
António Tavares
Varia muito consoante a tradição do país. Claramente nos Estados Unidos era uma área, uma sub-área da ciência política e esse foi o modelo que nós implementamos no Minho, embora inicialmente a administração pública estivesse debaixo da gestão, portanto nós estávamos debaixo da gestão privada, emancipámos-nos no início do século 2003 por aí e constituímos departamento que hoje é departamento de ciência política, com essencialmente três ramos, embora dois principais, administração pública e relações internacionais. Noutros países, na Europa, há muita influência da ciência política, também, na Europa continental, mas depois temos nuances. Por exemplo, no caso alemão há muita influência do direito também, por razões também históricas. Nos países nórdicos a influência é mais próxima da ciência política, mais visível da ciência política.
José Maria Pimentel
Interessante. Olha, e voltando ao que estávamos a falar há bocadinho, tu falaste há bocado da Cresap, ou seja, da entidade que nomeia os diretores gerais, no fundo os dirigentes superiores
António Tavares
das instituições públicas. Diretores gerais, subdiretores gerais, sim.
José Maria Pimentel
É até aí, não é?
António Tavares
Presidentes de institutos públicos, evogais de institutos públicos, fundamentalmente esses quatro.
José Maria Pimentel
Como é que esse sistema de nomeações evoluiu no passado recente? Porque a Cresap é uma criação que há aí 10 anos, 15 anos, sabe o erro? Tem 11,
António Tavares
se não estou enganado. 11 ou 12.
José Maria Pimentel
Exato. Pois faz sentido, exatamente. Ou seja, houve aí uma tentativa de, de certa forma, independentizar, não sei se essa palavra não existe, tornar as nomeações mais autónomas e meritocráticas. Eu acho que é a ideia por trás da Cresap, mas a minha pergunta é mais outra, voltando à tua distinção de início, é mais sobre o que é que acontece na prática. Isso tem resultado? Ou seja, têm havido melhorias a esse nível? E, da possível, sei que tu não partilhas essa tese, portanto, do teu ponto de vista, isso se calhar até nem faz sentido, mas procurando-se ter essa maior meritocracia?
António Tavares
Não, e eu sei que, enfim, isto é puramente anedótico no sentido que é casuístico. Não estudei o assunto de forma aprofundada. Mas uma das coisas que eu digo no livro é que não há estudos sobre o perfil, digamos, das seleções que são feitas por via da Cresap. Mas há algo que nós sabemos. Nós sabemos que primeiro, como a Cresap não lida com gestão intermédia, estamos a falar de número muito mais diminuto de casos. Mas a tua pergunta era como é que as nomeações evoluíram, ou como é que este processo evoluiu. Na verdade, tecnicamente isto não são bem nomeações políticas no sentido mais tradicional do termo. Pois, justamente. Tradicionalmente a nomeação era totalmente livre para os governos. Desde a Cresap o que acontece é uma seleção de três nomes e depois o ministro responsável pode escolher desses três nomes. O que é que nós sabemos? Sabemos que muitas vezes este mecanismo de seleção fica deserto ou tem único nome. E portanto, na verdade, a Crensap não pode inventar candidatos. Se só há nome, é esse o nome que é proposto. A shortlist tem alguma vantagem no sentido em que permite dar uma sensação de competição para o lugar. Se ela é real ou não, eu diria que isso varia muito consoante os casos que estamos a falar, A percepção que eu tenho, e eu faço notar, isto é apenas uma percepção porque eu não tenho dados para dizer isto, a percepção que eu tenho é que muitas vezes o escolhido é aquele que já sabe que vai ser escolhido. Portanto É alguém que o ministro quer e que depois tem dois concorrentes, mas que não tem a partida possibilidade. A mim já me relataram muitas situações em que os outros candidatos não têm sequer habilitações ou capacidade. Para isso são apenas propostos para fazer o número dos três e depois permitir que o ministro escolha aquela pessoa que verdadeiramente lhe interessa. E repara que eu aqui não estou a criticar o procedimento. Eu acho que o procedimento é aquele que a lei permite e é legal. Pode-se dizer, mas isto é recrutamento com base no merit. É bastante discutível que seja.
José Maria Pimentel
Sim. No limite, enfim, estou a pensar, estas coisas também muitas vezes batem com a realidade e às vezes não há, às vezes só há mesmo uma pessoa, e às vezes, lá está, e o problema aqui não é a nomeação que o ministro quer ser necessariamente má. No personagem seria estar a assumir que os ministros são apenas seres mais ou menos maquiavélicos a nomear toda a gente por questões políticas.
António Tavares
Claro. E eu considero que é mesmo assim. Ou seja, muitas vezes a pessoa que o ministro quer é a pessoa que tem mais experiência para ocupar aquele cargo. Pois, justamente. É por isso que o ministro UOA deseja. Isso faz sentido. É por isso que eu fico muito menos chocado com a partidarização ao nível da direcção superior, porque eu acho que há de facto elo de confiança que tem que existir entre o ministro e os diretores gerais. O meu problema está, como eu disse anteriormente, na gestão intermédia, em que aí eu não espero isso. Eu espero boa gestão e, no fundo, cumprimento daquilo que são as definições estratégicas do TOE.
José Maria Pimentel
Já falámos disso há bocadinho, mas, Ivi, não temos a mesma perspectiva, mas eu diria que não é impossível casar essas duas perspectivas.
António Tavares
Não, não é incompatível.
José Maria Pimentel
No sentido em que tu podes ter, por ser uma nomeação política, não quer dizer que não se possa assegurar o mínimo de competências técnicas. E o que acontece muitas vezes, estou a ter experiência pessoal, é que muitas vezes são nomeadas pessoas que não têm essas competências técnicas, não têm essa experiência. E isso pelo menos devia estar assegurado, não é mesmo que depois possa haver a questão da cor política. E já agora que estamos a falar de ministros, a outra dúvida que eu tenho tem a ver com os ministérios, porque a sensação que eu tenho é que as equipas que trabalham para cada ministério têm uma rotação também muito grande, ou seja, os assessores no fundo. E enfim, eu, se calhar na minha ingenuidade, achava que seria desejável haver pouco mais de estabilidade. Claro que é normal que cada governo, cada ministro traga pessoas lá está, quer dizer, o teu argumento tem algum cabimento para os diretores gerais, mas cabimento ainda tem para os membros da equipa do ministro, Mas não seria desejável que houvesse alguns membros permanentes?
António Tavares
Não necessariamente. Aí por acaso... Ah é? Curioso. Não necessariamente. Porque num caso nós estamos a falar, nos diretores de jaz, nós estamos a falar em alguém que vai, presumivelmente, definir orientações estratégicas para toda a organização. No caso dos assessores a questão é bastante mais complicada porque muitas vezes os assessores são nomeados por razões puramente políticas. No sentido, Estas pessoas andaram na campanha a colar cartazes e agora vão ser as escolas. Não há concurso.
José Maria Pimentel
Não há concurso.
António Tavares
E isso aí é mais problemático. Porque aí é que deviam estar pessoas com capacidade técnica para ocupar os lugares. Porque essas pessoas têm o papel fundamental de proporcionar informação atempada, precisa, correta, até cientificamente correta, o mais útil possível e o melhor preparada possível para garantir que o ministro toma boas decisões.
José Maria Pimentel
E outra questão, que é, ia dizer isso provavelmente agora, que é garantir que não se perde a memória ao longo do tempo. Ou seja, que quando chega ministro novo, ele pode ter uma opção política diferente do ministro ou da ministra anterior, mas pelo menos mantém acesso à mesma informação. Exatamente.
António Tavares
E aí temos de facto muita instabilidade. Aí existe corpo de funcionários, de assessores, dos ministros que entra e sai com o governo. E isso aí É de facto questionável. É de facto questionável. Sobretudo porque eu considero que muitas vezes para esses cargos são nomeadas pessoas que não têm competências. São recém-licenciados, não têm experiência. Há toda uma série de dificuldades associadas e o objetivo central é muitas vezes a recompensa pelo trabalho político, que é nobre, ok? As pessoas têm que se envolver nas campanhas eleitorais e isso faz parte da democracia, mas não têm necessariamente que ser recompensadas com lugares de assessores, com bons vencimentos e em que o trabalho que é feito teria que ter uma natureza muito mais técnica e melhor preparação até científica da parte das pessoas que são nomeadas.
José Maria Pimentel
Absolutamente. E como é que nós comparamos com outros países?
António Tavares
Pois aí é que eu acho que não comparamos muito bem, porque para tu veres, eu estive na Flórida e a Flórida tem centro só de preparação de analistas de políticas públicas. E essas pessoas o que fazem é estudar políticas públicas setoriais no ambiente, na saúde, na educação, na ação social, etc. E estudam e depois tornam-se assessores ao nível estadual, muitas vezes, mas depois também acabam em Washington, muitas vezes assessorando políticos. O que não quer dizer que não haja afiliações partidárias, também existem, mas são pessoas com afiliação partidária e preparação técnica, portanto, reúnem as duas condições. O que é que eles são? São, muitas vezes, não são licenciados em administração pública, isto é importante dizer-se, e essa é uma singularidade portuguesa, nós temos licenciaturas de administração pública, mas por exemplo na Flórida, na universidade onde eu andei, só havia mestrado e doutoramento, portanto só os dois níveis mais iguais, não havia licenciaturas. Normalmente as pessoas que iam para o mestrado de administração pública vinham de direito ou de inglês ou de outras licenciaturas com uma preparação mais genérica. Mas estas pessoas tiravam fundamentalmente mestrados práticos de análise de políticas públicas ou de administração pública, que as preparavam depois para ocuparem estes lugares. E estes eram assessores, no fundo estas pessoas fazem o papel de assessores, mas com uma preparação técnica sólida, métodos sofisticados, muitas vezes até métodos quantitativos altamente sofisticados. Alguns vêm da área da economia, outros vêm de uma área mais próxima da ciência política e da análise de políticas públicas. Mas é este o perfil dominante. Nós em Portugal, e isso é uma tristeza minha, Nós não reconhecemos a profissão de analista de políticas públicas. Analista de políticas públicas muitas vezes é assessor que não tem preparação em análise de políticas públicas. Talvez as coisas, enfim, lentamente estejam a mudar, mas estamos muito longe dos americanos que começaram a preparar isto nos anos 60, na sequência daquilo que foi o programa de guerra à pobreza, a luta contra a pobreza, e que gastaram milhões e milhões de dólares em programas públicos e depois tiveram que os avaliar. E quem é que veio fazer a avaliação? Os analistas de políticas públicas.
José Maria Pimentel
Exato, sim. Mas nós como também não temos muita avaliação de políticas públicas, não é precisamente falta... Ora! Falta... Agora! Onde falta a procura, falta a oferta.
António Tavares
Estamos a chegar a completar o círculo do Lens e Cine. É mesmo isso.
José Maria Pimentel
Exatamente. Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no site 45grauspodcast.com. Selecione a opção apoiar para ver como contribuir diretamente ou através do Patreon, bem como os benefícios associados a cada modalidade. No início tocámos neste tema e eu prometi que lá voltávamos sobre a questão da avaliação de desempenho, chamemos-lhe meritocracia, muitas vezes é o nome que é usado curiosamente nesta literatura. E eu tenho uma dúvida grande porque ninguém duvida que qualquer organização, inclusive a administração pública, deve ser bem gerida e portanto deve ter sistemas que consigam medir o desempenho das pessoas e, de certa forma, permear esse desempenho. O problema é que é numa organização, que ao contrário de uma empresa, não tem o chamado bottom line, não tem lá resultado em relação ao qual tu possas estabelecer métricas, métricas que depois possam ser avaliadas, quer dizer, de uma maneira quantitativa, independentemente das limitações que isso tem sempre, não é? Como é que tu faz isso? Ou seja, como é que na prática é possível fazer essa avaliação de desempenho e como é que isso tem evoluído nos últimos anos a nível global e como é que isso tem evoluído em Portugal, em particular? Mais uma pergunta grande. Desculpa.
António Tavares
A pergunta sobre avaliação de desempenho é sempre Uma pergunta difícil de responder. Mesmo muito difícil. Ao contrário das outras, eu disse que são difíceis, mas que têm respostas possíveis na casa da avaliação de desempenho. As coisas são mesmo complicadas. Bom, comecemos pelo que foi a evolução em Portugal. Nós temos longo historial de ausência da avaliação. Ou seja, nós tínhamos a avaliação de desempenho dos funcionários formal, mas depois na prática ela não se traduzia em nada. Toda a gente tinha bom ou muito bom e nada se fazia. O CIADAP, o Sistema Integrado de Avaliação de Desempenho da Administração Pública, que foi estabelecido em 2004, pretendia acabar com isto e introduziu aquelas famosas cotas em que se dava 5% aos excelentes, 20% aos muito bons e os extras que seria distribuído pelas restantes categorias. A ideia de cotas que eu, na minha carreira, já dei formação a pessoas da administração pública, dirigentes, funcionários, toda a gente detesta a ideia de cotas e não há quase ninguém com quem eu fale que não diga mal das cotas.
José Maria Pimentel
Confero com a minha experiência, enfim, mais curta, mas também falo.
António Tavares
O problema é que se nós não impusermos cotas, Os dirigentes dão tudo classificações altas.
José Maria Pimentel
Por isso é que eu não sei como se resolve isto, não é? Porque se tu tiveres numa empresa, tu não precisas de impor cotas. Tu dizes, olha, se a empresa tiver bons resultados, se tiver boa avaliação, se tiver maus resultados, vai haver... O que em si mesmo muitas vezes não é justo, porque a flutuação dos resultados não corresponde necessariamente ao esforço das pessoas ou à capacidade das pessoas. Mas é uma maneira quantitativa.
António Tavares
E há bónus diferenciados, ou seja, diretor de uma empresa pode escolher atribuir cheque maior de incentivo ou de recompensa a funcionário do que o outro. Tem essa liberdade. Nós, na administração pública, as coisas estão bastante mais restringidas a esse nível. Eu costumava dizer, quando, isso também se aplica agora, quando eu era professor auxiliar, que havia 600 professores auxiliares na universidade minha e eram todos igualmente competentes. Porquê? Porque não há diferenciação celularial, não há diferença nenhuma entre eles, ganham todos o mesmo ao fim do mês, não há diferença de desempenho. Quando nós na verdade sabemos que há diferenças de desempenho e aliás basta comparar depois currículos na prática e percebemos que há diferenças de muito grande desempenho.
José Maria Pimentel
A necessidade de impor cotas só surge porque tu não consegues diferenciar de outra maneira. É que é quase absurdo.
António Tavares
Não se consegue colocar os dirigentes no fundo a tomar decisões sobre o desempenho dos funcionários, dizendo que esta pessoa merece uma nota superior e como tal vai ter depois conjunto de incentivos associados à nota superior que teve. E isso, digamos, a constatação de que não conseguíamos fazer com que os dirigentes fizessem isso, foi o que obrigou à criação das cotas. E eu sei que há, nem sei se isso está escrito, mas presumo que sim, que havia uma intenção de lentamente fasear o desaparecimento das cotas, na expectativa de que, depois de criar uma cultura de avaliação do desempenho individual, era possível abolir o sistema de cotas e deixar que depois as organizações tomassem as decisões que tivessem que tomar. Acontece que isso não é assim. Daquilo que eu sei, em muitas universidades, por exemplo, os professores continuam a ser avaliados todos com notas muito elevadas, excelentes e não sei o quê. E depois a cota é aplicada no final. Portanto, a seleção de quem são os que recebem os 5% no topo e depois os 20% seguintes é aplicado no final. A avaliação continua a ser, continuamos a ser todos muito bons e excelentes e depois só se aplica a cota porque somos obrigados a aplicá-la, porque caso contrário isso não seria feito.
José Maria Pimentel
Então não há uma maneira de contornar isto?
António Tavares
Não. Isto é a natureza humana.
José Maria Pimentel
Há países onde...
António Tavares
Os Estados Unidos têm uma experiência mais musculada, digamos assim, com a avaliação de desempenho. E eu também devo dizer que a experiência mais musculada também não é necessariamente ótima porque gera ambientes de trabalho extremamente competitivos, gera muito mau ambiente entre pessoas. Que, aliás, isso também existe em Portugal de algum modo, porque a certa altura nas organizações em que as cotas verdadeiramente são aplicadas, Isso gera muita instabilidade e indignação da parte de quem fica de fora.
José Maria Pimentel
Porque alguém vai ter de escolher, não é?
António Tavares
Sim, alguém tem que fazer a escolha. Depois começam a especular-se porquê a escolha é feita de determinada maneira. Porquê é que é aquela pessoa e porquê não sou eu. E, portanto, não é fácil aplicar sistema de avaliação de desempenho que seja, digamos assim, viável sem a presença das cotas e mesmo com a presença das cotas isso não resolve todos os problemas. E eu sinceramente não tenho uma solução mágica para isto. Sou melhor a fazer diagnósticos, propriamente a apontar caminhos, mas é mesmo assim.
José Maria Pimentel
Enfim, na verdade, como tu sabes melhor que eu, a literatura original sobre isto, do Max Weber e tal, o modelo weberiano, olha para isto com os olhos diferentes, não é, no fundo, no fundo se eu entendo bem, obviamente não sou especialista nisso, a ideia é que o Estado é de facto diferente dos privados e portanto isto não é possível, no fundo está implícito naquela proposta que não é possível implementar sistema desse género como, sei lá, tu numa empresa podes implementar uma equipa de vendas, por exemplo, que estabelece objetivos e se está acima recebe prémio, se está abaixo não recebe. E, portanto, a lógica de motivação dos funcionários públicos é diferente, não é? É mais uma lógica de motivação intrínseca e, portanto, a ideia, e corrijo-me se eu estou a transmitir isto mal, é que eu acho, aliás, que a proposta dessa escola era que os funcionários públicos recebessem bem, até porventura recebessem acima do privado, pelo menos descontando esse bónus, descontando essa componente variável, de maneira que tivessem essas seguranças e depois tivessem uma motivação intrínseca vinda até da sua reputação. Seja a sua reputação externa, ou seja, externa para a sociedade, seja a reputação interna de tu seres, imagina que tu ou eu, que é a gente, funcionários públicos, o António Tavares é o tipo que é extremamente competente nesta área, não é? Portanto, dentro daquele, tu não precisas de o provar, não é? Pelo teu conhecimento, estás lá há tempo suficiente e és a pessoa a quem as pessoas vão quando precisam de saber algo, não é? Portanto, é essa a lógica, enfim, como todas estas coisas, de ser o quê? Romântico, não é? Mas se calhar não é completamente descabido.
António Tavares
Não. E o modelo de Abrian tem, na sua formulação original, aumento salarial, uma recompensa salarial associada à senioridade. Portanto, à medida que a pessoa vai estando mais tempo na organização, vai tendo salário superior. E isso é, no fundo, reconhecimento da acumulação de conhecimento. Que a pessoa que está na organização há muitos anos tem grau de conhecimento muito mais aprofundado e uma preparação melhor do que alguém que acaba de entrar.
José Maria Pimentel
Admitido que se é linear e que acontece para toda a gente. Eu não disse que isso
António Tavares
que era necessariamente assim. Claro, claro. Mas que no modelo ideal isso seria a expectativa que ocorreria. Uma coisa é diferente. É uma espécie de recompensa social ou de prestígio associada que parece que era o que estavas a tentar dizer.
José Maria Pimentel
Exatamente. Eu estava a falar das duas coisas, não pera, estava a falar das duas coisas.
António Tavares
E nesse aspecto, uma das coisas que eu constatei é que quer a área de investigação, quer ser funcionário público nos Estados Unidos, há maior prestígio associado à função. E em Portugal também já houve. Lendo, sobretudo, literatura do tempo do Estado Novo, percebe-se que os funcionários públicos tinham certo prestígio social. Sim, sim, sim. Isso foi-se perdendo. Eu lembro, aliás, não sendo funcionários públicos no sentido tradicional, lembro, aliás, a reputação que tinham os professores primários. Os professores primários tinham uma reputação muito reconhecida, até na literatura portuguesa. Isso foi-se perdendo, foi-se perdendo em parte porque a massificação do sistema traz alguma proletarização destas funções. E por isso nós obtemos hoje, é uma administração pública muito grande, e essa administração pública, em alguns casos, estamos a falar de milhares e milhares de funcionários que não podem ser remunerados, altamente remunerados, nem têm o mesmo prestígio que tinham quando eram uma elite. Isso é preço a pagar associado à criação de mais e mais funções do Estado e que, no fundo, é comum a todos os países. Nós aqui não somos caso particularmente único. Somos é caso tardio, mas isso é outra história, está relacionado com a nossa história.
José Maria Pimentel
Exato. É engraçado porque o sucesso nos Estados Unidos há uma reputação maior dos funcionários públicos, o que provavelmente, para quem nos está a ouvir, parece paradoxal, tendo em conta que os Estados Unidos têm modelo muito mais capitalista, não é? Muito mais pró-privados do que o nosso, não é? Aliás, aquele ponto de partida que eu dava no início, que se fala muito política e até não se fala muito de empresas, nos Estados Unidos não é bem verdade. Nos Estados Unidos há uma série de... Quer dizer, vendem-se biografias de CEOs de empresas, o que aqui em Portugal é bastante
António Tavares
difícil de acontecer. Mas há sobretudo. Os funcionários do nível federal têm alguma respeitabilidade. O prestígio vai diminuindo à medida que nos vamos aproximando dos níveis inferiores. Funcionário local tem menos prestígio do que estadual e estadual tem menos prestígio que o federal. Mas quando nós pensamos nos funcionários do governo federal, existe prestígio e não só, existe muitas vezes a ideia de que são politicamente neutros. Eu devo lembrar o que é que Foi uma pessoa que era funcionário totalmente anónimo da Geórgia que resistiu àquele telefonema do Trump para lhe arranjar 11 mil votos. Não sei se conheces esse caso.
José Maria Pimentel
Não, não me lembro a verdade. Há uma história muito famosa
António Tavares
nas eleições Trump-Biden de 2020 em que há funcionário na Georgia, no estado da Georgia, quem o Donald Trump telefona pedindo para lhe arranjar 11 mil votos, na presunção de que os 11 mil votos lhe dariam a vitória no Estado. E o funcionário resiste, o funcionário resiste, não abdica dos seus princípios. E isso mostra várias coisas. É esclarecedor, primeiro, do que é verdadeiro funcionário público, é aquela pessoa que defende o interesse público, não aceita pressões políticas, não aceita coação para determinada ação, mas defende aquilo que são as normas e os regulamentos a que está obrigado. No fundo, protege o interesse público. E o que nós esperamos é que os funcionários públicos protejam o interesse público. Essa É uma ideia central no ensino da administração pública. Há várias preocupações que temos e uma delas, nós sublinhamos muitas vezes questões de justiça, equidade, universalidade na prestação de serviços, etc. Mas esta da proteção do interesse público é fundamental, que eu, aliás, já tinha mencionado quando falámos de contratos com privados e o princípio é o mesmo.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim, exatamente. E, aliás, ia exatamente falar disso agora, porque, na verdade, essa proteção do interesse público, enfim, Se olharmos para cada de nós individualmente, essa propensão a proteger o interesse público varia consoante a nossa personalidade e a nossa formação, mas a nível mais estrutural também estará correlacionado com o que lá está com a motivação da pessoa e com o próprio prestígio da posição, lá está, aquilo de que falávamos há pouco. E aí, por acaso, preocupa-me pouco essa perda de prestígio dos funcionários públicos, sendo que eu até acho que o nosso ponto de partida era, enfim, em certo sentido característico de uma economia pouco dinâmica, quer dizer, aquela coisa que acontecia não há tanto tempo assim, quer dizer, do sonho de muitos pais ser que os filhos fossem para o Estado. Sim, sim. Isso não parece bom, mas ao mesmo tempo também não me parece de todo bom que haja desprestígio do estatuto de funcionário público porque aí precisamente tu geras uma cultura em que as pessoas não ganham especialmente bem, é verdade que têm a proteção do emprego, mas não tem aquela coisa de ir à rua e ter certo orgulho de ser funcionário público.
António Tavares
Isso parece mesmo muito mau, aliás. E eu estava a elogiar os Estados Unidos, mas há uma profissão especificamente nos Estados Unidos que tem perdido muito prestígio, que é a profissão de professor. E aqui também estamos a assistir pouco à mesma situação. E a educação, não sendo eu especialista, parece-me que é elemento central, uma das políticas mais importantes de país, no sentido de promover o seu desenvolvimento. E se nós não valorizamos os nossos professores, isso depois acaba por se refletir na qualidade de muitas das nossas instituições. Isso é uma preocupação justificada e verdadeiramente juduína.
José Maria Pimentel
E na verdade com os professores, eu até há bocado também estava a lembrar dos professores, porque passa-se uma coisa parecida com isso que nós estávamos a dizer, também é muito difícil avaliar professores, Apesar de tu tens, enfim, notas e tens algumas maneiras de medir a aprendizagem, é talvez apesar de tudo pouco mais fácil do que noutras áreas, mas não deixa de ser difícil, e era sistema em que muitas vezes tu tinhas esse tipo de motivação intrínseca e de reputação que o professor tinha, não é? Podia não ganhar mais, mas toda a gente sabia que era o melhor professor, não é? Não quer dizer, claramente, isto não era suficiente para garantir uma boa educação, mas era aspecto positivo que se perdeu e depois prejudicou o impacto.
António Tavares
O que é mais agravante é que, para além dessa perda de prestígio, gerou-se outro movimento que é, a meu ver, muito prejudicial ao ensino, não só em níveis de ensino não superior, mas até no nível superior, que é o excesso de burocracia com que os professores são sobrecarregados. Os professores têm que fazer imensos relatórios, têm que preencher imensas plataformas e sistemas. Eu como professor universitário queixo, mas eu nem imagino o que é que acontece ao nível dos professores do ensino não superior. E isso retira muitas vezes a energia das pessoas para fazerem aquilo que é verdadeiramente o core da sua profissão. No meu caso será ensino em investigação, no caso dos professores do ensino superior será ensino com qualidade e com estándares elevados. E isso infelizmente é algo que nós temos assistido em muitos sectores. Uma certa ideia de que para se ter bom desempenho tem que se preencher bem papéis. E isso é sinal de qualidade.
José Maria Pimentel
Tu falas disso no livro também.
António Tavares
Eu todos os semestres tenho que preencher uns relatórios em que digo quais são as forças, as fraquezas, as ameaças e as oportunidades de cada unidade curricular que eu leciono. Isso é uma coisa completamente abstrusa, não faz sentido nenhum. Ou os alunos saem satisfeitos com aquilo que aprenderam ou não saem. E se não saem, isso é vocalizado através da hierarquia. O diretor de curso sabe, o diretor da faculdade consegue saber. Há formas de transmitir esta informação. Não é preciso obrigar os professores a preencher esta papelada toda. Há sistema que se diz de gestão da qualidade, mas que na verdade, e isto é o resultado daquele casamento muito perverso entre o direito e a gestão, que é aplicar princípios supostamente de gestão e de avaliação da qualidade num sistema que está burocratizado e assentem no direito. E depois as pessoas comportam-se exatamente como se espera que se comportem num sistema em que têm que cumprir conjunto de regras. Cumprem apenas por zelo. Quer dizer, fazem aquilo, mas não têm interesse nenhum em perceber se aquilo ajuda ou não ajuda ao desempenho. E, na verdade, é irrelevante, para sermos absolutamente sinceros.
José Maria Pimentel
Sim, parece que muitas vezes nós, quando tentamos fazer alguma coisa para melhorar a gestão, estão aqui num sentido lato, é que vamos é por introduzir mais burocracia, a gestão fica na mesma ou pior porque as pessoas ficam mais inundadas em burocracia, cumprir procedimentos. Eu acho, enfim, não sei se tu partilhas esta perspectiva, mas na minha experiência, a sensação que eu tenho é que em Portugal, muitas vezes, as coisas falham porque se olha só para o primeiro passo, ou seja, tu, por exemplo, claramente não tenho dúvidas de que devia haver problema enorme de informação, de perceber o tipo de acompanhamento que os médicos faziam aos doentes, devia haver uma variabilidade enorme de médicos que faziam acompanhamento próximo e outros que eram completamente superficiais e enfim, sem cuidado nenhum e, portanto, eu compreendo a necessidade de incluir, de implementar esse tipo de medidas, de no fundo ter alguma capacidade de perceber o que está a passar e ter algumas métricas. Depois o que me parece que acontece é que para-se nesse primeiro passo, porque tu depois tens que ter processo iterativo, implementas e depois verificas o que funciona, o que é necessário e o que não é necessário, o que precisas de acrescentar, mas também o que precisas de retirar, não é? E aí, a sensação que eu tenho é que é aí, é nesse passo que se falha, ou seja, as coisas falham porque não é suposto ficarem pelo primeiro passo.
António Tavares
E ainda tens uma coisa mais perversa, que muitas vezes tens corte no tempo de consulta, atribuída pelos médicos a cada consulta. Ou seja, não só tens menos tempo atribuído à consulta, mas passas mais tempo a preencher papelada.
José Maria Pimentel
Ah bom, é bom isso. É outra questão.
António Tavares
O que estávamos a dizer é que, à partida, a introdução de informação e a disponibilização de informação é algo necessário. E eu concordo com isso. Agora, não se pode cortar depois o tempo na consulta, porque aí acaba por se prestar pior serviço. Em vez de... Estamos muito preocupados com a qualidade da informação, mas pouco preocupados com a qualidade do atendimento e da substância.
José Maria Pimentel
Com o que no fundo interessa. Sim, isso, absolutamente. Nós estávamos a falar ainda agora da questão da reputação dos funcionários públicos, que tem diminuído, e a par disso tem diminuído também o próprio número de funcionários públicos. Esse não diminuiu assim tanto, mas diminuiu sobretudo, enfim, como na verdade acontece também nos professores que falámos há pouco, mas nos profissionais públicos em geral, diminuiu sobretudo a média, ou por outro aumento a média etária, ou seja, diminuiu o número de entradas de gerações mais novas, né? E isto parece-me ser desafio grande, né? E ao mesmo tempo, como eu lhe disse há bocadinhos, o mundo foi-se também tornando mais complexo e parece-me que tem havido pelo menos uma estagnação e até talvez uma deterioração da capacidade, no fundo técnica, do corpo das pessoas que estão na administração pública de lidar com esta complexidade. O exemplo que tu davas há bocado dos contratos com o privado, parece-me evidente, ninguém dá tiro no pé, a não ser que o Estado tivesse se infestado por pessoas daquela empresa particular que está a negociar, vamos supor, a PPP ou contrato qualquer, ninguém dá tiro no pé propositadamente, dá-o por desconhecimento, é uma espécie de assimetria de informação em que existe essa capacidade no privado e muito bem, mostra que as empresas são bem geridas, mas depois não existe no setor público. E depois ainda há outra variante disto, que também tem sido falado nos últimos anos, que é, percebendo o Estado que não tem essa capacidade, vai contratar muitas vezes consultoras e, portanto, fica na mão das próprias consultoras. Então acabas por ter, quer dizer, em certo sentido resolveste o problema na aparência, mas acabaste por criar efeito de segunda ordem, se calhar ainda pior do que o primeiro, porque acabas por ficar nas mãos de consultores, que estão a fazer o seu trabalho, mas cujo objetivo não é, obviamente, o bem público, como dizias há bocadinho.
António Tavares
Há várias notas em relação ao que disseste que eu acho que são importantes sublinhar. Há uma, para começar, que é evidente que hoje em dia o Estado não pode ser Estado produtor. O Estado produtor acabou enquanto tal. E é inevitável que o Estado recorra a privados e a chamada economia social, a organizações do terceiro setor, para desempenhar muitas funções que tradicionalmente faziam parte do perímetro do Estado, mas que hoje em dia podem ser perfeitamente desempenhadas por privados. E, portanto, esta fragmentação, no fundo, da criação de outras organizações que não do setor público prestam serviços aos cidadãos, era inevitável. E por isso agora o problema que se coloca é como é que nós conseguimos controlar essa fragmentação no sentido de garantir uma espécie de estado regulador que assegure que estas organizações fazem aquilo que é suposto fazerem, obtendo lucro, no caso dos privados, evidentemente, mas sem que os lucros sejam excessivos ou de alguma forma ilícitos, no sentido em que arrangem esquemas para cortar na qualidade, para melhorar o lucro, por exemplo. Que é uma coisa que aliás é muito frequentemente criticada na literatura anglo-saxónica. Os anglo-saxónicos passaram por experiências horríveis a este nível. As nossas são mais, nós temos umas experiências mais com parcerias com a privado rodoviárias e não sei o quê, mas os anglosaxónicos tiveram histórias absolutamente horrendas. Nova Zelândia teve quase que reformular a administração pública de raiz por causa de tudo o que aconteceu na sequência da externalização de serviços a privados.
José Maria Pimentel
Espera, espera, conta essa história que deve ser interessante.
António Tavares
Na sequência daquilo que foram políticas propostas pela OCDE nos anos 90, muitas administrações públicas por todo o mundo começaram, no fundo, a passar serviços que faziam parte do perímetro do Estado para privados e a contratualizar com privados. Alguns países foram muito cautelosos neste processo. Os países nórdicos, por exemplo, foram bastante cautelosos neste processo, até porque tradicionalmente têm estados grandes e setor público de dimensão significativa e, portanto, foram muito cautelosos neste processo. Os anglo-saxónicos não, mergulharam de cabeça e a Nova Zelândia foi o país mais entusiasta com isto. O que é que aconteceu? A certa altura tiveram uma espécie de visão do inferno, porque começaram a ter caso atrás de caso de contratos em que os privados cortavam na qualidade dos serviços, fosse de saúde, fosse de educação, para maximizarem o lucro. E a certa altura a coisa esteve tão fora de controle que a única forma que estes países encontraram foi, quando isto era feito a nível municipal, remunicipalizaram os serviços, ou seja, serviços que tinham sido externalizados passaram a fazer parte outra vez dos municípios e os municípios usarem os próprios orçamentos para prestar serviços e o Estado acabou, rasgou com muitos destes contratos. Lá está, com cláusulas acionáveis, ou seja, em que havia penalizações associadas e algumas que não estavam previstas nos contratos tiveram de ser resolvidas em tribunal. Ou seja, o Estado teve que levar as empresas a tribunal, uma atrapalhada de uma dimensão imensa. E tudo isto fez parte daquilo que depois ficou conhecido como nova gestão pública. Portugal também teve algumas experiências, mas apesar de tudo numa dimensão muito menor por comparação, porque o nosso estado continua a ser estado forte e pesado por comparação com outros países.
José Maria Pimentel
Ou seja, aqueles contratos de concessão, por exemplo, tinham sido mal negociados, ou seja, a definição do serviço que o privado devia prestar tinha sido feita de maneira pouco precisa, o que lhe dava depois uma margem para, no fundo, não prestar o serviço que se pretendia, mas prestar serviço pior, mais barato, para aumentar a margem de lucro. No fundo foi isso que aconteceu.
António Tavares
Nós também tivemos alguns desses casos. Temos caso muito famoso da externalização a privados das cantinas dos hospitais nos anos 80, inícios dos anos 90. Também correu muito mal, porque a externalização foi feita num mercado monopolista. Portanto, o catering podia ser ao preço que a empresa entendesse, com quebras de qualidade, etc. E isso foi muito contestado e deu para aprender algumas lições, por exemplo, que não se faz contracting out, não se faz outsourcing em mercados monopolistas porque não ficamos na mão da empresa que nos está a prestar o serviço. Esse tipo de coisas tão escandalosas já são menos frequentes agora. Mas ainda temos o problema associado à questão dos contratos incompletos. Os contratos são, parecidamente, incompletos, mas contratos que têm indicadores de desempenho que não correspondem àquilo que se pretende exatamente que seja o serviço prestado. E depois há uma espécie de cortar cut corners, que é a expressão que os anglo-saxónicos usam para conseguir, cortando na qualidade, conseguir maximizar o lucro. E isso, mais uma vez, é o interesse público que é sacrificado. Mas isso
José Maria Pimentel
é tema importante. Eu há bocado ia-te perguntar sobre isto e sobre as privatizações. Aqui, no princípio, é tema carregado ideologicamente. Eu tenho curiosidade de saber a tua opinião sobre isso, o mais científica possível, digamos assim. Porque aqui é tema que, se nós quisermos olhar de uma maneira imparcial, entendo-se dos dois lados. Entendo-se deste lado que o acabaste de referir, que é, obviamente, se ao fazer contrato há desafio grande em ter o contrato completamente blindado de maneira que depois aquela empresa que vai apostar e cujo objetivo é, obviamente, lucro, não é? Ter o resultado maior possível, que é essa empresa que vai apostar esse serviço. Na verdade, o serviço que se pretende que ela preste, não é? Portanto, por lado, é esse desafio. E depois, por outro lado, há aquela questão que referimos há bocadinho de ser muito difícil criar no Estado, quer dizer, criar na administração pública, aqui no sentido de lato, envolvendo empresas também do Estado, objetivos de gestão de desempenho, como nós falámos há bocadinho. Há alguma maneira de quadrar este círculo? Ou seja, há quer em Portugal, quer fora, bons exemplos de maneiras que tu consigas quadrar este círculo e de certa forma ter o melhor dos dois mundos, o interesse público dos funcionários públicos e a gestão mais eficiente dos privados.
António Tavares
Deixa-me fazer notar...
José Maria Pimentel
Se é que tu partilhaste estas premissas, agora.
António Tavares
Ponto prévio, que é, eu não sou economista e não sou jurista. Portanto, nós estamos aqui a entrar numa dimensão que eu não domino totalmente. Que é como é que se redigem este tipo de contratos e o que é que eles implicam. Dito isto, há alguns erros que eu, na minha opinião, são erros essenciais. É que não se acaba com contratos que estão a resultar, por razões ideológicas. E isso aconteceu com as PPPs hospitalares. Nós sabemos hoje que as PPPs no
José Maria Pimentel
domínio dos
António Tavares
hospitais funcionavam bem e foram terminadas por razões puramente ideológicas, não foi por questões de desempenho. E isso é problemático. Ao contrário, os PPPs rodoviários, que eram aquelas que correram verdadeiramente mal, essas pouco ou nada se fez acerca do desastre que foram. A forma de acautelar estas questões, para além daquilo que já mencionei em relação a ter do lado do Estado juristas melhor preparados para ler estes contratos de uma forma mais aprofundada, mais crítica e poderem, no fundo, defender o interesse dos cidadãos, há algumas salvaguardas que podem ser estabelecidas em termos de incentivos. Por exemplo, nós Temos, apesar de tudo, uma experiência bastante mais positiva ao nível do desempenho de organizações do terceiro sector em certas áreas de atividade. Estou-me a lembrar cuidados a idosos, por exemplo, em que os lares têm papel muito significativo. É quase inevitável que seja o terceiro sector a puxar este tipo de serviços. O Estado não pode ter, não pode ter lares, sobretudo para a quantidade de pessoas idosas que vamos tendo. Não é fácil fazer a quadratura do círculo, porque no fundo nós precisamos da especialização dos privados. O Estado não constrói estradas. Têm que ser empresas privadas e consórcios com bancos e outras instituições a garantir que as estradas são construídas. Por isso é inevitável que isto suceda e, portanto, eu acho que é sobretudo uma questão de capacidade do Estado para lidar com estes contratos e isso é o que eu acho que está a falhar.
José Maria Pimentel
Bom ponto. Esta questão da incapacidade do Estado de negociar estes contratos, de navegar determinadas áreas está relacionada também com aquilo que eu falava há bocadinho, de haver muita falta de pessoas novas a entrar na administração pública. Quer dizer, eu tenho amigo que me dizia, que trabalha na administração pública, que ele dizia, quer dizer, é tipo da minha idade, não é? E ele dizia que ele era tido como o rapaz novo que era... Que conhecia as novas tecnologias, não é? E eu conheço bem, enfim, eu sei que ele vai ouvir este episódio. Isso é muito verdade. Sei que ele vai ouvir, não é insulto dizer isto, mas não é o tipo mais técnico que eu conheço, embora se interesse pelo tema, Portanto, isso mostra de facto que há essa falta, não é? Quer dizer, há aí problema. E é uma coisa que eu acho que se fala pouco, não é? Eu sou, o que o podcast sabe, sou todo a favor de estado bem gerido, mas também é importante que tenha recursos, não é? E se não há recursos ao ponto de não compreender tecnologias novas, de compreender desafios novos, enfim, globalização, compreender esta questão dos contratos, fica complicado, não é? Fica complicado...
António Tavares
Eu queria, a propósito disso, e já vamos à questão da tecnologia, porque eu queria fazer ponto que eu acho que é importante e que está relacionado, e que é, se quiser, com a questão dos contratos, dos pontos mais essenciais, é dos desafios mais essenciais que se põe à administração pública. Mas já lá vamos. Eu quero me lembrar disso mais tarde, mas não quero revelar para já o que é. A questão que estás a mencionar é de facto muito mais importante que as pessoas pensam. Nós temos nas administrações públicas da OCDE mais envelhecidas. Eu acho que não há noção de que a proporção de funcionários públicos com mais de 55 anos, resulta que nós somos o quarto país com a maior proporção de funcionários acima dos 55 anos, o que é dramático. E por contraste, não temos assim tantos funcionários públicos.
José Maria Pimentel
Eu ia-te perguntar isso porque é uma discussão que muitas vezes ocorre, afinal estamos acima ou abaixo da média?
António Tavares
Se nos compararmos em termos que são comparáveis, como por exemplo a proporção de emprego no setor público versus emprego total, nós somos o 24º entre 33 países da OCDE. Portanto, muito abaixo da média. Já no caso da despesa pública com salários, estamos acima da média no âmbito da euro área, que são os dados mais recentes que eu tenho, mas estamos em décimo sétimo, portanto também não estamos propriamente muito bem classificados. Porquê que estamos acima da média? Na verdade a média é puxada, se quiseres, muito para cima porque os países escandinavos gastam mesmo muito a este nível.
José Maria Pimentel
Talvez interessasse mais a mediana, na verdade, para este efeito.
António Tavares
Pois, Nós estamos sensivelmente na mediana. Porquê que isto é aspecto relevante? Porque nós, tendo funcionários públicos envelhecidos, eles em princípio ganham mais do que os que estão a entrar.
José Maria Pimentel
Claro, claro, claro.
António Tavares
Isto é sete tarif pários, não é? Tudo mais constante, porque há aqui nuances que têm que ser tidas em consideração, que muitas vezes as pessoas que saem podem sair com salários relativamente baixos e quem entra, entra com salários maiores, porque não estamos a comparar. São carreiras diferentes, muitas vezes. Mas podemos presumir que a saída, sobretudo de médicos e professores que têm salários tendencialmente mais elevados, vai fazer baixar a massa salarial na função pública. E isso vai nos colocar, mesmo nos últimos lugares, em termos de peso dos salários da função pública em porcentagem do PIB. E isso é de facto preocupante. Sobretudo porque perdemos muito know-how, inevitavelmente, mas vamos ganhar alguma coisa também. Vamos ganhar, sobretudo, com a entrada de novas pessoas, vamos ganhar pessoas em princípio melhor preparadas para a transição digital. E a transição digital era o ponto que eu queria tocar há pouco e que depois podemos discutir com mais pormenor. Mas se quiseres voltar à questão de temos funcionários públicos a mais ou a menos. Esta é uma questão difícil mas eu consigo dar uma resposta. Ou seja, estatisticamente consigo dizer que não temos funcionários públicos a mais. Mas eu nem acho... Eu acho que essa resposta é uma resposta pouco útil. Há dois aspectos bastante mais importantes. É temos funcionários públicos a mais para fazer o quê? Que é uma pergunta importante em termos de qualidade. E nós já falámos aqui muito da área da saúde e eu dou-te exemplo que conheço relativamente bem por razões familiares. Médico em explosividade no setor público, num centro de saúde, tem sensivelmente 1500 utentes na sua lista. Se nós entendermos que 1500 utentes é pouco e que o médico devia ter era 2000, então se calhar temos médicos a mais. Mas há uma coisa que eu digo, é que 1.500 utentes é demasiado se o médico quiser proporcionar consultas regulares, com tempo de consulta adequado, etc. É importante. Se calhar temos médicos a menos. Provavelmente temos médicos a menos, até porque têm sido os últimos meses. Mas isto serve para sublinhar ponto, é que nós não podemos dizer se temos funcionários públicos a mais ou a menos. Temos funcionários públicos para uma determinada qualidade do serviço e se quisermos ter melhor qualidade do serviço, temos que contratar mais funcionários. Sobretudo em áreas de contacto direto com o público e em que o contacto não pode ser substituído por máquinas. E era aqui que eu ia entrar na questão do governo digital. Aqui há setores de atividade da administração pública que vão necessitar cada vez menos de pessoas. Alguns exemplos. Por exemplo, nós não precisamos de pessoas para determinar como se fazem auditorias às declarações fiscais dos contribuintes. Nós vamos deixar de precisar de pessoas para determinar a atribuição de subsídios no âmbito da segurança social. Porquê? Porque o governo por algoritmos vai fazer isso por nós. Programamos algoritmo, introduzimos conjunto de critérios e o algoritmo vai nos dizer esta pessoa deve receber, esta não deve, esta deve, esta não deve vai nos dizer esta pessoa tem aqui elemento suspeito e deve ser auditada esta pessoa não deve o que é que nós vamos precisar? Vamos precisar de pessoas que saibam auditar o governo por algoritmos, ou seja, que percebam o que é que há de errado no algoritmo que está a dar os resultados estranhos. Por exemplo, está a dizer que devem ser auditadas pessoas que não faz sentido auditar. Mas isso requer preparação técnica. Nós não vamos precisar de pessoas que façam o trabalho que pode ser feito por máquinas, mas vamos precisar de pessoas que monitorizem o trabalho que é feito pelas máquinas.
José Maria Pimentel
Sim, até vamos precisar de menos gente nesse sentido.
António Tavares
Menos gente, mas mais qualificada. Exato, exato. Menos gente, mas cada vez mais qualificada. E isso não é intermutável, ou seja, vamos necessitar de menos funcionários num setor, mas vamos necessitar de mais funcionários noutros setores. E já agora, deixa-me corrigir uma coisa que disseste há pouco, que não é integralmente verdade. Era verdade quando eu escrevi o livro, eu comecei a escrever o livro em 2018, mas entretanto as coisas mudaram, até por influência do breve papo. O número de funcionários públicos em Portugal aumentou. Nós já estamos em 750 mil. E aliás isso é muito habitual. Entra o governo socialista e irregulariza os vínculos que vinham precários dos governos anteriores. Isso já aconteceu com o governo de Guterres e agora com o governo de Costa também. Uma última nota sobre a questão de termos muitos funcionários ou poucos. Há argumento que é usado que é que eles são mal distribuídos. Eu ouço este argumento há muito tempo, dos funcionários estarem mal distribuídos. Eu acho que isso é parcialmente verdade e era mais verdade no passado. Nós tínhamos pessoas com muito poucas qualificações e que não acrescentavam propriamente valor à administração pública. Havia muita gente nestas condições na segurança social, que eram os auxiliares e assistentes operacionais com pouca preparação para aquilo que é exigido hoje em dia na área da segurança social. E lembro-me de dizer uma coisa muito engraçada, dizia-se que nós tínhamos mais funcionários no Ministério da Agricultura do que agricultores. Era uma coisa que era muito
José Maria Pimentel
frequente dizer.
António Tavares
E isso talvez fosse verdade, porque nós tivemos uma transição económica do setor primário para o setor terciário, isso muito visível e muito óbvio. Hoje em dia, isso obviamente já não é verdadeiro, o Ministério da Agricultura perdeu muito pessoal nos últimos anos e se calhar agora começa a ter mais é déficit em certas áreas de atividade. Mas há aspecto neste processo que muitas vezes é aspecto que me custa mencionar, mas que eu sei que não é propriamente popular de dizer. O país cresceu de uma forma profundamente desequilibrada. Nós temos duas grandes áreas metropolitanas com uma concentração de população gigantesca e temos o resto do interior, a própria população, a ritmo muito acelerado. E isto tem preço em termos da qualidade dos serviços que é prestado ao cidadão. As histórias do horror que nós ouvimos muitas vezes dos serviços públicos na área metropolitana de Lisboa, têm uma razão de ser que há demasiada população e não há pessoas suficientes para atender essa população e depois temos horas de espera em diversos serviços, nas lojas de cidadão, etc.
José Maria Pimentel
E depois marcas numa loja de cidadão numa zona com menos gente, resolves o assunto no instante.
António Tavares
Ora, era aí que eu ia chegar. Eu, por influência americana, vim morar para os subúrbios. Eu moro em Braga, moro num pequeno município chamado Amar, com 20 mil habitantes. Foi a influência
José Maria Pimentel
da tua estadia nos Estados Unidos, essa confiança.
António Tavares
Morar nos subúrbios é uma tradição americana. Eu migrei aqui para os subúrbios e tenho espaço cidadão no centro do município que me garante tudo o que é, bilhete de identidade, passaporte, carta de condição, posso recorrer a esses serviços todos nesse espaço cidadão, tenho as finanças mesmo ao lado, nunca, e isto é absoluta verdade, eu nunca esperei mais de 15 minutos neste sítio Porquê? Porque não há população, há pouca população, há relativamente pouca gente a atender, mas também não há muita gente a procurar serviço. E eu acho que há completo desconhecimento de quem mora em Lisboa de como é que se vive no resto do país e sobretudo deste aspecto muito positivo e eu se calhar tenho uma visão completamente enviesada da administração pública porque eu acho que não se espera eu admito que não é assim admito que há sítios em que se espera de facto
José Maria Pimentel
muito mas a minha experiência não é essa
António Tavares
e eu elogio os funcionários, eu digo, eles atendem-me com sorriso nos lábios o serviço é personalizado mas não no sentido errado, no sentido de que interagem de forma simpática com os utentes, ajudam os utentes quando eles precisam de ajuda. Eu tive problema complicado com assinaturas eletrónicas, não conseguia pôr a assinatura digital a funcionária e não sei o quê. Eles deram todo o apoio necessário e eu acho que numa grande cidade, em serviços sobrecarregados e funcionários cansados e constantemente pressionados pelo tempo, a qualidade do serviço sofre. Sofre por diversos motivos. Não só porque as pessoas não estão tão atentas no que estão a fazer, não são tão solícitas, etc. E, portanto, a questão da má distribuição dos funcionários é também, em parte, uma consequência da má distribuição de população. Passa a expressão. E dessa distribuição se alterar.
José Maria Pimentel
Exceda. Claro. António, estamos quase a terminar. Enfim, também eu confio que as pessoas se interessem por este tema, mas também não quero exagerar. Já falámos muito mesmo. Falámos muito. Eu nestes temas gosto sempre de perguntar ao convidado, alguma coisa que eu não tenha perguntado e que quisesses...
António Tavares
Eu acho que há ponto, não perguntaste, eu acho que ele foi mencionado várias vezes ao longo da conversa, mas nós não voltámos nunca verdadeiramente a ele. Nós falámos de avaliação individual, avaliação de desempenho individual, mas eu acho que há uma componente em que eu tenho até alguma melhor preparação para falar que é na questão da avaliação das políticas públicas. Eu acho que falta em Portugal uma cultura de avaliação das políticas públicas. Eu acho que há tentativas de a desenvolver. Há muitos colegas a trabalhar em áreas próximas de avaliação de políticas e programas públicos. Mas há trabalho a desenvolver. Nós temos, historicamente, não temos avaliação de políticas públicas. Agora, mais recentemente, temos alguma preocupação, muito por influência da União Europeia, mas continua-se a avaliar políticas públicas mais como cumprimento, por exemplo, de orçamentos, garantia de que os orçamentos são executados.
José Maria Pimentel
Mais do que a eficácia, não é? E não tanto com a
António Tavares
questão do impacto. E há programa que é paradigmático, que é o Novas Oportunidades, toda a gente conhece do governo Sócrates. O reconhecimento e validação de competências, o RBCC, que era uma coisa que fazia todo sentido, ou seja, uma pessoa tem o sétimo ano, trabalhou a vida toda, durante 20 anos, e agora quer ver reconhecidas as suas competências. E o programa atribuiu, foram 1.600.000 diplomas, no fundo certificou as competências destas pessoas equivalentes ao 9º ano e ao 12º, Mas não se perguntou o que é que as pessoas fizeram com esses diplomas. Mudaram de emprego? Foram ganhar mais? Tiveram algum aumento no seu prestígio pessoal, no orgulho, no trabalho desenvolvido? Ninguém se interessou pela substância. E de facto o governo Sócrates mediu a quantidade de diplomas que foram emitidos, logo a seguir caiu, entrou o governo no passo-escolho e o programa foi extinto. Ou seja, fizeram-se duas coisas que não se devem fazer. Primeiro, avaliou-se mal ou incompleto e depois extinguiu-se o programa sem saber se ele funcionava. E isto é muitas vezes o resultado das políticas públicas em Portugal e nós temos a avaliação do aeroporto aí, que também tem uma comissão técnica e que em princípio deveria chegar e bastar para tomar uma decisão. Nomeou-se uma comissão técnica, tome-se a decisão com base naquilo que são os resultados da comissão técnica.
José Maria Pimentel
E o que tu defendes é que se devia criar uma espécie de estrutura independente que fizesse essa avaliação ou achas que isso é a responsabilidade dos governos e portanto isso no fundo é uma crítica transversal aos governos que eles próprios é que deviam fazer essa avaliação?
António Tavares
Essa é uma boa pergunta e aí eu acho que podemos aprender com o estrangeiro. Nós temos no estrangeiro e em particular nos Estados Unidos há vários tipos de avaliação. Há autoavaliação, os governos avaliam o trabalho que fazem, normalmente isso é enviesado, obviamente os governos querem passar a melhor imagem mas contratualizando também a avaliação a entidades externas e em particular instituições de ensino superior e isso faz todo sentido porque a partir da... Os investigadores não têm preferência por chegar a conclusões positivas ou negativas e provavelmente o que vão concluir é que alguns aspectos do programa resultaram, outros aspectos não resultaram e podem ser melhorados e me dêm recomendações do que é que pode ser feito para melhorar. Isto Já está a ser feito, eu tenho que sublinhar isto, ou seja, já há muitas vezes os governos recorrem às instituições para fazer avaliação, mas ainda não é o suficiente. E muitas vezes não é o suficiente nos chamados Programa Bandeira, ou seja, aqueles que são os grandes programas dos governos. E Isto devia ser feito desta forma, digamos assim, também por entidades externas. E claro, depois há elemento de avaliação da sociedade civil, que em Portugal é ainda frágil e débil, mas que, por exemplo, numa sociedade como a americana, tem poder fortíssimo. Quer dizer, os chamados think tank fazem avaliação de políticas públicas na sociedade americana e, portanto, também por isso, havendo conjunto de entidades que fazem avaliação, consegue-se ter uma muito melhor perspectiva do desempenho do programa público ou da política pública ou tendo limite de além, foi provável.
José Maria Pimentel
E melhorar, no fundo, naquela questão do processo que falávamos há bocadinho, criar processo em que tu melhores ao longo do tempo. Sim, fizeste bem em voltar a esse ponto, porque eu tinha o Aqui Assinalado, e na verdade não tinha voltado a ele, é uma questão importante, que na verdade nós tínhamos de falar logo no início da conversa, foi uma boa maneira de rematar. E por falar em rematar, tínhamos combinado no final falar também de novo livro teu que está para sair, cujo tema, enfim, está relacionado com este, se calhar mais do que parece à primeira vista, mas é suficientemente diferente, que tem que ver com as fusões de municípios na Europa. Sim. E sobretudo com as causas, no fundo é que não tanto com a maneira como são feitas e o impacto, mas pelo que eu entendo, com o que levou a que alguns países tenham tomado umas decisões e outros tenham tomado outras, dependendo das circunstâncias de cada deles e de forças mais profundas, sociais e económicas. Se eu entendo, tem a ver com isso.
António Tavares
Sim, eu não quero dar ideias de que Portugal precisa de fusões de municípios, mas o que me interessa no tema é, no fundo, compreender porque é que alguns países apostaram de uma forma muito significativa nestes processos de fusão e outros ignoraram completamente. E o caso português é o caso mais extremo de ignorar fusões de municípios. Nós não temos, historicamente, nos últimos 100 anos, fusões de municípios. E isso intrigava-me. Eu não percebo porque o caso português é tão diferente de tantos outros. E o livro, no fundo, procura explorar isso com uma componente histórica forte, ou seja, em que eu vou ao início dos sistemas de governo local de cada país europeu, eu tento ir aos 40, ou próximo disso, mas depois o livro tem enfoque mais acentuado em perceber porque é que estas reformas ocorreram no pós-guerra num conjunto de países e foram totalmente ignoradas em outros. E, digamos, o argumento tradicional é que as fusões ocorreram porque os Estados decidiram descentralizar funções para o nível local. E a argumentação é que em Portugal não havendo descentralização não há necessidade de fusões. Portanto, Portugal sendo país extremamente descentralizado, não há necessidade de fusões. E constata-se, por exemplo, que no caso dos países escandinavos, todos eles passaram por processos de fusão, uns mais radicais, outros menos, e nesses países houve de facto a descentralização de funções para o nível local. E o livro, no fundo, chega à conclusão que esta explicação do crescimento do welfare state só se aplica aos países escandinavos. Porque depois, quando vamos ver países que também tiveram fusões de municípios, o contexto em que essas fusões ocorreram foi muito diferente. Nos países da Europa de Leste, ocorreu muito por influência de governos autoritários, os chamados governos comunistas, no período entre 1950 e 1989. As grandes fusões de municípios na Europa de Leste ocorrem nesse período. E depois há alguns casos muito particulares, no qual até o caso português insere, que há fusões por pressão de organizações internacionais. No nosso caso, por causa da Troika, houve a fusão de freguesias. Mas de freguesias, exatamente. E a Irlanda passou por processo semelhante com o município. A Irlanda também teve uma diminuição abrupta do número de municípios na sequência da intervenção externa, também na sequência da crise das dívidas soberanas. E portanto o livro é essencialmente sobre isso. Tem uma dimensão histórica que me deu imenso trabalho, mas imenso gozo também, que é perceber como é que os sistemas nasceram e como é que evoluíram. E pronto, Eu podia falar aqui muito tempo sobre isto, mas deixe-me só arrematar com uma curiosidade. Nós temos freguesias e as freguesias são uma criação bastante original portuguesa. E aquilo é intrigável. Porquê nós temos freguesias? As freguesias não têm assim muita relevância no sistema local, na verdade o nível relevante é o dos municípios, mas os países nórdicos, em particular a Suécia, que é o caso que eu estudei melhor e que aliás aparece destacado no livro, começa com sistema extremamente fragmentado, próximo das nossas freguesias. O que aconteceu foi que os suecos pegaram nas paróquias que existiam, as paróquias religiosas, e converteram-nas em municípios. Mas nós convertemos as paróquias religiosas em freguesias. E usamos uma espécie de organização pré-existente mais relacionada com a tradição medieval para criar os nossos municípios, que estão muito associados às cartas forais, etc. E portanto essa explicação é interessante porque explica porque é que nós não precisámos de fusões. Nós não precisámos de fusões porque os nossos organismos que precisariam de fusões eram as freguesias, que não eram municípios.
José Maria Pimentel
Exato. E que estão abaixo dos municípios. Sim, nós temos essa peculiaridade grande que torna difícil as comparações, aliás, e quem tiver curiosidade com isso pode ouvir o episódio com o Felipe Tells, em que nós falámos, em que em todas as coisas falámos precisamente disso. Exatamente. Enfim, António, olha, foi muito interessante, isto foi quase uma aula invertida, foi mesmo interessante e já há muito tempo que eu queria tocar neste tema no podcast porque é tema que a pessoa fala pouco e eu acho que como ficou visível neste episódio há muito o que dizer sobre a administração pública, seja sobre o papel social que tem, sobre os desafios que enfrenta e também em relação com o governo, que foi o que nós falámos no início. E, portanto, olha, para mim foi muito interessante, que aprendi muito e estou convencido que este há ouvido também. Portanto, olha, obrigado pela tua disponibilidade.
António Tavares
Muito obrigado pelo convite. Foi gosto e espero que dia possamos voltar a fazer isto novamente.
José Maria Pimentel
Já agora em pessoa, não
António Tavares
é? Já agora pessoalmente.
José Maria Pimentel
Este episódio foi editado por Hugo Oliveira. Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no site 45grauspodcast.com. Selecione a opção Apoiar para ver como contribuir, diretamente ou através do Patreon, bem como os benefícios associados a cada modalidade. Legendas pela comunidade Amara.org