#155 Lídia Jorge - Para que serve a literatura?
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Lídia Jorge
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o
45°. Como de costume, começo com os agradecimentos aos novos mecenas, são
eles o Luís Isidro, o Bruno Mendes, o Edgar Mascarenhas e o
João Madeira. Neste episódio, volto a explorar tema novo ou quase novo
no 45°. Desta vez vamos falar sobre literatura com a autora Lídia
Jorge. Esta conversa foi gravada ao vivo durante o Festival Utopia em
Braga. Este evento, organizado pela The Book Company, entre 2 e 12
de Novembro, teve este ano a primeira edição e este momento contou
com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa e do Festival Literário
5L. Para os interessados, recomendo visitar o site do festival e segui-lo
nas redes sociais. O Utopia já tem data de regresso confirmado, em
novembro do próximo ano, novamente em Braga. Voltando ao nosso episódio, foi
privilégio gravar esta conversa com a Lídia Jorge, que é uma das
mais internacionais entre os escritores portugueses. Autora de obras marcantes como O
Dia dos Prodígios, A Costa dos Murmúrios ou O Vento Assobiando nas
Ruas. A nossa conversa surgiu a pretexto do seu romance mais recente,
chamado Misericórdia, e por isso começámos por discutir esta obra, mas acabámos
por falar, sobretudo, do papel da literatura, quer na sociedade, quer na
nossa vida. Este Misericórdia tem dado muito o que falar, já ganhou
inúmeros prémios, que eu começo por enumerar no início da conversa e
provavelmente, não exagero-se, de ser que se tornou já uma obra de
referência. O livro é inspirado num pedido da mãe da autora, em
que a personagem principal é inspirada e narra o último ano de
vida de uma mulher idosa num lar de terceira idade. Foi livro
que eu gostei muito de ler porque tem personagens ricas e complexas
e que sobretudo desafiam visões simplistas da terceira idade e da vida
nos lares como momentos necessariamente menos interessantes da vida. Além disso, é
livro que é simultaneamente sobre a natureza humana e, por isso, universal
e, sobretudo, com o desafio nas sociedades pós-industriais de lidar com a
cada vez maior longevidade e o que isso acarreta quer para os
próprios, quer para quem cuida deles. Não é fácil ter uma obra
com estas duas características ao mesmo tempo e, além disso, muito bem
escrita e suspeito que isto ajude muito a explicar o sucesso que
este misericórdia tem tido. Para quem ainda não leu, pequeno aviso, embora
discutamos alguns detalhes da obra, julgo que não revelamos nada que possa
diminuir o prazer da leitura. Além disso, o grosso da nossa conversa
estendeu-se para temas mais amplos, sobretudo sobre o papel que a literatura,
tal como outras formas de arte, tem em fazermos olhar o mundo,
os outros e a nós próprios de forma diferente. Foi muito interessante
ouvir a opinião da Lídia Jorges sobre este aspecto e aliás lembrou-me
muito da proposta do filósofo Alain de Botton, que eu aliás cito
durante a conversa para precisamente responder a esta pergunta, para que é
que serve a literatura? E segundo ele, a literatura serve sobretudo para
três coisas, para nos dar sabedoria, para nos transmitir bondade, ou seja,
ajudar a ser mais empáticos, melhores pessoas, e para nos dar sanidade.
Ele compara a literatura ao efeito que tem a psicoterapia e eu
achei, não tenho a certeza que estes três sejam verdade para toda
a gente, mas lembro-me de ter achado uma proposta interessante e quando
ouvi-a a convidada falar lembrei muitas vezes desta definição, sendo que aquilo
que ela diz obviamente vai para lá disto. No final da nossa
conversa houve espaço para algumas perguntas do público e eu acabei por
escolher incluir no episódio A última pergunta, a cujo autor aproveito para
agradecer, porque achei ótimo remate para os temas que abordámos durante a
conversa. Por isso, espero que gostem desta conversa e deixo-vos então com
o Lídia Jorge. Muito bem vindos ao Festival Utopia e a esta
gravação de 45°. Muito bem vinda, Lídia Jorge. Já me pouparam parte
da apresentação. Na verdade a Lídia dispensa apresentações. Eu queria complementar a
apresentação falando bocadinho do livro de Misericórdia que é, enfim, saiu há
ano mas claramente tocou nervo, não é? E foi uma leitura muito
interessante porque é o romance que está naquele sweet spot, passou o
anglicismo a ter de ser agradável de ler e denso de conteúdo,
não é? Que era uma coisa que não é fácil de entender.
Eu acho que muitas pessoas que estão aqui já conhecem parte da
história mas temos que começar pelo início, de onde é que veio
o Misericórdia? O que é que fez surgir, nomeadamente em relação à
sua mãe, este romance?
José Maria Pimentel
Exatamente, então nunca liguei muito e inclusive eu pensava que tratava de
uma queixa, porque ela gostava de lá estar, foi ela que propriamente
quis ir para lá, mas eu interpretava que ela queria que eu
fizesse qualquer denúncia, quer dizer, que eu falasse das razões que ela
às vezes não gostava do que acontecia. E, portanto, foi uma grande
surpresa para mim quando, no dia 8 de março de 2020, ela
me pediu que eu voltasse a escrever o livro sobre misericórdia e
me disse porquê. Então aí disse-me que achava que eu deveria escrever
livro sobre a compaixão que se deve ter quando as pessoas deixam
de facto de se movimentar e de ser autónomas. Mas eu também
não liguei a isso, porque não se escreve livro, digamos, sobre a
compaixão, propriamente, a ficção e o romance, que era alguma coisa que
não era propriamente catecismo, não é? Agora, o que aconteceu foi que
eu nunca mais vi a minha mãe a partir desses dias, portanto,
toda a gente viveu esses dias trágicos, não é? Que ficaram simbólicos
na nossa vida, que são uma espécie de alegoria que paira sobre
a nossa cabeça nos dias que correm hoje e a verdade é
que ela faleceu passados 40 dias e eu nunca mais a pude
ver e portanto quando aconteceu eu senti que era recado demasiado importante
para mim, portanto senti que era uma espécie de encomenda que ela
tinha feito e eu não podia deixar de, digamos, de lhe responder,
agora que era muito difícil e nos primeiros dias foi muito difícil
eu perceber o que é que eu poderia fazer com pedido desta
natureza.
José Maria Pimentel
Sim, sim, exatamente. Portanto, eu tive de... Depois aconteceram vários episódios, deles
foi os objetos que me trouxeram, os únicos objetos que me trouxeram,
aqueles que eu soube que ela manteve até o fim, no meio
daquela catástrofe que aconteceu no lar de idosos, os únicos objetos que
me entregaram foram tão fortes e tão simbólicos de obter a vida
dela que eu encontrei através desses objetos o tema para o livro,
que é o tema da resistência, digamos o desejo de viver a
vida plenamente até o fim, mesmo quando as forças faltam, e mais
também a resistência que consiste em ver no outro, ver nos jovens
aquilo que é o seu próprio prolongamento, eu não vou desaparecer porque
está aqui quem? Aqueles que são o meu espelho projetado no futuro.
E isso deu-me força e abriu-me uma porta para eu fazer livro.
Este livro eu escrevi-o sob impulso muito intenso, mas devo dizer que
os livros só
se
escrevem naturalmente com sentimento, mas é sobretudo com inteligência. Portanto, quando se
escreve não se pensa em que inteligência que eu vou utilizar, mas
na verdade é uma espécie de como se o motor que nós
tivéssemos dentro, tivesse vindo a ser acionado para no momento pôrmos tudo
aquilo que de forma inteligente nós conseguimos adquirir para fazer alguma coisa
que seja artística, que seja arte. No nosso caso, das palavras, chama-se
literatura, não é? Mas não é ideia, quer dizer, eu pelo menos
não é isso que me acontece, não é filho de sentimento imediato,
ou digamos, o sentimento fica pousado para pegarmos nele, e foi este
o caso, pegar nele e fazer alguma coisa. E isso, à medida
que eu escrevia, eu tinha uma ideia de triunfo. Isto é, triunfo
interior, não tem nada a ver com o triunfo exterior. Triunfo interior
que consiste em... Estou a ter a ideia de que encontrou caminho,
independentemente daquilo que seja a aceitação, encontrou percurso para o objeto que
está a fazer. Então, digamos assim, o meu luto, que não foi
só pela minha mãe, mas que foi pelo mundo, pelo que se
estava a viver e que deixou o rasto que ainda hoje aqui
está, não é? E que foi uma espécie de parábola por aquilo
que nós estamos a viver nos nossos dias, uma espécie de preparação
para o que estamos a viver nos nossos dias. O facto de
ter encontrado essa porta deu uma ideia de que eu tinha instrumento
na mão para transmitir aos outros e que não era só sobre
a minha mãe que eu estava a escrever, não era só sobre
Dona Alberti, era alguma coisa muito mais ampla, pelo menos, digamos, interiormente,
era essa ideia que eu tinha de que estava a escrever em
segredo para as pessoas que estavam à espera de uma narrativa assim.
Começou a enumerar os prémios, que têm a ver com bastantes leitores
que, enfim, que acharam que o livro lhes devia respeito. Acho que
isto acontece, talvez tenha acontecido mais com dois livros na minha vida,
mas acontece que há momentos sociais, sociológicos, enfim, pelo que se possa
chamar, que prevêm da sociedade, mas há momentos que criam uma expectativa
de que há obras de arte, sejam elas cinema, música, dança, seja
o que
José Maria Pimentel
A pergunta é para que serve o fim da vida? Porque a
vida como nós a vivemos, assim, normalmente, tem várias finalidades. Tem a
finalidade ontológica apenas da pessoa achar completa ou não, tem a finalidade
social, a finalidade enquanto cidadãos de estarmos uns com os outros, de
cumprirmos programa que é de uma coletividade, de termos amigos, termos filhos,
termos pessoas que amamos, divertirmos, sentir júbilo perante a existência e depois,
a certa altura da vida, eu percebi-me, por experiência direta e não
por leitura que as perguntas que as pessoas fazem a partir de
certa altura quando ficam mais imobilizadas e têm tempo para pensar e
elas voltam a ser adolescente, o adolescente que tem a angústia de
perguntar como vai ser a minha vida, para que serve a minha
vida e a pessoa idosa que tem tempo e que tem capacidade
disso, porque às vezes perde-se a capacidade, mas pergunta para que serviu
a minha vida E isso é muito agudo, não é? É muito
agudo. E então, as respostas são várias, não é? E eu achei
que as pessoas que melhor viviam esse tempo, eram aquelas que achavam
que a sua vida tinha servido para que os outros aprendessem com
elas, para que os outros se esclarecessem com elas,
isto
é, aqueles que se envolvem até ao fim com o destino da
sua família, da sociedade, da deriva do mundo. E o caso da
Dona Alberti foi esse, mas não foi o único caso, ela, que
aí é Dona Alberti, na vida era outra coisa, ela se envolvia
com as outras pessoas e as outras pessoas também. Aliás, há uma
cena no final, já no último capítulo, que é uma cena retirada
de uma situação real. Não sei se se lembram que o Boris
Johnson, no princípio, achava que teria de haver uma imunidade coletiva, uma
imunidade de grupo e que não valia a pena ir gastar todo
este dinheiro nas vacinas e tudo isso. E as pessoas mais idosas
acharam que o que ele queria era uma espécie de purga dos
mais frágeis, não é? E houve uma revolta e assim. Ora bem,
o que aconteceu foi que o ambiente desse lar, onde a minha
mãe estava, aconteceu que já mais de metade estavam infectados e num
quarto onde as pessoas já estavam infectadas, eu soube, não estava lá,
porque havia muitos dias que não podia lá entrar, mas soube que
tinham feito uma festa quando souberam que o Boris Johnson estava infectado.
Portanto, porque diziam que ele queria que os velhos morressem, mas ele
é que vai morrer. Portanto, essa capacidade de vingança até ao fim,
de viver plenamente, no final eu já assisti apenas pelo telefone, mas
isso se manteve.
Lídia Jorge
Desculpa interrompê-lo, o livro é interessante porque eu não consigo chegar a
diagnóstico se o livro é triste ou alegre, porque eu acho que
o livro, embora trate de uma realidade que muitas vezes é triste,
que são pessoas que estão a aproximar-se do fim da vida, que
estão desanimadas em muitos casos, que em alguns casos já não têm
as capacidades, para não falar depois de toda essa envolvência de imigrantes,
de pessoas que têm trabalhos precários, mas depois têm humor e depois
essa própria vivência, porque o que é muito interessante é que as
vidas daquelas pessoas ou a vida daquelas pessoas dentro daquelas é parecida
com a vida fora, as interações são muito parcerias.
José Maria Pimentel
Não, é porque as pessoas têm a ideia de que quando se
entra ali, eu não digo que seja uma coisa ideal, mas é
aquilo que a sociedade moderna, sobretudo pós-industrial, encontrou para resolver o problema
das famílias que trabalham, em que as mulheres e todas as pessoas
adultas trabalham. Encontrou-se esta forma de amontoar as pessoas num espaço. É
o que nós temos. Agora, as pessoas têm a ideia de que
aquilo ali é uma outra humanidade, mas não é. É o somatório
de tudo, de tudo que nós vivemos. Estado e tudo, é a
nossa... Somos nós, mais idosos, não é? Somos nós mais idosos e,
portanto...
José Maria Pimentel
não é? Sim, mas diz muito bem, é isso mesmo, porque de
repente fica-se num estado coletivo, não é? E portanto, exatamente no liceu,
quando... E então nos lares, não sei se alguma vez frequentou ou
alguém frequentou, os que estão aqui, os lares para jovens. Eu vivi
num lar de freiras, quando eu estava na Universidade, em Lisboa, e
o que acontecia é que, precisamente, por exemplo, a dificuldade que nós
tínhamos de manter objetos e situações que eram só nossas, porque tudo
era coletivo e, portanto, era muito difícil guardar-se a carta de namorado,
não é? Porque alguém sabia quando é que alguém escondia nada era
muito privado e uma das situações que eu encontrei nesse ambiente foi
a dificuldade da privacidade o facto de não se poder guardar uma
fotografia só para a pessoa o facto de não se poder comer
chocolate sozinho que é uma coisa que é tão banal, alguém que
quer comer chocolate e tem vergonha de comer a tableta completa, e
ali as pessoas... É uma
José Maria Pimentel
Que é uma coisa que eu acho que é bom nós convivermos
com aquilo que são as experiências radicais, quer dizer, nós devemos estar
preparados para as experiências radicais, é erro na minha perspectiva e eu
acho que a arte verdadeira é uma arte que ignora aquilo que
é os livros de ajuda, por exemplo, da autoajuda, porque a arte
prepara para nós enfrentarmos os grandes desafios do mundo, não é? Nós
sabemos que nada está bem, tudo tem de ser conquistado permanentemente, não
é? Sabemos que nada é perene e que a vida, a Terra,
tudo, neste momento nós sabemos tanto até sobre o Cosmo, que nós
sabemos que tudo é precário, não é? Que é precário e que
é vulnerável. Hoje, qualquer adolescente e qualquer criança sabe que a Terra
é tão vulnerável que há neste momento alterações climáticas e sabemos que
a paz que nós tínhamos aqui no nosso continente até há dois
anos antes, pensávamos que tínhamos a paz, de repente não temos mais,
de momento para o outro tudo se altera e a arte ajuda
precisamente a preparar para o embate. Uma vez eu li texto do
Arthur Kessler muito interessante que explicava que o pensamento poético é iminentemente
pensamento trágico
e
em que é que consiste o pensamento trágico? Consiste em olhar para
a realidade e nunca ver as peças estáticas, mas ver as peças
sempre em movimento. Aliás, dizia uma coisa muito interessante, a vida comum
faz nós sentarmos sobre uma cadeira e dizemos aqui estou, estou bem
instalado, mas o pensamento trágico não nos deixa estar sentados sobre uma
cadeira, diz, eu estou sentado sobre uma cadeira, debaixo da cadeira está
uma laje, debaixo daquela laje, possivelmente, estão pessoas sepultadas, debaixo das pessoas
sepultadas está uma parte da terra, no fundo da terra está a
camada ígnea da terra e é por aí fora, não é? E,
portanto, o pensamento trágico é esse, é o pensamento que não nos
deixa estar quietos, que estimula a nossa capacidade de mobilização do pensamento,
não é? E portanto, falar sobre estas questões, as pessoas, por exemplo,
a certa altura, ficarem sem roupa sobre a cama, à espera que
alguém se lembre delas, para as levar para o dos, é humanidade.
Quer dizer, podemos nós imaginar que nunca acontecerá? Oxalá nunca nos aconteça,
mas possivelmente aconteça a todos. Dia, por qualquer razão, nós ficarmos sobre
uma cama completamente nus, não é?
José Maria Pimentel
É paradoxo, mas, precisamente por isso mesmo, nós falamos do paradoxo da
literatura, que fala-se muito, precisamente, nesse contraste que há, que é, mesmo
sobre tema que é absolutamente trágico, a literatura, ou qualquer arte, a
beleza, a parte de, digamos, a construção é uma promessa de uma
harmonia, não é? E é isso que faz com que, por exemplo,
Cisto é Homem, do Primo Levi, que era mais assunto, mais trágico,
mais triste, não é? O início de Sisto é Homem, aquele poema,
que é precisamente Sisto é Homem, porque fala da degradação das pessoas
no campo de concentração. Nós começamos a ler e porquê é que
sentimos uma leveza enorme? Sentimos que há resgate do mal, quer dizer,
a arte acaba por resgatar de desordem, impondo uma ordem que não
é da natureza da gramática natural, da gramática em que há sujeito
e predicado, é de uma natureza de transfiguração em que se diz
isto aconteceu, mas pelas palavras eu sei que não deveria ter acontecido,
eu sei que nunca deveria mais ter acontecido,
José Maria Pimentel
acontecer, é uma esperança, parte da estética é esperança, É isso que
faz nós sairmos de concerto e caminharmos pela rua de noite e
termos a ideia de que os pés, nossos pés, não caminham sobre
as lajes, não é? Sentimos que estamos acima, acima da terra, não
é? É essa alegria inexplicável que é a ideia de que alguma
coisa é mais harmoniosa do que vida comum. Isto é uma proposta
de paz, de beleza, de outro mundo, parece inalcançável, mas que eu
quero alcançar. E isso que é o sentimento estético é independentemente de
livro é sobre alguma coisa muito má ou não.
José Maria Pimentel
eu vou lhe dizer, foi muito engraçado porque há uns meses eu
estive num debate com o Miguel de Sousa Tavares e eu achei
que ele fez uma síntese muito interessante, ele disse assim, as palavras
foram mais ou menos estas, eu sou violento e no entanto escrevo
com doçura, a Lídia é doce e no entanto escreve com violência.
Eu achei muito interessante isto porque de facto os meus livros não,
lidos, digamos literalmente, eles não propõem bem, nenhum dos meus livros diz
assim, olha, chegou ao fim e este casou com aquela, tiveram crianças
e foram felizes. Não, não encontra isso, não é? Encontra precisamente pouco
o contrário, não é? Só que, para lembrar texto canónico que toda
a gente conhece, que é os maias, querem maior tragédia, não é?
Chegar ao fim e aquela situação é uma facta absolutamente trágica, é
simbólica de povo anêmico que não é capaz da renovação, que não
é capaz de criar riqueza, que não é capaz de nada, enfim,
é uma tragédia e até não deve ser lida nos dias de
hoje. Ora bem, o que acontece, porém, é que quando nós chegamos
ao fim há oxímoro, há a ideia de que, olha, isto não
deveria acontecer. Nem o incesto, nem a molenga desta gente, nem a
incapacidade de criar novos mundos, isto não deve acontecer. E é isso
que a literatura faz. Não precisa de ter happy end, não precisa.
A literatura não é feita para isso, é feita precisamente para o
contrário. Agora, claro, há os leitores que são alfabetizados em literatura e
há os analfabetos em literatura, chamemos assim mesmo, há pessoas que não
aguentam fim que não seja harmónico porque não têm uma instrução, não
são alfabetizados em arte.
Lídia Jorge
É verdade, depende do fim, no seu caso e no caso do
S, se replica exatamente o mesmo, E até no caso dos mais,
embora ao final não seja feliz, perpassa uma certa ironia e uma
certa até relativização que eu não acho que seja totalmente pessimista. E
este livro é bom exemplo disso. Por exemplo, desculpe-me, poderia, sobre esta
realidade, poderia perfeitamente ser livro absolutamente trágico, pessimista, que de facto há
realidades horríveis nos lares em Portugal e por todo o mundo. E,
no entanto, não é essa a imagem que passa. Não é essa
a imagem que passa, não é?
Não, não é essa a imagem que passa. Não digo
que seja ao contrário, mas é... Sim.
José Maria Pimentel
Não, porque no fundo eu escrevi este livro como se não houvesse
livros, isto é, escrevi apenas com o que tinha dentro, o que
aprendi ao longo da vida, não fui à estante enquanto escrevi este
livro. Agora, o que acontece, e isso é o que me tem
sido dito, é que há uma espécie de mistura de dois planos,
é uma balada melancólica, mas ao mesmo tempo uma ode, não é?
Tem ao mesmo tempo trigéria e tem ao mesmo tempo... Isso declara
a heroia e o amor à vida
José Maria Pimentel
E eu, digamos, como passo aí sopro de religiosidade, que não é
o caso da Dona Alberti, mas é livro que inclui uma espécie
de Deus profundo, uma missa de trevas, mas ao mesmo tempo agradecimento
a Deus, à vida, à divindade, pelo facto de haver existência, o
amor para a existência. Eu não trouxe o livro, mas há uma
certa passagem que, naqueles pequenos textos que a D. Alberti escreve, aquilo
que já ela só pode escrever, pequenas palavras, ela diz que amará
a vida, portanto viverá, viverá, viverá a vida e depois o que
for, doará.
O
que for, deverá. Mas como não tem a certeza de nada do
que vai acontecer depois, deixa-me amar a vida intensamente até ao fim.
Portanto, para a D. Alberti, ela não tinha essas palavras, mas a
sua transcendência para viver a imanência em absoluto.
Lídia Jorge
Por acaso há aspecto dela, quer dizer, porque isto é tudo narrado
na primeira pessoa, e há aspecto que eu fui reparando ao longo
do livro e pergunto-me qual é a mensagem por trás, porque em
muitos momentos ela pensa e não diz, e há momentos em que
pensam e não diz porque não conseguem e há momentos em que
pensam e não diz porque não querem, e há momentos em que
diz mas não é compreendido verdadeiramente, e isso é algo que acontece
muito na vida, muitas vezes somos incompreendidos, ou porque nos expressamos, mas
expressamos mal, ou porque escolhemos não nos expressar e portanto as pessoas
não chegam a saber o que está cá dentro, ou então queremos
e não conseguimos porque estamos tão sobrevuados emocionalmente, por exemplo, e isso
há muitas passagens ao longo do livro em que isso, em relação
com a filha, mas não só, mesmo com as amigas, há muitos
momentos desse género que é curioso.
José Maria Pimentel
Pois é, mas quer dizer, isso é a reprodução daquilo que acontece
na nossa vida, há uma parte da nossa subjetividade que é só
nossa. Aliás, precisamente a arte e a literatura, sobretudo porque a arte
é feita com a matéria primeira das palavras, é o do nosso
pensamento corrente, ajuda-nos a uma coisa que é convivermos com a nossa
própria subjetividade. Há uma parte que não é transmissível da nossa vida,
há uma parte que nós não encontramos palavras para traduzir, Há uma
parte que é uma experiência secreta que é a nossa e é
uma parte preciosa e a pessoa deve e a literatura ajuda a
isso porque é a arte do silêncio, não é? Ajuda à construção
desse mundo interior que é, no fundo, o segredo da personalidade, o
segredo da pessoa, onde está, no fundo, o apelo para o seu
próprio sentido, não é? E isso é alguma coisa que, por vezes,
não por vem da instrução, por vem do sentido que as pessoas
têm uma espécie de honradez de ser gente, honradez de ser gente,
sei que há uma parte que eu não consigo transmitir, sei que
há uma parte que eu não consigo dizer, sei que há uma
parte para a qual eu não encontro palavras, sei que há uma
parte da minha memória que vai ser perdida, mas está tudo aqui.
E, portanto, eu olho-me ao espelho e digo, eu sou gente. E
isso é de uma grandeza enorme, não é? Ora, a Dona Alberti,
ela não fazia este raciocínio assim, mas era alguém que recutava. Aliás,
em muitos momentos ela quer falar, mas não a ouvem. Ela quer
explicar, mas não a ouvem. Quando ela fala das formigas, ela quer
dizer, ela que sabe, porque leu algumas coisas sobre as formigas, ela
quer explicar que ninguém a ouve, não é? Mas ela faz o
raciocínio para si, fica contente por saber como é o ciclo das
formigas porque leu, leu num jornal qualquer, numa coisa qualquer, ela leu,
aprendeu como é que as formigas se reproduzem, como as formigas atacam,
tudo isso ela leu, ela queria contar e disseram não. E é
muito interessante, eu agora digo-lhe que, e agora parto para uma experiência
real, foi que a minha mãe contou-me isto. Havia lá senhor, que
era senhor que cantava muito bem, eu gostava muito dele, e a
minha mãe associou, porque ele cantava bem, ele era uma pessoa com
interioridade profunda, e dia esteve com ele, me falaram de médicos, e
o médico disse, eu não sou João Semana,
E
a minha mãe perguntou ao senhor, disse, sabe o que é João
Semana? E ele respondeu-lhe muito mal, que não queria, que não sabia,
nem queria saber e que odiava quem soubesse. E foi choque para
a minha mãe, choque, ela nunca mais gostou de ouvir cantar porque
ela ficava embevecida a ouvir o cantar e depois uma pessoa que
cantava, que para ela tinha essa dimensão, digamos, de beleza, dizer que
não queria saber quem era o João de Semana e que até
odiava quem soubesse. Para ela foi uma coisa trágica, uma coisa má.
Todos nós somos diferentes, mas esse percurso interior que é de guardar
para si, ter uma coisa para si, ter palavras para si, saber
que nunca as pode dizer todas, é alguma coisa muito importante, porque
é mesmo assim.
Lídia Jorge
Sim, sim, e a literatura e ler também nos, apesar de tudo,
ajuda-nos a expressar-nos melhor, ou seja, a expressar os nossos, a converter
os nossos sentimentos ou as nossas ideias para a mente do outro,
que é a grande dificuldade da comunicação, porque muitas vezes essa comunicação
não passa porque nós não conseguimos transmitir o que vai cá dentro,
ou transmitimos de uma maneira que a outra pessoa não entende.
José Maria Pimentel
Bem, eu vejo aqui, há alguns rostos que eu conheço de professores
que dão aulas e sabe-se que, precisamente, quando nós falamos da literatura
para os jovens sabemos que dos aspectos mais importantes da narrativa e
do romance e do conto e do teatro, naturalmente, é precisamente o
facto de promover aquilo que é a alteridade, que é o facto
de viver durante algumas horas a vida figuras ficcionais ajuda-nos a ser
muito... Estou às múltiplas e portanto a compreender os outros, a ouvir
os outros, a perceber que a nossa forma de ser é apenas
uma no meio das outras. Isso é alguma coisa que se faz,
deveria ser a instrução do adolescente, o adolescente que pensa que não
morre, o adolescente que pensa que é capaz de dominar o mundo,
que quer partir de casa, que não quer voltar para casa, que
acha que o avô, o pai, a família não tem mais nada
para lhe dizer, porque estão longe é que têm sabedoria. Esse que
tem a ideia de que tem uma aventura e que essa aventura
é uma aventura que não tem fim e portanto em geral é
egotista, não digo egoísta, mas é aquele que está agarrado ainda a
si, como se fosse uma criança grande, não é? É a altura
em que a instrução da alteridade é absolutamente fundamental. Quer dizer, tu
és entre os outros. E isso é a literatura. Quer dizer, a
importância de ler os miseráveis para os alunos franceses, não é? Ou
de ler David Copperfield para os alunos do Reino Unido. Ou para
nós o facto de lermos, precisamente, os maias ou livros assim, a
importância é precisamente fazer esse ensaio interior, ensaio interior de que eu
sou entre os outros, pensam de outra maneira, há outras vidas
e,
portanto, alarga-se o sentido da compreensão. E, portanto, isso que está a
dizer é muito importante, é que, neste caso, a literatura, os livros,
e ainda bem que estamos num festival de literatura, não é? E
que as pessoas voltam, felizmente, pouco por toda a parte, a perceber
que se perdermos esta disciplina, perdemos uma parte da nossa humanização. Ora,
o que acontece é que é esta disciplina que ensina isso. Ensina
não só a convívio secreto com os próprios. Nós nascemos sozinhos e
morremos sozinhos. Não há dúvida nenhuma. É o José Lézaro Malima que
diz o mesmo grito que se dá ao nascer é o mesmo
que se dá ao morrer, quando se dá o grito eu vim,
quando se nasce, e quando se parte diz eu vou, esse grito
é solitário sempre e o ensaio dessa solidão habitada por espírito que
somos nós próprios falando connosco mesmo é absolutamente fundamental e isso educa-se
com todas as artes mas sobretudo com a literatura, com a arte
das palavras. E depois a ideia de que o outro está aqui,
eu falo, calo-me e ouço os outros, não é? E aprendo quando
calo.
Lídia Jorge
É engraçado porque eu estava a ouvir-lhe há bocadinho, e isso vai
muito ao encontro de uma definição de literatura do que faz o
Allan de Botton que é o filósofo conhecido que diz que a
literatura serve para transmitir sabedoria, bondade e sanidade e que tem muito
a ver com várias coisas que falávamos aqui, a sanidade é a
questão do trágico, a sabedoria é a relação da maneira como tratamos
a terceira idade e muito mais que passa no livro, e a
questão da bondade também no sentido da empatia, de compreendermos os outros.
O livro chama-se Misericórdia, mas no fundo a ideia é compaixão, empatia
e a literatura transmite isso, a literatura e a ficção no geral
e a própria experiência de vida. Claro, claro. Ao conviver com os
outros nós vamos percebendo que o mundo é mais do que são
nós próprios.
José Maria Pimentel
Sim, é sempre corte com a realidade, com a realidade quotidiana, é
sempre corte, digamos, com a ditadura do real, sempre, é corte com
a ditadura do real. Portanto, é não aceitar que o mundo seja
só as pedras, seja só os caninhos, seja só o emprego, que
muitas vezes não funciona, quer dizer, é depois cortar por instantes, por
momentos ou por longos momentos com essa ditadura do real e partir
para uma outra coisa, para outro mundo. Ora, o que acontece na
minha perspectiva é que a matéria-prima da literatura é o agenciamento do
nosso próprio pensamento, é a nossa efabulação interior feita com palavras. E
há uma outra coisa, é que toda a arte conta uma história,
aquela arte que assume verdadeiramente a história como elemento fundamental é, na
verdade, a literatura. E, na verdade, o modernismo trouxe uma ideia, trouxe
a ideia de que a história não interessa tanto numa construção, o
que interessa é, sobretudo, é a linguagem. Quando eu comecei a publicar,
era a altura em que se falava que o livro fundamental era
Le Livre Avenir, esse livro que acabava por desmantelar tudo aquilo que
são os conceitos básicos da história, da construção da história. Mas, na
altura, já escritor como o Italo Calvino se revoltava contra isso e
dizia, não, não, eu escrevo porque conto histórias. Ora, na verdade a
história, mesmo hoje há meus colegas que, aqui portugueses, que defendem que
contar uma história é estado primitivo, é estado, na minha perspectiva, portanto,
isto não é diminuir ninguém, porque é uma arte onde cabem articulações
de toda a natureza pronto. Mas é que a história não é
alguma coisa primitiva mas ela é primordial.
Lídia Jorge
A nossa predileção pela ficção tem sido analisada também para outras vias
mais, enfim, normais, por exemplo, para o cinema e para a ficção
geral produzida pela televisão, para as séries, por exemplo. E eu tenho
curiosidade de saber a sua opinião em relação a isso porque lê-se
menos, ou pelo menos lê-se de menos, não tenho a certeza de
que se leia menos necessariamente do que há uns anos, e no
entanto hoje em dia cada vez mais se consome conteúdo produzido pela
televisão e muitos desse conteúdo é de facto bom, e aí até
que ponto é que temos a mesma coisa dos livros? Até que
ponto é que temos este contacto com as vidas de outras pessoas,
diferentes das nossas, com outras realidades, ou seja, perguntando isto de outra
forma, acha que há algo que não existe no cinema e nas
séries de televisão e que existe nos livros? Acha que há uma
perda ou tem uma visão mais otimista?
José Maria Pimentel
O que acontece na literatura é que lhe dá outra dimensão porque
na série é que tal que também como no cinema que é
uma espécie de agudização daquilo que se passa no cinema é que
as imagens estão estáticas elas são dinâmicas mas elas são estáticas porque
obedecem a uma imagem que se inculca. Quer dizer, a Ana Karenina,
no livro de Tolstói, ela tem mil rostos para si, porque as
figuras de livro, elas perpassam na nossa cabeça, numa espécie de penumbra,
a gente não as vê claramente, não é? E a escrita, as
palavras criam halo, para mim que é mágico, que é halo de
uma espécie de penumbra, onde as coisas se movimentam de uma maneira
que permite a nossa reconstrução permanente das imagens. A imagem nunca é
fixa e, portanto, nunca uma imagem que se impõe não é nunca
totalitária. A Ana Karenina nunca é estática para mim, eu vou lá
e vejo sempre de uma outra maneira. Ela vive permanentemente dentro de
mim como uma espécie de fantasia enorme, se reúne permanentemente. A partir
do momento em que entra no cinema, aquele é o rosto.
José Maria Pimentel
Menos... Utilizo a expressão que a mim me faltava, não deixa espaço
à interpretação, compreende? E porque ali a parte interpretativa é muito mais
curta do que a parte interpretativa que tem na literatura. Ora, o
que acontece é que a ficção televisiva é uma espécie de subcedâneo
da comunicação da televisão. O que é que estimula no nosso pensamento?
É, sobretudo, o cérebro rápido. A literatura faz o contrário, estimula o
nosso cérebro lento, que é onde se criam os valores, que é
onde através das palavras nós medimos lentamente aquilo que é bom, que
é mau, aquilo que ajuda, o
que não
ajuda, aquilo que dá justiça, que é dos fatores fundamentais na literatura,
que é o justo, encontrar a justez, encontrar a coisa justa. Encontrar
a coisa justa é muito difícil, é por isso que passando por
alguma coisa do nosso mundo contemporâneo de hoje, o que a gente
vê na televisão sobre as guerras não nos ajudam à interpretação, pelo
contrário, aguçam a nós nos colocarmos completamente de lado ou completamente de
outro, mas se nós começarmos a ler textos, sobretudo os textos de
ficção, que explicam como se chegou ali, nós temos outra interpretação. A
nossa compaixão é muito mais dividida e muito mais conciliadora em relação
àquilo que a gente quer. A ideia de pacífica, de pacificação dos
homens, de justiça entre eles, é formada por esses segmentos interpretativos permanentes,
não é? E, portanto, é completamente diferente. Agora, eu digo, isto é
uma coisa ondulatória, eu acho que a sociedade visual para que nós
tendemos vai ficar farta e a ideia de recolhimento e de vivência
interior vai, digamos, balançar-se porque não se aguenta, digamos, há uma espécie
de intoxicação e a criação de mundo que é estérico, que é
o mundo da absorção da ideia rápida, do efeito rápido, que nos
faz estéricos,
que
nos faz aquilo que o Bai Yong Xiu diz, que nos faz
animais selvagens. Ele diz que o mundo atual em que a imagem
tem peso fundamental na nossa vida e que a rapidez fluente em
cascata faz de nós animais selvagens, como os animais na selva, e
ele diz coisas muito interessantes, ele diz que o animal na selva
não para de defender do que está no exterior, está permanentemente, mesmo
enquanto come,
está
a ter de se defender, para defender a fêmea, a fêmea para
defender a cria, as crias para se defenderem do que pode atacar,
estão permanentemente em estado de suspeita e de alarme. Ele diz a
nossa sociedade de hoje, no livro, que é maravilhoso e já começa
a ser neoclássico, a sociedade do cansaço, ele explica isso muito bem,
que nós estamos à beira de ficar estéricos para nos defendermos de
tantos estímulos, de tanta coisa. Eu acho que na arte é isso
que vai acontecer, nós vamos ficar cansados de tanta história em tão
pouco tempo, nós vamos querer continuar a ter a história, mas lenta,
a história que nos deixa perseguir uma figura que começa na primeira
página com o nome de André e que chega ao fim, que
talvez morra na última página, mas nós passamos para a vida dele,
não é? E fazemos-lhe a nossa.
Lídia Jorge
Sim, não é tanto o final que interessa. Deixe-me fazer uma última
pergunta que volta mais ou menos ao início, para darmos isto bem
antes de passarmos às perguntas do público, vai haver lugar a algumas
perguntas do público, porque a Lídia no início falava de como, quando
escreveu este livro, de certa forma que era acumular de experiências que
naquele momento verteu para as páginas, ou seja, era uma coisa não
completamente deliberada. Isso fez-me pensar num aspecto, e provavelmente já ouviu isto,
há estudos que se faz sobre várias áreas da ciência, medindo, por
exemplo, a idade com que os vencedores de prémios Nobel fizeram o
trabalho que depois lhes veio a dar o prémio Nobel. E, normalmente,
isso é feito quando as pessoas são relativamente novas em áreas da
ciência como a física ou biologia ou até a economia. De olharmos
para a literatura passa-se algo bastante diferente, que normalmente, muitas vezes as
pessoas começam a escrever relativamente tarde e os melhores trabalhos que fazem
normalmente estão mais perto dos últimos trabalhos do que os primeiros, ou
pelo menos não estão no início. E eu pergunto-me se sente isto
em relação ao seu trabalho, se sente que vivendo a literatura da
sabedoria, desse acumular de sabedoria e de sensibilidade, é natural que ela
se vá aguçando com o passar do tempo, porque o mais importante
do que, por exemplo, áreas matematizadas em que o que importa é
de certa forma o poder de computação do nosso cérebro, que teve
pico ali nos 20 anos, que na literatura o que importa é
a saúdoria acumulada, porque é normal que vá aumentando de uma forma
quase que linear com a idade.
José Maria Pimentel
Eu acho que há dois fatores, de facto é a idade, traz
uma experiência, a ideia, muitas vezes se vê como começa e como
acaba, como a vida começa e como a vida acaba, e o
facto de ao longo de uma vida longa se ver como começa
e como acaba, vidas, projetos, tudo isso dá uma experiência que estrutura
saber. Mas há uma outra coisa que eu acho que é os
grandes confrontos com a realidade e com a realidade trágica. Eu nunca
me esquecer porque uma vez a Alice Rayar, que era a editora
da Galimar, quis falar comigo. Não era a minha editora, naturalmente, mas
quis falar comigo e disse-me o seguinte, a Alice, eu gostava de
saber que mortos é que viu para ter escrito a Costa dos
Murmúrios. E eu achei estranho ela perguntar-me isso. Quem escreve a Costa
dos Murmúrios teve de ver mortos perto de si. E isto é
verdade. Quer dizer, passar por alguma coisa, ver o mundo, ver como
a vida pode desabar, ver a experiência trágica, ver a morte dos
outros, ver como se morre, como se abandona, ver essas grandes experiências
trágicas, de facto, a pessoa incorpora e olha com outro olhar para
a vida, não é? Portanto, eu acho que são esses dois fatores.
Agora, se me perguntar se eu, há 15 anos, seria capaz de
escrever misericórdia, Acho que não. Acho que foi, digamos, também, eu tenho
uma idade já avançada, não é? É o facto de não só
ter visto as pessoas que são mais velhas do que eu, 20
ou 30 anos, como elas agem, não é? E perceber por antecipação
que o meu corpo será assim. Isto que não se vai dizer
a uma criança nem a jovem, porque a gente quer que jovem
tenha alegria e ainda não tem estrutura para aguentar isso, não é?
É muito interessante porque a partir de certa altura as pessoas dizem
dia de cada vez e a gente poderia ver quando é que
as pessoas começam a dizer dia de cada vez é quando de
facto começam a ter uma sabedoria sobre a realidade, não é? Agora
aqui à entrada alguém me disse dia de cada vez, quer dizer,
e eu acho isto interessantíssimo, é quando de facto, claro que há
jovens que dizem por imitação, não é? Mas a verdade é que
quando isso é dito, a pessoa diz, eu não tenho muitos dias,
então eu quero viver cada dia de forma absolutamente completa, não é?
Portanto, eu acho que há 20, 30 anos eu não teria escrito
este livro, não é? De facto há momentos especiais para se escrever
determinados livros.
Lídia Jorge
Olá, senhora autora, boa tarde. O Michel Henry escreveu livro, o Verbo
Invisível, do Kandinsky, e tem uma frase que é, a arte pode
arrancar o homem do seu mal-estar, restituindo-lhe o que perdeu. E a
pergunta é, assim como o pintor pinta o invisível, Kandinsky, o escritor
escreve sobre o invisível?
José Maria Pimentel
Sim, sim. Melhor, não estou obrigada por essa questão. Sem dúvida alguma,
escreve sobre o invisível aquilo que perpassa e que não se vê,
que não tem nome. Aliás, é o Carlos Fuentes que faz a
distinção, muito interessante, que faz a distinção entre a história e a
segunda história que é da arte. Fala da história concreta, daquilo que
acontece, mas esta fala daquilo que nem toda a gente está a
perceber e diz uma coisa interessantíssima sobre a literatura, diz que a
literatura é uma estrela de três pontas, uma ponta mergulha naquilo que
é a história comum, a história de todos. Portanto, a história objetiva,
aconteceu no dia tal uma revolução, aconteceu no dia tal governo que
tomou posse, etc. E que é da nossa convivência coletiva. Diz depois
que há outra ponta da estrela que é a nossa vivência coletiva
mas emocional e que a literatura traz, que são sentimentos da sociedade
que nos unem em determinado momento mas que não sabemos articular, que
não temos voz para articular, mas todos estamos a sentir, todos estamos
a sentir a perda, todos estamos a sentir o de deus, todos
estamos a sentir a vontade de mudança. E essa parte coletiva, a
literatura tem-na. E depois há a outra ponta da estrela, segundo ele,
que é a vivência pessoal. Aquela que o escritor fala a partir
de si, mas que coloca com humildade perante os outros, oferecendo-lhe, perdendo
aquilo que é o pudor, o discúr, para ir ao encontro dos
outros e dizer, tu não estás sozinho, olha, experimenta a ter a
minha experiência, eu estou aqui e ofereço a minha experiência. E por
isso, ele não diz isto com estas palavras, mas a escrever para
quem, eticamente escreve, entregando-se de forma completa, não o faz por exposição
de si. Quando se esconhe a si é para dizer, talvez alguém
sinta o mesmo que eu estou sentindo. É por ato de generosidade,
porque a exposição interior é alguma coisa delicada de fazer, não é?
Então, eu diria que sim, a Candide tem toda a razão. Portanto,
não só a pintura, mas toda a arte procura mostrar aquilo que
é sentido, mas que não se vê, não tem nome, não tem
palavra, não é? E por isso, a utopia das palavras aqui nesta
idade, com a qual eu tenho neste momento relações tão profundas, enfim,
que ajude a fazer esse novo mundo para a geração já do
José Maria Pedro.
Lídia Jorge
E depois, e as mais novas. E o livro, de facto, quando
a pessoa escreve, tem uma incógnita, não é? Porque quando a Líder
estava a escrever este livro, não fazia ideia de como ele ia
ressoar, da maneira que depois ressoou, ou enfim, está a ressoar com
o sentimento de muita gente, não é? Porque a pessoa está a
expostar o que está cá dentro e depois é como... Para usar
uma analogia barata é como abrir melão, não é? Só depois é
que se vai perceber.
José Maria Pimentel
Sim, claro, há vários planos. Digamos, O sucesso de livro ou o
sucesso de uma obra tem vários escalões. É uma espécie de noção
interior que se sente quando se chega ao fim e se diz
eu fiz aquilo que podia e estou contente. Às vezes essa satisfação
não dura muito, não é? A pessoa termina num dia livro e
diz que belo livro, era isto mesmo que eu queria, estou tão
contente e passar dias, olha e diz não, não era isto. Afinal,
eu tenho de esperar para o próximo, não é? Mas essa jubilação
interior é o primeiro, nós ficamos contentes por algum tempo com aquilo
que fizemos, essa jubilação mesmo que seja passageira é o primeiro momento,
mas depois há a leitura dos outros, e quando os amigos e
as pessoas mais próximas começam a dizer, não, o livro é bom,
ele não tem nada a mais, não tem nada a menos, está
equilibrado, digamos só, leituras racionais, porque livro é uma obra de arte
é preciso perceber isto a literatura é uma obra de arte não
é apenas só testemunho hoje confunde-se muito literatura com o testemunho. Ah,
eu fui, raparigas, eu fui violada. Aqui vai livro. Se por acaso
o livro não está bem construído, não tem metáfora lá dentro, não
tem transfiguração, ele não cumpre o seu dever, não é? Ora bem,
o que acontece depois é que há outra coisa que é imparável,
que não se sabe, que é aquilo que o editor, e eu
digo alguma coisa que para mim é fundamental, a figura do editor,
a figura do editor é uma figura fundamental na cultura, na sociedade,
é o editor que escolhe, que determina, que gosta de facto só
de experiências picantes e assim para vender livros, vai avenenando a sociedade
com esses objetos. Tem bom gosto, se é exigente, tem gosto específico
e escolhe bem, então está promovendo, digamos, a cultura da sua sociedade.
O pior é quando isso tudo é enviesado por alguma coisa que
é negócio, porque a literatura também é negócio, portanto, depois começa a
haver outros níveis. Então, terá que a população, será que o povo,
será que os leitores gostam do livro que alguns, apenas pequeno grupo,
outro incógnito? Depois, terá que o livro traz sucesso monetário ao editor,
à casa editorial? Por alguma coisa os anglo-saxónicos dividem... Nós só temos
a palavra editor, os anglo-saxónicos têm duas palavras, o publisher e o
editor. São coisas diferentes. Era bom aqui que houvesse...
José Maria Pimentel
Sim, falta-nos essa divisão porque o publisher é aquele que de facto
trata do negócio propriamente, mas o editor não deixa passar metáforas de
mau gosto, pelo menos aquelas que ele pensa de mau gosto, aconselha
a diminuir livro, aconselha a mudar o título, aconselha a reduzir determinados
parágrafos, quer dizer, faz uma leitura crítica que é uma ajuda extraordinária
para o autor. Então, tudo isto, pergunta-se o que é livro com
sucesso. Pois há os prémios literários, que são gratificantes, são magníficos para
os escritores. Dizem uma coisa, dizem os grandes leitores, grandes leitores, leitores
académicos, escritores, jornalistas, intelectuais, filósofos que fazem parte de júri, naquela altura
acharam que aquele livro era importante, acharam que era o melhor, que
era o segundo melhor, enfim, mas há uma coisa que é importante,
que nós sabemos muito bem, é que nenhum prémio acrescenta uma única
palavra a livro. Pode acrescentar estrelas, pode acrescentar tintas, tudo isso. Não
acrescenta uma única frase, uma única palavra. É assim que ele vai,
nu e sozinho, em relação ao futuro. E depois vem, digamos, o
apreço ou não que o futuro