#155 Lídia Jorge - Para que serve a literatura?

Click on a part of the transcription, to jump to its video, and get an anchor to it in the address bar

José Maria Pimentel
O.
Lídia Jorge
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45°. Como de costume, começo com os agradecimentos aos novos mecenas, são eles o Luís Isidro, o Bruno Mendes, o Edgar Mascarenhas e o João Madeira. Neste episódio, volto a explorar tema novo ou quase novo no 45°. Desta vez vamos falar sobre literatura com a autora Lídia Jorge. Esta conversa foi gravada ao vivo durante o Festival Utopia em Braga. Este evento, organizado pela The Book Company, entre 2 e 12 de Novembro, teve este ano a primeira edição e este momento contou com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa e do Festival Literário 5L. Para os interessados, recomendo visitar o site do festival e segui-lo nas redes sociais. O Utopia já tem data de regresso confirmado, em novembro do próximo ano, novamente em Braga. Voltando ao nosso episódio, foi privilégio gravar esta conversa com a Lídia Jorge, que é uma das mais internacionais entre os escritores portugueses. Autora de obras marcantes como O Dia dos Prodígios, A Costa dos Murmúrios ou O Vento Assobiando nas Ruas. A nossa conversa surgiu a pretexto do seu romance mais recente, chamado Misericórdia, e por isso começámos por discutir esta obra, mas acabámos por falar, sobretudo, do papel da literatura, quer na sociedade, quer na nossa vida. Este Misericórdia tem dado muito o que falar, já ganhou inúmeros prémios, que eu começo por enumerar no início da conversa e provavelmente, não exagero-se, de ser que se tornou já uma obra de referência. O livro é inspirado num pedido da mãe da autora, em que a personagem principal é inspirada e narra o último ano de vida de uma mulher idosa num lar de terceira idade. Foi livro que eu gostei muito de ler porque tem personagens ricas e complexas e que sobretudo desafiam visões simplistas da terceira idade e da vida nos lares como momentos necessariamente menos interessantes da vida. Além disso, é livro que é simultaneamente sobre a natureza humana e, por isso, universal e, sobretudo, com o desafio nas sociedades pós-industriais de lidar com a cada vez maior longevidade e o que isso acarreta quer para os próprios, quer para quem cuida deles. Não é fácil ter uma obra com estas duas características ao mesmo tempo e, além disso, muito bem escrita e suspeito que isto ajude muito a explicar o sucesso que este misericórdia tem tido. Para quem ainda não leu, pequeno aviso, embora discutamos alguns detalhes da obra, julgo que não revelamos nada que possa diminuir o prazer da leitura. Além disso, o grosso da nossa conversa estendeu-se para temas mais amplos, sobretudo sobre o papel que a literatura, tal como outras formas de arte, tem em fazermos olhar o mundo, os outros e a nós próprios de forma diferente. Foi muito interessante ouvir a opinião da Lídia Jorges sobre este aspecto e aliás lembrou-me muito da proposta do filósofo Alain de Botton, que eu aliás cito durante a conversa para precisamente responder a esta pergunta, para que é que serve a literatura? E segundo ele, a literatura serve sobretudo para três coisas, para nos dar sabedoria, para nos transmitir bondade, ou seja, ajudar a ser mais empáticos, melhores pessoas, e para nos dar sanidade. Ele compara a literatura ao efeito que tem a psicoterapia e eu achei, não tenho a certeza que estes três sejam verdade para toda a gente, mas lembro-me de ter achado uma proposta interessante e quando ouvi-a a convidada falar lembrei muitas vezes desta definição, sendo que aquilo que ela diz obviamente vai para lá disto. No final da nossa conversa houve espaço para algumas perguntas do público e eu acabei por escolher incluir no episódio A última pergunta, a cujo autor aproveito para agradecer, porque achei ótimo remate para os temas que abordámos durante a conversa. Por isso, espero que gostem desta conversa e deixo-vos então com o Lídia Jorge. Muito bem vindos ao Festival Utopia e a esta gravação de 45°. Muito bem vinda, Lídia Jorge. Já me pouparam parte da apresentação. Na verdade a Lídia dispensa apresentações. Eu queria complementar a apresentação falando bocadinho do livro de Misericórdia que é, enfim, saiu há ano mas claramente tocou nervo, não é? E foi uma leitura muito interessante porque é o romance que está naquele sweet spot, passou o anglicismo a ter de ser agradável de ler e denso de conteúdo, não é? Que era uma coisa que não é fácil de entender. Eu acho que muitas pessoas que estão aqui já conhecem parte da história mas temos que começar pelo início, de onde é que veio o Misericórdia? O que é que fez surgir, nomeadamente em relação à sua mãe, este romance?
José Maria Pimentel
Obrigada pela pergunta e a todos cumprimento. De facto é livro que tem uma género completamente diferente de todos os outros porque parte de uma vivência muito concreta, sobre a qual eu já falei imensas vezes e que teve a ver com o facto de durante três anos eu ter estado muito presente num lar de idosos e ter-me percebido da vida das pessoas lá naquele ambiente e ter percebido que havia a conjugação de dois tipos de marginalidade, os marginais da idade e os marginais sociais e económicos, aqueles que giram pouco por toda a parte à procura de melhores trabalhos e que são jovens e que procuram uma vida melhor e ali vão encontrar duas que estão numa situação de grande debilidade e são duas debilidades que se encontram e foi dessa situação que de facto eu acabei por criar uma espécie de palco que não é totalmente imaginado mas em parte é, mas o substrato correspond de facto a uma vivência.
Lídia Jorge
O pedido que deu origem ao livro, para ser mais concreto, porque o livro obviamente depois já é a criação sua, mas parte de pedido da sua mãe, estava precisamente nessa situação, e é ela que pede que o livro se chame Misericórdia.
José Maria Pimentel
Sim, o que aconteceu foi que desde que ela estava num lar da Santa Casa de Misericórdia e desde que entrou que começou a pedir para eu escrever livro que tivesse por título Misericórdia. Eu sempre não liguei naturalmente porque era título de tal forma solene de tal forma ontológico religioso mesmo.
Lídia Jorge
Parece quase sodo, não sabe no contexto.
José Maria Pimentel
Exatamente, então nunca liguei muito e inclusive eu pensava que tratava de uma queixa, porque ela gostava de lá estar, foi ela que propriamente quis ir para lá, mas eu interpretava que ela queria que eu fizesse qualquer denúncia, quer dizer, que eu falasse das razões que ela às vezes não gostava do que acontecia. E, portanto, foi uma grande surpresa para mim quando, no dia 8 de março de 2020, ela me pediu que eu voltasse a escrever o livro sobre misericórdia e me disse porquê. Então aí disse-me que achava que eu deveria escrever livro sobre a compaixão que se deve ter quando as pessoas deixam de facto de se movimentar e de ser autónomas. Mas eu também não liguei a isso, porque não se escreve livro, digamos, sobre a compaixão, propriamente, a ficção e o romance, que era alguma coisa que não era propriamente catecismo, não é? Agora, o que aconteceu foi que eu nunca mais vi a minha mãe a partir desses dias, portanto, toda a gente viveu esses dias trágicos, não é? Que ficaram simbólicos na nossa vida, que são uma espécie de alegoria que paira sobre a nossa cabeça nos dias que correm hoje e a verdade é que ela faleceu passados 40 dias e eu nunca mais a pude ver e portanto quando aconteceu eu senti que era recado demasiado importante para mim, portanto senti que era uma espécie de encomenda que ela tinha feito e eu não podia deixar de, digamos, de lhe responder, agora que era muito difícil e nos primeiros dias foi muito difícil eu perceber o que é que eu poderia fazer com pedido desta natureza.
Lídia Jorge
Você poderia fazer exatamente o que ela queria, não é? Porque ela está aí, isso não seria bem livro nesta atração, não é?
José Maria Pimentel
Sim, sim, exatamente. Portanto, eu tive de... Depois aconteceram vários episódios, deles foi os objetos que me trouxeram, os únicos objetos que me trouxeram, aqueles que eu soube que ela manteve até o fim, no meio daquela catástrofe que aconteceu no lar de idosos, os únicos objetos que me entregaram foram tão fortes e tão simbólicos de obter a vida dela que eu encontrei através desses objetos o tema para o livro, que é o tema da resistência, digamos o desejo de viver a vida plenamente até o fim, mesmo quando as forças faltam, e mais também a resistência que consiste em ver no outro, ver nos jovens aquilo que é o seu próprio prolongamento, eu não vou desaparecer porque está aqui quem? Aqueles que são o meu espelho projetado no futuro. E isso deu-me força e abriu-me uma porta para eu fazer livro. Este livro eu escrevi-o sob impulso muito intenso, mas devo dizer que os livros só se escrevem naturalmente com sentimento, mas é sobretudo com inteligência. Portanto, quando se escreve não se pensa em que inteligência que eu vou utilizar, mas na verdade é uma espécie de como se o motor que nós tivéssemos dentro, tivesse vindo a ser acionado para no momento pôrmos tudo aquilo que de forma inteligente nós conseguimos adquirir para fazer alguma coisa que seja artística, que seja arte. No nosso caso, das palavras, chama-se literatura, não é? Mas não é ideia, quer dizer, eu pelo menos não é isso que me acontece, não é filho de sentimento imediato, ou digamos, o sentimento fica pousado para pegarmos nele, e foi este o caso, pegar nele e fazer alguma coisa. E isso, à medida que eu escrevia, eu tinha uma ideia de triunfo. Isto é, triunfo interior, não tem nada a ver com o triunfo exterior. Triunfo interior que consiste em... Estou a ter a ideia de que encontrou caminho, independentemente daquilo que seja a aceitação, encontrou percurso para o objeto que está a fazer. Então, digamos assim, o meu luto, que não foi só pela minha mãe, mas que foi pelo mundo, pelo que se estava a viver e que deixou o rasto que ainda hoje aqui está, não é? E que foi uma espécie de parábola por aquilo que nós estamos a viver nos nossos dias, uma espécie de preparação para o que estamos a viver nos nossos dias. O facto de ter encontrado essa porta deu uma ideia de que eu tinha instrumento na mão para transmitir aos outros e que não era só sobre a minha mãe que eu estava a escrever, não era só sobre Dona Alberti, era alguma coisa muito mais ampla, pelo menos, digamos, interiormente, era essa ideia que eu tinha de que estava a escrever em segredo para as pessoas que estavam à espera de uma narrativa assim. Começou a enumerar os prémios, que têm a ver com bastantes leitores que, enfim, que acharam que o livro lhes devia respeito. Acho que isto acontece, talvez tenha acontecido mais com dois livros na minha vida, mas acontece que há momentos sociais, sociológicos, enfim, pelo que se possa chamar, que prevêm da sociedade, mas há momentos que criam uma expectativa de que há obras de arte, sejam elas cinema, música, dança, seja o que
Lídia Jorge
for, e
José Maria Pimentel
encaixam no momento, parece que nós estamos à espera, não é? E essa ideia de que há aquele músico que criou uma música para mim, essa ideia, esse encontro, não é? Faz com que em certo momento alguma coisa pareça que livro, ou uma música, ou disco, ou uma dança, bem ajudar a responder à pergunta que nós estamos a fazer. Porquê? Como foi? Para onde é que vamos?
Lídia Jorge
E a pergunta é que acha que o misericórdia está a responder ou ajudar a responder?
José Maria Pimentel
A pergunta é para que serve o fim da vida? Porque a vida como nós a vivemos, assim, normalmente, tem várias finalidades. Tem a finalidade ontológica apenas da pessoa achar completa ou não, tem a finalidade social, a finalidade enquanto cidadãos de estarmos uns com os outros, de cumprirmos programa que é de uma coletividade, de termos amigos, termos filhos, termos pessoas que amamos, divertirmos, sentir júbilo perante a existência e depois, a certa altura da vida, eu percebi-me, por experiência direta e não por leitura que as perguntas que as pessoas fazem a partir de certa altura quando ficam mais imobilizadas e têm tempo para pensar e elas voltam a ser adolescente, o adolescente que tem a angústia de perguntar como vai ser a minha vida, para que serve a minha vida e a pessoa idosa que tem tempo e que tem capacidade disso, porque às vezes perde-se a capacidade, mas pergunta para que serviu a minha vida E isso é muito agudo, não é? É muito agudo. E então, as respostas são várias, não é? E eu achei que as pessoas que melhor viviam esse tempo, eram aquelas que achavam que a sua vida tinha servido para que os outros aprendessem com elas, para que os outros se esclarecessem com elas, isto é, aqueles que se envolvem até ao fim com o destino da sua família, da sociedade, da deriva do mundo. E o caso da Dona Alberti foi esse, mas não foi o único caso, ela, que aí é Dona Alberti, na vida era outra coisa, ela se envolvia com as outras pessoas e as outras pessoas também. Aliás, há uma cena no final, já no último capítulo, que é uma cena retirada de uma situação real. Não sei se se lembram que o Boris Johnson, no princípio, achava que teria de haver uma imunidade coletiva, uma imunidade de grupo e que não valia a pena ir gastar todo este dinheiro nas vacinas e tudo isso. E as pessoas mais idosas acharam que o que ele queria era uma espécie de purga dos mais frágeis, não é? E houve uma revolta e assim. Ora bem, o que aconteceu foi que o ambiente desse lar, onde a minha mãe estava, aconteceu que já mais de metade estavam infectados e num quarto onde as pessoas já estavam infectadas, eu soube, não estava lá, porque havia muitos dias que não podia lá entrar, mas soube que tinham feito uma festa quando souberam que o Boris Johnson estava infectado. Portanto, porque diziam que ele queria que os velhos morressem, mas ele é que vai morrer. Portanto, essa capacidade de vingança até ao fim, de viver plenamente, no final eu já assisti apenas pelo telefone, mas isso se manteve.
Lídia Jorge
Desculpa interrompê-lo, o livro é interessante porque eu não consigo chegar a diagnóstico se o livro é triste ou alegre, porque eu acho que o livro, embora trate de uma realidade que muitas vezes é triste, que são pessoas que estão a aproximar-se do fim da vida, que estão desanimadas em muitos casos, que em alguns casos já não têm as capacidades, para não falar depois de toda essa envolvência de imigrantes, de pessoas que têm trabalhos precários, mas depois têm humor e depois essa própria vivência, porque o que é muito interessante é que as vidas daquelas pessoas ou a vida daquelas pessoas dentro daquelas é parecida com a vida fora, as interações são muito parcerias.
José Maria Pimentel
Não, é porque as pessoas têm a ideia de que quando se entra ali, eu não digo que seja uma coisa ideal, mas é aquilo que a sociedade moderna, sobretudo pós-industrial, encontrou para resolver o problema das famílias que trabalham, em que as mulheres e todas as pessoas adultas trabalham. Encontrou-se esta forma de amontoar as pessoas num espaço. É o que nós temos. Agora, as pessoas têm a ideia de que aquilo ali é uma outra humanidade, mas não é. É o somatório de tudo, de tudo que nós vivemos. Estado e tudo, é a nossa... Somos nós, mais idosos, não é? Somos nós mais idosos e, portanto...
Lídia Jorge
E sabe o que é aquilo que me lembrou mais? O Liceu.
José Maria Pimentel
O Liceu, pois é, é exatamente. É uma altura muito social, não é?
Lídia Jorge
Exatamente, uma altura... Das colégias,
José Maria Pimentel
não é? Sim, mas diz muito bem, é isso mesmo, porque de repente fica-se num estado coletivo, não é? E portanto, exatamente no liceu, quando... E então nos lares, não sei se alguma vez frequentou ou alguém frequentou, os que estão aqui, os lares para jovens. Eu vivi num lar de freiras, quando eu estava na Universidade, em Lisboa, e o que acontecia é que, precisamente, por exemplo, a dificuldade que nós tínhamos de manter objetos e situações que eram só nossas, porque tudo era coletivo e, portanto, era muito difícil guardar-se a carta de namorado, não é? Porque alguém sabia quando é que alguém escondia nada era muito privado e uma das situações que eu encontrei nesse ambiente foi a dificuldade da privacidade o facto de não se poder guardar uma fotografia só para a pessoa o facto de não se poder comer chocolate sozinho que é uma coisa que é tão banal, alguém que quer comer chocolate e tem vergonha de comer a tableta completa, e ali as pessoas... É uma
Lídia Jorge
coisa que a pessoa normalmente não
José Maria Pimentel
pensa, não é? Exatamente.
Lídia Jorge
E depois o próprio quarto não é privado.
José Maria Pimentel
O próprio quarto não é privado, não é? Tudo, nada é privado e portanto, o facto diz muito bem, há uma, essa vida coletiva que tira praticamente quase toda a privacidade, não é?
Lídia Jorge
O. Queres descobrir em primeira mão como é que programa de terror pode levar à libertar de endorfinas no cérebro? Como uma narrativa entusiasmante pode fazer com que o teu coração bombeie quantidades inacreditáveis de sangue? Como ser perseguido por monstro na hora de uma floresta é impróprio para cardíacos? Então, nós temos programa para ti.
José Maria Pimentel
Há algo de estranho em relação a esta floresta? Engonish. Nunca devíamos ter vindo para cá.
Lídia Jorge
Em 1567, a colónia portuguesa em Engonish, Canadá, desapareceu sem deixar fasto. O senhor há-de de forma misteriosa. O de uma história de uma mulher que enfrentou o mal e se abateu sobre Engonix. Mas será ela a fome de todo este pesadelo?
Lídia Jorge
Ele tinha garras em vez de mãos.
José Maria Pimentel
Não tinha pele.
Lídia Jorge
A Queda de Engonix é uma produção do Brouhá com Bárbara Bram, José Condessa e Tobias Monteiro, já disponível em todas as plataformas de podcast e em brohapodcast.com. Pesquisa a queda de engonixos ou segue o link na descrição deste episódio.
José Maria Pimentel
Que é uma coisa que eu acho que é bom nós convivermos com aquilo que são as experiências radicais, quer dizer, nós devemos estar preparados para as experiências radicais, é erro na minha perspectiva e eu acho que a arte verdadeira é uma arte que ignora aquilo que é os livros de ajuda, por exemplo, da autoajuda, porque a arte prepara para nós enfrentarmos os grandes desafios do mundo, não é? Nós sabemos que nada está bem, tudo tem de ser conquistado permanentemente, não é? Sabemos que nada é perene e que a vida, a Terra, tudo, neste momento nós sabemos tanto até sobre o Cosmo, que nós sabemos que tudo é precário, não é? Que é precário e que é vulnerável. Hoje, qualquer adolescente e qualquer criança sabe que a Terra é tão vulnerável que há neste momento alterações climáticas e sabemos que a paz que nós tínhamos aqui no nosso continente até há dois anos antes, pensávamos que tínhamos a paz, de repente não temos mais, de momento para o outro tudo se altera e a arte ajuda precisamente a preparar para o embate. Uma vez eu li texto do Arthur Kessler muito interessante que explicava que o pensamento poético é iminentemente pensamento trágico e em que é que consiste o pensamento trágico? Consiste em olhar para a realidade e nunca ver as peças estáticas, mas ver as peças sempre em movimento. Aliás, dizia uma coisa muito interessante, a vida comum faz nós sentarmos sobre uma cadeira e dizemos aqui estou, estou bem instalado, mas o pensamento trágico não nos deixa estar sentados sobre uma cadeira, diz, eu estou sentado sobre uma cadeira, debaixo da cadeira está uma laje, debaixo daquela laje, possivelmente, estão pessoas sepultadas, debaixo das pessoas sepultadas está uma parte da terra, no fundo da terra está a camada ígnea da terra e é por aí fora, não é? E, portanto, o pensamento trágico é esse, é o pensamento que não nos deixa estar quietos, que estimula a nossa capacidade de mobilização do pensamento, não é? E portanto, falar sobre estas questões, as pessoas, por exemplo, a certa altura, ficarem sem roupa sobre a cama, à espera que alguém se lembre delas, para as levar para o dos, é humanidade. Quer dizer, podemos nós imaginar que nunca acontecerá? Oxalá nunca nos aconteça, mas possivelmente aconteça a todos. Dia, por qualquer razão, nós ficarmos sobre uma cama completamente nus, não é?
Lídia Jorge
E a literatura ajuda-nos a estarmos preparados de certa forma.
José Maria Pimentel
É por isso que a gente lê com tanta alegria, apesar de ser livro tão triste.
Lídia Jorge
É paradoxo, em certo sentido.
José Maria Pimentel
É paradoxo, mas, precisamente por isso mesmo, nós falamos do paradoxo da literatura, que fala-se muito, precisamente, nesse contraste que há, que é, mesmo sobre tema que é absolutamente trágico, a literatura, ou qualquer arte, a beleza, a parte de, digamos, a construção é uma promessa de uma harmonia, não é? E é isso que faz com que, por exemplo, Cisto é Homem, do Primo Levi, que era mais assunto, mais trágico, mais triste, não é? O início de Sisto é Homem, aquele poema, que é precisamente Sisto é Homem, porque fala da degradação das pessoas no campo de concentração. Nós começamos a ler e porquê é que sentimos uma leveza enorme? Sentimos que há resgate do mal, quer dizer, a arte acaba por resgatar de desordem, impondo uma ordem que não é da natureza da gramática natural, da gramática em que há sujeito e predicado, é de uma natureza de transfiguração em que se diz isto aconteceu, mas pelas palavras eu sei que não deveria ter acontecido, eu sei que nunca deveria mais ter acontecido,
Lídia Jorge
pode ser que não volte a
José Maria Pimentel
acontecer, é uma esperança, parte da estética é esperança, É isso que faz nós sairmos de concerto e caminharmos pela rua de noite e termos a ideia de que os pés, nossos pés, não caminham sobre as lajes, não é? Sentimos que estamos acima, acima da terra, não é? É essa alegria inexplicável que é a ideia de que alguma coisa é mais harmoniosa do que vida comum. Isto é uma proposta de paz, de beleza, de outro mundo, parece inalcançável, mas que eu quero alcançar. E isso que é o sentimento estético é independentemente de livro é sobre alguma coisa muito má ou não.
Lídia Jorge
Na verdade depende, Porque nos seus livros eu identifico isso, mas há autores que são mais pessimistas e que a coisa acaba na versão... Olha,
José Maria Pimentel
eu vou lhe dizer, foi muito engraçado porque há uns meses eu estive num debate com o Miguel de Sousa Tavares e eu achei que ele fez uma síntese muito interessante, ele disse assim, as palavras foram mais ou menos estas, eu sou violento e no entanto escrevo com doçura, a Lídia é doce e no entanto escreve com violência. Eu achei muito interessante isto porque de facto os meus livros não, lidos, digamos literalmente, eles não propõem bem, nenhum dos meus livros diz assim, olha, chegou ao fim e este casou com aquela, tiveram crianças e foram felizes. Não, não encontra isso, não é? Encontra precisamente pouco o contrário, não é? Só que, para lembrar texto canónico que toda a gente conhece, que é os maias, querem maior tragédia, não é? Chegar ao fim e aquela situação é uma facta absolutamente trágica, é simbólica de povo anêmico que não é capaz da renovação, que não é capaz de criar riqueza, que não é capaz de nada, enfim, é uma tragédia e até não deve ser lida nos dias de hoje. Ora bem, o que acontece, porém, é que quando nós chegamos ao fim há oxímoro, há a ideia de que, olha, isto não deveria acontecer. Nem o incesto, nem a molenga desta gente, nem a incapacidade de criar novos mundos, isto não deve acontecer. E é isso que a literatura faz. Não precisa de ter happy end, não precisa. A literatura não é feita para isso, é feita precisamente para o contrário. Agora, claro, há os leitores que são alfabetizados em literatura e há os analfabetos em literatura, chamemos assim mesmo, há pessoas que não aguentam fim que não seja harmónico porque não têm uma instrução, não são alfabetizados em arte.
Lídia Jorge
É verdade, depende do fim, no seu caso e no caso do S, se replica exatamente o mesmo, E até no caso dos mais, embora ao final não seja feliz, perpassa uma certa ironia e uma certa até relativização que eu não acho que seja totalmente pessimista. E este livro é bom exemplo disso. Por exemplo, desculpe-me, poderia, sobre esta realidade, poderia perfeitamente ser livro absolutamente trágico, pessimista, que de facto há realidades horríveis nos lares em Portugal e por todo o mundo. E, no entanto, não é essa a imagem que passa. Não é essa a imagem que passa, não é? Não, não é essa a imagem que passa. Não digo que seja ao contrário, mas é... Sim.
José Maria Pimentel
Não, porque no fundo eu escrevi este livro como se não houvesse livros, isto é, escrevi apenas com o que tinha dentro, o que aprendi ao longo da vida, não fui à estante enquanto escrevi este livro. Agora, o que acontece, e isso é o que me tem sido dito, é que há uma espécie de mistura de dois planos, é uma balada melancólica, mas ao mesmo tempo uma ode, não é? Tem ao mesmo tempo trigéria e tem ao mesmo tempo... Isso declara a heroia e o amor à vida
Lídia Jorge
e à
José Maria Pimentel
sabedoria, não é? O amor à sabedoria. Sabedoria informal, mas amor à sabedoria,
Lídia Jorge
não é?
José Maria Pimentel
E eu, digamos, como passo aí sopro de religiosidade, que não é o caso da Dona Alberti, mas é livro que inclui uma espécie de Deus profundo, uma missa de trevas, mas ao mesmo tempo agradecimento a Deus, à vida, à divindade, pelo facto de haver existência, o amor para a existência. Eu não trouxe o livro, mas há uma certa passagem que, naqueles pequenos textos que a D. Alberti escreve, aquilo que já ela só pode escrever, pequenas palavras, ela diz que amará a vida, portanto viverá, viverá, viverá a vida e depois o que for, doará. O que for, deverá. Mas como não tem a certeza de nada do que vai acontecer depois, deixa-me amar a vida intensamente até ao fim. Portanto, para a D. Alberti, ela não tinha essas palavras, mas a sua transcendência para viver a imanência em absoluto.
Lídia Jorge
E vivia, e até é curioso, muitas vezes com sentimento de superioridade, no bom sentido, de que se está a ver o que se está a passar à volta dela e vai mantendo pensamento sagaz até ao final, que é muito curioso. E crítico. E crítico.
José Maria Pimentel
E irónico.
Lídia Jorge
Por acaso há aspecto dela, quer dizer, porque isto é tudo narrado na primeira pessoa, e há aspecto que eu fui reparando ao longo do livro e pergunto-me qual é a mensagem por trás, porque em muitos momentos ela pensa e não diz, e há momentos em que pensam e não diz porque não conseguem e há momentos em que pensam e não diz porque não querem, e há momentos em que diz mas não é compreendido verdadeiramente, e isso é algo que acontece muito na vida, muitas vezes somos incompreendidos, ou porque nos expressamos, mas expressamos mal, ou porque escolhemos não nos expressar e portanto as pessoas não chegam a saber o que está cá dentro, ou então queremos e não conseguimos porque estamos tão sobrevuados emocionalmente, por exemplo, e isso há muitas passagens ao longo do livro em que isso, em relação com a filha, mas não só, mesmo com as amigas, há muitos momentos desse género que é curioso.
José Maria Pimentel
Pois é, mas quer dizer, isso é a reprodução daquilo que acontece na nossa vida, há uma parte da nossa subjetividade que é só nossa. Aliás, precisamente a arte e a literatura, sobretudo porque a arte é feita com a matéria primeira das palavras, é o do nosso pensamento corrente, ajuda-nos a uma coisa que é convivermos com a nossa própria subjetividade. Há uma parte que não é transmissível da nossa vida, há uma parte que nós não encontramos palavras para traduzir, Há uma parte que é uma experiência secreta que é a nossa e é uma parte preciosa e a pessoa deve e a literatura ajuda a isso porque é a arte do silêncio, não é? Ajuda à construção desse mundo interior que é, no fundo, o segredo da personalidade, o segredo da pessoa, onde está, no fundo, o apelo para o seu próprio sentido, não é? E isso é alguma coisa que, por vezes, não por vem da instrução, por vem do sentido que as pessoas têm uma espécie de honradez de ser gente, honradez de ser gente, sei que há uma parte que eu não consigo transmitir, sei que há uma parte que eu não consigo dizer, sei que há uma parte para a qual eu não encontro palavras, sei que há uma parte da minha memória que vai ser perdida, mas está tudo aqui. E, portanto, eu olho-me ao espelho e digo, eu sou gente. E isso é de uma grandeza enorme, não é? Ora, a Dona Alberti, ela não fazia este raciocínio assim, mas era alguém que recutava. Aliás, em muitos momentos ela quer falar, mas não a ouvem. Ela quer explicar, mas não a ouvem. Quando ela fala das formigas, ela quer dizer, ela que sabe, porque leu algumas coisas sobre as formigas, ela quer explicar que ninguém a ouve, não é? Mas ela faz o raciocínio para si, fica contente por saber como é o ciclo das formigas porque leu, leu num jornal qualquer, numa coisa qualquer, ela leu, aprendeu como é que as formigas se reproduzem, como as formigas atacam, tudo isso ela leu, ela queria contar e disseram não. E é muito interessante, eu agora digo-lhe que, e agora parto para uma experiência real, foi que a minha mãe contou-me isto. Havia lá senhor, que era senhor que cantava muito bem, eu gostava muito dele, e a minha mãe associou, porque ele cantava bem, ele era uma pessoa com interioridade profunda, e dia esteve com ele, me falaram de médicos, e o médico disse, eu não sou João Semana, E a minha mãe perguntou ao senhor, disse, sabe o que é João Semana? E ele respondeu-lhe muito mal, que não queria, que não sabia, nem queria saber e que odiava quem soubesse. E foi choque para a minha mãe, choque, ela nunca mais gostou de ouvir cantar porque ela ficava embevecida a ouvir o cantar e depois uma pessoa que cantava, que para ela tinha essa dimensão, digamos, de beleza, dizer que não queria saber quem era o João de Semana e que até odiava quem soubesse. Para ela foi uma coisa trágica, uma coisa má. Todos nós somos diferentes, mas esse percurso interior que é de guardar para si, ter uma coisa para si, ter palavras para si, saber que nunca as pode dizer todas, é alguma coisa muito importante, porque é mesmo assim.
Lídia Jorge
Sim, sim, e a literatura e ler também nos, apesar de tudo, ajuda-nos a expressar-nos melhor, ou seja, a expressar os nossos, a converter os nossos sentimentos ou as nossas ideias para a mente do outro, que é a grande dificuldade da comunicação, porque muitas vezes essa comunicação não passa porque nós não conseguimos transmitir o que vai cá dentro, ou transmitimos de uma maneira que a outra pessoa não entende.
José Maria Pimentel
Bem, eu vejo aqui, há alguns rostos que eu conheço de professores que dão aulas e sabe-se que, precisamente, quando nós falamos da literatura para os jovens sabemos que dos aspectos mais importantes da narrativa e do romance e do conto e do teatro, naturalmente, é precisamente o facto de promover aquilo que é a alteridade, que é o facto de viver durante algumas horas a vida figuras ficcionais ajuda-nos a ser muito... Estou às múltiplas e portanto a compreender os outros, a ouvir os outros, a perceber que a nossa forma de ser é apenas uma no meio das outras. Isso é alguma coisa que se faz, deveria ser a instrução do adolescente, o adolescente que pensa que não morre, o adolescente que pensa que é capaz de dominar o mundo, que quer partir de casa, que não quer voltar para casa, que acha que o avô, o pai, a família não tem mais nada para lhe dizer, porque estão longe é que têm sabedoria. Esse que tem a ideia de que tem uma aventura e que essa aventura é uma aventura que não tem fim e portanto em geral é egotista, não digo egoísta, mas é aquele que está agarrado ainda a si, como se fosse uma criança grande, não é? É a altura em que a instrução da alteridade é absolutamente fundamental. Quer dizer, tu és entre os outros. E isso é a literatura. Quer dizer, a importância de ler os miseráveis para os alunos franceses, não é? Ou de ler David Copperfield para os alunos do Reino Unido. Ou para nós o facto de lermos, precisamente, os maias ou livros assim, a importância é precisamente fazer esse ensaio interior, ensaio interior de que eu sou entre os outros, pensam de outra maneira, há outras vidas e, portanto, alarga-se o sentido da compreensão. E, portanto, isso que está a dizer é muito importante, é que, neste caso, a literatura, os livros, e ainda bem que estamos num festival de literatura, não é? E que as pessoas voltam, felizmente, pouco por toda a parte, a perceber que se perdermos esta disciplina, perdemos uma parte da nossa humanização. Ora, o que acontece é que é esta disciplina que ensina isso. Ensina não só a convívio secreto com os próprios. Nós nascemos sozinhos e morremos sozinhos. Não há dúvida nenhuma. É o José Lézaro Malima que diz o mesmo grito que se dá ao nascer é o mesmo que se dá ao morrer, quando se dá o grito eu vim, quando se nasce, e quando se parte diz eu vou, esse grito é solitário sempre e o ensaio dessa solidão habitada por espírito que somos nós próprios falando connosco mesmo é absolutamente fundamental e isso educa-se com todas as artes mas sobretudo com a literatura, com a arte das palavras. E depois a ideia de que o outro está aqui, eu falo, calo-me e ouço os outros, não é? E aprendo quando calo.
Lídia Jorge
É engraçado porque eu estava a ouvir-lhe há bocadinho, e isso vai muito ao encontro de uma definição de literatura do que faz o Allan de Botton que é o filósofo conhecido que diz que a literatura serve para transmitir sabedoria, bondade e sanidade e que tem muito a ver com várias coisas que falávamos aqui, a sanidade é a questão do trágico, a sabedoria é a relação da maneira como tratamos a terceira idade e muito mais que passa no livro, e a questão da bondade também no sentido da empatia, de compreendermos os outros. O livro chama-se Misericórdia, mas no fundo a ideia é compaixão, empatia e a literatura transmite isso, a literatura e a ficção no geral e a própria experiência de vida. Claro, claro. Ao conviver com os outros nós vamos percebendo que o mundo é mais do que são nós próprios.
José Maria Pimentel
É isso mesmo.
Lídia Jorge
Eu acho muito interessante esta definição dele. E A Lídia falou várias vezes já da literatura e da arte em geral. E eu tenho muita curiosidade em saber a sua opinião em relação a isto, já pensei nisto várias vezes. O que é que é diferente, para além do óbvio, para além da manifestação direta, entre a literatura e o resto da arte? Entre a literatura e a música, entre a literatura e as artes plásticas, por exemplo?
José Maria Pimentel
A matéria-prima, a matéria-prima que é das palavras, quer dizer... E o
Lídia Jorge
resto é igual?
José Maria Pimentel
Sim, eu acho que o resto é igual.
Lídia Jorge
Aquilo que transmite...
José Maria Pimentel
Sim, é sempre corte com a realidade, com a realidade quotidiana, é sempre corte, digamos, com a ditadura do real, sempre, é corte com a ditadura do real. Portanto, é não aceitar que o mundo seja só as pedras, seja só os caninhos, seja só o emprego, que muitas vezes não funciona, quer dizer, é depois cortar por instantes, por momentos ou por longos momentos com essa ditadura do real e partir para uma outra coisa, para outro mundo. Ora, o que acontece na minha perspectiva é que a matéria-prima da literatura é o agenciamento do nosso próprio pensamento, é a nossa efabulação interior feita com palavras. E há uma outra coisa, é que toda a arte conta uma história, aquela arte que assume verdadeiramente a história como elemento fundamental é, na verdade, a literatura. E, na verdade, o modernismo trouxe uma ideia, trouxe a ideia de que a história não interessa tanto numa construção, o que interessa é, sobretudo, é a linguagem. Quando eu comecei a publicar, era a altura em que se falava que o livro fundamental era Le Livre Avenir, esse livro que acabava por desmantelar tudo aquilo que são os conceitos básicos da história, da construção da história. Mas, na altura, já escritor como o Italo Calvino se revoltava contra isso e dizia, não, não, eu escrevo porque conto histórias. Ora, na verdade a história, mesmo hoje há meus colegas que, aqui portugueses, que defendem que contar uma história é estado primitivo, é estado, na minha perspectiva, portanto, isto não é diminuir ninguém, porque é uma arte onde cabem articulações de toda a natureza pronto. Mas é que a história não é alguma coisa primitiva mas ela é primordial.
Lídia Jorge
A nossa predileção pela ficção tem sido analisada também para outras vias mais, enfim, normais, por exemplo, para o cinema e para a ficção geral produzida pela televisão, para as séries, por exemplo. E eu tenho curiosidade de saber a sua opinião em relação a isso porque lê-se menos, ou pelo menos lê-se de menos, não tenho a certeza de que se leia menos necessariamente do que há uns anos, e no entanto hoje em dia cada vez mais se consome conteúdo produzido pela televisão e muitos desse conteúdo é de facto bom, e aí até que ponto é que temos a mesma coisa dos livros? Até que ponto é que temos este contacto com as vidas de outras pessoas, diferentes das nossas, com outras realidades, ou seja, perguntando isto de outra forma, acha que há algo que não existe no cinema e nas séries de televisão e que existe nos livros? Acha que há uma perda ou tem uma visão mais otimista?
José Maria Pimentel
Eu tenho uma visão otimista porque as séries bem feitas bebem do cinema, porque a questão grave aí é que o cinema propriamente criativo e é do que as pessoas se queixam, começam a ter os passos reduzidos. É aí, é no cinema, é na arte, é no cinema que os realizadores das séries vão buscar os instrumentos. Sim, sim, claro.
Lídia Jorge
Mas acha que é melhor... O que é que as séries têm que a literatura não tem e vice-versa?
José Maria Pimentel
Bem, têm a rapidez. Quer dizer, enquanto que livro... Vamos ver, o que é que uma coisa tem e a outra não tem? O livro é uma coisa longa, não é? Exige uma concentração. Portanto, é desafio muito mais intenso. No outro, a pápua está feita. Portanto, é digerido. E pode ser belo, pode ser tudo, mas é rápido.
Lídia Jorge
Mas é mais fácil.
José Maria Pimentel
O que acontece na literatura é que lhe dá outra dimensão porque na série é que tal que também como no cinema que é uma espécie de agudização daquilo que se passa no cinema é que as imagens estão estáticas elas são dinâmicas mas elas são estáticas porque obedecem a uma imagem que se inculca. Quer dizer, a Ana Karenina, no livro de Tolstói, ela tem mil rostos para si, porque as figuras de livro, elas perpassam na nossa cabeça, numa espécie de penumbra, a gente não as vê claramente, não é? E a escrita, as palavras criam halo, para mim que é mágico, que é halo de uma espécie de penumbra, onde as coisas se movimentam de uma maneira que permite a nossa reconstrução permanente das imagens. A imagem nunca é fixa e, portanto, nunca uma imagem que se impõe não é nunca totalitária. A Ana Karenina nunca é estática para mim, eu vou lá e vejo sempre de uma outra maneira. Ela vive permanentemente dentro de mim como uma espécie de fantasia enorme, se reúne permanentemente. A partir do momento em que entra no cinema, aquele é o rosto.
Lídia Jorge
Dá menos lugar à interpretação, não é?
José Maria Pimentel
Menos... Utilizo a expressão que a mim me faltava, não deixa espaço à interpretação, compreende? E porque ali a parte interpretativa é muito mais curta do que a parte interpretativa que tem na literatura. Ora, o que acontece é que a ficção televisiva é uma espécie de subcedâneo da comunicação da televisão. O que é que estimula no nosso pensamento? É, sobretudo, o cérebro rápido. A literatura faz o contrário, estimula o nosso cérebro lento, que é onde se criam os valores, que é onde através das palavras nós medimos lentamente aquilo que é bom, que é mau, aquilo que ajuda, o que não ajuda, aquilo que dá justiça, que é dos fatores fundamentais na literatura, que é o justo, encontrar a justez, encontrar a coisa justa. Encontrar a coisa justa é muito difícil, é por isso que passando por alguma coisa do nosso mundo contemporâneo de hoje, o que a gente vê na televisão sobre as guerras não nos ajudam à interpretação, pelo contrário, aguçam a nós nos colocarmos completamente de lado ou completamente de outro, mas se nós começarmos a ler textos, sobretudo os textos de ficção, que explicam como se chegou ali, nós temos outra interpretação. A nossa compaixão é muito mais dividida e muito mais conciliadora em relação àquilo que a gente quer. A ideia de pacífica, de pacificação dos homens, de justiça entre eles, é formada por esses segmentos interpretativos permanentes, não é? E, portanto, é completamente diferente. Agora, eu digo, isto é uma coisa ondulatória, eu acho que a sociedade visual para que nós tendemos vai ficar farta e a ideia de recolhimento e de vivência interior vai, digamos, balançar-se porque não se aguenta, digamos, há uma espécie de intoxicação e a criação de mundo que é estérico, que é o mundo da absorção da ideia rápida, do efeito rápido, que nos faz estéricos, que nos faz aquilo que o Bai Yong Xiu diz, que nos faz animais selvagens. Ele diz que o mundo atual em que a imagem tem peso fundamental na nossa vida e que a rapidez fluente em cascata faz de nós animais selvagens, como os animais na selva, e ele diz coisas muito interessantes, ele diz que o animal na selva não para de defender do que está no exterior, está permanentemente, mesmo enquanto come, está a ter de se defender, para defender a fêmea, a fêmea para defender a cria, as crias para se defenderem do que pode atacar, estão permanentemente em estado de suspeita e de alarme. Ele diz a nossa sociedade de hoje, no livro, que é maravilhoso e já começa a ser neoclássico, a sociedade do cansaço, ele explica isso muito bem, que nós estamos à beira de ficar estéricos para nos defendermos de tantos estímulos, de tanta coisa. Eu acho que na arte é isso que vai acontecer, nós vamos ficar cansados de tanta história em tão pouco tempo, nós vamos querer continuar a ter a história, mas lenta, a história que nos deixa perseguir uma figura que começa na primeira página com o nome de André e que chega ao fim, que talvez morra na última página, mas nós passamos para a vida dele, não é? E fazemos-lhe a nossa.
Lídia Jorge
Sim, não é tanto o final que interessa. Deixe-me fazer uma última pergunta que volta mais ou menos ao início, para darmos isto bem antes de passarmos às perguntas do público, vai haver lugar a algumas perguntas do público, porque a Lídia no início falava de como, quando escreveu este livro, de certa forma que era acumular de experiências que naquele momento verteu para as páginas, ou seja, era uma coisa não completamente deliberada. Isso fez-me pensar num aspecto, e provavelmente já ouviu isto, há estudos que se faz sobre várias áreas da ciência, medindo, por exemplo, a idade com que os vencedores de prémios Nobel fizeram o trabalho que depois lhes veio a dar o prémio Nobel. E, normalmente, isso é feito quando as pessoas são relativamente novas em áreas da ciência como a física ou biologia ou até a economia. De olharmos para a literatura passa-se algo bastante diferente, que normalmente, muitas vezes as pessoas começam a escrever relativamente tarde e os melhores trabalhos que fazem normalmente estão mais perto dos últimos trabalhos do que os primeiros, ou pelo menos não estão no início. E eu pergunto-me se sente isto em relação ao seu trabalho, se sente que vivendo a literatura da sabedoria, desse acumular de sabedoria e de sensibilidade, é natural que ela se vá aguçando com o passar do tempo, porque o mais importante do que, por exemplo, áreas matematizadas em que o que importa é de certa forma o poder de computação do nosso cérebro, que teve pico ali nos 20 anos, que na literatura o que importa é a saúdoria acumulada, porque é normal que vá aumentando de uma forma quase que linear com a idade.
José Maria Pimentel
Eu acho que há dois fatores, de facto é a idade, traz uma experiência, a ideia, muitas vezes se vê como começa e como acaba, como a vida começa e como a vida acaba, e o facto de ao longo de uma vida longa se ver como começa e como acaba, vidas, projetos, tudo isso dá uma experiência que estrutura saber. Mas há uma outra coisa que eu acho que é os grandes confrontos com a realidade e com a realidade trágica. Eu nunca me esquecer porque uma vez a Alice Rayar, que era a editora da Galimar, quis falar comigo. Não era a minha editora, naturalmente, mas quis falar comigo e disse-me o seguinte, a Alice, eu gostava de saber que mortos é que viu para ter escrito a Costa dos Murmúrios. E eu achei estranho ela perguntar-me isso. Quem escreve a Costa dos Murmúrios teve de ver mortos perto de si. E isto é verdade. Quer dizer, passar por alguma coisa, ver o mundo, ver como a vida pode desabar, ver a experiência trágica, ver a morte dos outros, ver como se morre, como se abandona, ver essas grandes experiências trágicas, de facto, a pessoa incorpora e olha com outro olhar para a vida, não é? Portanto, eu acho que são esses dois fatores. Agora, se me perguntar se eu, há 15 anos, seria capaz de escrever misericórdia, Acho que não. Acho que foi, digamos, também, eu tenho uma idade já avançada, não é? É o facto de não só ter visto as pessoas que são mais velhas do que eu, 20 ou 30 anos, como elas agem, não é? E perceber por antecipação que o meu corpo será assim. Isto que não se vai dizer a uma criança nem a jovem, porque a gente quer que jovem tenha alegria e ainda não tem estrutura para aguentar isso, não é? É muito interessante porque a partir de certa altura as pessoas dizem dia de cada vez e a gente poderia ver quando é que as pessoas começam a dizer dia de cada vez é quando de facto começam a ter uma sabedoria sobre a realidade, não é? Agora aqui à entrada alguém me disse dia de cada vez, quer dizer, e eu acho isto interessantíssimo, é quando de facto, claro que há jovens que dizem por imitação, não é? Mas a verdade é que quando isso é dito, a pessoa diz, eu não tenho muitos dias, então eu quero viver cada dia de forma absolutamente completa, não é? Portanto, eu acho que há 20, 30 anos eu não teria escrito este livro, não é? De facto há momentos especiais para se escrever determinados livros.
Lídia Jorge
Claro, sim, sim, sim. E neste caso, por maioria de razões. Líder, obrigado. Vamos passar às perguntas do público. Uma pergunta de cada vez também. Pensei que não sou que controlo, os microfones andam por aí. Tentem, por favor, ser curtos e terminar com ponto de interrogação, que às vezes não acontece nestas perguntas.
Lídia Jorge
Olá, senhora autora, boa tarde. O Michel Henry escreveu livro, o Verbo Invisível, do Kandinsky, e tem uma frase que é, a arte pode arrancar o homem do seu mal-estar, restituindo-lhe o que perdeu. E a pergunta é, assim como o pintor pinta o invisível, Kandinsky, o escritor escreve sobre o invisível?
José Maria Pimentel
Sim, sim. Melhor, não estou obrigada por essa questão. Sem dúvida alguma, escreve sobre o invisível aquilo que perpassa e que não se vê, que não tem nome. Aliás, é o Carlos Fuentes que faz a distinção, muito interessante, que faz a distinção entre a história e a segunda história que é da arte. Fala da história concreta, daquilo que acontece, mas esta fala daquilo que nem toda a gente está a perceber e diz uma coisa interessantíssima sobre a literatura, diz que a literatura é uma estrela de três pontas, uma ponta mergulha naquilo que é a história comum, a história de todos. Portanto, a história objetiva, aconteceu no dia tal uma revolução, aconteceu no dia tal governo que tomou posse, etc. E que é da nossa convivência coletiva. Diz depois que há outra ponta da estrela que é a nossa vivência coletiva mas emocional e que a literatura traz, que são sentimentos da sociedade que nos unem em determinado momento mas que não sabemos articular, que não temos voz para articular, mas todos estamos a sentir, todos estamos a sentir a perda, todos estamos a sentir o de deus, todos estamos a sentir a vontade de mudança. E essa parte coletiva, a literatura tem-na. E depois há a outra ponta da estrela, segundo ele, que é a vivência pessoal. Aquela que o escritor fala a partir de si, mas que coloca com humildade perante os outros, oferecendo-lhe, perdendo aquilo que é o pudor, o discúr, para ir ao encontro dos outros e dizer, tu não estás sozinho, olha, experimenta a ter a minha experiência, eu estou aqui e ofereço a minha experiência. E por isso, ele não diz isto com estas palavras, mas a escrever para quem, eticamente escreve, entregando-se de forma completa, não o faz por exposição de si. Quando se esconhe a si é para dizer, talvez alguém sinta o mesmo que eu estou sentindo. É por ato de generosidade, porque a exposição interior é alguma coisa delicada de fazer, não é? Então, eu diria que sim, a Candide tem toda a razão. Portanto, não só a pintura, mas toda a arte procura mostrar aquilo que é sentido, mas que não se vê, não tem nome, não tem palavra, não é? E por isso, a utopia das palavras aqui nesta idade, com a qual eu tenho neste momento relações tão profundas, enfim, que ajude a fazer esse novo mundo para a geração já do José Maria Pedro.
Lídia Jorge
E depois, e as mais novas. E o livro, de facto, quando a pessoa escreve, tem uma incógnita, não é? Porque quando a Líder estava a escrever este livro, não fazia ideia de como ele ia ressoar, da maneira que depois ressoou, ou enfim, está a ressoar com o sentimento de muita gente, não é? Porque a pessoa está a expostar o que está cá dentro e depois é como... Para usar uma analogia barata é como abrir melão, não é? Só depois é que se vai perceber.
José Maria Pimentel
Sim, claro, há vários planos. Digamos, O sucesso de livro ou o sucesso de uma obra tem vários escalões. É uma espécie de noção interior que se sente quando se chega ao fim e se diz eu fiz aquilo que podia e estou contente. Às vezes essa satisfação não dura muito, não é? A pessoa termina num dia livro e diz que belo livro, era isto mesmo que eu queria, estou tão contente e passar dias, olha e diz não, não era isto. Afinal, eu tenho de esperar para o próximo, não é? Mas essa jubilação interior é o primeiro, nós ficamos contentes por algum tempo com aquilo que fizemos, essa jubilação mesmo que seja passageira é o primeiro momento, mas depois há a leitura dos outros, e quando os amigos e as pessoas mais próximas começam a dizer, não, o livro é bom, ele não tem nada a mais, não tem nada a menos, está equilibrado, digamos só, leituras racionais, porque livro é uma obra de arte é preciso perceber isto a literatura é uma obra de arte não é apenas só testemunho hoje confunde-se muito literatura com o testemunho. Ah, eu fui, raparigas, eu fui violada. Aqui vai livro. Se por acaso o livro não está bem construído, não tem metáfora lá dentro, não tem transfiguração, ele não cumpre o seu dever, não é? Ora bem, o que acontece depois é que há outra coisa que é imparável, que não se sabe, que é aquilo que o editor, e eu digo alguma coisa que para mim é fundamental, a figura do editor, a figura do editor é uma figura fundamental na cultura, na sociedade, é o editor que escolhe, que determina, que gosta de facto só de experiências picantes e assim para vender livros, vai avenenando a sociedade com esses objetos. Tem bom gosto, se é exigente, tem gosto específico e escolhe bem, então está promovendo, digamos, a cultura da sua sociedade. O pior é quando isso tudo é enviesado por alguma coisa que é negócio, porque a literatura também é negócio, portanto, depois começa a haver outros níveis. Então, terá que a população, será que o povo, será que os leitores gostam do livro que alguns, apenas pequeno grupo, outro incógnito? Depois, terá que o livro traz sucesso monetário ao editor, à casa editorial? Por alguma coisa os anglo-saxónicos dividem... Nós só temos a palavra editor, os anglo-saxónicos têm duas palavras, o publisher e o editor. São coisas diferentes. Era bom aqui que houvesse...
Lídia Jorge
Falta-nos cálculo.
José Maria Pimentel
Sim, falta-nos essa divisão porque o publisher é aquele que de facto trata do negócio propriamente, mas o editor não deixa passar metáforas de mau gosto, pelo menos aquelas que ele pensa de mau gosto, aconselha a diminuir livro, aconselha a mudar o título, aconselha a reduzir determinados parágrafos, quer dizer, faz uma leitura crítica que é uma ajuda extraordinária para o autor. Então, tudo isto, pergunta-se o que é livro com sucesso. Pois há os prémios literários, que são gratificantes, são magníficos para os escritores. Dizem uma coisa, dizem os grandes leitores, grandes leitores, leitores académicos, escritores, jornalistas, intelectuais, filósofos que fazem parte de júri, naquela altura acharam que aquele livro era importante, acharam que era o melhor, que era o segundo melhor, enfim, mas há uma coisa que é importante, que nós sabemos muito bem, é que nenhum prémio acrescenta uma única palavra a livro. Pode acrescentar estrelas, pode acrescentar tintas, tudo isso. Não acrescenta uma única frase, uma única palavra. É assim que ele vai, nu e sozinho, em relação ao futuro. E depois vem, digamos, o apreço ou não que o futuro
Lídia Jorge
tem para os livros. De maneira determinada é porque o tempo é implacável, infelizmente, porque se não continuávamos aqui a falar, que foi uma conversa muito agradável. Lídia Jorge, muito obrigado.
José Maria Pimentel
Eu é que agradeço. Obrigada. Os. Obrigado.
Lídia Jorge
O contribuir, diretamente ou através do Patreon, bem como os benefícios associados a cada modalidade.