#153 Manuel Cargaleiro - Uma visão sobre a arte e o artista aos (quase) 97 anos de vida

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José Maria Pimentel
Olá, sejam bem-vindos ao 45°. Muito obrigado aos novos mecenas do podcast, neste caso às novas mecenas, Ana Almeida, Sara Machado e Helena Capella. Alguns de vocês já saberão que lancei, na semana passada, três novas sessões dos workshops de pensamento crítico. Duas online e uma em Lisboa. Estas serão, à partida, as últimas sessões deste módulo, visto que conto começar com o segundo módulo em janeiro. Já sabem, se tiverem curiosidade em relação aos workshops, podem saber mais no site 45grauspodcast.com. Entretanto, na verdade, as duas sessões online já esgotaram, há apenas ainda algumas vagas em Lisboa, mas se tiverem interesse podem inscrever-se em lista de espera e é possível, se houver procura suficiente, que eu abra ainda uma nova sessão até o final do ano. E agora, vamos ao episódio de hoje. No final da temporada passada, antes da pausa de verão, publiquei, se bem se lembram, episódio em que respondi algumas perguntas enviadas por vocês. Ouvinte perguntava-me porquê é que tenho abordado menos o tema arte no podcast comparativamente com outros tópicos. Na altura respondi assim. Eu cubro muitos temas no 45° mas não cubro todos os temas e nem acho que seja bom cobrir todos os temas. Do ponto de vista de quem está a ouvir a pessoa não quer necessariamente podcast que cubra todos os temas, quer é poder compor a sua playlist de podcasts que cobrem todos os temas que lhe interessam. Portanto, não tenho problema nenhum com não cobrir alguns temas que interessariam algumas pessoas, acho isso normal. Mas não é por acaso que a arte é tema que fica de fora, ou é tema que tem ficado de fora. Não ficou completamente de fora, há episódios em que falei do tema, também lembrado do Miguel Taíman ou do Aires Almeida, por exemplo, mas de facto é tema menos abordado. E eu acho que a grande razão para isso é que os temas que eu abordo, embora sejam muito diferentes, têm em comum uma coisa que é o facto de se prestarem a uma sistematização, se prestarem a uma análise high level que tenta organizar os temas, quer dizer, que tenta ter uma visão geral daquele tema com base em alguns princípios gerais. E isso é difícil na arte, não é impossível, mas a maior parte das discussões sobre arte que nós vemos são discussões muito mais baseadas no subjetivo, porque é a nossa experiência com a arte, custamos, não custamos, e isso faz parte, quer dizer, é inevitável, mas tendem a ser focadas nisso e tendem a ser muito focadas, o que de novo também é natural, não tem nada de negativo em si, tendem a ser focadas em artistas ou no cinema, em filmes, ou seja, tendência focadas em arte concreta, o que também exige de anfitrião de uma conversa desse género dominar bem a cultura daquela área. Esta foi a minha resposta, mas a verdade é que fiquei picado pela pergunta do ouvinte. Por que não, realmente, trazer artista ao podcast, mas para uma conversa à 45 graus, ou seja, diferente daquelas entrevistas de vida que habitualmente se fazem em programas da área da cultura. Entretanto, já há algum tempo que o nome de Manuel Cargaleiro, o convidado a este episódio, Era tema de conversa recorrente com o meu amigo Luís Plácido Santos, que é amigo de Cargaleiro e que me falava muitas vezes dele. Eu já gostava dos seus quadros, mas o que me chamou a atenção nas conversas com o Luís foi o facto de artista de 96 anos, quase 97, não só manter-se no ativo como ter ainda a disposição para fazer novos amigos, mesmo, como é o caso, com 60 anos menos do que ele. Como estava então a pensar trazer artista ao 45°, é por mim aponderar, porque não Cargaleiro? Pareceu-me uma ótima ideia, Luís, simpaticamente, fez a ponte e o resto, a história. Ou neste caso, a conversa. Manoel Cargaleiro dispensa grandes apresentações. É pintor, ceramista e é dos nossos mais conceituados e internacionais artistas plásticos. Nasceu em 1927 e encantou-se desde muito cedo pela cerâmica. No princípio dos anos 50 começou a participar em mostras e exposições em Portugal de cerâmica e pintura. Mais tarde estudou em Itália e depois em França, onde foi uma figura de proa daquela que ficou conhecida como a Escola de Paris. Em Paris, onde vivem ainda grande parte do tempo, foi representado pela famosa Galeria Albert Love e os seus quadros podem ainda hoje ser encontrados na também famosa Galeria Ellen Bailey. A sua obra está também disponível em espaços públicos, sobretudo em Portugal e em França, e na capital francesa, uma das estações centrais de metro, perto dos Campos Elíseos, foi decorada por si duas vezes, com largas décadas de distância, a última das quais há muito poucos anos. Cargaleiro tem também fundações e museus espalhados por Portugal, em Castelo Branco e em Itália. Na nossa conversa falámos sobre a vida e obra do convidado, dos mistérios da inspiração e da criatividade artística e da arte em geral. Estes são temas que se entrecruzam e nós fomos avançando e, em muitos casos, regressando a eles. E por isso, desta vez, optei por deixar na descrição do episódio apenas a lista de tópicos que fomos abordando, sem os marcadores de tempo habituais. Na nossa conversa comecei por perguntar a Cargaleiro o que leva alguém a tornar-se artista. Daí falámos da sua obra, de como foi ser vizinho de Picasso já consagrado, na altura com 70 anos, e porque é que nunca chegou a meter conversa com ele, dos seus hábitos de trabalho e do que a experiência lhe diz sobre o papel que tem o inconsciente na criatividade. E falámos também de arte concreta, como é que artista decide, por exemplo, que cores e, sobretudo, que combinações de cores usar num quadro. Neste ponto Cargaleiro citou o pintor francês Monet, fundador do impressionismo, e é curioso porque é precisamente de Monet quadro muito conhecido, chamado O Lago Water Lily, com aponto japonesa, que é o portal mais vendido na loja de recordações do Metropolitan museum em Nova Iorque, dos principais museus do mundo. Cargaleiro diria, provavelmente, que não é por acaso e que tem muito a ver com esse jeito para escolher a cor certa. Fiz-lhe também uma pergunta clássica nestas coisas, que é como é que nós, público e ignorantes nestas matérias, devemos apreciar uma obra de arte? Como é que devemos olhar para uma obra de arte? E também sobre o que é que distingue objeto artístico de simples artesanato? Esta pergunta é relevante no caso dele porque a mãe de Cargaleiro tecia umas mantas de retalho que não tinham pretensão nenhuma mas que eram muito originais e que ele veio mais tarde a divulgar e tornou muito famosas e ganharam, mesmo não sendo tecnicamente arte, muitos fãs no meio artístico. Falámos também de outras formas de arte e do seu interesse original que começou na cerâmica. E no final, perguntei-lhe se partilha daquela angústia profissionista de tantos pintores ao longo da história em conseguir decidir dar uma obra por terminada. Ao longo desta conversa com o Muriel Cargaleiro, embora tenhamos falado da sua vida e obra, para voltar à minha resposta à pergunta do ouvinte no início, tentei seguir a mesma abordagem que sigo sempre no 45°. Neste caso, falar deste tema, arte, de uma perspectiva o mais ampla possível e tentando tirar da experiência do convidado alguns princípios gerais. No caso de Cargaleiro, ouvindo-o descrever o seu percurso, houve, sobretudo, dois aspectos que me chamaram a atenção, cometendo contribuído muito para a criatividade e a inovação que a obra dele espelha. O primeiro é a descrição, que vão ouvir já a seguir, que ele faz de como a miúdo passou horas a fio a observar as plantas da zona em que vivia e a absorver todo o detalhe e cambiantes de cores que existem na natureza e que aos comuns mortais, como eu, passam completamente ao lado. A combinação de cores dos quadros dele, que é dos aspectos que mais são falados a propósito da obra de Cargaleiro, dificilmente não estará muito relacionada com isto. O segundo aspecto que, suspeito, ajudou muito a tornar Cargaleiro artista diferenciador é o facto de ele ter sido sempre, e continuar a ser, uma pessoa imensamente curiosa. Ao longo da vida, como vão perceber, leu avidamente sobre diferentes assuntos, incluindo, mas indo para lá, leituras sobre pintura e cerâmica e, tão ou mais importante, deu-se sempre com todo o tipo de gente, sempre disposto a conhecer pessoas novas. Esta curiosidade e diversificação de interesses está mais do que provada que está associada à criatividade. Aliás, se tiverem interesse, recomendo o livro Range de David Epstein, que fala muito sobre isto. E tenho a forte suspeita que isso tenha tido uma influência muito grande na obra de Cargaleiro. Mas chega deste entroito, que a introdução já vai longa, vamos então à conversa. Mestre Manuel Cargaleiro, muito bem-vindo ao 45 Graus. Muito obrigado. Estamos aqui muito bem instalados em sua casa. Eu gostava de começar por uma pergunta que eu sei que o Agostinho da Silva lhe fazia e tenho muita curiosidade em relação a isto. O que é que faz uma pessoa tornar-se artista? Por exemplo, no seu caso, é engraçado porque a sua família estava muito pouco ligada à arte, o seu pai era empresário agrícola, não é?
Manuel Cargaleiro
Não, o meu pai era agricultor, trabalhou sempre na agricultura e a minha família toda.
José Maria Pimentel
E a ideia até era que tivesse seguido a agronomia, certo?
Manuel Cargaleiro
Ah sim, era o que eu gostaria.
José Maria Pimentel
Agora, valia uma pulsão a certo ponto, isso é que é curioso, não é? O que é que faz com que uma pessoa a certa altura tenha uma pulsão tão grande de se tornar artista, que naquele caso tenha implicado mesmo ir contra a vontade do seu pai que naquela altura era uma coisa com peso relevante
Manuel Cargaleiro
era, era era muito mal disto o artista era desgraçado agora sobre essa pergunta sabe que às vezes eu ponho a pensar mas que raio de coisa foi esta que eu quando era miúdo eu era muito novo e sabe que eu era capaz de passar uma hora duas horas a olhar para as ervas para as flores das ervas por exemplo eu agora estou a me recordar de uma erva que dava umas florzinhas que deviam ter aí centímetro e depois tinha o destilete, A variação era azul, azul. Depois tinha umas pintinhas brancas, umas pintinhas amarelas. Mas uma coisa que não chegava a ter sentimento da flor. Eu era capaz de passar a hora a olhar para as ervas, para as flores.
José Maria Pimentel
A observar.
Manuel Cargaleiro
E outra coisa que me lembro, que me impressionava, era no inverno, as figueiras perdiam todas as folhas. E eu olhava para aquilo e dizia, mas coisa tão engraçada estes desenhos, dos tronquinhos das figueiras. E depois, gerava-me tantas histórias no meio disso, quer dizer, porque era no tempo da guerra. E depois o meu pai comprava todos os dias o Diário de Notícias. E eu lia aquelas coisas, eu tinha oito anos, nove anos, E o meu pai trazia ao jornal e eu lia aquelas coisas todas da guerra. E depois tinha a mente do Hitler. E então escrevia coisas. Fazia a maloqueira. Escrevia coisinhas de papéis. O horror. Do horror que vinha aí.
José Maria Pimentel
Estava a processar os sentimentos, de certa forma. Não, não, mas pior que isso, pá.
Manuel Cargaleiro
É que eu depois, eu não queria aquilo. E então arranjava uma caixa e deixava pétalas de flores e enterrava aquilo. Eu não queria aquilo.
José Maria Pimentel
E acha que a arte, de certa forma, é uma maneira de legitimar esses sentimentos?
Manuel Cargaleiro
Não era de enterrar, eu não queria.
José Maria Pimentel
Mas na altura, quando o escrevia, tinha vergonha deles, não é? Tinha. Eu estava a perguntar, de uma maneira, enfim, indireta, a arte é uma maneira de canalizar esses sentimentos? Não esses sentimentos especificamente?
Manuel Cargaleiro
Não, não, é o que eu sentia que os meus primos, a minha família, andavam a jogar a bola ali na...
José Maria Pimentel
Ou ocupações mais normais, né?
Manuel Cargaleiro
Andavam a jogar na quinta e eu já pensava muito nessas coisas. E depois, evidentemente, Comecei a fazer bonecos com a terra daqui, lá da argila. E a bombolar e tal, tal. Depois há toda a história que já conhece. Claro, claro, claro. Do início da cerâmica. Agora, a única diferença, que eu era exatamente igual aos outros meninos. Mas agora a única diferença é que eu, na minha cabeça, eu olhava para coisas e essa coisa das árvores e das flores e das... Eu acho que sou gajo, desde o princípio, muito ligado ao vegetal. Exprimir os sentimentos, exprimir muita coisa através dessas formas. Quer dizer, que é uma coisa... Eu acho que isso é uma espécie de doença que a gente nasce com isso. É uma doença. Quer dizer, por exemplo, lá na quinta do meu pai havia uma grande piscina, o grande tanque que colocava a quinta toda e aquela coisa. Os meninos andavam... Eu também ia para lá nadar, mas também passava muito tempo quer dizer, a olhar para estas coisas. A observar. E sabe que isso também me dava isolamento. Fugia bocado dos outros. Porque havia rapazes e raparigas, na época, que não eram daquelas pequenas todas ali à volta, que juntava-se tudo ali, nesse espaço. E eu muitas vezes afastava bocado, quer dizer, para fazer isso, para brincar. Eu ia brincar sozinho. A modelar, a fazer bonecos, a fazer recovidas no salão, sei lá, para fazer... Sim,
José Maria Pimentel
começava por observar, Porque esse lado de observar a natureza com esse olho quase cirúrgico, realmente é muito diferente da maioria das pessoas, não é?
Manuel Cargaleiro
As pessoas não olham para isso.
José Maria Pimentel
A pessoa olha, olha por meio segundo e passa à frente,
Manuel Cargaleiro
não é? Exatamente. E eu, pá, sabe, por exemplo, eu ia para a aldeia do Aldocara, a origem da minha família. Eu vim fazer dois anos à Sobreda da Caparica. Era o Monte Caparica, quer dizer, a freguesia. Vim fazer ali dois anos, que eu vi com ano e meio para ali. Os Meus pais compraram aquela quinta e vieram para ali. Mas depois, quando eu tinha 7, 8, 9, 10 anos, eu ia lá para a aldeia e não imaginas a influência que me fazia. Os cheiros, as estevas, do rosmaninho, aquelas ervas, os feijos. Eu conheço esses cheiros. São coisas preciosas, porque são cheiros incríveis, quer dizer, com o pé daquelas fontes, ficaram tudo muito frescos, havia água, havia muita água e isso criou em mim uma ligação tão forte. Eu não quero exprimir, eu não quero copiar nada daquilo. Agora, a sensação que eu tenho da minha ligação, isso é muito forte.
José Maria Pimentel
Isso era o que eu ia perguntar agora, porque falou aí duas coisas engraçadas. Por lado, essa atenção grande à flora, ao mundo vegetal, e por outro lado, essa sensibilidade emocional naquele período difícil da Segunda Guerra. Já devem ter feito esta pergunta muitas vezes, mas como é que isso depois influencia a sua arte? Ou seja, a arte que depois veio a produzir mais tarde e no resto da sua vida, não é?
Manuel Cargaleiro
Na vivência de tudo que eu acho que consegui tirar da natureza, o bonito, o bom, o positivo. De maneira que consegui afastar-me dessa parte terrível que foi a vivência da guerra, mas não é só para mim, para a minha vivência, é para transmiti-la aos outros, quer dizer, a vivência do positivo.
José Maria Pimentel
E era escape, de certa forma, para esse negativo?
Manuel Cargaleiro
Para mim, eliminar o negativo completamente. Essa força em mim foi muito forte. Foi muito, em tudo, em tudo. Porque depois eu sempre tive a facilidade e a sorte de me afastar de tudo aquilo. Eu nunca transmiti para os outros coisas negativas, até na pintura. Quer dizer, na pintura eu não procuro isso por vontade, é natural.
José Maria Pimentel
Expressar o positivo.
Manuel Cargaleiro
Sim, e faço muito isso, sem querer transmitir essa sensação do positivo. Há artistas, amigos meus, eu convivi, o Picasso vivia no número 7 da rua de Grão-Zonista e eu vivia no número 19. Portanto, tive a sorte de viver em Paris, ao lado dos artistas. Por exemplo, eu andei muito com pintor, que era pintor genial, E era muito meu amigo, que era o Max Hertz, o criador do surrealismo.
José Maria Pimentel
Ia visitar as exposições com ele, não era?
Manuel Cargaleiro
Não, porque ele não gostava de andar sozinho. E de maneira que...
José Maria Pimentel
O que não é uma característica de todos os pintores.
Manuel Cargaleiro
Era, ninguém gostava. Ia até ao Manel andar comigo, porque trabalhávamos para a mesma galeria.
José Maria Pimentel
Mas isso é engraçado porque vivia ao pé do Picasso, mas nunca falou com ele, não é? Nunca falei com ele. Porque teve vergonha?
Manuel Cargaleiro
Não tive vergonha nenhuma. Então porquê que não falou com ele? Ah, não tive vergonha nenhuma. Ó pá, o Picasso, o Picasso é O meu Mozart, pá. Não, não, não. O Picasso não. O Picasso... O Picasso é gajo que se morava ali ao meu lado.
José Maria Pimentel
Mas nunca falou com ele. Isso é que é engraçado.
Manuel Cargaleiro
Estive ao lado dele. Estive como nós estamos aqui, ao lado do outro. Estive várias vezes, sim. Mas, sabe, eu acho que o Picasso nasceu assim. Nasceu com aquele defeito de ser gênio. Ou qualidade. Não sei se ele era feliz com aquela capa, mas Ele nasceu com aquilo. Podia nascer com oitorto. Não nasceu. Nasceu assim. Nasceu gênio. E não é por acaso que no outro dia uma rapariga que trabalha lá na minha fundação em Castelo Branco ela me disse assim o senhor gosta muito do Picasso. Não gosta. Eu disse assim olha, de que maneira? Eu nem pergunto. E depois ela disse o senhor sabe quantos livros tem ali sobre a obra do Picasso? Ah, tem ali 84. Não é muito. Quer
José Maria Pimentel
dizer... Podia ser mais.
Manuel Cargaleiro
Não, Porque há muitos que ainda lá não estão e que estão aqui.
José Maria Pimentel
Mal ela sabe.
Manuel Cargaleiro
Não, nem ela sabe. Mas para mim, sabe o Picasso? Há o Picasso e depois há os outros.
José Maria Pimentel
Sim. Mas a razão para não ter falado com ele era, de certa forma, ter receio que... Não. Que... Quer dizer, aquela...
Manuel Cargaleiro
Não, nada, nada. Não tenho
José Maria Pimentel
dor humano. Não, não, não. Não é receio de falar com ele, é receio de... Como é que eu ia dizer? De retirar aquele encanto que existe no artista quando nós não o conhecemos enquanto pessoa. Porque enquanto pessoa ele seria uma pessoa normal, com defeitos.
Manuel Cargaleiro
Eu podia ter falado com ele, podia dizer o que queria. Mas o que é que eu posso dizer ao senhor? Olha, eu tenho uma grande, grande admiração por si. É pá, isso é zero.
José Maria Pimentel
Mas imagina então, imagina uma pessoa com muita admiração por si que eu encontrasse ali no talho, pintor ceramista, gostava que ele falasse consigo. Quem? Alguém, uma pessoa hipotética.
Manuel Cargaleiro
Ah, se é mais, eu conto por você. Mas constantemente, vem pessoas ter comigo.
José Maria Pimentel
E eles têm que começar por óculos.
Manuel Cargaleiro
Então olho, então olho. Estava no restaurante e o senhor vem lá e diz-me, ah, te admiro muito. E tal, tal, olho, muito obrigado, agradeço-te muito. E pára aí. Quer dizer, eu, complicado, se eu me ia dizer vulgaridade.
José Maria Pimentel
Mas tem que se dizer. Mas não é sempre assim, temos de começar por dizer uma vulgaridade quando falamos com alguém pela primeira vez?
Manuel Cargaleiro
Aposto que temos, mas eu acho que o Picasso merecia isso. A admiração por ele é tão grande. Não há palavras para explicar isso. Eu acho que para católico praticante, por exemplo, é muito interessante a relação. Eu tenho uma grande admiração para os santos. Há uma coisa que eu ainda não percebi. Quem é que inventou os anjos? Ninguém me diz, ninguém sabe dizer. Porque antes de Cristo, mil anos, há mil anos. É uma invenção poética fantástica, do Botticelli. Epá! É fantástica aquela pintura.
José Maria Pimentel
Tem o lado da perfeição, não é?
Manuel Cargaleiro
Agora, eu acho que sei saber, felizmente, Estes tipos são realmente fantásticos.
José Maria Pimentel
Tocados, né? Claro. Mas o Picasso é até uma boa ponto para o que eu lhe queria perguntar. Tem que ver com o que artista quer transmitir com a sua arte. Porque há bocadinho dizia-me Ah, eu tento só transmitir o positivo, não é? Tento quase usar a arte para iluminar o negativo e transmitir o positivo. E depois disso uma coisa que eu achei engraçada que foi... Bom, eu não faço isso de propósito, acontece naturalmente.
Manuel Cargaleiro
Exatamente, mas por exemplo, há coisas... Quando o Picasso faz Bernicke, aquilo é bem positivo. É de todos, sim. Ele quer transmitir uma grande desgraça, uma coisa terrível, que aconteceu, que aconteceu. Portanto, quando a gente diz aquilo, ele o que quis foi gravar para a história o acontecimento terrível que aconteceu. E basta remar lá.
José Maria Pimentel
Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no site 45grauspodcast.com Selecione a opção Apoiar para ver como contribuir, diretamente ou através do Patreon, bem como os benefícios associados a cada modalidade. Isso é bom para o que eu lhe queria perguntar, que é, quando está a pintar ou quando está a trabalhar em cerâmica, Quanto do que está a fazer é intencional e quanto é que é inconsciente, quanto é que é natural?
Manuel Cargaleiro
Ah não, não. Eu acho que... E é por isso que eu trabalho muito de manhã. Porque é o subconsciente que trabalha.
José Maria Pimentel
Está mais ativo?
Manuel Cargaleiro
Aquilo que está no subconsciente. Havia uma escritora, não sei o quê, argentina, não sei o quê, que eu lembro-me de ter lido isso. Todos os dias eu encontro tanto lazarento quando saio de casa para me estragar o dia. É por isso que eu gosto de trabalhar antes de encontrar o cão. O cão lazarento.
José Maria Pimentel
Exatamente. Ou seja, acha que logo depois de acordar a inspiração quase onírica ainda está ativa
Manuel Cargaleiro
exatamente, isso para mim conta muito olha, a minha mulher pode dizer estou a tomar pequeno almoço venho para ali logo para esta mesa ou para ali para o cavalete e ponho-me a pintar.
José Maria Pimentel
Aproveitar a inspiração, porque no fundo isso vem...
Manuel Cargaleiro
Não, não, para trabalhar eu vou por costa, a peça.
José Maria Pimentel
Não, mas porque acha que tem inspiração.
Manuel Cargaleiro
Não, nessa altura eu sei que estou tranquilo e...
José Maria Pimentel
Será que também tem o efeito dos sonhos, não é? De vir...
Manuel Cargaleiro
Ah, também, quer dizer, pode ser, quer dizer...
José Maria Pimentel
Daquilo que foi produzido durante o sono, não
Manuel Cargaleiro
é? Ah, à noite não quero. Há amigos meus, já são pintores, olha, o Marcelão dizia-me Epá, eu... Claro, Era assim, era assim. Epá, tu és maluco, vá. Mas era assim, era assim.
José Maria Pimentel
Ouvia o ritmo de cada não é? Claro. Claro. E como é que, quando uma pessoa tem uma profissão criativa, como é difícil encontrar a profissão mais criativa do que de artista plástico, há sempre aquele desafio de buscar a criatividade, lá está. Uma maneira de fazer isso é escolher a hora do dia, mas também às vezes nós podemos ir buscar a criatividade, não é? Provocá-la. Sim, provocá-la. Até porque às vezes ela nos pode fugir, não é? Artistas que têm... Pessoas que são escritores que têm
Manuel Cargaleiro
essa dificuldade. Jorge Amado organizou uma exposição de grupo de artistas a Salvador da Bahia. Estivemos lá há 10 dias, não sei quê. E quando nós lá chegámos, havia lá uma repreguilhas, lá umas jovens, todas muito bem vestidinhas, lá com aqueles trajes lá de Salvador da Bahia e depois elas davam-nos uma t-shirt e essa t-shirt tinha assim à frente, em cores muito bonitas, cores vivas e tal, dizia, deixa o teu coração mandar. Ora bem, isto para o artista, para o pintor, não é isto. Mas isto é uma parte da criação. Porque se o artista começa só a pintar com a cabeça, sai surrealismo todo estragado. E se tu deixares o teu coração andar, a coisa fica mais livre. Há uma participação, mas há uma coisa que tu não aprendes. Aí é escusado. Para mim, há uma base no pintor, no artista, que não se aprende. Como não se aprende a Maria Callas, como ela cantava, a Amália Rodrigues. Elas não aprenderam, elas nasceram com aquela voz. Sabe o que é? É que pensar nas cores. E as cores são todas lindíssimas. Mas há problema. Grande problema, sabes qual é? É saber qual é a cor que tu pões ao lado da outra. Aí é que está. As cores são todas lindíssimas. Agora, a cor que tu pões ao lado daquela é que estraga tudo. Ou pode ser uma maravilha, pode ser genial.
José Maria Pimentel
Isso vem dos anos a observar o mundo natural, não é?
Manuel Cargaleiro
Isso é como se sabe.
José Maria Pimentel
No seu caso será inato E também tem a ver com essa experiência de passar muitos anos a olhar para os cambiantes da cor, não é?
Manuel Cargaleiro
A natureza não se engana. Já vi. A natureza não se engana. Os homens enganam-se. Agora a natureza sabe.
José Maria Pimentel
Mas lembra-se dessa experiência, por exemplo, de estar a olhar para o mundo natural, não é? Para as árvores, para as plantas e a pensar nos vários tons de azul, por exemplo, ou nos vários tons de verde. Mais de verde do que de azul, porque o azul existe pouco.
Manuel Cargaleiro
Ah não, não, mas eu sempre olhei muito para a natureza. Olhei, vivi, senti, e acho que isso... Daí veio uma força enorme.
José Maria Pimentel
Por acaso é engraçado, agora estava a lhe dizer, isto estava a pensar. A sua pintura é conhecida por usar muitas cores, mas por ter uma certa proeminência de azul. É uma cor que eu sei que gosta muito. Mas na verdade, na natureza, o azul existe basicamente no céu e no mar. Não existe no resto, no resto é muito raro. É curioso.
Manuel Cargaleiro
Não é tão vulgar aparecer o azul. Para mim é uma cor da calma, tranquilidade. Dizem que o azul é classificado como a cor da introspeção. Quer dizer, do gajo que olha para dentro. E depende de muitas épocas. Por exemplo, havia pintor que eu até gostava muito, ele era paisagista. Ele é conhecido, o cara que era o Jai Morteira, que era paisagista dos anos 50. Eu gostava das pinturas dele porque tem muita azul. Lembro-me, quando eu era novo, eu gostava dele, quer dizer, porque é muito interessante essa ligação. Mas eu aí estou também bocado ligado. Essa é a minha coisa do... É o mistério, é o mar, é tudo isso. Mas a evolução é uma coisa que eu sinto cada vez mais, e senti muito isso, a partir de certa altura, uma das cores base que eu uso bastante é o verde. Porque o verde, para mim, é a natureza. Se me perguntassem, qual é a cor que você, por exemplo, pegaria como base, eu não diria só o azul, eu diria muito o verde. Eu acho que nós temos que respeitar a natureza, nós temos que sentir o verde. A água, as minhas duas cores preferidas são o azul e o verde.
José Maria Pimentel
Curioso, pois lá está o verde, a cor da natureza. É assim.
Manuel Cargaleiro
Por exemplo, no princípio século XX, todos os pintores eram tudo castanho, eram tudo escuro, eram tudo só querem deixar mostrar, eram tudo muito controlado. Há poucos pintores. Os franceses não, não é os franceses, é a Escola de Paris, com os impressionistas, com o Monet e essa gente toda. Quer dizer, aí há a vida. Sabes, dos meus mestres, quer dizer, dos pintores que eu aprecio assim muito profundamente, por outras razões, é o Morandi. Mas o pintor assim, o pintor que é meu amigo, onde eu sou os irmãos, não é vaidade, eu não quero comparar-me, porque é genial, e eu não sou. Mas o Bonet, agora é outro, nunca mais acaba. Cada risco, cada mecha, cada tirar o galecone, não sei o quê, aquele é genial, quer dizer, é o género.
José Maria Pimentel
E acha, por exemplo, no caso do Morni, acha que aquilo era deliberado ou vinha-lhe do inconsciente? Voltando àquela pergunta da há bocado.
Manuel Cargaleiro
Deliberado, mas ele podia atirar o piso e essa asa estava sempre certa. Tipo, não se enganava. Não se enganava porque ele mesmo quer se enganar, não confia
José Maria Pimentel
mas qual era a mensagem que ele queria transmitir? O Bonnet? Sim, por exemplo, pegando o
Manuel Cargaleiro
meu ai não, mas é uma mensagem lindíssima, poética é como se tu leres o poema mais lindo, que é o que o poeta gosta mais ai não, não, mas é que ele é uma mensagem Quando eu brinco com essa história do positivo. Mas o Boni, quando ele faz aquelas dafiadas e aquelas coisas todas. Epá, mas aquilo é... Eu só desanjo bem para ti.
José Maria Pimentel
Não, eu estou a fazer esta pergunta porque há uma questão que já lhe devem ter perguntado algumas vezes. Hoje em dia cada vez mais há programas de computador com capacidade de produzir aquilo que aos nossos olhos parece arte, e em muitos casos arte muito boa. Só que não tem ninguém por trás. E eu acho que aquilo nunca vai substituir a arte, não tanto pela qualidade, mas porque não há ninguém por trás daquilo. Ou seja, não há ninguém que esteja a transmitir uma mensagem que nós queiramos adivinhar. Porque a arte tem esses dois lados. Há o lado estético, que nós apreciarmos uma obra sem sequer sabermos o que está por trás dela, mas também há a mensagem, o ser humano por trás, cuja intenção nós queremos adivinhar.
Manuel Cargaleiro
Sim. Tu estás a pensar, quando nós olhamos, estamos numa sala e está o quadro do Mondrian ali, o que é que aquilo quer dizer? O que é que eu quis transmitir? O que é que aquilo quer dizer? Claro, o
José Maria Pimentel
que é que eu quis transmitir, não é?
Manuel Cargaleiro
O que é que aquilo quer transmitir? Para uma pessoa, para o intelectual, para uma pessoa que está muito habituada a torturar-se, a estudar, a imaginar, a crer, porque tens de pensar. Se em frente a quadro do Mondria estiver uma pessoa, poeta, uma pessoa que está à procura, aí reage de uma maneira. Eu já brinquei com essa experiência. Quer dizer, de ver como é que uma pessoa que vem lá da aldeia, da Beira Baixa, de onde eu vim, uma pessoa que sai lá daquela aldeia e põe em frente o mundo. E o que é que quero dizer? As reações são tão diferentes. As reações são tão diferentes de uma pessoa e de outra. E vou dizer, aquela que é mais bonita, que eu mais aprecio é aquela gente. O que vem lá da beira abaixo é que não sabe nada. Porque esse tem acesso a isso. É mais pura? Eu gosto disto. Para aí! Gosto das cores. Agora, quando o Mondrian fez aquilo, não era isso que ele queria. Aquilo era muito mais complexo. E ele queria transmitir coisas. Ele queria dizer aos outros tu tens de ver aqui o rigor ou não, ta, ta, ta, ta, ta, ta aquilo é o rigor intelectual. E eu sei de histórias do Modrian, já li coisas sobre a vida dele e sei como é que era ele. Eu, por exemplo, o tipo vivia com uma tulipa branca assim todo o ano no ateliê dele. E depois sei mais histórias dele, positivas e negativas, mas isso não interessa.
José Maria Pimentel
Estava a dar-me exemplo de alguém que vinha, enfim, que não tinha, digamos, formação para tentar compreender uma obra de arte para lá daquele impacto inicial. E há uma pergunta que se coloca muitas vezes, que é a diferença entre artesanato e arte. Onde é que para si acaba o artesanato e começa a arte? E no seu caso, isto tem lado pessoal, acho eu, relevante porque a sua mãe fazia aquelas colchas, aquela espécie de patchwork, que no fundo era artesanato...
Manuel Cargaleiro
Era artesanato, mas... Não, a minha mãe, já é quarta classe, não estudou, não sabia nada, foi lá da aldeia, tem lá uma escolinha e pronto. Agora, a minha mãe nasceu com aquilo. Por que é que as pessoas apreciaram muito as mantas de retalhos da minha mãe? Porque é o patchwork, quer dizer, que os americanos têm uma história toda disso. A única diferença que há nos trabalhos da minha mãe... A minha mãe tinha o sentido das coisas. Isso aí não há dúvida. E ela fazia aquilo para oferecer às empregadas que trabalhavam lá na exploração agrícola do meu pai. Quer dizer, e ela dava aquilo à rapariga só. Ora bem, porquê que ela fazia aquilo? Daquela maneira, qual é a diferença entre o que ela fazia e o que as outras senhoras faziam? O patchwork, as mantas de retalhos. Qual é a técnica de fazer uma manta de retalhos? Tu pegas num elemento e repetes aquilo 50 vezes. E pronto, repetes aquilo, saca, fica o retalho e fica perfeito. Fica certo. A minha mãe não fazia isso, mas não fez isso naturalmente porque ela se aborrecia. Ela fazia de uma maneira e depois aborrecia-se daqueles aí e começava o outro. E depois começava daquilo e começava o outro. Outro que começava mais. Quer dizer, E nessa mistura de estilo, de desenhos e vestidos, saíam aquelas coisas engraçadíssimas. Ela trocava as cores, ela fazia...
José Maria Pimentel
Mas ela não trocava, desculpe-me interrompê-lo, ela não trocava as cores aleatoriamente, não é? Aquilo era trabalho criativo, não é?
Manuel Cargaleiro
Claro, não, mas aquela começava com desenho, com esquema, e depois mudava para o outro. A intenção era só essa. Aquilo era o apaz.
José Maria Pimentel
Mas o que ela fazia já era uma forma de arte, não é?
Manuel Cargaleiro
Já era uma forma de arte, mas isso... Sem intenção nenhuma de ser.
José Maria Pimentel
Sem intenção, claro, mas isso é o inconsciente.
Manuel Cargaleiro
É o inconsciente. É o inconsciente.
José Maria Pimentel
Era uma forma de arte, quer dizer, eu imagino aquilo começava por esse aborrecimento de estar a repetir o mesmo padrão, mas depois tinha uma...
Manuel Cargaleiro
Ela aborrecia-se com isso não gostava disso.
José Maria Pimentel
Mas depois tinha uma intencionalidade na escolha das cores. Ah, e depois fazia. Não era uma coisa que surgisse por acaso. Se eu olhar para a sua carreira, desde o início, que foi no final dos anos 40, ali na viragem dos anos 40 para os 50 até hoje, como é que vê a evolução da sua arte, ao longo destas décadas todas?
Manuel Cargaleiro
Olha, A minha arte evoluiu como lhe apeteceu, como aconteceu, sem nenhuma decisão nem vontade. Nada aconteceu por decisão.
José Maria Pimentel
Cais, está o inconsciente outra vez.
Manuel Cargaleiro
Nada aconteceu por decisão. Isso aí foi a minha sorte. E, sabes uma coisa? Há uma coisa que a mim me influenciou muito na vida. Eu tenho a mania dos livros, tenho a mania de ver tudo e de estudar tudo. E o que é que eu comecei? Comecei-me a apaixonar, a querer saber tudo sobre a cerâmica, sobre os azulejos, a história do azulejo. Quando eu fui para Paris, levava uma bagagem já de conhecimento do azulejo, da história do azulejo. A França, que é o grande meio mundial das artes. Eles estão dispostos a aceitar toda a gente. Eles adoram quem chega lá e leva ramo de flores de frente. Ora bem, qual foi o ramo de flores que eu levei para Paris? Levei toda a história do azulejo em Portugal. Eu levei o século XVI. Olha ali aquele quadro. Tu estás a ver. Aquilo ali, sabes o que é aquilo? Aquilo parte do azulejo do século XVI. Aqui foi dos primeiros azulejos que se fizeram em Portugal. Havia outros pano-árabes que eram feitos em Sevilha, quer dizer, o geométrico que vem, e nós importávamos de Marrocos e todo o norte da África. É a história do azulejo. E quando, se nós chegamos, quer dizer, à independência de Portugal, começamos a fazer este azulejo. Portugal tem uma grande reserva de azulejos pano-árabes, que ficaram aqui, e temos depois os azulejos feitos para nós, aqui. E aí começa séculos XVI, séculos XVII, séculos XVIII, etc. Ora bem, o que é que influenciou imenso? Eu fiz esforço para isso. Aconteceu naturalmente que eu portava, faço oas lojas assim. E comecei, sabes, há artistas italianos, franceses, ficam doentes, ficam com aquele vício de fazer sempre aquela coisa, aquele esquema, aquele desenho, aquela coisa. Eu, eu, manteve-se cá na minha cabeça. Quando pega no ozonote, tac, tá, já está. O que é que eu estava a fazer? Eu não fui, eu estava a partir do ozonote da história do meu país. Sim. Do início do meu país.
José Maria Pimentel
E a misturá-lo, de certeza, com as suas outras experiências.
Manuel Cargaleiro
E depois misturar com as cores, com essa coisa onde eu... Dizem as pessoas que eu não me engano nas cores. Ora bem, é isso. Por exemplo, uma vez houve crítico de arte que disse que eu não sei quem faz flores e não sei quem. Eu não faço flores, eu não copio flores. Estão enganados, mas muito enganados. As pessoas que pensam que eu ando a copiar ramites de flores estão muito enganadas. Quer dizer, porque eu não copio flores, Eu invento flores. Eu crio as minhas flores. Mas eu, quando eu crio as minhas flores, são flores ou não são flores? São flores que estão na minha pintura. Esses desenhos. Tanto podem ser isso como, sei lá, a cabeça de passarinho.
José Maria Pimentel
Depende da nossa interpretação, não é? E é engraçado porque, provavelmente, ou certamente, não é? A sua arte foi muito influenciada pela confluência de várias experiências, entre as quais A experiência na infância e na adolescência de observar a natureza, de detectar essas cambiantes todas de cores e depois essa imersão no mundo da cerâmica, no mundo dos azulejos.
Manuel Cargaleiro
Mas eu entrei aí nesse mundo, eu comecei pela cerâmica, comecei pelos becos, comecei pela olharia, comecei pelas coisas pobres, por nada. Mas eu aí, o que é que eu queria? Sabe-se que lá à minha volta andavam muitas raparigas, não me dizia nada, e elas podiam se abricar com os meus becos, aquilo não estava cozido, era só de mar partido. Eu não me importava nada. Ah, não, não, eu ia. Que engraçado, partiu-se. Eu faço outro. Eu nunca tive pena de uma coisa que se partiu. Nós brincavamos todos fazendo o futebol aqui.
José Maria Pimentel
E continua a achar a cerâmica especial? Não. Hoje a
Manuel Cargaleiro
cerâmica para mim é... Vou fazer muito pouca cerâmica. Eu hoje brinco muito com as cores, só. Estou bastante informal na parte da cerâmica. Porque a mim O que me interessa é mais as cores, as reações das tintas, misturar umas com as outras e assim. Quer dizer, o degradir, fazer coisas... Brincar na cerâmica. Claro. Mas o
José Maria Pimentel
que é que a cerâmica tem de especial que o atraiu inicialmente?
Manuel Cargaleiro
Há uma história que é muito... As pessoas não reparam nisso, as pessoas não pensam, mas eu andava pelo campo, andava por várias regiões, quer dizer, não só em Portugal, mas no estrangeiro, eu vejo pedacinho de 5 centímetros de barro esmaltado com cor, eu apanho esse bocadinho, eu admiro esse bocadinho. Se tu vires aí das minhas caixas e caixitas e não sei o quê dos meus ativos. Estão bocadinhos de cerâmica. Ora bem, por quê? A cerâmica tem uma vantagem sobre tudo. Os gringos deixaram no marmor aquilo que eles queriam transmitir aos outros. Ora bem, a cerâmica resiste a tudo, resiste aos séculos, aos séculos, milhares de séculos. Por exemplo, os iznikes da Turquia, aquele é lindíssimo, mas aquele vai durar sempre. A cerâmica, para além de todas as outras artes, de todos os outros materiais, quando houveram grandes revoluções, a cerâmica fica lá, está lá. A duração é incrível. Uma vez o Almada de Greiros, numa conferência que ele fez na Sociedade Nacional de Belas Artes, eu era garoto, de 17 anos, e lembro do Almada dizer qual é a razão da obra de arte? Porquê que os artistas fazem obra de arte? E o Alvado respondeu, para se perpetuar, meu caro, nada, nada, há no mundo das artes, que o que se perpetue mais, que o cerâmico.
José Maria Pimentel
É ponto engraçado. E não é só isso. E a cerâmica existe em todas as culturas, basicamente. Com cambiantes, não é? Mas existe em todo
Manuel Cargaleiro
o mundo. Mas tu viras, epá, se tu imaginares o que se passa na China, é fabuloso. Há milhares de anos.
José Maria Pimentel
Sim, é por celeiro.
Manuel Cargaleiro
Eu tenho andado a estudar bocadinho isso, quer dizer, porque é o que acontece. As experiências que se estão a fazer aí, sinceramente, Há coisas fabulosas. Eu pela minha cabeça, quer dizer, passam tanta coisa que a gente pode fazer. Inclusive agora vou te dizer uma coisa. Como é que eu hei de explicar isto sem dizer tudo? Eu, por exemplo, tenho contato, tenho muita pena, quer dizer, dos jovens drogados. Onde é que aqui entra a cerâmica? Porque eu já tenho contato com os jovens que infelizmente têm esse problema. Eu digo assim, vocês peguem numa bola de argila fresca, de barro, e agarrem isso com as vossas mãos, e apertem bem, e transmitem para isso toda a raiva da situação que vos aconteceu. E aí, esse bocado de barro, com esse barro trabalhado com as vossas mãos, dessa maneira, fica uma obra fantástica.
José Maria Pimentel
E é uma maneira de canalizar essa raiva, não é? Não, não, e depois eu disse que quero
Manuel Cargaleiro
isso mais seco, quero isso ao forno, porque eu quero isso cozido, porque a coisa fica lá, tá?
José Maria Pimentel
Exato, exato. Mas a cerâmica tem esse lado, que provavelmente sentiu isto várias vezes ao longo da vida a cerâmica enquanto quadro é uma coisa muito mais afastada, mais subtil, enquanto que a cerâmica mexemos com as mãos e é muito mais...
Manuel Cargaleiro
Tu agarras aquilo, pá, e aquilo toma as formas todas que tu quiseres. É por isso que eu digo, eu quero que a raiva fique lá toda.
José Maria Pimentel
Cozida, né? Percebes? Se eu
Manuel Cargaleiro
falo isto lá, olha, chamam o maluco.
José Maria Pimentel
Não tenho a certeza, por acaso parece-me fazer, pelo menos no sentido metafórico, faz sentido, claramente. Porque, lá está, quer dizer, essa interação que existe no caso do barro não existe com o quadro, que a pessoa está a pegar pincel é o trabalho manual também
Manuel Cargaleiro
é o Mozart
José Maria Pimentel
é mais o Mozart e a cerâmica para seguir a analogia, é mais batuque, não é?
Manuel Cargaleiro
É uma turista. É a porrada!
José Maria Pimentel
É a porrada, pá! Exatamente! Falámos no início da sua carreira em Paris, que no fundo levou a essa inspiração dos azulejos portugueses, não é? E no fundo toda a experiência. E isso foi o que primeiro o distinguiu lá, não é? Mas depois, olhando para trás, como é que a sua arte evoluiu depois? Porque não ficou parada, não é? Quer dizer, foi evoluindo desde os primeiros anos em Paris, não é?
Manuel Cargaleiro
Coitadinha, em Paris eu andei a aprender, pá. Andei a aprender, mas tive lá grandes professores. Sem nunca me darem uma lição. Mas eu, quer dizer, andava... Eu aprendia porque me pus ali em frente os olhos. Por exemplo, há casal com quem eu andei muito, que foi a Goncharov e o Larionov, que fundaram o raionismo em Moscovo em 1910. Em 1910, tens de ver bem, em 1910. Com Malévich, com entre estipos, mas a história dos precursores. O que é que eles fizeram? Eu tive a sorte, porque o meu galerista em Paris, o Edouard Lappe,
José Maria Pimentel
era galerista
Manuel Cargaleiro
da Gond Charon. O Lario Norte já me vendia.
José Maria Pimentel
Ou seja, em Paris teve a sorte de se expor a essas correntes todas, não é? A essas pessoas todas.
Manuel Cargaleiro
Com essas gentes. Era tão bonito, pá. Mas era tão bonito, essa gente.
José Maria Pimentel
E houve alguma, durante esses anos, para além dessa experiência de contato com todos esses artistas, houve algo que tenha lido, filme que tenha visto, ou experiências que tenham marcado de tal forma que acha que depois influenciaram a sua arte?
Manuel Cargaleiro
Não, eu em França, eu trabalhei com os operários nas fábricas, também numa das maiores fábricas da França, que tinha 1200 trabalhadores.
José Maria Pimentel
E muitos portugueses também, não era?
Manuel Cargaleiro
Em Gian, à beira do Luar. Ah não, mas o que eu aprendi lá foi dizer, por exemplo, nas basílicas, os anzolões do chão, do século V, coisas fantásticas. Ah não, não, mas a gente, quem não anda a dormir, está obrigado a ver.
José Maria Pimentel
Claro. Sim, e depois é que tudo processado e vai parar...
Manuel Cargaleiro
Sei lá, porque se põe isso, faz tudo. Quer dizer, hoje fala-se muito da criatividade. Esquece e vê, abre os olhos e vê. Não, eu acho parte muito de nós. Parte muito da nossa decisão. Porque há pessoas que se preocupam muito com isto, preocupam muito com aquilo. Na vida, quer dizer... Eu não. Vou dizer uma coisa. A minha mãe tinha uma frase que dizia mais depressa acaba a boca que a sopa. Pensa bem nisto, não te preocupes, faz a tua vida, trabalha e deve ser feliz, não te preocupes, Porque se a pessoa começa a pensar, e amanhã, e depois, e depois... Eu nunca me preocupei.
José Maria Pimentel
Há uma pergunta, para terminar, que eu sei que se faz muitas vezes a artistas, mas tenho muita curiosidade de saber a sua perspetiva, que é aquela frase, que eu acho que é atribuída ao Da Vinci, não sei se era dele,
Manuel Cargaleiro
que o quadro nunca está terminado. Eu estou de acordo com o quadro nunca estar terminado.
José Maria Pimentel
Mas como é que tu deixas então?
Manuel Cargaleiro
É preciso te esqueceres de outra frase, que de grande, grande pintor, artista dizia É preciso saber parar
José Maria Pimentel
Exatamente, exatamente
Manuel Cargaleiro
Compreende? É preciso saber parar
José Maria Pimentel
E como é que se sabe parar? Como é que se aprende a saber parar?
Manuel Cargaleiro
Como é que se sabe parar? Isso aí depende da...
José Maria Pimentel
Mas custa-lhe? Ou seja, custa-lhe abandonar o quadro? Ou já o faz naturalmente?
Manuel Cargaleiro
Nada, nada. Não me custa. Aí há três manchinhas, eu ponho três manchinhas, se elas estiverem bem equilibradas, para. Hum-hum. Se tu conseguires fazer uma composição com três manchinhas, o rigor é tão grande, e tu julgas que é fácil, isso é o que tu tens ganas. Porque para fazer três manchinhas, que as pessoas chegam lá e não ficam com a cabeça torta, quer dizer, aí se tu ficares direitinho e fascinado, aí tu acertaste.
José Maria Pimentel
Claro, e se mexer mais pode estragar, não é? Aí está. Mas, lá quero, galera. Muito obrigado. De nada. Gostei muito. Este episódio foi editado por Hugo Oliveira. Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no site 45grauspodcast.com. Selecione a opção Apoiar para ver como contribuir, diretamente ou através do Patreon, bem como os benefícios associados a cada modalidade.