#151 Ricardo Dias Felner - Cozinhas do mundo, o mistério do umami e atracção do picante
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José Maria Pimentel
🎶 Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é
o 45° desta vez sobre comida. Comer é algo muito importante para
nós. Claro que todos precisamos de comida para sobreviver, mas a nossa
relação com a alimentação vai muito mais longe. Para número muito grande
de pessoas, comer é dos grandes prazeres da vida. E não erro,
provavelmente, se disser que muitos de vocês, tal como eu, têm conjunto
de restaurantes a que gostam de ir e uma lista, escrita, guardada
numa aplicação ou apenas na cabeça, de outros tantos restaurantes que gostavam
de experimentar e aonde ainda não conseguiram ir. E muitos de nós,
além disso, dedicam-se avidamente a recolher as melhores receitas e experimentar cozinhá-las
em casa, na maioria das vezes juntamente com outros convíveis, porque comer
é ato iminentemente social. Talvez, aliás, o mais social de todos os
atos humanos. Então, se a comida é aspecto tão central das nossas
vidas, já tardava episódio do 45° dedicado à gastronomia. E que melhor
pretexto do que uma obra que é descrita pelo seu autor como,
e cito, livro sobre a mania da comida escrito por maníaco da
comida. O convidado, Ricardo Dias Fellner, pode realmente ser descrito com este
epíteto, ao ponto de, para além de conhecer muito bem a gastronomia
portuguesa, ter viajado por todo o mundo e ter comido já todo
o tipo de comida, incluindo coisas tão estranhas como alforecas, larvas, baratas
e tarântulas. Acreditem que é verdade. O Ricardo foi jornalista no público
e foi diretor da Time Out e é dos mais respeitados críticos
gastronómicos em Portugal. Recentemente lançou o livro O Homem que Comia de
Tudo. Aventuras culinárias, receitas e restaurantes de Portugal e do mundo. Na
nossa conversa, à boleia do livro, explorámos o mundo da gastronomia, começando
pela ciência do sabor e do paladar, que nos explica porque é
que gostamos da comida. E aí entram todos os sentidos e entra
os chamados 5 sabores básicos que incluem o relativamente recente e fugidio
umami de que provavelmente já ouviram falar. O umami continua a ser
bocado mistério e ao contrário dos outros não é muito fácil perceber
de que é que estamos a falar. E eu fiquei, aliás, a
pensar nisso depois da conversa. Porque é que foi preciso cientista do
século XX para descobrir sabor com o qual a humanidade convive há
tempos imemoriais? Entretanto, surgiu-me uma hipótese para explicar esse puzzle, mas deixo-a
no final do episódio para vos deixar primeiro desfrutar da conversa. A
seguir, falámos de algumas das cozinhas mais marcantes, mas também mais surpreendentes
do mundo, na opinião do Ricardo, não deixando claro de falar da
cozinha portuguesa. E aí o Ricardo tem uma opinião muito interessante em
relação às forças e às também limitações da nossa cozinha. E claro,
não deixámos de tocar em alguns debates recorrentes à mesa de refeição,
pelo menos às mesas em que eu costumo estar, como, por exemplo,
o fascínio de muita gente e a repulsa de outras em relação
ao picante, a cozinha vegetariana e se pode realmente ser tão saborosa
como a cozinha à base de proteína animal e até que ponto,
e este então é tema ultra recorrente em conversas sobre comida, até
que ponto existe uma lei da natureza que faz com que os
grandes restaurantes e as grandes cadeias de restauração sejam sempre inevitavelmente piores
do que os pequenos restaurantes locais. Uma ideia que está muito presente
no livro do Ricardo. Foi uma bela viagem pelo mundo da gastronomia,
por isso preparem os vossos garfos e facas virtuais e deixo-vos com
o Ricardo Dias Fellner. Ricardo, muito bem-vindo ao 45°.
José Maria Pimentel
Eu acho que a maneira certa de entrar nesta conversa sobre comida
é precisamente sobre o papel que a comida tem para nós. Que
coisa bizarra é esta que é a importância que a comida tem
para nós. Eu às vezes digo a brincar, meio a brincar meio
a sério. Aliás, costuma-se dizer, há aquela coisa que as pessoas dizem
às vezes meio para chocar, meio para nos impressionar com a sua
clarividência, dizer que coisas do tipo, é o sexo que manda no
mundo, não é? Ou seja, tudo depende do sexo e poder. A
comida na verdade é muito mais importante para nós do que o
sexo. O sexo é só mais raro, mas a comida, se tu
pensares naquilo que as pessoas fazem por comida, se tu pensares no
que as pessoas gastam, no que gastam em restaurantes, nas decisões que
tomam e no impacto que isso tem nas decisões que tomam, se
pensarmos, por exemplo, isto foi o tema do último episódio, que as
piciarias em plena Idade Média, então de plena Idade Média, economia pré-moderna,
pré-revolução industrial, fizeram, fizeram, quer dizer, provocaram basicamente os descobrimentos. A comida
tem peso gigantesco no bem-estar das pessoas. É boa a comida, quero
dizer, não é?
Ricardo Dias Felner
É, e até começaria antes. Não sei se tem mais peso do
que o sexo, Não sei se tem mais peso do que o
sexo, não sei se tem mais peso do que o sono, mas
é certamente das coisas mais importantes para a vida de todas as
pessoas, não é de algumas pessoas, é de todas
as pessoas.
É uma questão de sobrevivência, portanto. A comida como uma coisa de
prazer é relativamente recente, pelo menos na literatura. Sem a comida nós
não vivemos e, portanto, começa aí.
Ricardo Dias Felner
terreno. Sim, mas todas as outras, nós somos de uma forma geral
seres obcecados com a comida e não interessa se estamos a falar
de pobres mais ricos ou mais pobres. Eu já viajei por países
onde se passou muita fome e ainda se passa, como por exemplo
na China. E, por exemplo, os chineses são absolutamente obcecados com a
comida, não no sentido de ter algo para comer hoje em dia,
enfim, no tempo do mal morreram vários milhões à conta da fome,
mas porque realmente aquilo é uma coisa que lhes dá muito prazer,
a mesa.
José Maria Pimentel
Sim, e outro exemplo disso, que eu não me lembrei à bocado,
que é se calhar até o exemplo mais paradigmático disso dos dias
de hoje, são aqueles programas de cozinha, programas de culinária que existem
na televisão, seja aqueles de fazer receitas à antiga, seja aqueles mais
recentes, que são concursos na prática, são muito bizarros num certo sentido,
porque o principal estímulo sensorial que aquilo dá, tu não tens acesso.
Exatamente. É
de verdade, não é como programa de música que tu estás a
ver,
estás a
ver e ouvir, ali tu não... O principal estímulo, quer dizer, tens
acesso se fores replicar aquela receita, mas eu aposto que 99,9% das
pessoas não o faz, né?
Ricardo Dias Felner
Não, não, embora, enfim, haja programas e programas. Se calhar os programas
de, sei lá, 24 Kitchen da tia Cátia há esse interesse, para
saber, porque são coisas mais básicas, mas o Masterchef acredito que não
tem a ver com replicar receitas. E há outro mundo que escapa
à televisão, que é o mundo dos canais de comida no YouTube.
Ricardo Dias Felner
Há, mas com muitos melhores. Eu, por exemplo, neste momento estou viciado
a ver canais do YouTube de imagens, sem som, sem narrativa, só
a filmar em uma cozinha de uma taberna que se chama Izakaya
japonesa e a vê-los a trabalhar, aquilo para mim é uma coisa
super relaxante, para além de ser muito interessante, a maneira como eles,
sei lá, como eles trabalham o peixe, etc. Os vídeos com mais
visualizações do YouTube de comida, e isso é interessante, podemos falar sobre
isso mais à frente, eu tenho reparado que é de fritos. Pessoas
a fritarem comida sem som. Imagina uma táctica coreana que é muito
conhecida pelos fritos e tu estás ali meia hora a ver vídeo
só dela a fritar coisas e aquilo tem milhões e milhões de
visualizações. E isto tem a ver com outras coisas, nomeadamente com a
nossa apetência por comida proteína, que foi caramelizada. É termo técnico errado,
do ponto de vista da escola da hotelaria, digamos assim. Mas comida
que foi frita ou que foi tostada, tem a ver com as
reações de Maillard, que são reações que acontecem quando a comida é
assada, grelhada, frita e que soltam aromas que nos apelam bastante.
José Maria Pimentel
Portanto, uma parte importante das coisas que nós gostamos, como, sei lá,
tostas, hambúrgueres, fritos, vêm dessa reação?
Tem, tem a ver com isso.
Tem a ver com várias coisas. E tem a ver com a
gordura, no caso dos fritos,
não é?
A gordura
Ricardo Dias Felner
É isso. O umami é... Às vezes quando falamos em umami as
pessoas pensam que é algo abstrato. Não, é uma coisa completamente mensurável.
É ácido glutâmico, sobretudo isso, ácido glutâmico, e depois tem uma componente
também de inozinados, mas está perfeitamente contabilizado que ingredientes têm mais umami
e menos, sei lá. Tomate maduro tem imenso umami, cogumelos têm imenso
umami, carnes processadas, Por isso é que gostamos tanto de bacon, chorizos,
etc. Tem imenso umami.
José Maria Pimentel
Hum, engraçado. E tu estavas a falar agora da cozinha chinesa, que
é bom ponto para outra coisa, que eu te queria perguntar sobre,
enfim, cozinhas do mundo, chamemos-lhe assim, não é? Quais são para ti,
isso é uma pergunta difícil, eu sei, não é? Mas quais são
para ti os países com melhor comida? É a China? Já percebi?
Ricardo Dias Felner
E eles também são loucos por comida. Mas para todo lado onde
eu vou, sítios onde eu não estava à espera de comer bem,
eu fico encantado. Eu há muitos anos fiquei numa casa em Londres
de uma família da Guatemala. Incrível o que aquela família cozinhava. Incrível.
E vais dizer, mas a cozinha francesa é melhor que aquela? A
cozinha portuguesa é melhor que aquela? Tenho dúvidas. A gente conhece é
mais algumas dessas cozinhas por razões que podemos agora discutir. Pode ser
o facto de elas estarem muito difundidas pelo mundo,
do
ponto de vista de ter restaurantes, comunidades espalhadas pelo mundo inteiro. A
italiana é caso desses. Tem muito a ver, muitas vezes, com o
marketing que se faz à volta disso e também tem a ver
com as políticas públicas que se fazem à volta disso. Exemplo que
tu tens é, por exemplo, o que aconteceu com a cozinha dos
países nórdicos, que era basicamente motivo de gozo há 30 anos atrás
e que hoje em dia é a cozinha que mais influencia os
chefes em todo o mundo. E isso aconteceu porque os países nórdicos
fizeram, digamos assim, a dada altura, bem, talvez há uns 20 anos,
ou talvez bocadinho mais, decidiram criar políticas de promoção da sua própria
cozinha e de, não só de promoção, não é? De melhoramento. Uma
palavra bocado feia para usar neste contexto, mas investiram muito nisso. O
Peru é outro exemplo clássico de uma cozinha que se tornou vista
quase como dos expoentes máximos da alta cozinha mesmo, da alta cozinha,
e foi feito à custa de dinheiro público e de políticas foi
de cima para baixo. Vários jornalistas de comida de Portugal já foram
ao Peru convidados pelo governo do Peru.
José Maria Pimentel
Mas a minha pergunta não era tanto sobre a alta cozinha, digamos
assim, porque a alta cozinha de facto, quer dizer, pode ser feita
em todo lado, havendo organização para isso, não é? Porque os seres
humanos em todo lado têm capacidade criativa para fazer alta cozinha. Era
mais sobre as tradições, não é sobre a cozinha tradicional. Eu entendo
a tua opinião e acho importante relativizar aquela coisa meia patrioteira que
a pessoa às vezes tem de dizer que a comida portuguesa é
a melhor da munda, não sei o quê, apenas daqui a alguns
anos as pessoas ficaram muito indignadas. Também já não sei crítico àquele
inglês que tinha dito que a cozinha portuguesa não era grande coisa.
Enfim, isso é tudo claro, é tudo bocado ridículo porque isto tem
lado relativo. Agora, a lado, se nós olharmos para a cozinha tradicional
dos países, eu acho que é argumentável dizer que há razões para
alguns sítios serem melhores do que outros. Por exemplo, terem mais história
versus menos história. Estarem em climas mais favoráveis a conseguires na era
pré-moderna ter uma variedade de alimentos, ou seja, de matéria-prima muito maior,
por exemplo, estar, e este ser o aspecto joga a desfavor de
Portugal, quer dizer, joga a desfavor, não, por acaso não joga a
desfavor, por causa dos descobrimentos, mas estar, mas jogaria a favor da
Geórgia, quer estar ali na confluência de várias culturas, por exemplo, Ou
seja, há fatores que tu podes dizer que podem tornar alguns sítios
com melhor gastronomia e outros com pior.
É curioso.
Estou todo a provocar.
Ricardo Dias Felner
Pode ser muito complexa, muitas vezes... Também é
país gigante, não é?
Muitas vezes muitos ingredientes, muitas vezes muitos produtos pré-trabalhados antes de entrar
no prato, com muita antecedência, etc. E a coxinha portuguesa não. A
coxinha portuguesa, o valor acrescentado dela não é feijoada, porque a feijoada
há em todo mundo, a gente é que pensa que só há
cá, ou cozido, há em todo mundo e a gente pensa que
cozido é português. É o peixe fresco só com sal e azeite
e batata e legumes. Porquê? Porque esses produtos, normalmente, têm tanta qualidade
que eles não precisam de mais nada, não é? Mas, se tu
fores a uma tasca, e esta é uma das razões pelas quais
os turistas não gostam assim tanto da restauração tradicional portuguesa como nós
pensamos que eles gostam. Aliás, tu vais a Lisboa e os restaurantes
tradicionais portugueses, vais ao salado de presuntos, é dos restaurantes com menos
estrangeiros que tu vês ali naquela zona.
Engraçado.
Mas o que acontece é que quando alguma dessas coisas falha, ou
seja, se o peixe não é robalo de mar, mas robalo manhoso
que a Táscara serve ali ao almoço. Se o azeite, em vez
de ser extra virgem, é virgem que tem mais óleo do que
azeitona, óleo vegetal do que a azeitona, acontece muito. Se os legumes
não são... Tudo isso se desmorona porque não há ali molho que
agarra o prato, não há, percebes? Se tu fosse a pensar, por
exemplo, que molhos é que nós temos em geral? Temos muito pouco,
molhos nossos que nós fazemos. Mas, molho para a salada, nós nem
sequer fazemos o vinagrete, não é? Nós é azeite e vinagre direto
com o sal, que não é uma coisa assim tão comum no
resto do mundo. Mas porquê? Porque nós estamos a partir do princípio
que vai-te ser tudo bom.
Ricardo Dias Felner
E nós fomos muito ignorantes sobre isso porque, entretanto, começámos a receber
peixe de todo lado. As pessoas não têm esta noção, mas estou
sempre a repetir isto porque é exemplo que, quando eu soube disto,
fiquei bocado chocado. Não se come uma garopa de águas portuguesas em
Lisboa. É muito difícil tu encontrares uma garopa das águas portuguesas e
tu vais ao mercado de Benfica ou vais ao mercado de Alvalade
e ele está cheio de garopas frescas. As garopas são frescas e
são boas. Atenção, não parem de comer a garopa, que é peixe
belíssimo, mas a probabilidade de ela vir da Mauritânia e não da
costa da Caparica é incrivelmente superior ao que a maioria das pessoas
pensa.
Curioso.
E eu estou a dizer da Garopa, mas a grande maioria dos
peixes que estão na praça provavelmente não vende porque gosta da portuguesa.
Ou talvez se ficassem bocadinho sucivos, mas de uma grande parte.
Ricardo Dias Felner
Sim, pois, ficamos muito tempo ali a olhar e muitas vezes os
verdadeiros restaurantes chineses, os doces estão misturados com o salgado e, portanto,
ainda ajuda a confundir mais as coisas. Mas sim, num bom restaurante
chinês tens tudo, tens todas as técnicas, tens fritos, tens ácido, tens
ácido e doce ao mesmo tempo. É muito...
José Maria Pimentel
Mesmo o picante é engraçado. Lá está. A China tem uma grande
vantagem porque desde sempre concentrou uma parte razoável da população mundial, portanto
é normal que seja uma cozinha muito variada. Tendo em conta que
é uma civilização antiga, que seja mesmo era pré-moderna, tinha realmente quinto
ou quarto da população do mundo é normal que haja ali uma
variedade enorme, mas ao mesmo tempo, mesmo apesar disso é engraçado, tu
vês que existe, tu tens desde esses pratos de Szechuan ultra picantes
até pratos de uma delicadeza, quase sem sabor no sentido em que
são muito leves, é engraçado. A coexistência desse tipo de pratos é
curiosa. E depois tem aspecto que eu acho curioso da cozinha chinesa
que o ex-livres da cozinha chinesa, ou pelo menos o ex-livres da
cozinha chinesa virado para os ocidentais, que é o patapquim, é prato
muito diferente do resto da cozinha chinesa, que é curioso. Eu vivi
ano na China, portanto eu andei bom tempo a comer comida chinesa.
E a única lacuna que eu acho que a cozinha deles tem
é não usar forno praticamente. Exceto no prato à boquinha. Aquilo não
é bem feito no forno, mas na prática é como se fosse.
Que é engraçado, não é? Ou seja, o prato parece outlier, não
é? O prato que é o mais conhecido é diferente dos outros
todos.
Ricardo Dias Felner
como uma coisa muito feliz e melhor coisa do mundo. Mas de
facto, tu vês lá coisas que são verdadeiras artesãos, não é? Nós
olhamos para frasquinho de molho de soja e olhamos para aquilo como
líquido, com bocado de água com uma cor bocadinho mais escura, mas
molho de soja bem feito, é processo de lastar, de fermentação.
E tem uma série de táticas.
E tem muito umami, é uma das razões porque a gente põe
naquela ideia, põe-nos molho de soja em qualquer coisa fica bom, uma
das razões é isso, é porque está cheio de umami. Mas eles
estão sempre muito à procura de umami, os japoneses também. Os chineses
e os japoneses sempre tiveram essa essa opção
e
por isso a comida deles é tão saborosa também.
José Maria Pimentel
Havia outro ouvinte que fazia uma pergunta e realmente eu sempre pergunto
em relação a isto, é porquê que nós, na verdade eu não
sei se é uma especificidade portuguesa, mas nós em Portugal até muito
recentemente não tínhamos restaurantes chineses a sério, ou seja, aqueles restaurantes chineses
que nós nos lembramos ali dos anos 90, início dos anos 2000,
quando a comida chinesa esteve na moda, não eram bem restaurantes de
cozinhas chinesas, não é? Era uma cozinha chinesa ocidentalizada. No fundo, tentou-se
corrigir problema análogo ao que tu descrevias dos turistas em Portugal com
as tascas portuguesas. Que é os ocidentais, ou os portugueses em particular,
não sei, não achavam grande graça a cozinha tradicional chinesa e criou-se
aquela coisa que não é bem a cozinha tradicional, é suficientemente exótica
para parecer chinês, mas não é bem. Depois que fores comer chinês
a sério percebes que não é a cozinha tradicional.
Ricardo Dias Felner
Ok, essa questão das texturas é uma questão muito chinesa. Os chineses
dão muito mais importância à textura. Eu diria que, por exemplo, os
portugueses não dão. Sim. Na nossa comida, uma das críticas que os
turistas muitas vezes fazem, não diretamente, mas nos fóruns da internet, etc,
é que é tudo mole. Não temos essa coisa. Os chineses, por
exemplo, uma das coisas que eles adoram é uma das coisas que
nós testamos, que é cartilagens.
Exatamente.
Patas de galinha.
Ricardo Dias Felner
Voltámos à pergunta do que é que nos faz gostar de uma
coisa. Há uma coisa que nós não falamos aqui. Aliás, há duas
coisas que nós não falamos aqui e que entram muito nisto, evidentemente.
Uma é a nossa memória. Nós vamos gostar aos 35, 45 anos
de coisas que nos serviram quando éramos pequenos. E isso está mais
ou menos provado. Há estudos que provam aquela velha dificuldade com as
crianças a comerem coisas que não gostam, se os pais as devem
forçar a comer ou se não devem forçar a comer. Lá em
minha casa, eu sempre forcei a comer, nem que fosse bocadinho. É
bocado aquela coisa de, não gostas, comes menos, mas tens que experimentar.
E há estudos que mostram que se tu fizeres isso, se os
miúdos comerem mesmo coisas que não gostam até aos 18 anos, mais
tarde na vida eles vão gostar e vão comer e até se
calhar vão adorar. Tenho exemplo do tomate, que era uma coisa que
eu não gostava quando era miúdo, mas a minha mãe nunca tirou
o tomate das coisas, ou mesmo da cebola do refogado.
Ricardo Dias Felner
Sou grande fã de picante e cultivo as minhas malaguetas e faço
as minhas moças, etc. E tem sempre esta conversa com as pessoas
quando elas me dizem que eu não aguento nada picante. Enfim, eu
sei que há pessoas que são mesmo alérgicas, têm reações muito violentas,
mas a grande maioria das pessoas, quando eu fazia esses workshops, dizia,
vamos começar hoje e dentro vamos ter aqui programa de treinos, digamos
assim, e eu garanto que tu ao final de três semanas estás
a comer picante, mas picante a sério e estás a adorar, porque
é mesmo treino. E se tu faltas aos treinos, e acontece comigo
também, Se eu fico três semanas sem tocar em picanes, se eu
for, por exemplo, ali ao Tentações de Goa, na Moraria, que é
restaurante
que eu
gosto muito, comer lá o chouriço de goesa vai ser duro.
Ricardo Dias Felner
Há muita literatura sobre isso, mas há coisas mais científicas e menos
científicas. Há uma coisa que parece evidente, é que a capsaicina, que
é a substância que está na malagueta, aumenta o metabolismo, quando tu
comes e tu sentes isso, começas a suar. Essa sensação física, para
mim, é muito prazerosa. É como se... É engraçado. Quando tu te
picas muito, não é? É como se tivesse uma descarga de adrenalina.
Aquela coisa de... Ah, eu não gosto de picante exagerado. E eu
assim... Não, eu gosto de picante exagerado. Porque é esse picante exagerado
que me dá essa vibração.
José Maria Pimentel
Porque na primeira derivada da coisa, digamos assim, ou seja, no aspecto
superficial, até parece uma coisa má, não é? Porque eu tenho uma
relação nem boa nem má com o picante, Ou seja, não tenho
nada contra o picante, mas estou sempre a contrariar os meus amigos,
como estou a fazer agora contigo, fãs de picante, porque há lado
bocado absurdo da coisa, não é? Porque parece que é só para
te fazer sentir mal, desagradável, não é? Porque, e de facto, o
efeito imediato não é o efeito agradável. Estás à mesa e de
repente começas a suar e começas a ficar... Quer dizer, não é
uma coisa que a pessoa gosta. E portanto, tem lado bocado... É
caricato nesse sentido, não é? Estou aqui... Estou só a falar do
lado picante. Há o lado do acrescentar sabor, que de facto os
condimentos têm, não é? Mas aqui estou a isolar essa questão, não
é? Estou só a focar-me na parte do... Picante pelo picante, digamos
assim.
Ricardo Dias Felner
Aliás, os portugueses não dão importância, não dão grande importância ao sabor
da malagueta porque a nossa malagueta, que é aquela malagueta pequenina, não
tem grande sabor. Se tu fores provar variedades de malagueta, por exemplo,
da América do Sul ou da América Latina, que são coisas fabulosas
do ponto de vista aromático, sabem, cheiram tal perse. Nós estamos interessados
naquela dosezinha, na dose mesmo do picano, não estamos interessados no sabor.
É mesmo só para isso, mas eu percebo o que é que
tu estás a dizer.
José Maria Pimentel
é? Sim, sim, exato. Não, enquanto, por exemplo, a cerveja sem álcool
tinha sabor muito diferente, a pessoa também se podia refugiar no sabor.
Agora, eu recentemente provei, fiz com a minha mulher o desafio de
fazer mês sem beber álcool, portanto, faltávamos de beber cerveja sem álcool
e explorar o mercado e há cervejas já muito boas, ou seja,
já não dá para te refugiar na questão do sabor. É mesmo
do álcool.
Ricardo Dias Felner
Sim, mas aí lá está. Aí sim.
Talvez te apanhe.
Não, não, aí sim, porquê? Por causa do marketing, não é? Sei
lá, eu, por exemplo, falando em fine dining e em gastronomia de
vanguarda, no fundo, o que é que os críticos andam a falar
pouco por todo o mundo. E a relevância que é dada à
Dinamarca, por exemplo, em termos gastronómicos nos últimos 20 anos, que tem
a ver muito com a existência de único restaurante em Copenhague chamado
Numa, é absolutamente excessiva a meu ver. É verdade que eles foram
reflexionários em muita coisa, mas...
José Maria Pimentel
Pois tu não achas, Por exemplo, passaria eu a dizer, não tens
que ser tu a comprometer-te, não achas que a cozinha italiana está
bocado sobrevalorizada? Eu gosto imenso de cozinha italiana, mas primeiro é difícil
não estar de tão valorizada que está e ao mesmo tempo, e
aqui não estou a falar do fine dining, estou a falar da
cozinha normal, e ao mesmo tempo a cozinha italiana tem lado, ou
a relação dos italianos com a comida que é muito conservador. É
bocado o seu forte e o seu fraco, não é? Porque ao
mesmo tempo é aquilo que assegura determinados estándares, mas provavelmente é bocado
limitativo em termos criativos.
Ricardo Dias Felner
Sim, sobretudo, digamos, os restaurantes que estão no universo do tal Noma,
que ganham por diversas vezes o prémio do melhor restaurante do mundo
de guia chamado World's 50 Best, que é bastante influente. Sim, causas,
sei lá, causas das mulheres, dos animais, por exemplo, dos vinhos biológicos,
foram eles os primeiros, digamos, dentro dos tubarões mundiais a fazer uma
carta só com vinhos nesse estilo.
Ricardo Dias Felner
É. Os vegetais têm muito pouco umami. Então o que é que
os cozinheiros modernos, vegetarianos, fazem? Vão buscar todas aquelas coisas que nós
falámos que trazem umami. Tomates, fermentados, cogumelos, trabalham muito bem os frutos
secos e depois trabalham também as gorduras como difusor de sabor, trabalham
as reações de Maiar, tu ves, antigamente não vias, eu lembro, prato
vegetariano era assim uma amálgama de verduras. Hoje em dia vejo coisas
queimadas, tostadas, muitas coisas tostadas, muitos legumes tostados. Não vias uma couve
tostada, grelhada.
José Maria Pimentel
É Engraçado que estás a dizer isso, porque esse é o outro
exemplo de que as restrições podem jogar a favor da criatividade. Ou
seja, o facto de não poderes usar carne, no início é uma
limitação, não é? E de facto há muita, e continua a haver,
acho que muita cozinha fasteireira é bocado desenchabilha, que é isso que
estás a dizer, é quase uma espécie de refogado, umas coisas salteadas
mas depois não tem grande graça ou às vezes era muito compensada
com muita gordura ou então tinha hidrato a mais e tal, mas
depois a partir de certo ponto, tu com essas restrições, uma vez
passada esta dificuldade inicial, podes ser criativo e fazer coisas que não
havia antes, não é? E há prazeres muito interessantes.
José Maria Pimentel
Nós já falamos bocado da cozinha portuguesa, mas eu acho que tu
deves ter uma opinião engraçada sobre pratos ou alimentos da cozinha portuguesa
subvalorizados, ou seja, coisas que nós não valorizamos devidamente. Vou-te dar exemplo.
Para mim, embora nós consumamos muito, não é valorizado devidamente é a
sopa.
Ah, boa, boa, boa.
Primeiro, a sopa como nós a temos é uma coisa... É rara,
é rara.
É verdade.
E ao mesmo tempo, nós somos muito... Tu falas disto no livro,
nós somos muito descuidados e há aquela coisa... Tu falas no livro
e a mim irrita-me, eu rimo quando passei por isso porque irrita-me
imenso. Porque tu vais num restaurante e perguntas-te, sopa é de quê?
Legumes. Não é de legumes, é de quê? Porque dentro dos
José Maria Pimentel
e ela quase não precisava de varinha mágica, ou seja, eles diziam
que não precisava, eu admito que pudesse precisar de toque, mas era
praticamente nada. E era, eu acho que era a melhor sopa que
eu já comi e teria a ver com a matéria prima, mas
também com a maneira como foi cozinhada. Sim, é verdade. E de
facto,
é uma
boa sopa, é uma coisa ótima. Não enche estádios, não move multidões,
mas é uma coisa boa.
Ricardo Dias Felner
com esta regularidade, não é? Exato. Em minha casa, eu como sopa
todos os dias. Não há problema. Porque, na verdade, isso acontece por
uma razão, que há uns tempos estava a falar com uma pessoa
e estava a dizer nós não temos pratos de vegetais, é uma
pobreza franciscana, a cozinha é tradicional portuguesa. Esparregado, enfim, sempre nos dois
ou três são sempre os mesmos. E ele dizia-me bem que não,
não, os nossos legumes estão na sopa. Os nossos pratos de legumes
são as nossas sopas. E faz muito sentido. Tem problema do ponto
de vista, diria eu, nutricional, que é que estás a comer uma
coisa muito processada, que ferveu durante muito tempo, portanto alguma coisa se
vai perdendo aí no caminho.
Ricardo Dias Felner
Eu tenho ideia que se perdem algumas vitaminas, etc. Mas, de facto,
é aí que estão os nossos verdes, que está a nossa força.
Dos legumes, e tu falavas da importância do produto. O caldo verde.
O caldo verde é uma sopa que eu adoro. É de uma
simplicidade. Aquilo só precisa de facto de boa batata, mas a batata
tem que ser mesmo boa. Se a batata não for boa, qualquer
vez já não presta. Se a couve for muito velha, estiver muito
ressequida e não estiver bem cortada, também já não presta. Mas aquilo
é, batata, se quiseres podes pôr cebola, se quiseres podes pôr alho,
mas basicamente é batata, couve, azeite e chouriço. São três ou quatro
coisas que, se forem de qualidade, para a fazenda, uma sopa única,
como não comemos em mais nenhum do mundo. Não sei quem é
que foi jornalista, agora estou a me lembrar, João Vila-Lobos, inquérito nas
redes sociais sobre a sopa que os portugueses preferem. Qual é a
tua sopa preferida?
Engraçado.
E ele punha, era o caldo verde, era a canja. Bem, eu
fui a canja de longe, o que para mim...
José Maria Pimentel
E ali eu tenho problema de branding, não é? Porque tu não
tens maneira quase de nomear as várias versões, não é? É como
se fosse tudo a mesma coisa, não é? Como se fizesse tudo
parte do mesmo conjunto
de legumes misturados.
Tipo é só o pato. Exato. Os legumes quaisquer que eles sejam,
não é?
Sim, sim, sim. Mas as
coisas misturadas, não é?
Sim, sim, sim, é verdade.
E mais? Mais alimentos que tu achas que subvalorizamos?
Ricardo Dias Felner
Eu não sei se subvalorizamos, sei que é algo que nos distingue
em todo o mundo, é reconhecido, mas não sei se é valorizado,
que é o bacalhau. O bacalhau salgado, de facto, não somos os
únicos a comer no mundo. Os espanhóis comem uma versão soft, digamos
assim, menos curada. Em Itália também se come uma versão diferente, na
Noruega também, mas não tem nada a ver com a nossa tradição
do bacalhau salgado, que é uma tradição esquisita, porque nós somos país
marítimo, não temos bacalhau na nossa costa e vamos...
José Maria Pimentel
Sabes que eu tenho uma teoria, que tu vais discordar de certeza,
e provavelmente com razão, que eu gosto de dizer para provocar as
pessoas, que é, às vezes eu tenho que ter cuidado para formular
isto bem, todos os pratos de carne ganham a ir ao forno.
Ou por outra, não há nenhum prato de carne que não fique
melhor indo ao forno, seja ser todo feito no forno, seja terminado
de fazer no forno. Eu digo isto, normalmente as pessoas discordam e
eu uma vez dizia isto em família, dizia de certeza que o
cozido à portuguesa fica melhor se for posto bocado no forno. E
eu disse, não, que estupidez. E houve dia que se pôs no
forno para aquecer, porque aquilo tinha sido comprado.
Ricardo Dias Felner
Já depois de ser conserva, já depois de fechada na lata. Ok?
Poderás ter que ter alguns cuidados, deles é sítio que não esteja
ao sol, escuro e de vez em quando ir lá virá-la. Mas
de vez em quando é mesmo de vez em quando. Estás lá
todas as semanas a virar a lata de lado para o outro.
E eu quando vou ao Porto, porque no Porto há muitas casas
destas de conservas, Estou sempre à procura das latas fora de prazo
e fico com todas as que apanho. E encontram-se algumas. A única
coisa que... Não estou a dar aqui conselho perigoso para a saúde
pública dos portugueses. Duas coisas que eles têm que ter em atenção
quando envelhece uma conserva. Uma, a lata não pode ficar opada, ou
seja, abalar, porque significa que tem ar lá dentro, tem oxigênio, o
oxigênio dá cabo do produto, ou ferrugens e esse tipo de coisas.
Porque de resto, uma lata pode, há latas com 20, 25, 30,
50 anos, incríveis.
José Maria Pimentel
nossa história. Não aconteceu muitas vezes. Aliás, há artigo, já antigo e
muito influente, do Jaime Ramos, que é historiador económico, que tentava fazer
contrafactual da economia portuguesa, tentando ver se nós teríamos tido alguma maneira
de escapar à falta de desenvolvimento que tivemos no século XIX e
ele explorava precisamente a indústria conservadora. E depois acho que, se sabe
o erro, não quero estar a mentir, mas acho que concluía que
não tinha escala suficiente para... Ou seja, nós não tínhamos meio de
fazer aquilo escalar ao ponto de usarmos isso para darmos o salto.
Mas é interessante ele ter pegado nisso, porque é o que estás
a dizer, não é? Porque de facto era uma coisa que nós
sempre fomos bons e...
José Maria Pimentel
Claro, esse é o problema, é problema da nossa indústria alimentar em
várias áreas. Algumas em que já foi ultrapassado, mas outras não. Era
como acontecia com o azeite, hoje em dia acho que já não
acontece, com a revolução que houve, mas era problema grande. Lá está,
e depois perdes a margem toda, não é?
Claro.
Ou seja, a margem vai toda
para quem
compra e aplica a marca. Claro, o
José Maria Pimentel
E aliás, isso lembra-me de outra coisa que eu te queria perguntar,
que em mim também é em parte uma provocação, porque perpassa no
teu livro uma ideia que é muito comum ouvir, e é muito
comum, eu diria, em tudo que toca precisamente a criatividade, que é
de que, mais ou menos, a metateoria, que nunca é explicitada, mas
que eu diria que é a meta-teoria que os restaurantes que são
grandes cadeias ou que têm algum lado mais industrializado serão sempre piores
do que os restaurantes locais, mais amadores, mais pequenos, de escala mais
pequena. Isto é uma ideia comum e é uma ideia que propassa
muito no livro. E o que eu te pergunto é, tem de
ser assim? Quão rígida é que tu achas que é esta causalidade,
esta ligação?
Ricardo Dias Felner
Não, não, não, isso não convenceu-me. Eu fui lá de espírito aberto.
Mas, sei lá, mesmo admitindo que aquilo não tem que ter uma
carne boa, que pode ser só produto artificial saboroso, que aquilo também
é uma fórmula de umami, atenção, os sujeiros da Boricuim, todos eles
sabem as fórmulas do sabor que fazem a sua...
Ah, claro, claro.
Por isso é que aquilo está cheio de... O que a gente
falou aqui, doce, umami e fermentados também. Os picles são fermentados.
Pois é, pois é.
E muitas vezes até tem glutamato, digamos, sintetizado lá pelo meio. De
facto, entre o hambúrguer daqueles ou hambúrguer de uma hamburgueria artesanal, não
todas, porque há algumas bastante mais. Mas já falava do ground burger,
por exemplo. Mas não há comparação, digo eu. Agora, vamos falar em
termos gerais das cadeias. Por isto o quê? As cadeias, nem precisamos
falar de cadeias, podemos falar de grandes grupos de restauração, com diferentes
restaurantes. O que é que acontece? Têm protocolos e esses protocolos são
rígidos. E o que é que isso faz? Faz com que o
produto nunca seja mau. Ali sabes que nunca vais ter produto mau,
mas também nunca vais ter produto de excelência.
Ricardo Dias Felner
Para ter produto de excelência, tu precisas de te adaptar às circunstâncias
do mundo, do dia, da atualidade, do que é tendência e deixou
de ser tendência na semana seguinte. Do que a horta está a
dar
e do
que o mar está a dar. E obviamente que as cadeias não
têm essa margem de adaptação. E também não têm uma outra coisa
que é muito importante na cozinha, que é amor pelo cliente e
pelo que estão a fazer. Porque, enfim, tudo o que fazer uma
generalização se calhar injusta para muitos trabalhadores das cadeias de restauração. Mas,
de facto, normalmente quando o restaurante é meu e sou eu que
cozinho, há cuidado diferente nas coisas, até no tratamento do cliente. É
muito provável que esse restaurante faleça rapidamente, porque muitas vezes os outros
restaurantes não sabem gerir restaurante. E é muito provável também que tu
apanhes grandes barretes nesses restaurantes, lá está. Porque como não há protocolos,
aquilo às vezes... Ah, hoje vou inventar prato novo. Pode dar muita...
Pode dar barraca, e dá, muitas vezes.
José Maria Pimentel
É engraçado porque tu cá tem vários pontos que eu ia referir,
eu acho que primeiro há aqui uma questão de as grandes cadeias,
ou seja, tudo que é mais standardizado, tem uma escala maior, tem
menos variabilidade.
Certo.
E portanto é mais previsível, por lado, há menos probabilidade de correr
mal, mas também há menos probabilidade de ser excelente. No fundo é
isso que está em causa. E depois, quando nós estamos a olhar
para o... Aí é que eu acho que há uma certa dose
de romantismo e eu achava que havia na tua perspectiva, mas agora
do que disseste percebi que não, que é esclarecida, digamos assim, que
é... Que eu acho que às vezes é romantismo de só olhar
para os bons dos pequenos, não é? Quando na verdade o que
os pequenos têm é uma variabilidade muito grande, não é? Apenas o
muito bom e o muito mau, não é? Se tu soubesse escolher,
idealmente apenas o muito bom, não é?
Ricardo Dias Felner
Exatamente, mas eu acho que o nível de produtos dele, da qualidade,
é muito superior à média.
Exato, concordo.
Entretanto, eles subiram bastante os preços de quase tudo e pronto, depois
no serviço, casa e casa. Por exemplo, a padaria portuguesa onde eu
vou, vou para lá muitas vezes escrever, porque... Também porque tem... Tem
tomadas. Tem muitas tomadas, eles são amigos dos freelancers. E tem o
melhor ar-condicionado de Alvalade também, já agora, às vezes bom demais. Mas
é sítio onde as pessoas tratam como se fosse o café de
bairro mas isto não acontece com a maioria das padrinhas portuguesas pelo
que eu ouço, atenção. Mas neste caso as pessoas vão, os velhinhos
do bairro que não podem estar na fila vão lá entregar a
comida sabem os nomes deles é muito curioso isso. Provavelmente é uma
equipa fixa tem chef de loja bom
José Maria Pimentel
Sim, conheço só de fora já agora só para full disclaimer mas
também parece ser bem gerido e concordo contigo, ou seja, não é...
Claro que não é excelente, nunca sabia, mas ao mesmo tempo fez
bocado o que os Uber fizeram com os táxis, ou seja, tirou-me
dos cafés de uma certa complecência, de repente tinha as padarias e
cafés de ar muito maus e de repente foram forçados a subir
bocadinho a qualidade porque não dava. E as pessoas já não... Enfim,
é só caso, mas é engraçado. Mas é caso muito criticado, precisamente
por ter esse lado de massificação. E acho que as pessoas, quer
dizer, eu não me estou a excluir desse grupo, por lado as
grandes cadeias têm lado que nos atrai, da previsibilidade, mas ao mesmo
tempo também nos repelem por esse lado mais ou menos standardizado. Portanto,
a pessoa gosta sempre de... Se pudermos, preferimos ir a coisas com
mais...
José Maria Pimentel
Eu acho que a maior parte das pessoas acham que a laranja
é uma coisa de verão. Eu tenho essa impressão porque como é
uma coisa que nós associamos a beber com gelo e quase como
refresco e tem aquele ar fresco, meio estival, acho que a pessoa
passa por frutos de verão, é curioso, é paradoxo engraçado. Ainda uma
invenção nossa, o alimento que foi uma invenção. A laranja, isso foi
professor, professor de História do 11º ano que me contou, foi o
melhor professor que eu tive, que contou-me várias coisas que eu nunca
me esqueci e uma era essa, que a laranja foi... A laranja
doce, ou seja, a laranja que hoje se consome em todo o
mundo foi uma invenção portuguesa. Não sei como exatamente, mas foi criada
cá. Tanto é que em alguns países... Eu julgo que não. Epá,
espero que não, não me tires de... Julgo... Espero que sim, aliás.
Julgo que
Ricardo Dias Felner
Bem, uma coisa é certa, nós temos as melhores laranjas do mundo,
lá está, se tivéssemos de escolher 50 produtos extraordinários portugueses, a laranja
do Agafe tinha, claro, está de facto incrível, é produto incrível. É
mesmo muito bom. Mas já agora nós damos muito pouca relevância a
influenciar na nossa gastronomia, que aliás está muito mal estudada, como aliás
está quase tudo muito mal estudado nesta área, ou muito pouco estudado
nesta área, mas independentemente da laranja ter sido obra deles na Príncipe
Ibérico ou não, eles deram-nos muita coisa que nós assumimos como nossa.
Há muita coisa que nós assumimos como nossa, desde as açordas, aos
escavaches, que não são nada nossos.
Ricardo Dias Felner
Não sei se leva menos massa mãe. Leva uma massa mãe feita
ou de milho ou de centeio ou de uma mistura das duas.
Mas existem massas mães para fazer as broas, mas como o milho
não tem glúten, É o glúten que faz com que o pão
crescer, que faz com que o gás carbónico fique aprisionado dentro do
pão e que ele insufle. E, portanto, como isso não existe no
milho nem no centeio já agora, ela fica compacta. E fico doido
quando vou ao Minho ou atrás dos Montes e não encontro uma
broa dessas. Sabe dessas broas compactas, úmidas? Porquê? O que acontece é
que, seja porque é mais rentável tu meteres trigo e meteres fermento
de trigo industrial no meio da broa, seja porque há uma outra
teoria que faz algum sentido, que é, suposito para as pessoas mais
idosas, trincar pão fofinho é mais confortável do que trincar uma broa.
Mas está-se a perder essa tradição da... Broa é broa, broa não
é pão fofo. Sim, não
tem nada a ver.
É uma pedra, deve ser uma pedra para sempre.
Ricardo Dias Felner
Completamente diferente, tem que saber a milho, mas isso depois leva-nos a
outra coisa que é os nossos milhos autóctones, como se faziam os
brôs, que fazem produto diferente do que faz milho importado, sei lá
de onde, da Ucrânia. Agora na Ucrânia é capaz de não ser
fácil. Exato. Sim, o mesmo com o centeio, com os brós de
centeio de Trás-os-Montes. Fazia-se, produzia-se bastante centeio em Trás-os-Montes, ainda se produz
ao longo, mas hoje em dia se quer mais para os animais
do que para outra coisa. Hoje em dia estão as farinhas de
centeio importadas, que fazem pão necessariamente diferente.
Ricardo Dias Felner
Não, não, chato, desabrotado. Não, era uma mulher que também era americana.
E isso dava-lhe também esse lado dava-lhe muita graça. E que escreveu
como ninguém sobre comida na minha ótica. Era uma excelente escritora de
qualquer coisa. Para se escrever bem sobre comida tem que se escrever
bem. E nós lemos as crónicas dela com sorriso nos lábios, mas
ao mesmo tempo aprendemos imenso sobre o que ela escreve. Dos ensaios
mais famosos dela. O livro é uma antologia de muitas coisas que
ela escreveu para a gourmet americana, para todas as revistas, para a
New York, para todas as revistas mais importantes nos Estados Unidos que
dão atenção a estas coisas da comida. Se chamava-se Consider the Oyster,
que deu depois origem a outro ensaio muito famoso que se chamou
Consider the Lobster, do David Foster Wallace, que também está em todas
as antologias de comida e aconselho vivamente. Enfim, está em inglês, mas...
José Maria Pimentel
Abraço. Olá de novo. Lembram-se que na introdução disse que tinha ficado
a pensar no mistério de o umami só ter sido descoberto recentemente?
O meu palpite é que tem algo a ver com o facto
de ser difícil perceber quando há muito umami, que é algo diferente
dos outros sabores. Se nós pensarmos, entre os outros 4 sabores, o
azedo e o amargo são relativamente desagradáveis e portanto é fácil notar
quando está demais. E mesmo no caso do doce, toda a gente
tem a experiência de comer comidas demasiado doces. No caso do umami
não é bem assim. E isso talvez explique porque é que a
humanidade, em todas ou quase todas as culturas, não desenvolveu uma palavra
que permitisse isolar esse sabor dos outros. Enfim, é palpite, fica a
ideia, se tiverem uma explicação melhor, por favor enviem-me e eu depois
até partilho-lhe nas redes sociais do podcast. Ah, e o Ricardo tinha
razão. A laranja que nós consumimos hoje está de facto associada a
Portugal? Tanto é que em muitos países é conhecida por Portugal, uma
palavra parecida, mas não é porque tenha sido propriamente inventada cá, é
porque, como eu lhe dizia, ela foi trazida do Oriente no início
dos descobrimentos pelos portugueses e introduzida na Europa e de resto nas
próprias viagens, onde foi muito útil para combater o escorbuto. Tema, aliás,
que liga ao último episódio sobre Fernando Magalhães. E, finalmente, muito obrigado
aos novos mecenas do 45 Graus, Carlos Pires e André Montenegro. Até
à próxima. Este episódio foi editado por Hugo Oliveira. Contribua para a
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