#151 Ricardo Dias Felner - Cozinhas do mundo, o mistério do umami e atracção do picante

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José Maria Pimentel
🎶 Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45° desta vez sobre comida. Comer é algo muito importante para nós. Claro que todos precisamos de comida para sobreviver, mas a nossa relação com a alimentação vai muito mais longe. Para número muito grande de pessoas, comer é dos grandes prazeres da vida. E não erro, provavelmente, se disser que muitos de vocês, tal como eu, têm conjunto de restaurantes a que gostam de ir e uma lista, escrita, guardada numa aplicação ou apenas na cabeça, de outros tantos restaurantes que gostavam de experimentar e aonde ainda não conseguiram ir. E muitos de nós, além disso, dedicam-se avidamente a recolher as melhores receitas e experimentar cozinhá-las em casa, na maioria das vezes juntamente com outros convíveis, porque comer é ato iminentemente social. Talvez, aliás, o mais social de todos os atos humanos. Então, se a comida é aspecto tão central das nossas vidas, já tardava episódio do 45° dedicado à gastronomia. E que melhor pretexto do que uma obra que é descrita pelo seu autor como, e cito, livro sobre a mania da comida escrito por maníaco da comida. O convidado, Ricardo Dias Fellner, pode realmente ser descrito com este epíteto, ao ponto de, para além de conhecer muito bem a gastronomia portuguesa, ter viajado por todo o mundo e ter comido já todo o tipo de comida, incluindo coisas tão estranhas como alforecas, larvas, baratas e tarântulas. Acreditem que é verdade. O Ricardo foi jornalista no público e foi diretor da Time Out e é dos mais respeitados críticos gastronómicos em Portugal. Recentemente lançou o livro O Homem que Comia de Tudo. Aventuras culinárias, receitas e restaurantes de Portugal e do mundo. Na nossa conversa, à boleia do livro, explorámos o mundo da gastronomia, começando pela ciência do sabor e do paladar, que nos explica porque é que gostamos da comida. E aí entram todos os sentidos e entra os chamados 5 sabores básicos que incluem o relativamente recente e fugidio umami de que provavelmente já ouviram falar. O umami continua a ser bocado mistério e ao contrário dos outros não é muito fácil perceber de que é que estamos a falar. E eu fiquei, aliás, a pensar nisso depois da conversa. Porque é que foi preciso cientista do século XX para descobrir sabor com o qual a humanidade convive há tempos imemoriais? Entretanto, surgiu-me uma hipótese para explicar esse puzzle, mas deixo-a no final do episódio para vos deixar primeiro desfrutar da conversa. A seguir, falámos de algumas das cozinhas mais marcantes, mas também mais surpreendentes do mundo, na opinião do Ricardo, não deixando claro de falar da cozinha portuguesa. E aí o Ricardo tem uma opinião muito interessante em relação às forças e às também limitações da nossa cozinha. E claro, não deixámos de tocar em alguns debates recorrentes à mesa de refeição, pelo menos às mesas em que eu costumo estar, como, por exemplo, o fascínio de muita gente e a repulsa de outras em relação ao picante, a cozinha vegetariana e se pode realmente ser tão saborosa como a cozinha à base de proteína animal e até que ponto, e este então é tema ultra recorrente em conversas sobre comida, até que ponto existe uma lei da natureza que faz com que os grandes restaurantes e as grandes cadeias de restauração sejam sempre inevitavelmente piores do que os pequenos restaurantes locais. Uma ideia que está muito presente no livro do Ricardo. Foi uma bela viagem pelo mundo da gastronomia, por isso preparem os vossos garfos e facas virtuais e deixo-vos com o Ricardo Dias Fellner. Ricardo, muito bem-vindo ao 45°.
Ricardo Dias Felner
Obrigado pelo convite.
José Maria Pimentel
Eu acho que a maneira certa de entrar nesta conversa sobre comida é precisamente sobre o papel que a comida tem para nós. Que coisa bizarra é esta que é a importância que a comida tem para nós. Eu às vezes digo a brincar, meio a brincar meio a sério. Aliás, costuma-se dizer, há aquela coisa que as pessoas dizem às vezes meio para chocar, meio para nos impressionar com a sua clarividência, dizer que coisas do tipo, é o sexo que manda no mundo, não é? Ou seja, tudo depende do sexo e poder. A comida na verdade é muito mais importante para nós do que o sexo. O sexo é só mais raro, mas a comida, se tu pensares naquilo que as pessoas fazem por comida, se tu pensares no que as pessoas gastam, no que gastam em restaurantes, nas decisões que tomam e no impacto que isso tem nas decisões que tomam, se pensarmos, por exemplo, isto foi o tema do último episódio, que as piciarias em plena Idade Média, então de plena Idade Média, economia pré-moderna, pré-revolução industrial, fizeram, fizeram, quer dizer, provocaram basicamente os descobrimentos. A comida tem peso gigantesco no bem-estar das pessoas. É boa a comida, quero dizer, não é?
Ricardo Dias Felner
É, e até começaria antes. Não sei se tem mais peso do que o sexo, Não sei se tem mais peso do que o sexo, não sei se tem mais peso do que o sono, mas é certamente das coisas mais importantes para a vida de todas as pessoas, não é de algumas pessoas, é de todas as pessoas. É uma questão de sobrevivência, portanto. A comida como uma coisa de prazer é relativamente recente, pelo menos na literatura. Sem a comida nós não vivemos e, portanto, começa aí.
José Maria Pimentel
Mas eu estava a falar, desculpe-me, Roberto, eu estou a falar da comida enquanto prazer. Certo, certo. Ou seja, é evidente que do ponto de vista fisiológico tu precisas de consumir calorias, Mas a comida enquanto fonte de prazer é uma coisa que as pessoas estão sempre à procura. Claro que isso é mais visível no mundo moderno, não é? Mas o exemplo das piscerias prova que isso foi sempre assim.
Ricardo Dias Felner
Não, é verdade. E todas as pessoas, enfim, há exceções, eu conheço muito poucas pessoas para quem a comida é algo que não nos rouba tempo.
José Maria Pimentel
Os casos muito, muito raros.
Ricardo Dias Felner
Elas dizem que não perco tempo a ir comer num restaurante meia hora, a ir comer num restaurante longe de Lisboa ou não perco tempo a cozinhar uma coisa que eu sei que me vai tirar meia hora do dia. Mas são casos de facto raros e eu tenho-me a perceber que muitas destas pessoas que dizem isto têm algum tipo de condicionamento relativamente ao cómem grave. Não estou a falar de pessoas com glicostoral alto, estou a falar de pessoas que podem ter mais problemas a comer gorduras ou a comer coisas doces, que são duas das coisas, já agora, que nós mais gostamos mais.
José Maria Pimentel
Mas desculpa, estás a dizer que as pessoas têm problemas no sentido de que têm problemas de saúde que estão por trás disso. Certo, certo. E a alugoscar também pode ser pós, não é? Ah não, comida desse tipo de coisa, superfluos, não me interessa.
Ricardo Dias Felner
Eu tenho encontrado este padrão, as pessoas dizem isto e depois vou descobrir mais sobre a pessoa, já sei sobre o passado da pessoa e percebo, sei lá, que ela não pode comer açúcar ou que não pode beber vinho ou que tem problema de colesterol muito grave na família e, portanto, que tem que estar sempre a vigiar demasiado quando come e isso torna-se cansativo para elas e, portanto, elas querem uma coisa que não...
José Maria Pimentel
É como se não tirassem nada positivo dali ou, pelo menos, em termos líquidos, não tiram nada positivo e, portanto, a pessoa deixa de pensar nisso, não Deixa de jogar nesse
Ricardo Dias Felner
terreno. Sim, mas todas as outras, nós somos de uma forma geral seres obcecados com a comida e não interessa se estamos a falar de pobres mais ricos ou mais pobres. Eu já viajei por países onde se passou muita fome e ainda se passa, como por exemplo na China. E, por exemplo, os chineses são absolutamente obcecados com a comida, não no sentido de ter algo para comer hoje em dia, enfim, no tempo do mal morreram vários milhões à conta da fome, mas porque realmente aquilo é uma coisa que lhes dá muito prazer, a mesa.
José Maria Pimentel
Sim, e outro exemplo disso, que eu não me lembrei à bocado, que é se calhar até o exemplo mais paradigmático disso dos dias de hoje, são aqueles programas de cozinha, programas de culinária que existem na televisão, seja aqueles de fazer receitas à antiga, seja aqueles mais recentes, que são concursos na prática, são muito bizarros num certo sentido, porque o principal estímulo sensorial que aquilo dá, tu não tens acesso. Exatamente. É de verdade, não é como programa de música que tu estás a ver, estás a ver e ouvir, ali tu não... O principal estímulo, quer dizer, tens acesso se fores replicar aquela receita, mas eu aposto que 99,9% das pessoas não o faz, né?
Ricardo Dias Felner
Não, não, embora, enfim, haja programas e programas. Se calhar os programas de, sei lá, 24 Kitchen da tia Cátia há esse interesse, para saber, porque são coisas mais básicas, mas o Masterchef acredito que não tem a ver com replicar receitas. E há outro mundo que escapa à televisão, que é o mundo dos canais de comida no YouTube.
José Maria Pimentel
Há canais de comida no YouTube, há tudo.
Ricardo Dias Felner
Há, mas com muitos melhores. Eu, por exemplo, neste momento estou viciado a ver canais do YouTube de imagens, sem som, sem narrativa, só a filmar em uma cozinha de uma taberna que se chama Izakaya japonesa e a vê-los a trabalhar, aquilo para mim é uma coisa super relaxante, para além de ser muito interessante, a maneira como eles, sei lá, como eles trabalham o peixe, etc. Os vídeos com mais visualizações do YouTube de comida, e isso é interessante, podemos falar sobre isso mais à frente, eu tenho reparado que é de fritos. Pessoas a fritarem comida sem som. Imagina uma táctica coreana que é muito conhecida pelos fritos e tu estás ali meia hora a ver vídeo só dela a fritar coisas e aquilo tem milhões e milhões de visualizações. E isto tem a ver com outras coisas, nomeadamente com a nossa apetência por comida proteína, que foi caramelizada. É termo técnico errado, do ponto de vista da escola da hotelaria, digamos assim. Mas comida que foi frita ou que foi tostada, tem a ver com as reações de Maillard, que são reações que acontecem quando a comida é assada, grelhada, frita e que soltam aromas que nos apelam bastante.
José Maria Pimentel
Sim, tu falas muito disso no livro.
Ricardo Dias Felner
É impressionante, é impressionante. É aquele efeito quando passas, enfim, se não fores vegetariano, quando passas ao pé de uma hamburgueria, aquele cheiro da carne.
José Maria Pimentel
Sim, é o tostado antes de, claro, queimar, não é?
Ricardo Dias Felner
Pois, eu por acaso às vezes até gosto menos de bocado queimado, uma coisa que não faz bem à
José Maria Pimentel
saúde. Temos que decidir
Ricardo Dias Felner
às vezes entre o prazer e a saúde.
José Maria Pimentel
Exatamente. Eu, de ligar, tenho essa dúvida porque a minha mulher tem muita preocupação de não comer queimado e às vezes nos restaurantes é complicado porque às vezes vem queimado e ao mesmo tempo se estiveres muito preocupado em não ouvir queimado acabas por comer uma coisa que não sabe nada, não é?
Ricardo Dias Felner
Que não sabe tão bem. E acontece quase em tudo, desde a carne ao pão, às pizzas. Uma das minhas pizzarias favoritas de Lisboa, hoje em dia, se chama-se Lupita. E a pizza vem mesmo queimada. Quando eu digo queimada, é mesmo preto, algumas partes pretas.
José Maria Pimentel
São essas que ela manda para trás, não é?
Ricardo Dias Felner
Pois é, certamente. Não dá para ir ao lupiço. Sim, sim, sim. Faz mal.
José Maria Pimentel
Mas agora explica a reação de Maillard, porque é uma questão que tu falas muito no livro e eu sei que é tema muito discutido, enfim, nesta área. Até a propósito do pão, não é? O que é que está em causa ali? Porquê que isso é...
Ricardo Dias Felner
Através do calor, a partir de uma determinada temperatura, há uma transformação dos aminoácidos que, simplesmente, transformam a comida em aromas mais complexos e mais interessantes. Aromas e sabores.
José Maria Pimentel
Portanto, uma parte importante das coisas que nós gostamos, como, sei lá, tostas, hambúrgueres, fritos, vêm dessa reação? Tem, tem a ver com isso. Tem a ver com várias coisas. E tem a ver com a gordura, no caso dos fritos, não é? A gordura
Ricardo Dias Felner
é mais transmissor de sabores do que é sabor propriamente em si, ok? Tem muito a ver com mami, que é considerado o quinto sabor, embora hoje ainda nos escolas portuguesas ainda não apareça com o reconhecido, que já aparece em praticamente todo o mundo, mas pronto, enfim. E depois tem a ver com doce. Tem sempre a ver com estas coisas, que é doce, umami e também reações de maia. É muito isso que faz as pessoas gostarem das coisas.
José Maria Pimentel
Então, mas espera aí. Boa. Então, era uma das coisas que eu queria falar contigo. A questão da... Eu ia dizer, a questão da e é uma área onde os termos podem tornar bocado fugidivos, não é? Mas chamemos-lhe do paladar, vá. Ou seja, daquilo que nos sabe bem, do sabor. Porque mesmo sabor e paladar não são necessariamente a mesma coisa. Portanto, tu dizias que as coisas que nós tendemos a gostar mais são as que têm...
Ricardo Dias Felner
Doce. Doce. Começa desde logo por causa do leite materno, é uma questão biológica. Nós nascemos com essa aptidão por uma questão de sobrevivência.
José Maria Pimentel
Portanto, os gostos básicos são doce, salgado.
Ricardo Dias Felner
Doce, salgado, ácido. Há também o umami, não é? E não gostamos de amargos. Repelimos os amargos também por uma questão de sobrevivência na natureza. Às vezes nós embirramos muito com os miúdos que não gostam da sopa de grelos ou alguma coisa. É absolutamente natural porque a maior parte das coisas que nos fazem mal e que nos matam na natureza são amargas. Sim, sim, sim. E portanto, há esta questão. O umami... O
José Maria Pimentel
que é o umami?
Ricardo Dias Felner
É isso. O umami é... Às vezes quando falamos em umami as pessoas pensam que é algo abstrato. Não, é uma coisa completamente mensurável. É ácido glutâmico, sobretudo isso, ácido glutâmico, e depois tem uma componente também de inozinados, mas está perfeitamente contabilizado que ingredientes têm mais umami e menos, sei lá. Tomate maduro tem imenso umami, cogumelos têm imenso umami, carnes processadas, Por isso é que gostamos tanto de bacon, chorizos, etc. Tem imenso umami.
José Maria Pimentel
Mas que é o quê? Consegues descrever em palavras? Não deve ser fácil.
Ricardo Dias Felner
Isso é mais difícil. É uma sensação de sentir-se o palato cheio.
José Maria Pimentel
Há uma coisa bizarra a propósito disso. É estranho ver sabor tão importante para o qual nós não tivéssemos já uma palavra comum. Porque nós temos para os outros quatro.
Ricardo Dias Felner
Mas temos, é umami.
José Maria Pimentel
Está bem, mas é uma palavra que nós não usamos.
Ricardo Dias Felner
Mas vamos começar a usar.
José Maria Pimentel
Sim, mas como é que historicamente, isso é paradoxo, como é que historicamente não existe...
Ricardo Dias Felner
É relativamente recente.
José Maria Pimentel
Havia menos na comida que nós consumíamos antigamente, é isso?
Ricardo Dias Felner
Não, não, não. Sempre existiu. Então como é que não havia uma forma? Foi reconhecido por investigador japonês já no século XX, finais do século XX.
José Maria Pimentel
Desculpa estar a insistir neste ponto, mas é uma dúvida que tenho. Como é que a cultura não reconheceu esse sabor se ele existia? É estranho porque os outros quatro não precisaste ter ciência para reconhecer como é que é o amargo, o ácido, o doce e o salgado,
Ricardo Dias Felner
não é? Eventualmente porque foi estudado mais tarde, porque não é tão direto, tão imediato, não é? Mas, por exemplo, de certeza que já ouviste muito falar sobre MSGs, aquele pozinho que os chineses põem na comida. Sim. Isso é umami.
José Maria Pimentel
Isso é glutamato monossódico, que na
Ricardo Dias Felner
verdade é umami sintetizado.
José Maria Pimentel
Com muito má fama, em grande parte injustificado.
Ricardo Dias Felner
Com muita má fama, se chamarmos a ginomoto, que é a palavra dos japoneses, já tem melhor
José Maria Pimentel
fama. A história da má fama do MSG é uma história engraçada, por acaso, que é em grande medida injustificada. Mas curioso. E as
Ricardo Dias Felner
pessoas vão aos chineses e dizem, ai, estou mal disposto, porque de certeza pisaram muito pozinho na comida e, enfim, às vezes é só porque beberam três galafas de vinho. Nunca ninguém culpou o vinho, não é? Sim, até só porque eu sou grande fã da cozinha chinesa e, portanto, tenho sempre a tendência para defender a cozinha chinesa.
José Maria Pimentel
Também queria falar contigo sobre isso. Agora estávamos a falar só dos cinco sabores, não é? Mas a nossa apreciação da comida é mais do que isso. Isso é que é interessante, que tem a ver... Enfim, sem estar aqui, provavelmente, a mergulhar na ciência por trás disso, mas é interessante até com base na tua experiência. É evidente que a nossa experiência com a comida vai muito para o lado disso. Tem a ver com a textura, tem a ver com a temperatura, tem a ver com
Ricardo Dias Felner
o equilíbrio, a harmonia
José Maria Pimentel
e depois tem a ver com o olfato, não é? Ou seja, grande parte da nossa percepção de sabor vem do olfato, não é?
Ricardo Dias Felner
Completamente. A forma mais simples de tu percebes isso é quando estás constipado e a comida não te sabe nada.
José Maria Pimentel
Ou basta tapares o nariz e comer, não é? Ou basta tapares o nariz e comer. É uma experiência engraçada que eu só fiz muito tarde, curiosamente.
Ricardo Dias Felner
É muito impressionante. E o outro sentido que afeta muito a nossa sensação da comida são os olhos. Qualquer pessoa que já tenha feito, por exemplo, uma prova cega de vinhos, mas cega a sério, por exemplo, se em vez da cor do vinho que estás a beber. Nós achamos que distinguir vinho branco e vinho tinto e vinho rosé é uma coisa extremamente evidente e não é assim tão evidente em alguns casos, atenção. Quando tu tapas os olhos é que percebes isso. Mas há muitas outras experiências de comida com os olhos tapados que são impressionantes.
José Maria Pimentel
É incrível. Basta fazer esse exercício em casa até de... Se estiveres com mais alguém a pedir para te dar qualquer coisa na boca, com os olhos fechados, aquilo é muito mais difícil do que pareceria à partida, reconhecer até coisas básicas.
Ricardo Dias Felner
Muitas coisas básicas. Enfim, por exemplo, nas carnes, se fores pagar algumas carnes mais exóticas, parece tudo frango. Nós achamos que é sempre tudo frango porque tem sabor mais neutro. Há muitos estudos sobre isso, na área da gastrofísica, com resultados impressionantes e daí que o marketing da indústria alimentar seja uma coisa tão poderosa e com efeitos tão marcantes.
José Maria Pimentel
E até coisas engraçadas, presumo que tenhas esta experiência também, se for a comer uma pizza, estás a falar de pizza, se for a comer uma pizza à mão ou de faca e garfo tem sabor diferente. Para mim pelo menos tem sabor diferente.
Ricardo Dias Felner
Eu por acaso acho que já não como pizza de faca e garfo há demasiado tempo para me lembrar dessa diferença. Sim, normalmente eu sou...
José Maria Pimentel
Sou senobre. Depende da ocasião.
Ricardo Dias Felner
O meu sogro descasca camarão daqueles camarões pequeninos de espinho de faca e garfo. Não consegue comer de outra maneira. Eu sou bocadinho o contrário. É tudo à mão.
José Maria Pimentel
Mas vais experimentar então comer de faca e garfo. Eu acho que vais notar alguma diferença. Ok. Parece estranho isto, mas...
Ricardo Dias Felner
Sim, sim, sim, sim. E tu vais experimentar comer caril com as mãos. Se é que não fizeste ainda.
José Maria Pimentel
Já fiz com... Não era bem caril, num restaurante de Etiúbe. Provavelmente era caril também. É uma espécie de... Com aquela... Não é pão pita, não é? Mas é assim uma coisa do género.
Ricardo Dias Felner
Ah, mas não foi com arroz?
José Maria Pimentel
Não, não, eles têm... Foi num prato grande que tem na base...
Ricardo Dias Felner
É flatbread, pão achatado.
José Maria Pimentel
É flatbread, sim, sim, muito... Meio esponjoso. E aí tu vais tirando bocados de pão e comendo. Sim, sim, sim. Uma experiência engraçada também.
Ricardo Dias Felner
Mas aqui em Lisboa, se tu fores, por exemplo, ali à rua do Benformoso, à Pé-do-Martin, onde há vários restaurantes do Indo-Austão...
José Maria Pimentel
É a rua com mais nacionalidades da Europa, não é?
Ricardo Dias Felner
Não tanto, porque a grande maioria das pessoas que estão ali são do Bangladesh. As pessoas pensam que há ali muitos indianos e nem tanto assim. Há de facto muitos povos do Indo-hostão, mas a grande maioria é do Bangladesh, são bem cálias. Mas aí há alguns restaurantes do Bangladesh, há do Paquistão que eu gosto bastante também, onde as pessoas comem o caril com o arroz à mão. E quando tu... Aquilo tem uma certa técnica e já me ensinaram e eu já comi. E de facto é uma experiência diferente de comer de faca e garfo. Como a comida chinesa, não consigo, quer dizer, consegui e consigo, não é? Comer de faca e garfo.
José Maria Pimentel
É a mesma coisa, comer-se com pauzinhos e com faca e garfo, o mesmo prato sabe, a mim sabe diferente.
Ricardo Dias Felner
E tem a ver com as quantidades, não é? Aquela comida está feita, está pensada, está cozinhada para tu comeres naquela porção que os pauzinhos te conseguem fazer levar à boca, ok? E...
José Maria Pimentel
Não está feita para garfo, não é?
Ricardo Dias Felner
Não. Com o garfo tu eventualmente já trazes demasiada coisa à boca e como aquilo está tudo feito para ter muita intensidade, para cada bocadinho saber bastante, é diferente.
José Maria Pimentel
Só para fechar o tema dos fritos, há bocado que não fechamos. Isso é muito engraçado, isso é dos vídeos mais vistos no YouTube. Portanto, a tua tese é... Lembra-me lá. Que estou a gostar de fritos.
Ricardo Dias Felner
O olhar, não é? As pessoas ficam muito tempo a olhar para aquilo porque se imaginam a comer aquilo. Não é pelo resultado estético do filme ou do vídeo. É porque as pessoas estão ali e estão literalmente a salivar e a pensar Ipa, adorava comer aquele bocado de peixe frito.
José Maria Pimentel
E os fritos têm a ver também com a textura, com o crocante, não é? Têm também a ver com o
Ricardo Dias Felner
crocante, diria que sim, mas têm sobretudo a ver com essa questão das reações de manhã.
José Maria Pimentel
Hum, engraçado. E tu estavas a falar agora da cozinha chinesa, que é bom ponto para outra coisa, que eu te queria perguntar sobre, enfim, cozinhas do mundo, chamemos-lhe assim, não é? Quais são para ti, isso é uma pergunta difícil, eu sei, não é? Mas quais são para ti os países com melhor comida? É a China? Já percebi?
Ricardo Dias Felner
Eu sei que a resposta politicamente correta é que não há a melhor cozinha do mundo, não é?
José Maria Pimentel
Claro que há. Claro que há variação de qualidade entre países, não achas?
Ricardo Dias Felner
Acho que não, estou mesmo sinceramente convencido. Estou mesmo sinceramente convencido que não há.
José Maria Pimentel
Não acredito. Nem o inglês teria dificuldade em admitir que a cozinha deles não é nada de jeito.
Ricardo Dias Felner
Não é verdade. Olha, eu fiz essa questão ao crítico de restaurantes do Garden, que é o Jay Rayner, que é uma pessoa de quem eu gosto muito e conheci há uns anos quando eu estava em uma conferência e fomos jantar e eu, no meio do jantar, fiz-lhe essa provocação da cozinha inglesa e ele ficou mesmo ofendido. Ficou ofendido? Ofendido, dizendo que não, isto não é verdade. Mas isso é uma piada
José Maria Pimentel
até entre eles, então.
Ricardo Dias Felner
Sim, é uma piada entre muitos deles, mas não é entre a maioria deles. A maioria deles acha mesmo que a sua cozinha é interessante. E eu às vezes digo às pessoas quando começam a falar sobre a cozinha portuguesa ser a melhor do mundo e esse tipo de pérolos que se fala.
José Maria Pimentel
Sim, tem esse lado que é bocado...
Ricardo Dias Felner
Eu digo sempre que a cozinha portuguesa é a minha cozinha preferida porque eu cresci nela e as minhas memórias estão ligadas a ela, Mas a cozinha portuguesa não é melhor que a cozinha croata. Não é melhor que a cozinha da Georgia. Não é melhor do que a cozinha da Polónia. O que nós podemos dizer é que há cozinhas mais populares no mundo do que outras. Ah, mas isso claro que sim. E estão relativamente bem definidas. Podemos dizer com alguma certeza que a cozinha italiana é a cozinha mais consensual do mundo. E depois podemos dizer que a indiana também é muito popular, que a grega também é muito popular, que a chinesa também é muito popular.
José Maria Pimentel
Então, mas deixa-me perguntar de outra forma. Por exemplo, quais são as cozinhas mais subvalorizadas? Ou seja, quais são as boas insuficientemente conhecidas? Que tu achas que gostam muito mas que não sejam suficientemente conhecidas?
Ricardo Dias Felner
A cozinha da Georgia, estava a falar do exemplo da Georgia, que venho descobrindo. É uma cozinha fantástica, porque ela reúne uma série de, na minha perspectiva, não é? Lá está, depois é uma questão de gosto. Reúne uma série de características que estão ligadas bocado ao Mediterrâneo, que estão ligadas bocado ao Oriente.
José Maria Pimentel
Tem vários sítios, sim, sim.
Ricardo Dias Felner
E eles também são loucos por comida. Mas para todo lado onde eu vou, sítios onde eu não estava à espera de comer bem, eu fico encantado. Eu há muitos anos fiquei numa casa em Londres de uma família da Guatemala. Incrível o que aquela família cozinhava. Incrível. E vais dizer, mas a cozinha francesa é melhor que aquela? A cozinha portuguesa é melhor que aquela? Tenho dúvidas. A gente conhece é mais algumas dessas cozinhas por razões que podemos agora discutir. Pode ser o facto de elas estarem muito difundidas pelo mundo, do ponto de vista de ter restaurantes, comunidades espalhadas pelo mundo inteiro. A italiana é caso desses. Tem muito a ver, muitas vezes, com o marketing que se faz à volta disso e também tem a ver com as políticas públicas que se fazem à volta disso. Exemplo que tu tens é, por exemplo, o que aconteceu com a cozinha dos países nórdicos, que era basicamente motivo de gozo há 30 anos atrás e que hoje em dia é a cozinha que mais influencia os chefes em todo o mundo. E isso aconteceu porque os países nórdicos fizeram, digamos assim, a dada altura, bem, talvez há uns 20 anos, ou talvez bocadinho mais, decidiram criar políticas de promoção da sua própria cozinha e de, não só de promoção, não é? De melhoramento. Uma palavra bocado feia para usar neste contexto, mas investiram muito nisso. O Peru é outro exemplo clássico de uma cozinha que se tornou vista quase como dos expoentes máximos da alta cozinha mesmo, da alta cozinha, e foi feito à custa de dinheiro público e de políticas foi de cima para baixo. Vários jornalistas de comida de Portugal já foram ao Peru convidados pelo governo do Peru.
José Maria Pimentel
Era bocado como se faz com o turismo, não é?
Ricardo Dias Felner
Nós fazemos também isso, mas não na escala em que o Peru faz. Ou que o Peru começou a fazer há uns anos atrás.
José Maria Pimentel
Mas a minha pergunta não era tanto sobre a alta cozinha, digamos assim, porque a alta cozinha de facto, quer dizer, pode ser feita em todo lado, havendo organização para isso, não é? Porque os seres humanos em todo lado têm capacidade criativa para fazer alta cozinha. Era mais sobre as tradições, não é sobre a cozinha tradicional. Eu entendo a tua opinião e acho importante relativizar aquela coisa meia patrioteira que a pessoa às vezes tem de dizer que a comida portuguesa é a melhor da munda, não sei o quê, apenas daqui a alguns anos as pessoas ficaram muito indignadas. Também já não sei crítico àquele inglês que tinha dito que a cozinha portuguesa não era grande coisa. Enfim, isso é tudo claro, é tudo bocado ridículo porque isto tem lado relativo. Agora, a lado, se nós olharmos para a cozinha tradicional dos países, eu acho que é argumentável dizer que há razões para alguns sítios serem melhores do que outros. Por exemplo, terem mais história versus menos história. Estarem em climas mais favoráveis a conseguires na era pré-moderna ter uma variedade de alimentos, ou seja, de matéria-prima muito maior, por exemplo, estar, e este ser o aspecto joga a desfavor de Portugal, quer dizer, joga a desfavor, não, por acaso não joga a desfavor, por causa dos descobrimentos, mas estar, mas jogaria a favor da Geórgia, quer estar ali na confluência de várias culturas, por exemplo, Ou seja, há fatores que tu podes dizer que podem tornar alguns sítios com melhor gastronomia e outros com pior. É curioso. Estou todo a provocar.
Ricardo Dias Felner
Não, não, o que tu estás a dizer faz todo o sentido, mas a realidade trata de mentir. Por exemplo, a questão da existência de muita matéria-prima e muita diversidade. Aparentemente seria fator a favor da culinária de país, mas o que nós vemos é, precisamente, em alguns sítios o contrário. Foi precisamente a escassez
José Maria Pimentel
de matéria-prima
Ricardo Dias Felner
que fez, por exemplo, voltemos à China, onde houve grandes problemas de escassez de matéria-prima. Tudo o que nós conhecemos de técnicas sofisticadas da alta cozinha, como as fermentações, o cozinhar a vapor, outras técnicas que hoje em dia, nos países que estão a liderar o fine dining se fala muito. Sim. Vem tudo aí. Por China já faz há muitas décadas. Porquê? Porque foi obrigada a trabalhar produtos sem sabor e transformá-los. E a fermentação, por exemplo, é caso em que isso acontece. Tu consegues produtos amargos transformar em coisas comestíveis através da fermentação.
José Maria Pimentel
Sim, e é bocado a história da pizza também, estavas a falar bocado disso.
Ricardo Dias Felner
Sabe aquela daí que os artistas dizem que a escassez dá-nos mais criatividade? É isso que acontece em muitos desses países.
José Maria Pimentel
Sim, o teu ponto é interessante, ou seja, há tantas variáveis que é muito difícil perceber da confluência delas todas qual vai ser o produto final. Exatamente. Porque por lado a variedade é boa, mas por outro a falta de variedade ou a escassez estimula a criatividade.
Ricardo Dias Felner
Tornam os povos mais preguiçosos. Dito isto, se quiseres, por exemplo, olhar para o exemplo português, nós temos uma cozinha muito simples. A nossa cozinha tradicional é muito simples, o que não acontece com muitas outras cozinhas. Voltando à cozinha chinesa, é exemplo...
José Maria Pimentel
Sim, a chinesa é muito complexa, muito variada.
Ricardo Dias Felner
Pode ser muito complexa, muitas vezes... Também é país gigante, não é? Muitas vezes muitos ingredientes, muitas vezes muitos produtos pré-trabalhados antes de entrar no prato, com muita antecedência, etc. E a coxinha portuguesa não. A coxinha portuguesa, o valor acrescentado dela não é feijoada, porque a feijoada há em todo mundo, a gente é que pensa que só há cá, ou cozido, há em todo mundo e a gente pensa que cozido é português. É o peixe fresco só com sal e azeite e batata e legumes. Porquê? Porque esses produtos, normalmente, têm tanta qualidade que eles não precisam de mais nada, não é? Mas, se tu fores a uma tasca, e esta é uma das razões pelas quais os turistas não gostam assim tanto da restauração tradicional portuguesa como nós pensamos que eles gostam. Aliás, tu vais a Lisboa e os restaurantes tradicionais portugueses, vais ao salado de presuntos, é dos restaurantes com menos estrangeiros que tu vês ali naquela zona. Engraçado. Mas o que acontece é que quando alguma dessas coisas falha, ou seja, se o peixe não é robalo de mar, mas robalo manhoso que a Táscara serve ali ao almoço. Se o azeite, em vez de ser extra virgem, é virgem que tem mais óleo do que azeitona, óleo vegetal do que a azeitona, acontece muito. Se os legumes não são... Tudo isso se desmorona porque não há ali molho que agarra o prato, não há, percebes? Se tu fosse a pensar, por exemplo, que molhos é que nós temos em geral? Temos muito pouco, molhos nossos que nós fazemos. Mas, molho para a salada, nós nem sequer fazemos o vinagrete, não é? Nós é azeite e vinagre direto com o sal, que não é uma coisa assim tão comum no resto do mundo. Mas porquê? Porque nós estamos a partir do princípio que vai-te ser tudo bom.
José Maria Pimentel
É bocado aquilo que estavas a falar há bocado, não é? A matéria-prima é tão boa...
Ricardo Dias Felner
É, é bocado isso.
José Maria Pimentel
Enfim, tens alguns casos de invenções, como as tripas à moda do porto e tal, mas genericamente foste inventivo a usar diferentes partes do animal por exemplo mas quando usavas determinado produto por exemplo o peixe o peixe fresco é tão bom porque é uma coisa que não existe noutros países do mundo. Há americanos que dizem que não gostam de peixe fresco até comer peixe em Portugal por exemplo porque o peixe que lhes chega lá não tem nada a ver com... Não tem nada a ver. E peixe lá está, peixe só grelhado ou só feito de uma maneira simples, se não for fresco...
Ricardo Dias Felner
Se não for fresco, se não
José Maria Pimentel
for gordo, se não for comido
Ricardo Dias Felner
no tempo certo, os peixes também têm
José Maria Pimentel
tempo certo. Sim, sim, sim, exatamente. Sim, não é só ser fresco, exatamente, bom ponto.
Ricardo Dias Felner
E nós fomos muito ignorantes sobre isso porque, entretanto, começámos a receber peixe de todo lado. As pessoas não têm esta noção, mas estou sempre a repetir isto porque é exemplo que, quando eu soube disto, fiquei bocado chocado. Não se come uma garopa de águas portuguesas em Lisboa. É muito difícil tu encontrares uma garopa das águas portuguesas e tu vais ao mercado de Benfica ou vais ao mercado de Alvalade e ele está cheio de garopas frescas. As garopas são frescas e são boas. Atenção, não parem de comer a garopa, que é peixe belíssimo, mas a probabilidade de ela vir da Mauritânia e não da costa da Caparica é incrivelmente superior ao que a maioria das pessoas pensa. Curioso. E eu estou a dizer da Garopa, mas a grande maioria dos peixes que estão na praça provavelmente não vende porque gosta da portuguesa. Ou talvez se ficassem bocadinho sucivos, mas de uma grande parte.
José Maria Pimentel
Sim, mas percebo, percebo. Porque a maior parte das pessoas nem olha a isso. E convence que é prato, se é peixe comum da gastronomia, a pessoa acha por defeito que ele vai ser capturado aqui ao pé e não é necessariamente o caso.
Ricardo Dias Felner
Mas quem diz o peixe quebrado diz o peixe cozido. Falas com pessoas lá fora. Estava a falar com uma amiga há uns tempos de país nórdico e ela estava a dizer para vocês comem peixe cozido. O país sempre pensa, mas quem é que gosta de peixe cozido?
José Maria Pimentel
Acho que ela tem razão.
Ricardo Dias Felner
Não, eu acho que não. Eu acho que não. Agora, se me disseres que o peixe cozido para ser bom tem que ser grande peixe, eventualmente corte do lado da barriga ou da cabeça e tem que ter grande azeite e sim, e não pode estar sobrecozido,
José Maria Pimentel
que é uma coisa,
Ricardo Dias Felner
é erro muito comum, ou seja, é difícil comer bom peixe cozido, mas quando é excelente é insuperável para mim.
José Maria Pimentel
Deixa-me fazer-te outra pergunta relacionada com esta, ver se consigo sacar-te uma resposta definitiva. Como a pergunta foi enviada por ouvinte, o Bernardo Gonçalves, e acho que encaixa aqui muito bem. Ele perguntava qual é a cozinha, ou seja, de que país mais completa em termos de sensações, ou mais abrangente em termos de sensações. Talvez seja a chinesa, não?
Ricardo Dias Felner
A chinesa tem essa coisa, que é uma coisa que eu adoro quando vou a restaurante chinês, daqueles bons, que é uma coisa que muita gente não gosta, que é aquelas cartas gigantescas. E eu olho para aquilo...
José Maria Pimentel
Eu também não gosto muito porque me cria aquela angústia da escolha, né?
Ricardo Dias Felner
Sim, pois, ficamos muito tempo ali a olhar e muitas vezes os verdadeiros restaurantes chineses, os doces estão misturados com o salgado e, portanto, ainda ajuda a confundir mais as coisas. Mas sim, num bom restaurante chinês tens tudo, tens todas as técnicas, tens fritos, tens ácido, tens ácido e doce ao mesmo tempo. É muito...
José Maria Pimentel
Sim, tens uma variedade de sabor muito grande.
Ricardo Dias Felner
Eu diria que sim, tens razão. Provavelmente a China tem o país com mais abrangência de sensações. Embora a China, atenção, a China é muito grande. Eles próprios dividem a China em oito regiões gastronómicas, digamos assim.
José Maria Pimentel
O Xichuan, por exemplo, que é muito conhecido por causa do picante, é só uma delas, não é?
Ricardo Dias Felner
É incrível. Eu viajei há uns anos para Chengdu, que é a capital da região de Xichuan, sozinhos. Basicamente, sim. E foi mesmo isso que eu fiz. É incrível.
José Maria Pimentel
Mesmo o picante é engraçado. Lá está. A China tem uma grande vantagem porque desde sempre concentrou uma parte razoável da população mundial, portanto é normal que seja uma cozinha muito variada. Tendo em conta que é uma civilização antiga, que seja mesmo era pré-moderna, tinha realmente quinto ou quarto da população do mundo é normal que haja ali uma variedade enorme, mas ao mesmo tempo, mesmo apesar disso é engraçado, tu vês que existe, tu tens desde esses pratos de Szechuan ultra picantes até pratos de uma delicadeza, quase sem sabor no sentido em que são muito leves, é engraçado. A coexistência desse tipo de pratos é curiosa. E depois tem aspecto que eu acho curioso da cozinha chinesa que o ex-livres da cozinha chinesa, ou pelo menos o ex-livres da cozinha chinesa virado para os ocidentais, que é o patapquim, é prato muito diferente do resto da cozinha chinesa, que é curioso. Eu vivi ano na China, portanto eu andei bom tempo a comer comida chinesa. E a única lacuna que eu acho que a cozinha deles tem é não usar forno praticamente. Exceto no prato à boquinha. Aquilo não é bem feito no forno, mas na prática é como se fosse. Que é engraçado, não é? Ou seja, o prato parece outlier, não é? O prato que é o mais conhecido é diferente dos outros todos.
Ricardo Dias Felner
Sim, no sentido aí que não tem muitos molhos, não sei o quê, embora seja bastante mais complexo do que parece.
José Maria Pimentel
Sim, mas é prato de forno, porque eles não têm quase mais nada... Sim, é verdade. Acho eu, enfim, que não quero estar aqui a dizer...
Ricardo Dias Felner
Não, não, tens razão, eles têm pouca coisa de forno.
José Maria Pimentel
São muito mais...
Ricardo Dias Felner
São mais de refrigideira ou de wok. Cozidos ou a vapor. Sim, Sim, sim, sim. Embora muitas coisas, na verdade, não são cozinhadas no wok, são terminadas no wok. Porque depois entra dentro do wok há muita coisa que já teve trabalho anterior, às vezes muito, muito longo. Eu estou absolutamente viciado numa série da Netflix sobre cozinha chinesa que tem uma forma de filmar a comida impressionante. Flavorful Origins.
José Maria Pimentel
Boa. Bem, vou ver e vou abordar a descrição.
Ricardo Dias Felner
A série é incrível. Se tu viveste na China, vais adorar porque também tem paisagens da China. Obviamente que aquilo está... Sente-se que aquilo teve comando superior, digamos, na edição e nos conteúdos, mas...
José Maria Pimentel
Mas também é relativamente inócuo neste caso, não é? Ou seja, a partir de... Sim, sim, sim. Mas pronto, apresenta sempre tudo
Ricardo Dias Felner
como uma coisa muito feliz e melhor coisa do mundo. Mas de facto, tu vês lá coisas que são verdadeiras artesãos, não é? Nós olhamos para frasquinho de molho de soja e olhamos para aquilo como líquido, com bocado de água com uma cor bocadinho mais escura, mas molho de soja bem feito, é processo de lastar, de fermentação. E tem uma série de táticas. E tem muito umami, é uma das razões porque a gente põe naquela ideia, põe-nos molho de soja em qualquer coisa fica bom, uma das razões é isso, é porque está cheio de umami. Mas eles estão sempre muito à procura de umami, os japoneses também. Os chineses e os japoneses sempre tiveram essa essa opção e por isso a comida deles é tão saborosa também.
José Maria Pimentel
Havia outro ouvinte que fazia uma pergunta e realmente eu sempre pergunto em relação a isto, é porquê que nós, na verdade eu não sei se é uma especificidade portuguesa, mas nós em Portugal até muito recentemente não tínhamos restaurantes chineses a sério, ou seja, aqueles restaurantes chineses que nós nos lembramos ali dos anos 90, início dos anos 2000, quando a comida chinesa esteve na moda, não eram bem restaurantes de cozinhas chinesas, não é? Era uma cozinha chinesa ocidentalizada. No fundo, tentou-se corrigir problema análogo ao que tu descrevias dos turistas em Portugal com as tascas portuguesas. Que é os ocidentais, ou os portugueses em particular, não sei, não achavam grande graça a cozinha tradicional chinesa e criou-se aquela coisa que não é bem a cozinha tradicional, é suficientemente exótica para parecer chinês, mas não é bem. Depois que fores comer chinês a sério percebes que não é a cozinha tradicional.
Ricardo Dias Felner
Sim, o que os restaurantes chineses fizeram, por exemplo, o Shopsoy é uma recriação ocidental. Mas não
José Maria Pimentel
é específico de Portugal, pois não? Isso é...
Ricardo Dias Felner
Não, não, não. É transversal,
José Maria Pimentel
quase que inventou o mundo. Sim, sim, eu
Ricardo Dias Felner
diria que terá... Provavelmente o Shopsoy foi inventado num restaurante chinês do Chinatown, no Rau. E depois foi difundido por todo o mundo. Mas sei lá, os indianos fizeram mesmo... Jogou com a tica masala, que se tornou o prato mais...
José Maria Pimentel
O prato mais inglês, como eles diziam a certa altura, não é?
Ricardo Dias Felner
Exato, ou seja, são pratos que o paladar ocidental já, de alguma forma, está habituado.
José Maria Pimentel
Porque comer cozinha chinesa, a sério, é difícil. Eu digo que é difícil, não digo isto a ver a coisa de cima, digo isso porque há processo, ou seja, há pratos que eu tenho dificuldade em comer. E porquê? Porque são texturas estranhas, muitas vezes, por exemplo.
Ricardo Dias Felner
Ok, essa questão das texturas é uma questão muito chinesa. Os chineses dão muito mais importância à textura. Eu diria que, por exemplo, os portugueses não dão. Sim. Na nossa comida, uma das críticas que os turistas muitas vezes fazem, não diretamente, mas nos fóruns da internet, etc, é que é tudo mole. Não temos essa coisa. Os chineses, por exemplo, uma das coisas que eles adoram é uma das coisas que nós testamos, que é cartilagens. Exatamente. Patas de galinha.
José Maria Pimentel
Sim, eles comiam imenso disso.
Ricardo Dias Felner
Adoram patas de galinha. Patas de galinha tem muito mame também, mas é sobretudo por aquilo ter aquela textura estranha. A sopa de barbatar no tubarão. Há razões de ordem clínica, que eles são muito sensíveis a isso, não é? Diz-se que do ponto de vista da líbido, sexual...
José Maria Pimentel
Ah, tem uma série de mitos
Ricardo Dias Felner
em torno disso. Mas também tem a ver com o aspecto da própria textura. Não sei se tens ideia disso, mas uma sopa de barbatana de tubarão a sério, com barbatana de tubarão, é uma coisa para custar mais de 100 euros, bem mais.
José Maria Pimentel
Eles até têm, presumo que continuem a ter, problema de caça furtiva de tubarões por causa disso. Exato. Porque é tudo atrás das barbatanas de tubarão por causa precisamente do preço que se paga por esse prato.
Ricardo Dias Felner
Voltámos à pergunta do que é que nos faz gostar de uma coisa. Há uma coisa que nós não falamos aqui. Aliás, há duas coisas que nós não falamos aqui e que entram muito nisto, evidentemente. Uma é a nossa memória. Nós vamos gostar aos 35, 45 anos de coisas que nos serviram quando éramos pequenos. E isso está mais ou menos provado. Há estudos que provam aquela velha dificuldade com as crianças a comerem coisas que não gostam, se os pais as devem forçar a comer ou se não devem forçar a comer. Lá em minha casa, eu sempre forcei a comer, nem que fosse bocadinho. É bocado aquela coisa de, não gostas, comes menos, mas tens que experimentar. E há estudos que mostram que se tu fizeres isso, se os miúdos comerem mesmo coisas que não gostam até aos 18 anos, mais tarde na vida eles vão gostar e vão comer e até se calhar vão adorar. Tenho exemplo do tomate, que era uma coisa que eu não gostava quando era miúdo, mas a minha mãe nunca tirou o tomate das coisas, ou mesmo da cebola do refogado.
José Maria Pimentel
Sim, a cebola eu acho que a maioria dos miúdos nós são grande graça.
Ricardo Dias Felner
Sim, também não gostava de feijão verde, mas fui obrigado a comer e hoje em dia gosto.
José Maria Pimentel
Na verdade, o exemplo da nossa reação, ou seja, da reação dos ocidentais à comida oriental, à cozinha chinesa neste caso, é exemplo disso. Na verdade, é porque tu não foste habituado a comer aquele tipo de comida e, portanto, causa-te estranheza. Exatamente. Causa-te uma espécie de repulsa inicial que tu tens que tentar contornar deliberadamente.
Ricardo Dias Felner
Muita gente pergunta, então mas nós nascemos com esse gosto pelas coisas mais doces, mas então porquê é que eu gosto de grelos amargos? Tu gostas de grelos amargos porque tu comeste muitos grelos amargos, Mas diria que tu não és a norma, não é? Mas o facto de teres feito isso muitas vezes, tornou isso uma comida apetitiva para ti, não é? Ou seja, o hábito.
José Maria Pimentel
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Ricardo Dias Felner
Enfim, esta está mesmo muito bem estudada, que é o picante. Eu fiz uns workshops de picante durante a...
José Maria Pimentel
Tu és grande fã de picante, não é?
Ricardo Dias Felner
Sou grande fã de picante e cultivo as minhas malaguetas e faço as minhas moças, etc. E tem sempre esta conversa com as pessoas quando elas me dizem que eu não aguento nada picante. Enfim, eu sei que há pessoas que são mesmo alérgicas, têm reações muito violentas, mas a grande maioria das pessoas, quando eu fazia esses workshops, dizia, vamos começar hoje e dentro vamos ter aqui programa de treinos, digamos assim, e eu garanto que tu ao final de três semanas estás a comer picante, mas picante a sério e estás a adorar, porque é mesmo treino. E se tu faltas aos treinos, e acontece comigo também, Se eu fico três semanas sem tocar em picanes, se eu for, por exemplo, ali ao Tentações de Goa, na Moraria, que é restaurante que eu gosto muito, comer lá o chouriço de goesa vai ser duro.
José Maria Pimentel
E qual é a vantagem do picane?
Ricardo Dias Felner
Há muita literatura sobre isso, mas há coisas mais científicas e menos científicas. Há uma coisa que parece evidente, é que a capsaicina, que é a substância que está na malagueta, aumenta o metabolismo, quando tu comes e tu sentes isso, começas a suar. Essa sensação física, para mim, é muito prazerosa. É como se... É engraçado. Quando tu te picas muito, não é? É como se tivesse uma descarga de adrenalina. Aquela coisa de... Ah, eu não gosto de picante exagerado. E eu assim... Não, eu gosto de picante exagerado. Porque é esse picante exagerado que me dá essa vibração.
José Maria Pimentel
Sim, é quase como fazer desporto radical,
Ricardo Dias Felner
em certo sentido. É bocadinho, sim.
José Maria Pimentel
Porque na primeira derivada da coisa, digamos assim, ou seja, no aspecto superficial, até parece uma coisa má, não é? Porque eu tenho uma relação nem boa nem má com o picante, Ou seja, não tenho nada contra o picante, mas estou sempre a contrariar os meus amigos, como estou a fazer agora contigo, fãs de picante, porque há lado bocado absurdo da coisa, não é? Porque parece que é só para te fazer sentir mal, desagradável, não é? Porque, e de facto, o efeito imediato não é o efeito agradável. Estás à mesa e de repente começas a suar e começas a ficar... Quer dizer, não é uma coisa que a pessoa gosta. E portanto, tem lado bocado... É caricato nesse sentido, não é? Estou aqui... Estou só a falar do lado picante. Há o lado do acrescentar sabor, que de facto os condimentos têm, não é? Mas aqui estou a isolar essa questão, não é? Estou só a focar-me na parte do... Picante pelo picante, digamos assim.
Ricardo Dias Felner
Mas é que são duas coisas diferentes, ou seja, a capsaicina não tem sabor, o picante
José Maria Pimentel
não tem sabor. É isso mesmo, exatamente.
Ricardo Dias Felner
Aliás, os portugueses não dão importância, não dão grande importância ao sabor da malagueta porque a nossa malagueta, que é aquela malagueta pequenina, não tem grande sabor. Se tu fores provar variedades de malagueta, por exemplo, da América do Sul ou da América Latina, que são coisas fabulosas do ponto de vista aromático, sabem, cheiram tal perse. Nós estamos interessados naquela dosezinha, na dose mesmo do picano, não estamos interessados no sabor. É mesmo só para isso, mas eu percebo o que é que tu estás a dizer.
José Maria Pimentel
Mas eu gosto de...
Ricardo Dias Felner
Nós quando corremos também se chupamos e gostamos de correr.
José Maria Pimentel
Eu gosto da tua honestidade sobre o tema, porque a maior parte das pessoas refugia-se no sabor. Dizem, não, não, é porque dá mais sabor. E não é, claramente, não é? Ou é só até certo ponto, não
Ricardo Dias Felner
é? Isso é como as bebidas alcoólicas sem álcool. Não seria a mesma coisa, não
José Maria Pimentel
é? Sim, sim, exato. Não, enquanto, por exemplo, a cerveja sem álcool tinha sabor muito diferente, a pessoa também se podia refugiar no sabor. Agora, eu recentemente provei, fiz com a minha mulher o desafio de fazer mês sem beber álcool, portanto, faltávamos de beber cerveja sem álcool e explorar o mercado e há cervejas já muito boas, ou seja, já não dá para te refugiar na questão do sabor. É mesmo do álcool.
Ricardo Dias Felner
Sim, é verdade, é mesmo do álcool.
José Maria Pimentel
Há umas que já são muito, muito parecidas.
Ricardo Dias Felner
Atenção que o álcool tem efeito muito interessante que está também estudado, que torna o paladar mais redondo. Repetidamente, os vinhos que ganham concursos em prova cega são vinhos com muito álcool. Redondo é a sensação de harmonia. Parece contrassenso, porque nós olhamos para o álcool como uma coisa agressiva, mas não. Enfim, se bebes whisky, sim.
José Maria Pimentel
Redondo no sentido de comer-te as arestas, para usar essa analogia. De facto, se calhar o álcool, isso deve ter uma explicação química, se calhar como que une os vários aromas e os vários... Engraçado, por acaso fiz episódio recentemente sobre vinhos e não sabia dessa questão dos vinhos com mais álcool terem... O que explica, não é a ter ser a única coisa, mas há de contribuir para explicar a tendência de aumento do volume de álcool nos vinhos ao longo das
Ricardo Dias Felner
últimas décadas. E agora mudou com a moda dos vinhos naturais. Sim, mas ainda é uma coisa
José Maria Pimentel
de nicho, não é?
Ricardo Dias Felner
É nicho já relevante e é sobretudo nicho relevante entre pessoas influentes no meio da gastronomia.
José Maria Pimentel
Sim, faz sentido. Ou pelo
Ricardo Dias Felner
menos dentro da gastronomia mais de vanguarda.
José Maria Pimentel
Sim, exato. E no sentido contrário, países que acham que estão sobrevalorizados, cuja cozinha está sobrevalorizada?
Ricardo Dias Felner
Sim, mas aí lá está. Aí sim. Talvez te apanhe. Não, não, aí sim, porquê? Por causa do marketing, não é? Sei lá, eu, por exemplo, falando em fine dining e em gastronomia de vanguarda, no fundo, o que é que os críticos andam a falar pouco por todo o mundo. E a relevância que é dada à Dinamarca, por exemplo, em termos gastronómicos nos últimos 20 anos, que tem a ver muito com a existência de único restaurante em Copenhague chamado Numa, é absolutamente excessiva a meu ver. É verdade que eles foram reflexionários em muita coisa, mas...
José Maria Pimentel
Era como o El Bulli... Era como o
Ricardo Dias Felner
El Bulli, sim. Foram os dois restaurantes mais influentes da alta gastronomia dos últimos 30 anos.
José Maria Pimentel
Pois tu não achas, Por exemplo, passaria eu a dizer, não tens que ser tu a comprometer-te, não achas que a cozinha italiana está bocado sobrevalorizada? Eu gosto imenso de cozinha italiana, mas primeiro é difícil não estar de tão valorizada que está e ao mesmo tempo, e aqui não estou a falar do fine dining, estou a falar da cozinha normal, e ao mesmo tempo a cozinha italiana tem lado, ou a relação dos italianos com a comida que é muito conservador. É bocado o seu forte e o seu fraco, não é? Porque ao mesmo tempo é aquilo que assegura determinados estándares, mas provavelmente é bocado limitativo em termos criativos.
Ricardo Dias Felner
É verdade, mas é uma forma de sucesso. Lá está. Todos os inquéritos mundiais de opinião sobre as melhores cozinhas do mundo, a Itália está sempre nos primeiros três lugares, quase sempre em primeiro. E portanto aquilo funciona, é bocado isso, não é preciso mexer. Na Dinamarca, que tem algumas limitações de produto, eventualmente por causa do clima, etc. É preciso mexer muito.
José Maria Pimentel
É preciso serem criativos.
Ricardo Dias Felner
É preciso serem muito criativos. Tem lado estético também muito forte, e lado de se associarem a causas ideológicas também muito forte.
José Maria Pimentel
Ah, é a Cozinha dinamarquesa?
Ricardo Dias Felner
Sim, sobretudo, digamos, os restaurantes que estão no universo do tal Noma, que ganham por diversas vezes o prémio do melhor restaurante do mundo de guia chamado World's 50 Best, que é bastante influente. Sim, causas, sei lá, causas das mulheres, dos animais, por exemplo, dos vinhos biológicos, foram eles os primeiros, digamos, dentro dos tubarões mundiais a fazer uma carta só com vinhos nesse estilo.
José Maria Pimentel
E cozinha vegetariana também?
Ricardo Dias Felner
Mais cozinha vegetariana, muito cozinha sazonal.
José Maria Pimentel
Sim, assim, é uma tendência já... Cozinha perto. Sim, local.
Ricardo Dias Felner
Eu diria que é uma tendência já dos nossos avós, que agora é claro.
José Maria Pimentel
Claro, sim, é back to the basics em certo sentido. Exatamente. Qual é a tua visão da cozinha vegetariana a propósito?
Ricardo Dias Felner
É uma visão boa desde que a cozinha vegetariana percebeu que tinha uma grande fragilidade e aprendeu a compensá-la. E a grande fragilidade é, voltamos, falta de umami.
José Maria Pimentel
Ah, curioso.
Ricardo Dias Felner
É. Os vegetais têm muito pouco umami. Então o que é que os cozinheiros modernos, vegetarianos, fazem? Vão buscar todas aquelas coisas que nós falámos que trazem umami. Tomates, fermentados, cogumelos, trabalham muito bem os frutos secos e depois trabalham também as gorduras como difusor de sabor, trabalham as reações de Maiar, tu ves, antigamente não vias, eu lembro, prato vegetariano era assim uma amálgama de verduras. Hoje em dia vejo coisas queimadas, tostadas, muitas coisas tostadas, muitos legumes tostados. Não vias uma couve tostada, grelhada.
José Maria Pimentel
É Engraçado que estás a dizer isso, porque esse é o outro exemplo de que as restrições podem jogar a favor da criatividade. Ou seja, o facto de não poderes usar carne, no início é uma limitação, não é? E de facto há muita, e continua a haver, acho que muita cozinha fasteireira é bocado desenchabilha, que é isso que estás a dizer, é quase uma espécie de refogado, umas coisas salteadas mas depois não tem grande graça ou às vezes era muito compensada com muita gordura ou então tinha hidrato a mais e tal, mas depois a partir de certo ponto, tu com essas restrições, uma vez passada esta dificuldade inicial, podes ser criativo e fazer coisas que não havia antes, não é? E há prazeres muito interessantes.
Ricardo Dias Felner
Sinto que essa criatividade está balizada pelo umami. Parece muito criativo, mas na verdade aquilo às vezes também se está a transformar numa forma. É como é que tu trazes umami para os pratos.
José Maria Pimentel
Sim, mas achas que é mesmo deliberado? Não, não. É mesmo deliberado. É mesmo deliberado. É mesmo deliberado. É mesmo deliberado. Nunca tinha ouvido isso.
Ricardo Dias Felner
É mesmo deliberado. E tu vejo, por exemplo, nos restaurantes de michelin, onde tu comes, muitas vezes, porções muito pequeninas, que têm que ter uma grande concentração de sabor, para a pessoa não dizer, epá, isto é tão pequenino e não sabe a nada. Tu vejo ingredientes com umami sobre ingredientes com umami sobre ingredientes com umami. Engraçado. Porque o chefe sabe perfeitamente. Onde é que isso se vai buscar?
José Maria Pimentel
Quais são, na tua opinião, os melhores restaurantes vegetarianos em Portugal? Ou em Lisboa, se for mais fácil?
Ricardo Dias Felner
Olha, que eu gosto bastante é o Sr. Uva. Não é português, é de uma cozinheira do Canadá. Todos os pratos dela têm imensos elementos, têm imensas técnicas, são todos muito trabalhados. E muito no sentido de trazer isso. Trazer sabor, trazer umami para o prato e textura também. Falavas à porcaria da importância da textura. Tudo está feito para não ser monte de alface.
José Maria Pimentel
E na verdade, porquê é que é tão difícil fazer comida vegetariana saborosa? É a mesma questão do umami? É, é a mesma questão do umami. Porque a carne e a proteína tem muito umami.
Ricardo Dias Felner
Sim, tem muito umami, é isso mesmo.
José Maria Pimentel
Nunca tinha pensado nisso, porque quer dizer, à partida tu pensas, claro que a carne é importante, mas os pratos têm outros ingredientes, não é?
Ricardo Dias Felner
São as duas coisas, ou seja, o umami e as reações de maiar. Que acontecem na proteína. Outra coisa que tu vês também é ir em buscar muitas leguminosas. Exato, tem proteína. Tem proteína, tem mais sabor do que folhas verdes, por regra, e frutos secos. Eu adoro essa mistura.
José Maria Pimentel
Lá está a textura outra vez também, o crocante dos frutos secos.
Ricardo Dias Felner
Quase sempre tostados também.
José Maria Pimentel
Nós já falamos bocado da cozinha portuguesa, mas eu acho que tu deves ter uma opinião engraçada sobre pratos ou alimentos da cozinha portuguesa subvalorizados, ou seja, coisas que nós não valorizamos devidamente. Vou-te dar exemplo. Para mim, embora nós consumamos muito, não é valorizado devidamente é a sopa. Ah, boa, boa, boa. Primeiro, a sopa como nós a temos é uma coisa... É rara, é rara. É verdade. E ao mesmo tempo, nós somos muito... Tu falas disto no livro, nós somos muito descuidados e há aquela coisa... Tu falas no livro e a mim irrita-me, eu rimo quando passei por isso porque irrita-me imenso. Porque tu vais num restaurante e perguntas-te, sopa é de quê? Legumes. Não é de legumes, é de quê? Porque dentro dos
Ricardo Dias Felner
legumes... Legumes há muitos, não é?
José Maria Pimentel
São sopas muito boas e muito más, não é? Havia restaurante onde eu ia que eles faziam a sopa desde manhãzinha, desde as 8 da manhã e aquilo basicamente
Ricardo Dias Felner
estava a ferver
José Maria Pimentel
e ela quase não precisava de varinha mágica, ou seja, eles diziam que não precisava, eu admito que pudesse precisar de toque, mas era praticamente nada. E era, eu acho que era a melhor sopa que eu já comi e teria a ver com a matéria prima, mas também com a maneira como foi cozinhada. Sim, é verdade. E de facto, é uma boa sopa, é uma coisa ótima. Não enche estádios, não move multidões, mas é uma coisa boa.
Ricardo Dias Felner
A sopa é de facto uma coisa distintiva nossa, acho eu. A sopa de legumes. Não é que sejamos os únicos a ter sopa de legumes, os italianos têm, os franceses têm, mas com essa, neste estilo...
José Maria Pimentel
E com essa importância à refeição também. Com pedaços,
Ricardo Dias Felner
com esta regularidade, não é? Exato. Em minha casa, eu como sopa todos os dias. Não há problema. Porque, na verdade, isso acontece por uma razão, que há uns tempos estava a falar com uma pessoa e estava a dizer nós não temos pratos de vegetais, é uma pobreza franciscana, a cozinha é tradicional portuguesa. Esparregado, enfim, sempre nos dois ou três são sempre os mesmos. E ele dizia-me bem que não, não, os nossos legumes estão na sopa. Os nossos pratos de legumes são as nossas sopas. E faz muito sentido. Tem problema do ponto de vista, diria eu, nutricional, que é que estás a comer uma coisa muito processada, que ferveu durante muito tempo, portanto alguma coisa se vai perdendo aí no caminho.
José Maria Pimentel
Mas também facilita a absorção, portanto, no final da equação não sei o que é que ganha. Não sei mesmo, estou a dizer.
Ricardo Dias Felner
Eu tenho ideia que se perdem algumas vitaminas, etc. Mas, de facto, é aí que estão os nossos verdes, que está a nossa força. Dos legumes, e tu falavas da importância do produto. O caldo verde. O caldo verde é uma sopa que eu adoro. É de uma simplicidade. Aquilo só precisa de facto de boa batata, mas a batata tem que ser mesmo boa. Se a batata não for boa, qualquer vez já não presta. Se a couve for muito velha, estiver muito ressequida e não estiver bem cortada, também já não presta. Mas aquilo é, batata, se quiseres podes pôr cebola, se quiseres podes pôr alho, mas basicamente é batata, couve, azeite e chouriço. São três ou quatro coisas que, se forem de qualidade, para a fazenda, uma sopa única, como não comemos em mais nenhum do mundo. Não sei quem é que foi jornalista, agora estou a me lembrar, João Vila-Lobos, inquérito nas redes sociais sobre a sopa que os portugueses preferem. Qual é a tua sopa preferida? Engraçado. E ele punha, era o caldo verde, era a canja. Bem, eu fui a canja de longe, o que para mim...
José Maria Pimentel
A sério? É aquele que eu menos gosto, curioso.
Ricardo Dias Felner
Eu também. E causou muita surpresa para mim, para além de não ser a que eu mais gosto, causou-me bastante surpresa porque na verdade não é uma sopa do nosso estilo
José Maria Pimentel
de cozinha. Porém.
Ricardo Dias Felner
É caldo de carne que tu apanhas muito mais na Ásia, por exemplo. Por exemplo, basta veres os Pho, Vietnamita ou mesmo o Ramen. São sopas translúcidas de caldo, mas infinitamente mais complexas e mais...
José Maria Pimentel
Sim, a canja não tem graça nenhuma.
Ricardo Dias Felner
Eu gosto de uma canjinha, mas quer dizer, é algo que eu faço se não estiver doente.
José Maria Pimentel
Sim, é isso, é isso. Por alguma razão é sopa para quem está doente.
Ricardo Dias Felner
Exatamente. Mas é,
José Maria Pimentel
põe no resto da sopa legumes e ir toda para o mesmo saco, não é? Porque há muita variedade no meio, não é?
Ricardo Dias Felner
Bem, mas sopas de legumes são muito maltratadas pelos restaurantes, atenção, não é? Batata a mais, às vezes as texturas vêm que vêm tudo esbordalhado, sobrecozido.
José Maria Pimentel
Não, aumente batata a mais, esse é o clássico.
Ricardo Dias Felner
Sim, arrendo mais.
José Maria Pimentel
E ali eu tenho problema de branding, não é? Porque tu não tens maneira quase de nomear as várias versões, não é? É como se fosse tudo a mesma coisa, não é? Como se fizesse tudo parte do mesmo conjunto de legumes misturados. Tipo é só o pato. Exato. Os legumes quaisquer que eles sejam, não é? Sim, sim, sim. Mas as coisas misturadas, não é? Sim, sim, sim, é verdade. E mais? Mais alimentos que tu achas que subvalorizamos?
Ricardo Dias Felner
Eu não sei se subvalorizamos, sei que é algo que nos distingue em todo o mundo, é reconhecido, mas não sei se é valorizado, que é o bacalhau. O bacalhau salgado, de facto, não somos os únicos a comer no mundo. Os espanhóis comem uma versão soft, digamos assim, menos curada. Em Itália também se come uma versão diferente, na Noruega também, mas não tem nada a ver com a nossa tradição do bacalhau salgado, que é uma tradição esquisita, porque nós somos país marítimo, não temos bacalhau na nossa costa e vamos...
José Maria Pimentel
É muito bizarro assim, sim.
Ricardo Dias Felner
Sim. Para mim é extraordinário E quando me perguntam qual seria o último prato que comerias, ou qual é o teu prato favorito, é bacalhau cozido. É estranho, não é? Cozido e ainda por cima. É bacalhau cozido e ainda por cima.
José Maria Pimentel
Sabes que eu tenho uma teoria, que tu vais discordar de certeza, e provavelmente com razão, que eu gosto de dizer para provocar as pessoas, que é, às vezes eu tenho que ter cuidado para formular isto bem, todos os pratos de carne ganham a ir ao forno. Ou por outra, não há nenhum prato de carne que não fique melhor indo ao forno, seja ser todo feito no forno, seja terminado de fazer no forno. Eu digo isto, normalmente as pessoas discordam e eu uma vez dizia isto em família, dizia de certeza que o cozido à portuguesa fica melhor se for posto bocado no forno. E eu disse, não, que estupidez. E houve dia que se pôs no forno para aquecer, porque aquilo tinha sido comprado.
Ricardo Dias Felner
Faz sentido.
José Maria Pimentel
E ficou ótimo. Mas a teoria deve estar errada a atenção, não tenho grandes pretensões com essa teoria.
Ricardo Dias Felner
Não, a teoria tem provavelmente a ver com, lá está, o forno pode trazer purosso sabor, não é? Exato, pois. Desidrata, portanto concentra mais os sabores das coisas. Agora se usares demais também te vai secar a comida.
José Maria Pimentel
Claro, claro, claro. É toque. Sim, mas por acaso não tinha pensado...
Ricardo Dias Felner
Eu tenho uma outra teoria sobre o forno que às vezes me perguntam eu estou a dar uma receita de forno, não sei o quê, mas... Mas quantos graus? E eu quando não tenho bem a ciência... 180 graus, qualquer coisa a 180 graus nunca falha.
José Maria Pimentel
Pois não, 180 graus é ali o compromisso, não é?
Ricardo Dias Felner
A maior parte das coisas ficam bem a 180 graus.
José Maria Pimentel
Acima disso, aos 200 já há riscas de queimar. Pode estar a queimar. Sim, sim, sim. Depois há o problema que além da qualidade do forno, os 180 graus poderão ser reais, mas isso é outra questão. Se o forno for manhoso, os 180 graus na prática são para aí 150 ou abaixo disso. Mas esse é problema mais da ordem prática do
Ricardo Dias Felner
que praticamente isso.
José Maria Pimentel
Há outro produto nosso que eu acho que nós não valorizamos devidamente, e tu também falas do livro, que são as conservas. Que são muito mais valorizadas em Espanha, por exemplo, embora nós tenhamos uma indústria conserveira. Ou em França, exatamente. Ou em Itália. Não sei se Espanha, não tenho muita segurança no que vou dizer, mas tenho a impressão que Espanha ainda valoriza mais. Se tu fores a supermercado em Espanha...
Ricardo Dias Felner
Sem dúvida. Espanha é líder mundial. Tu tens prateleiras e prateleiras
José Maria Pimentel
de conservas. Em Portugal, se for supermercado grande, claro que apanhas ali uma zona bocado maior, mas é... E sobretudo a variedade não tem nada a ver.
Ricardo Dias Felner
É como o arroz, que é uma coisa sobre a qual eu tenho escrito muito e me tenho batido bocado, por se foderizar bocadinho mais. As conservas são uma commodity, são uma mercadoria, não são produto gastronómico, percebes? Nós não encaramos isso como produto gastronómico. E em Espanha encaram. Exato. E trabalham no mais, é verdade, do que nós aqui. Nós aqui enlatamos e vendemos. Agora há uma outra marca...
José Maria Pimentel
Sim, as coisas já começaram a mudar, pá, nos últimos 15 anos, talvez, mas era muito devagarinho.
Ricardo Dias Felner
Mas há uma outra marca que este ano, a Pinhaes, que é uma conserveira de matoszinhos, começou a fazer latas com 3 anos, porque as conservas em lata ganham essas caramelizas, essas reações de maillard, que nós estávamos a falar, e portanto tornam-se mais saborosas. Os franceses fazem isso há décadas, chamam-lhe o millésime e vendem uma lata por 20 euros de sardinhas.
José Maria Pimentel
Mas isso é o que? Desculpa, explica-me lá o que é que isso significa na prática.
Ricardo Dias Felner
Isso é envelhecer conservas, é como o vinho, guardar-se vinho.
José Maria Pimentel
Se eu comprar uma conserva agora e esperar três anos, ela está a envelhecer? Ah, é isso! Ou seja, já depois de ser conserva.
Ricardo Dias Felner
Já depois de ser conserva, já depois de fechada na lata. Ok? Poderás ter que ter alguns cuidados, deles é sítio que não esteja ao sol, escuro e de vez em quando ir lá virá-la. Mas de vez em quando é mesmo de vez em quando. Estás lá todas as semanas a virar a lata de lado para o outro. E eu quando vou ao Porto, porque no Porto há muitas casas destas de conservas, Estou sempre à procura das latas fora de prazo e fico com todas as que apanho. E encontram-se algumas. A única coisa que... Não estou a dar aqui conselho perigoso para a saúde pública dos portugueses. Duas coisas que eles têm que ter em atenção quando envelhece uma conserva. Uma, a lata não pode ficar opada, ou seja, abalar, porque significa que tem ar lá dentro, tem oxigênio, o oxigênio dá cabo do produto, ou ferrugens e esse tipo de coisas. Porque de resto, uma lata pode, há latas com 20, 25, 30, 50 anos, incríveis.
José Maria Pimentel
Aquilo é uma tecnologia, digo isso várias vezes, se a ideia por trás das conservas não tivesse sido inventada, aquilo é do final do século XIX, se tivesse sido inventada agora.
Ricardo Dias Felner
É, final do século XIX.
José Maria Pimentel
Continuaria a ser considerada uma das invenções do ano, que aquilo é, para quem está a ouvir, aquilo é cozinhado já dentro da lata, portanto o que faz é mata todas as bactérias que estão lá dentro e depois já não entra mais nada. É uma ideia genial.
Ricardo Dias Felner
É verdade, embora as melhores conservas são pré-cozinhadas fora da lata.
José Maria Pimentel
Mas depois ainda devem levar
Ricardo Dias Felner
Não, não, sim, sim, depois vão a autoclava, acho que é assim que se chama, a máquina que as fecha, não é? E que faz esse... E depois
José Maria Pimentel
volta a aplicar temperatura para matar o que está lá dentro.
Ricardo Dias Felner
Mas às vezes as pessoas perguntam, mas porquê que esta lata de sardinhas que está aqui na partilheira do supermercado custa euro e a lata outra custa três euros. Enfim,
José Maria Pimentel
há várias razões.
Ricardo Dias Felner
Há várias razões, mas a principal é que as marcas que normalmente vendem a este preço fazem essa pré-cozedura. Ou seja, a água da cozedura do peixe não fica dentro da lata e os sabores ficam todos mais concentrados. Mas, portanto, isso é mais passo no processo industrial.
José Maria Pimentel
Sim, porque o método de cozinhar tudo lá dentro é ótimo desde o ponto de vista da durabilidade, mas do ponto de vista de cozinhar é muito limitativo, não é? Porque tu não consegues mexer, não é? Ou seja, não consegues tirar nada uma vez.
Ricardo Dias Felner
Há pequenos condimentos que entram muito, algumas vezes, nas latas. Por exemplo, uma das que eu gosto mais é a picante. Que leva uma malagueta à dedo, mas leva coisas a
José Maria Pimentel
sério. Valor,
Ricardo Dias Felner
não é aroma de não sei o quê, isso é outro mundo, o mundo dos aromas na culinária e nos processados alimentares é uma coisa extraordinária, fascinante.
José Maria Pimentel
Sim, as conserves nesse sentido são muito simples, na maior parte dos casos, Ou seja, mesmo quando são elaboradas no sentido de ter ingredientes interessantes, são simples, não têm grandes invenções.
Ricardo Dias Felner
E nós somos muito bons nisso, porque temos uma longa história disso. As conservas é provavelmente das poucas indústrias que nós fomos líderes mundiais de exportações e que, enfim, tu saberás mais se calhar disso do que eu, mas eu julgo que a nossa balança, nos momentos em que teve mais saudável, foi na Segunda Guerra Mundial por causa das conservas. Não aconteceu muitas vezes na
José Maria Pimentel
nossa história. Não aconteceu muitas vezes. Aliás, há artigo, já antigo e muito influente, do Jaime Ramos, que é historiador económico, que tentava fazer contrafactual da economia portuguesa, tentando ver se nós teríamos tido alguma maneira de escapar à falta de desenvolvimento que tivemos no século XIX e ele explorava precisamente a indústria conservadora. E depois acho que, se sabe o erro, não quero estar a mentir, mas acho que concluía que não tinha escala suficiente para... Ou seja, nós não tínhamos meio de fazer aquilo escalar ao ponto de usarmos isso para darmos o salto. Mas é interessante ele ter pegado nisso, porque é o que estás a dizer, não é? Porque de facto era uma coisa que nós sempre fomos bons e...
Ricardo Dias Felner
Mas estamos em risco de desaparecimento, não diria, mas eu julgo que hoje em dia há 20 empresas conservadoras, já foram largas as centenas. Onde nós claramente não temos comparação, não conseguimos comparar com os espanhóis é no marisco de conserva. Isso aí eles são...
José Maria Pimentel
Sim, nós não temos quase nada.
Ricardo Dias Felner
Não temos quase nada. Não sabemos, lá está, não temos esse, não há essa tradição. E por exemplo, na Galiza, aqueles dois têm conservas fascinantes. Eu mandei vir umas letinhas de berbigões, os berberetes, numa empresa familiar galeagão, os temos através da internet e aqui quando eu abri a lata era óbvio que cada berbigão tinha sido posto à mão a que é que aparecia a urivezaria lá dentro. Na verdade cada berbigão custava euro, se nós fizéssemos as contas.
José Maria Pimentel
Era melhor que fosse o salmão.
Ricardo Dias Felner
Exato, não é barato, mas de facto eles encaram de outra forma as conservas e acho que nós devíamos também cada vez encarar mais.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim, de acordo.
Ricardo Dias Felner
Porque é saudável. Faz todo o sentido de tu teres em casa aquilo, eu tenho sempre em mensas. Estão sempre a resolver problemas. Dá jeitão. E com uma batatinha cozida boa, com bom azeite, uma saladinha, fazem uma refeição incrível.
José Maria Pimentel
É isso, não é exatamente isso.
Ricardo Dias Felner
Ou numa tosta, por exemplo, saladinhas
José Maria Pimentel
de tosta. Exato. Resolves uma refeição...
Ricardo Dias Felner
Infelizmente, os nossos melhores produtos, grande parte vão para fora, porque as pessoas pagam mais. Por exemplo, o atum dos Açores, fazem boas concessões nos Açores, a corretora e a Santa Catarina vendem, diriam que se calhar, o melhor produto, a grande parte vai para a Itália. E depois vendem sem marca. Os italianos muitas vezes chegam lá e metem a marca por cima.
José Maria Pimentel
Claro, esse é o problema, é problema da nossa indústria alimentar em várias áreas. Algumas em que já foi ultrapassado, mas outras não. Era como acontecia com o azeite, hoje em dia acho que já não acontece, com a revolução que houve, mas era problema grande. Lá está, e depois perdes a margem toda, não é? Claro. Ou seja, a margem vai toda para quem compra e aplica a marca. Claro, o
Ricardo Dias Felner
azeite é ótimo exemplo disso, de facto. Temos bom azeite também.
José Maria Pimentel
Uma coisa que eu não te pergunto é há bocado, a propósito das cozinhas do mundo, há alguma cozinha, algum país, especialmente sub-representado em Portugal a nível de restaurantes?
Ricardo Dias Felner
Há continente, África. Nós temos... Sim, verdade. Nós temos relações...
José Maria Pimentel
Eu falava da cozinha tiupa há bocado, não é? É muito... É capaz de ter ou dois restaurantes.
Ricardo Dias Felner
A cozinha etíope é a cozinha aristocrata da África. Tu vais a Joanesburgo e o restaurante mais famoso é a cozinha etíope. Aliás, tiveram influência italiana. Tem muita história lá em cima. Mas o nosso desconhecimento sobre a cozinha africana, que nós poderíamos pensar a partir que é mais pobre, mas devemos nos questionar se nós simplesmente não a desconhecemos mais do que as outras. Mas é tanto mais intrigante para mim quando nós temos relações, temos comunidades grandes desses países todos em Portugal e é difícil encontrar bons restaurantes moçambicanos, guineenses, santo-menses, cavurdeanos, há mais alguns, mas não é fácil. Comer uma boa moamba...
José Maria Pimentel
Algum que recomendes?
Ricardo Dias Felner
Sim, o Stop & Bicesse, ao pé de Cascais. Lá está, fica lá num sítio que não é, digamos assim, uma referência gastronómica, mas faz uma excelente moeda.
José Maria Pimentel
Isso é sempre bom sinal quando os restaurantes prosperam apesar da localização desfavorável.
Ricardo Dias Felner
Isso, e eles prolhe vão lá.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. Normalmente é bom sinal.
Ricardo Dias Felner
É muito bom e vão lá. É uma senhora já com alguma idade que ainda está na cozinha. Boa. Que viveu muitos anos em Angola.
José Maria Pimentel
Boa, boa. Então já temos aqui alguma lista de recomendações razoáveis.
Ricardo Dias Felner
É, é sobretudo para isso que isto serve.
José Maria Pimentel
E aliás, isso lembra-me de outra coisa que eu te queria perguntar, que em mim também é em parte uma provocação, porque perpassa no teu livro uma ideia que é muito comum ouvir, e é muito comum, eu diria, em tudo que toca precisamente a criatividade, que é de que, mais ou menos, a metateoria, que nunca é explicitada, mas que eu diria que é a meta-teoria que os restaurantes que são grandes cadeias ou que têm algum lado mais industrializado serão sempre piores do que os restaurantes locais, mais amadores, mais pequenos, de escala mais pequena. Isto é uma ideia comum e é uma ideia que propassa muito no livro. E o que eu te pergunto é, tem de ser assim? Quão rígida é que tu achas que é esta causalidade, esta ligação?
Ricardo Dias Felner
É bastante rígida. E não tem a ver com nenhum preconceito ideológico.
José Maria Pimentel
Não é viés bocado romântico, não é? Daquela coisa do pequeno, do demorado. Também há a coisa do demorado, também há essa metateoria do mais lento vai ser sempre melhor do que mais rápido.
Ricardo Dias Felner
Não necessariamente, mas diria que na maior parte das vezes sim. Mas, os meus filhos têm essa discussão comigo e dizem que eu sou velho preconceituoso. Não era o que eu estava a dizer. Há uns anos, por exemplo, o meu filho quis me fazer acreditar que o Burger King tinha bom hambúrguer. Aí eu disse, pá, deixa de lá, há quantos anos não comes Burger King?
José Maria Pimentel
Então, escolheu mal a batalha.
Ricardo Dias Felner
Pois, não sei entre o Burger King e
José Maria Pimentel
o McDonald's. Não, Mas enfim, conta, conta, desculpa.
Ricardo Dias Felner
Mas pronto, estou só a dizer uma coisa episódica.
José Maria Pimentel
E convenceu-te ou não?
Ricardo Dias Felner
Convenceu-me, fui lá e comi a porcaria do barguiquinho.
José Maria Pimentel
Não, convenceu-te que era bom.
Ricardo Dias Felner
Não, não, não, isso não convenceu-me. Eu fui lá de espírito aberto. Mas, sei lá, mesmo admitindo que aquilo não tem que ter uma carne boa, que pode ser só produto artificial saboroso, que aquilo também é uma fórmula de umami, atenção, os sujeiros da Boricuim, todos eles sabem as fórmulas do sabor que fazem a sua... Ah, claro, claro. Por isso é que aquilo está cheio de... O que a gente falou aqui, doce, umami e fermentados também. Os picles são fermentados. Pois é, pois é. E muitas vezes até tem glutamato, digamos, sintetizado lá pelo meio. De facto, entre o hambúrguer daqueles ou hambúrguer de uma hamburgueria artesanal, não todas, porque há algumas bastante mais. Mas já falava do ground burger, por exemplo. Mas não há comparação, digo eu. Agora, vamos falar em termos gerais das cadeias. Por isto o quê? As cadeias, nem precisamos falar de cadeias, podemos falar de grandes grupos de restauração, com diferentes restaurantes. O que é que acontece? Têm protocolos e esses protocolos são rígidos. E o que é que isso faz? Faz com que o produto nunca seja mau. Ali sabes que nunca vais ter produto mau, mas também nunca vais ter produto de excelência.
José Maria Pimentel
Era aí que eu ia chegar, exatamente.
Ricardo Dias Felner
Para ter produto de excelência, tu precisas de te adaptar às circunstâncias do mundo, do dia, da atualidade, do que é tendência e deixou de ser tendência na semana seguinte. Do que a horta está a dar e do que o mar está a dar. E obviamente que as cadeias não têm essa margem de adaptação. E também não têm uma outra coisa que é muito importante na cozinha, que é amor pelo cliente e pelo que estão a fazer. Porque, enfim, tudo o que fazer uma generalização se calhar injusta para muitos trabalhadores das cadeias de restauração. Mas, de facto, normalmente quando o restaurante é meu e sou eu que cozinho, há cuidado diferente nas coisas, até no tratamento do cliente. É muito provável que esse restaurante faleça rapidamente, porque muitas vezes os outros restaurantes não sabem gerir restaurante. E é muito provável também que tu apanhes grandes barretes nesses restaurantes, lá está. Porque como não há protocolos, aquilo às vezes... Ah, hoje vou inventar prato novo. Pode dar muita... Pode dar barraca, e dá, muitas vezes.
José Maria Pimentel
É engraçado porque tu cá tem vários pontos que eu ia referir, eu acho que primeiro há aqui uma questão de as grandes cadeias, ou seja, tudo que é mais standardizado, tem uma escala maior, tem menos variabilidade. Certo. E portanto é mais previsível, por lado, há menos probabilidade de correr mal, mas também há menos probabilidade de ser excelente. No fundo é isso que está em causa. E depois, quando nós estamos a olhar para o... Aí é que eu acho que há uma certa dose de romantismo e eu achava que havia na tua perspectiva, mas agora do que disseste percebi que não, que é esclarecida, digamos assim, que é... Que eu acho que às vezes é romantismo de só olhar para os bons dos pequenos, não é? Quando na verdade o que os pequenos têm é uma variabilidade muito grande, não é? Apenas o muito bom e o muito mau, não é? Se tu soubesse escolher, idealmente apenas o muito bom, não é?
Ricardo Dias Felner
Verdade, é isso mesmo. Mas atenção que há exceções, ainda recentemente. Comidas, melhores burratas. Burrata está por todo o lado de Anesboa. É como a tarte vasca. Se não há restaurante do Marquês de Pombal para baixo que não tenha uma tarte vasca. Ou do Saldanha, se quiser. Mas as burratas também. Porquê? Porque há uma coisa para a cozinha que não põe desafios nenhum, é tirar do...
José Maria Pimentel
Sim, é facilmente.
Ricardo Dias Felner
É abrir, pôr uns tomatinhos, fio de azeite, não sei o quê. Mas a maior parte são só medíocres. A melhor borrata que eu comi recentemente é de uma cadeia italiana que está em Lisboa e tem jogo que é em Paris também que é o Bicay, umas borratas incríveis porque provavelmente eles conseguem, eles têm bom fornecedor, presumo que é a Itália, conseguem justificar a importação de quantidades desse fornecedor com uma regularidade e frescura que outros mais pequenos não conseguem. Há coisas que ajuda a ter escala.
José Maria Pimentel
Sim. E tu que és aficionado de pão, por acaso nem falámos de pão, mas pronto. Fazíamos programa só sobre isso. Não, E fica teaser para as pessoas irem ler o livro também, portanto, tu que és aficionado, porquê que achas da padaria portuguesa?
Ricardo Dias Felner
Eu sou cliente da padaria portuguesa, acho que é mais difícil com a escala que eles têm ter pão ao nível de outras padarias artesanais.
José Maria Pimentel
Lá está o que estávamos a falar.
Ricardo Dias Felner
Exatamente, mas eu acho que o nível de produtos dele, da qualidade, é muito superior à média. Exato, concordo. Entretanto, eles subiram bastante os preços de quase tudo e pronto, depois no serviço, casa e casa. Por exemplo, a padaria portuguesa onde eu vou, vou para lá muitas vezes escrever, porque... Também porque tem... Tem tomadas. Tem muitas tomadas, eles são amigos dos freelancers. E tem o melhor ar-condicionado de Alvalade também, já agora, às vezes bom demais. Mas é sítio onde as pessoas tratam como se fosse o café de bairro mas isto não acontece com a maioria das padrinhas portuguesas pelo que eu ouço, atenção. Mas neste caso as pessoas vão, os velhinhos do bairro que não podem estar na fila vão lá entregar a comida sabem os nomes deles é muito curioso isso. Provavelmente é uma equipa fixa tem chef de loja bom
José Maria Pimentel
Sim, conheço só de fora já agora só para full disclaimer mas também parece ser bem gerido e concordo contigo, ou seja, não é... Claro que não é excelente, nunca sabia, mas ao mesmo tempo fez bocado o que os Uber fizeram com os táxis, ou seja, tirou-me dos cafés de uma certa complecência, de repente tinha as padarias e cafés de ar muito maus e de repente foram forçados a subir bocadinho a qualidade porque não dava. E as pessoas já não... Enfim, é só caso, mas é engraçado. Mas é caso muito criticado, precisamente por ter esse lado de massificação. E acho que as pessoas, quer dizer, eu não me estou a excluir desse grupo, por lado as grandes cadeias têm lado que nos atrai, da previsibilidade, mas ao mesmo tempo também nos repelem por esse lado mais ou menos standardizado. Portanto, a pessoa gosta sempre de... Se pudermos, preferimos ir a coisas com mais...
Ricardo Dias Felner
E agora tem uma coisa boa, que eu julgo que antes não tinha. Por exemplo, eu julgo que eles agora não estão a servir o famoso sumo de laranja, não é? Eles ficaram muito imersísseis, pelo menos com o sumo de laranja. Porque não está na época. E isto é uma coisa para uma cadeia, interessante de se fazer. Não sei se entretanto já voltaram a servir, mas ainda há pouco tempo quando eu lá fui não serviam. A laranja não estava boa.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim, engraçado. Obrigar uma... Lá está, obrigar essa flexibilidade...
Ricardo Dias Felner
E nós quase que esquecemos que a laranja no verão não está boa. Achamos que devemos beber-se uma laranja o ano todo.
José Maria Pimentel
Eu acho que a maior parte das pessoas acham que a laranja é uma coisa de verão. Eu tenho essa impressão porque como é uma coisa que nós associamos a beber com gelo e quase como refresco e tem aquele ar fresco, meio estival, acho que a pessoa passa por frutos de verão, é curioso, é paradoxo engraçado. Ainda uma invenção nossa, o alimento que foi uma invenção. A laranja, isso foi professor, professor de História do 11º ano que me contou, foi o melhor professor que eu tive, que contou-me várias coisas que eu nunca me esqueci e uma era essa, que a laranja foi... A laranja doce, ou seja, a laranja que hoje se consome em todo o mundo foi uma invenção portuguesa. Não sei como exatamente, mas foi criada cá. Tanto é que em alguns países... Eu julgo que não. Epá, espero que não, não me tires de... Julgo... Espero que sim, aliás. Julgo que
Ricardo Dias Felner
foi pelos árabes. Julgo que nasceu... Também pode ter sido com
José Maria Pimentel
o azeite, podemos ter comprado lá e ter...
Ricardo Dias Felner
Nasceu na China há 500 anos antes.
José Maria Pimentel
Não, mas acho que teve a ver com isso, ou seja, basicamente deve ter sido ali uma mistura entre uma espécie de cá e uma espécie de lá.
Ricardo Dias Felner
Que eram amargas e depois...
José Maria Pimentel
Mas mais doces e fizeste tudo.
Ricardo Dias Felner
Bem, uma coisa é certa, nós temos as melhores laranjas do mundo, lá está, se tivéssemos de escolher 50 produtos extraordinários portugueses, a laranja do Agafe tinha, claro, está de facto incrível, é produto incrível. É mesmo muito bom. Mas já agora nós damos muito pouca relevância a influenciar na nossa gastronomia, que aliás está muito mal estudada, como aliás está quase tudo muito mal estudado nesta área, ou muito pouco estudado nesta área, mas independentemente da laranja ter sido obra deles na Príncipe Ibérico ou não, eles deram-nos muita coisa que nós assumimos como nossa. Há muita coisa que nós assumimos como nossa, desde as açordas, aos escavaches, que não são nada nossos.
José Maria Pimentel
E outra coisa nossa, Outro alimento que eu acho subvalorizado que não falamos, que eu saiba também é quase exclusivo de Portugal, é a broa.
Ricardo Dias Felner
A broa de milho é o nosso pão mais original. Lá está outros mitos, que o nosso pão é único, etc. O nosso pão verdadeiramente único é a broa de milho, que tem processo
José Maria Pimentel
de... Mas é especificamente a broa de milho, é isso? Não a broa no gelo?
Ricardo Dias Felner
A técnica da broa de milho, que é mais difundida, mas também pode ser de centeio, em que a massa é escaldada.
José Maria Pimentel
Pois como é que é? Como é que se faz? Olha, eu nem sei como é que se faz em cooperação com o pão, por exemplo.
Ricardo Dias Felner
Bem, enfim, eu já aprendi isso, fiz curso de padaria aqui há uns anos, mas...
José Maria Pimentel
Deve levar menos fermento, suponho, não é?
Ricardo Dias Felner
O que eu sei é que, sim, não leva fermento industrial, leva fermento com uma massa meia feita de milho ou...
José Maria Pimentel
Sim, mas leva menos massa meia, no fundo, digo eu, ou não? Porque cresce menos, não é?
Ricardo Dias Felner
Não sei se leva menos massa mãe. Leva uma massa mãe feita ou de milho ou de centeio ou de uma mistura das duas. Mas existem massas mães para fazer as broas, mas como o milho não tem glúten, É o glúten que faz com que o pão crescer, que faz com que o gás carbónico fique aprisionado dentro do pão e que ele insufle. E, portanto, como isso não existe no milho nem no centeio já agora, ela fica compacta. E fico doido quando vou ao Minho ou atrás dos Montes e não encontro uma broa dessas. Sabe dessas broas compactas, úmidas? Porquê? O que acontece é que, seja porque é mais rentável tu meteres trigo e meteres fermento de trigo industrial no meio da broa, seja porque há uma outra teoria que faz algum sentido, que é, suposito para as pessoas mais idosas, trincar pão fofinho é mais confortável do que trincar uma broa. Mas está-se a perder essa tradição da... Broa é broa, broa não é pão fofo. Sim, não tem nada a ver. É uma pedra, deve ser uma pedra para sempre.
José Maria Pimentel
E tem sabor diferente, lá está.
Ricardo Dias Felner
Completamente diferente, tem que saber a milho, mas isso depois leva-nos a outra coisa que é os nossos milhos autóctones, como se faziam os brôs, que fazem produto diferente do que faz milho importado, sei lá de onde, da Ucrânia. Agora na Ucrânia é capaz de não ser fácil. Exato. Sim, o mesmo com o centeio, com os brós de centeio de Trás-os-Montes. Fazia-se, produzia-se bastante centeio em Trás-os-Montes, ainda se produz ao longo, mas hoje em dia se quer mais para os animais do que para outra coisa. Hoje em dia estão as farinhas de centeio importadas, que fazem pão necessariamente diferente.
José Maria Pimentel
Pois, exato, esse é o outro desafio grande. Olha, para terminar, que livro nos trazes?
Ricardo Dias Felner
Eu trago o livro da minha escritora gastronómica favorita que se chama MFK Fischer, que já morreu em 1992. Era americana, mas era uma americana digamos francesa, tinha vestido em indijoom, pintura e escultura.
José Maria Pimentel
Gostei desse disclaimer, não era daqueles americanos?
Ricardo Dias Felner
Não, não, chato, desabrotado. Não, era uma mulher que também era americana. E isso dava-lhe também esse lado dava-lhe muita graça. E que escreveu como ninguém sobre comida na minha ótica. Era uma excelente escritora de qualquer coisa. Para se escrever bem sobre comida tem que se escrever bem. E nós lemos as crónicas dela com sorriso nos lábios, mas ao mesmo tempo aprendemos imenso sobre o que ela escreve. Dos ensaios mais famosos dela. O livro é uma antologia de muitas coisas que ela escreveu para a gourmet americana, para todas as revistas, para a New York, para todas as revistas mais importantes nos Estados Unidos que dão atenção a estas coisas da comida. Se chamava-se Consider the Oyster, que deu depois origem a outro ensaio muito famoso que se chamou Consider the Lobster, do David Foster Wallace, que também está em todas as antologias de comida e aconselho vivamente. Enfim, está em inglês, mas...
José Maria Pimentel
Mas qual é o ângulo? Conhecida de Oyster é no sentido de quê? De... Como há mais disto?
Ricardo Dias Felner
Exatamente, exatamente. Mas o ângulo do David Foster Wallace era no... Aquilo foi uma encomenda da revista Gourmet Americana, no fundo foi, vai para festival de lagosta durante uma semana e traz lá texto. E ele que não percebia nada de comida, centrou-se no que passa pela cabeça
José Maria Pimentel
de uma lagosta no
Ricardo Dias Felner
momento em que vai viva para dentro de
José Maria Pimentel
uma panela. Pois, não deve passar nada de bom, não. Nada de bom, não.
Ricardo Dias Felner
Sim, o sentimento quando acabas de ler aquilo é... Coitadinhos das lagostas.
José Maria Pimentel
Sim, tu falas disso no livro também, por acaso. O nível de sensiência das lagostas é discutível, mas os métodos que são usados são bocado bárbaros. Mas enfim, agora parece que terminamos numa... Num tom suturno. Numa nota mais suturna, não era a ideia. Até porque eu fiquei cheio de fome ao longo desta conversa, portanto estou sobretudo com vontade de jantar. E do tamanho, se calhar.
Ricardo Dias Felner
Sim, já se comia qualquer coisa. Obrigado. Obrigado. Obrigado, Will, pelo convite.
José Maria Pimentel
Abraço. Olá de novo. Lembram-se que na introdução disse que tinha ficado a pensar no mistério de o umami só ter sido descoberto recentemente? O meu palpite é que tem algo a ver com o facto de ser difícil perceber quando há muito umami, que é algo diferente dos outros sabores. Se nós pensarmos, entre os outros 4 sabores, o azedo e o amargo são relativamente desagradáveis e portanto é fácil notar quando está demais. E mesmo no caso do doce, toda a gente tem a experiência de comer comidas demasiado doces. No caso do umami não é bem assim. E isso talvez explique porque é que a humanidade, em todas ou quase todas as culturas, não desenvolveu uma palavra que permitisse isolar esse sabor dos outros. Enfim, é palpite, fica a ideia, se tiverem uma explicação melhor, por favor enviem-me e eu depois até partilho-lhe nas redes sociais do podcast. Ah, e o Ricardo tinha razão. A laranja que nós consumimos hoje está de facto associada a Portugal? Tanto é que em muitos países é conhecida por Portugal, uma palavra parecida, mas não é porque tenha sido propriamente inventada cá, é porque, como eu lhe dizia, ela foi trazida do Oriente no início dos descobrimentos pelos portugueses e introduzida na Europa e de resto nas próprias viagens, onde foi muito útil para combater o escorbuto. Tema, aliás, que liga ao último episódio sobre Fernando Magalhães. E, finalmente, muito obrigado aos novos mecenas do 45 Graus, Carlos Pires e André Montenegro. Até à próxima. Este episódio foi editado por Hugo Oliveira. Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no site 45grauspodcast.com. Selecione a opção Apoiar para ver como contribuir, diretamente ou através do Patreon, bem como os benefícios associados a cada modalidade.