#147 Nuno Garoupa - Como melhorar a justiça em Portugal?

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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45°. Muito obrigado aos novos mecenas do podcast, ao Miguel Moreira, à Sara Capas, ao João Motolopes, ao Ricardo Zambujal, ao Miguel Babo Martins, ao ou à Elliot, ao José Ponciano e finalmente à Sílvia Alexandrino. Muito obrigado a todos. Na semana passada, no sábado, decorreu em Lisboa a primeira edição do Workshop de Pensamento Crítico. Foi uma manhã bem intensa e muito bem passada, com os cerca de 20 corajosos participantes que optaram por trocar uma manhã cuja temperatura pedia claramente praia por umas horas a puxar pela cabeça. Já este sábado e No próximo vão decorrer as sessões seguintes do workshop, online e no Porto, e em setembro haverá mais. Por isso, se tiverem interesse, inscrevam-se através do link que deixo na descrição do episódio e que podem também encontrar no site 45grauspodcast.com. E agora ao episódio de hoje. Olhando para a quase centena e meia de episódios que o 45° já leva, há facto no mínimo curioso. É que depois de já ter discutido o país com dezenas de convidados e sobre múltiplos aspectos, desde a economia, à política, a várias dimensões da vida em sociedade, nunca tinha tido episódio dedicado especificamente ao tema da justiça. Isto é estranho por várias razões. Não só porque o poder judicial é dos três poderes clássicos do Estado, juntamente com o executivo e o legislativo, Mas também porque a justiça, de ponto de vista mais abrangente, está longe de ser tema pouco relevante, sobretudo na sociedade de hoje. Estamos sempre a vê-la discutida nos jornais, nas televisões, seja a propósito dos atrasos nos tribunais, que afetam, por exemplo, a competitividade da economia, seja sobretudo por casos particulares de justiça, em particular os crimes de colorinho branco, em que tem havido uma enorme dificuldade em obter acusações, o que é muito mina à confiança dos cidadãos. Enfim, talvez a ausência deste tema no podcast seja uma mera coincidência, há sempre temas que faltam, ou Talvez diga alguma coisa sobre a impenetrabilidade do sistema de justiça para os não juristas como eu. Ou talvez ainda esteja relacionado com o menor peso que o Poder Judicial, neste caso, refirmo ao Tribunal Constitucional, tem na política em Portugal em comparação com o que acontece noutros países. Seja como for, é uma lacuna que está mais do que na hora de suprir. E por isso, e tal como no episódio anterior, voltei a trazer repetente ao podcast. Nuno Garopa é atualmente professor na George Mason University, nos Estados Unidos, e a sua investigação incide na análise económica do direito e das instituições legais numa perspectiva comparada. Por outras palavras, o Nuno utiliza ferramentas da economia para tentar compreender por que variam os sistemas judiciais entre países e qual é o seu impacto na política e na economia. Esta investigação interdisciplinar tira partido do background do convidado nestas duas áreas, uma vez que ele é licenciado em Economia, depois tirou mestrado em Direito e doutorou-se em Economia pela Universidade de York, com investigação precisamente nesta área. O Nuno, como disse, já tinha estado no podcast há uns anos, no episódio 64. Na altura falámos da qualidade das instituições em Portugal, mas numa perspectiva muito mais ampla que foi desde a cultura e da história até à economia. Convidei-o agora a regressar para falar sobre o nosso sistema de justiça à boleia de ensaio que ele escreveu sobre o tema publicado pela Fundação Francisco Manoel dos Santos. O ensaio, chamado O Governo da Justiça, foi escrito já há largos anos, mas continua muito atual. No livro, o Nuno analisa a organização e o funcionamento do sistema de justiça em Portugal, misturando as conclusões da literatura científica do direito comparado com a sua própria opinião, que é muito crítica em vários aspectos, em relação à forma como o poder judicial está organizado no nosso país e à sua relação com o poder político. Na nossa conversa começámos por falar de alguns aspectos do nosso sistema de justiça, em relação aos quais eu há muito tempo, enquanto não jurista, tinha curiosidade e imagino que muitos de vocês na mesma situação também. Por exemplo, como é que compara a arquitetura do nosso sistema com a dos outros países? Desde a organização da hierarquia dos tribunais, há distinção entre os vários tipos de direito. Por exemplo, em Portugal, os tribunais estão separados em duas jurisdições distintas, a civil e a administrativa, sendo que esta última diz respeito às relações com o Estado. Isto é assim em todos os países? Que modelo de alternativos é que podíamos copiar de outras geografias que se enquadrem na nossa tradição jurídica? E como é que o sistema se autogoverna? Quem é que gera os magistrados e os outros oficiais de justiça? E qual é o grau de autonomia das magistraturas face ao poder político? Habelei deste ponto, da relação entre os poderes judicial e político, discutimos uma das reformas que o Nuno propõe no ensaio. Ele defende que as magistraturas tenham mais poder e mais independência administrativa face ao governo do que tem hoje, mas ao mesmo tempo entende também que devem ser mais transparentes e devem ter mais accountability, ou seja, mais prestação de contas perante o Parlamento e os cidadãos. Essa maior transparência é, segundo ele, essencial para podermos compreender porque é que a justiça falha, quando falha, seja nos atrasos dos tribunais, seja no arrastar dos processos de colorinho branco, seja em outros aspectos relevantes, conseguindo distinguir, por exemplo, quando é que isso resulta de insuficiências na governação interna das magistraturas ou quando isso é problema do lado do poder político que desenha as leis sem pensar na sua implementação. Mas estas reformas e outras que o convidado propõe e que têm efeito desfasado no tempo são, já se sabe, sempre muito difíceis de implementar no nosso país, seja pelo corporativismo das organizações, seja porque, como referi no início, a organização do poder judicial não é tema que entusiasme particularmente quer os políticos, quer os cidadãos, para lá daqueles casos que dão nas vistas. Terminámos por isso com uma discussão mais abrangente do que simplesmente a área do direito sobre a qualidade das instituições e que encaixa bem, juro que não foi de propósito, no primeiro episódio que gravámos. Esperam então que gostem, deixo-vos com Nuno Garopa. Nuno Garopa, bem-vindo de volta ao 45 Grós.
Nuno Garoupa
Obrigado, Eu, por estar aqui mais uma oportunidade.
José Maria Pimentel
Nós vamos retomar tema que discutimos sem muita passagem no final do primeiro episódio, o episódio original, que é o governo da justiça, o sistema de justiça em relação com o poder político. Mas eu acho que era bom fazer uma coisa que não fizemos na altura, que é começar por... Eu ia-te pedir para fazer uma descrição geral do nosso sistema de justiça, da maneira como está organizado, e também como é que compara com outros países, porque eu tenho palpite, enfim, acho que não estou errado, de que a maior parte dos não juristas, como eu, têm entendimento imperfeito. A pessoa tem uma ideia, não é? Porque vai ouvindo falar de vários tipos de tribunais, Ministério Público e tal, mas não conhece propriamente bem a arquitetura e Eu acho que isso depois é importante para o que nós vamos falar a seguir de problemas e de reformas.
Nuno Garoupa
O nosso sistema é sistema complexo, não é? Mas de forma alguma sistema único. Nós temos sistema que obviamente toda a gente está familiarizada, que são os tribunais, obviamente há tribunais. Os titulares dos tribunais são órgãos de soberania, não é? Portanto, os magistrados judiciais, porque os tribunais são órgãos de soberania, e os magistrados estão organizados num carreiras que são autónomas, não é? E, portanto, é isso que normalmente também, quem não é jurista ouve, os conselhos superiores. Os conselhos superiores são, no fundo, os órgãos de gestão e de governo do Poder Judicial. Essencialmente, nós temos três níveis de tribunais, que são 1ª instância, 2ª instância e 3ª instância, que é o Supremo Tribunal. Isso corresponde, grosso modo, a três níveis na carreira dos mestrados judiciais, que são juízes de direito, juízes embargadores e juízes conselheiros.
José Maria Pimentel
E os três níveis eram os sobre tribunais de comarca, os da relação... Sim, os
Nuno Garoupa
da relação e os de Supremo. Depois, separado, coisa que aí sim já não é tão comum na União Europeia, fazemos parte de uma matriz tradicional francófona que separa os tribunais administrativos dos tribunais cíveis e, portanto, os tribunais administrativos são tribunais que, no nosso caso, não é o caso, por exemplo, em Espanha, são ordenamento totalmente separado e, portanto, temos também aí...
José Maria Pimentel
Pois que em Espanha está junto, não é?
Nuno Garoupa
Não, eles são separados, mas o Supremo Tribunal é o mesmo. Exato, o Supremo é o mesmo. Nós, o Supremo Tribunal é separado. O que significa que também temos Conselho Superior dos Tribunais Justificais separado, Portanto, no fundo nós temos dois sistemas de tribunais com dois governos distintos. Acresce-se a isto o Tribunal Constitucional, que ele próprio na Constituição tem capítulo à parte, não é? Portanto, é considerado ou outro tipo de tribunal. E depois, obviamente, temos o Ministério Público, que essencialmente, como toda a gente sabe, a pessoa que está à frente do Ministério Público é a Procuradora, neste caso a Procuradora-Geral da República, que é quem tem a seu cargo, no fundo, depois coadjuvada com Conselho Superior do Ministério Público, a questão da gestão da parte do Ministério Público. E portanto é sistema complexo, é sistema que tem no fundo três conselhos de governo, coisa que não é comum. Na verdade, por exemplo, os franceses têm apenas conselho de governo que toca todas as três áreas, o nosso decidimos a certa altura ter três conselhos, por razões históricas, e é sistema complexo. Agora, é sistema complexo por razões, como eu já disse, históricas, não é? Porque quando nós saímos do Estado Novo, da ditadura, houve uma necessidade de fazer uma reforma que automatizasse, independizasse o poder judicial do poder político. E foi Por isso que se criou este modelo que no fundo foi importado da Itália, de França ou de Espanha, que era o modelo que esses países tinham tido nas suas transições democráticas, que são modelo que essencialmente trata de que o governo dos juízes é a responsabilidade dos juízes, não é a responsabilidade do poder público.
José Maria Pimentel
Então, mas espera, já vamos à relação com o poder político, mas ainda dentro do poder judicial, tu disse que isso mudou com o 25 de Abril, mas na altura já havia uma organização mais ou menos idêntica, não era? Era independente, não é?
Nuno Garoupa
A organização dos tribunais não era muito diferente e havia Conselho Superior da Justiça, mas esse Conselho Superior da Justiça era presidido pelo Ministro da Justiça. Pois, exatamente. E portanto respondia diretamente ao poder político.
José Maria Pimentel
O que mudou foi sobretudo a relação com o poder político.
Nuno Garoupa
Sim, a partir do que aconteceu com a Constituição é que, no fundo, tirou-se o Ministro da Justiça desse conselho para que ele fosse independente do poder executivo.
José Maria Pimentel
Eu acho que há aqui aspecto que se presta à confusão que é a relação entre os magistrados judiciais e o Ministério Público, os procuradores, porque elas têm funções muito diferentes.
Nuno Garoupa
Sim, isso é uma velha celeuma em Portugal que é a questão de saber se os magistrados do Ministério Público deveriam ter uma formação e carreiras totalmente autónomas das carreiras dos Masterados Judiciais.
José Maria Pimentel
Porque eles são investigadores, no fundo, são acusadores e os outros são juízes.
Nuno Garoupa
Em Portugal, por razões várias, toda a gente diz que foi uma decisão do então Ministro da Justiça Salga a desenha, mas ninguém explica exatamente porque é que essa decisão foi tomada, faz parte daqueles mitos da democracia portuguesa que alguém decidiu fazer mas não há livre banco, não houve debate, porque é que isso se fez, decidiu-se que eles são formados na mesma escola, não é? E portanto essencialmente o que nós temos neste momento é, há uma formação conjunta e depois ao final dessa formação seguem diferentes carreiras. E até sabemos, como é evidente e tem sido público e notório, que há quem passe de uma carreira para a outra ao longo do seu percurso profissional. Nós temos neste momento vários ilustres magistrados do Ministério Público que passaram eventualmente a magistrados Justiciais. No Supremo Tribunal temos a própria ex-ministra, tem essa carreira e, portanto, é possível passar de uma carreira para a outra.
José Maria Pimentel
E é mais normal passar de qual para qual?
Nuno Garoupa
Do Ministério Público para a Mestrado Justicial. Agora, não houve nunca debate muito sério em Portugal sobre se esta é a melhor forma de nos organizarmos. Não é assim o sistema em outros países até semelhantes, como Espanha, como França, como Itália, e muito menos, isto é completamente diferente dos sistemas nórdicos e do sistema alemão e do sistema anglo-saxónico, que têm sistemas completamente diferentes de organização. Por exemplo, os alemães continuam a ter sistema semelhante ao que nós tínhamos antes do 25 de Abril, ou seja, os conselhos que tomam decisões são presididos pelo Ministro da Justiça ou pelos Ministros da Justiça dos diferentes lânderes, não é? E, portanto, há ali uma relação direta entre a Governação da Justiça e o Ministério da Justiça. Obrigado. Ao nível federal e depois nos lândeses ao nível local. No Reino Unido, por exemplo, nunca houve esta estrutura de comitês até há muito pouco tempo. Na verdade, era o Ministro da Justiça, Lord Chancellor, que nomeava os juízes. Bem, indicava os nomes ao primeiro-ministro que supostamente depois os nomeava. O Tony Blair fez uma série de reformas e neste momento há de facto uma comissão mais independente que trata disso. E portanto as experiências são muitas, nós temos o sistema que temos. É sistema que em geral vem do facto de uma transição democrática. Os países de leste na Europa quase todos têm sistemas semelhantes ao nosso neste momento.
José Maria Pimentel
Ou seja, quando houve a transição houve cuidado especial em assegurar a independência do poder judicial?
Nuno Garoupa
Porque há dois problemas, que é o problema da independência e há problema que todos os sistemas democráticos têm que lidar, é que, obviamente, herdam uma judicatura, poder judicial que foi escolhido, treinado e nomeado pelo sistema autoritário e uma vez que não vamos despedir aquelas 1500 ou 1800 pessoas, nem vamos fazer saneamentos, é obviamente que tem que se acautelar que esse poder judicial que era fiel à ditadura, passa a ser fiel ao regime democrático e, portanto, criam-se instituições para garantir isso.
José Maria Pimentel
E tu dizes que a tua tese é que houve certo receio de ir contra os juízes, no fundo, de ir contra o...
Nuno Garoupa
Eu acho que as dinâmicas depois tomaram conta e, obviamente, o que nós passámos foi de uma situação de autonomia do Poder Judicial para autogoverno do Poder Judicial. E isso em Portugal, ainda por cima, decorreu de uma forma muito contraproducente porque, repara, o Poder Judicial na verdade não tem controle sobre o seu orçamento, esse orçamento continua a ser uma decisão do Poder Político, bem, tecnicamente é da Assembleia da República, mas sabemos que é do Governo, porque é o orçamento de Estado, e, portanto, o Poder Judicial não tem controle sobre esse orçamento, mas o poder judicial, por não ter controle sobre isso, acabou por se transformar os conselhos numa espécie de base sindical. E isso também é fácil de explicar, porque quando nós passamos a ter eleições para estes conselhos, qualquer pessoa percebe que para votar em alguém, para haver candidatos a votar em alguém, temos que nos organizar, portanto é preciso haver uma estrutura qualquer que organize essas eleições. E portanto, rapidamente, isso tem que ser uma associação sindical. Porque o que aconteceu também na transição democrática e mais uma vez eu acho que foi, não foi bug, foi uma feature, era retirar poder ao Supremo Tribunal, porque obviamente o Supremo Tribunal era onde estavam as pessoas de maior confiança do Estado Novo. E, portanto, para se retirar poder ao Supremo Tribunal e, no fundo, democratizar o poder eleitoral de todos os juízes, em que os membros do Conselho deixam de ser membros do Supremo Tribunal, não é? Porque há países em que só podem ser membros desses conselhos juízes do Supremo Tribunal. No nosso caso é completamente democratizado. O que é que acontece?
José Maria Pimentel
Você tem também dos Supremos, não só dos Supremos. E da
Nuno Garoupa
relação e dos tribunais inferiores. E isso nós podemos perceber a perversão que isso é em outras carreiras, não é? Isto seria a mesma coisa que ter conselho de defesa nacional que trata das promoções a oficial general e que estão representados sargentos e alferes e tenentes a decidir quem é que vai ser general. Ora, foi isso aqui que se decidiu fazer na Justiça. Não são os generais a decidir quem é que é promovido a general, o equivalente, são todos os juízes que estão representados e depois eles votam e esses membros do conselho é que decidem.
José Maria Pimentel
Desculpem, mas porque a progressão na carreira é feita através da subida nos níveis
Nuno Garoupa
do tribunal. Exato, isso podia não ser, mas essa progressão é decidida pelo conselho, não é? Ora, se todos os juízes que estão representados no nosso conselho estão juízes de vários níveis, quer dizer que os níveis inferiores também participam nas decisões consoante as promoções dos níveis superiores. Ora, para isto estar organizado e não causar uma grande crise institucional, é preciso haver alguém que internalize todas essas, enfim, como nós economistas chamaríamos de externalidades, e quem é? Uma associação sindical. A grande diferença entre Portugal e os outros países que nos são semelhantes é que nós não partidarizamos a associação sindical, ou caso espanhóis, ou dos italianos ou dos franceses, em que há mais de uma associação e elas estão completamente partidarizadas.
José Maria Pimentel
Aquilo que tu propões, eu digo que propões, tu admiti que a tua tese não mudou muito desde 2011 quando tem o teu ensaio. Na verdade eu queria perguntar-te isto porque não tenho a certeza que tenha entendido completamente a tua tese, porque tu resumo-la basicamente dizendo que nós temos uma concepção deficiente da separação de poderes e depois aquilo que eu infiro é que, de certa forma, há aspectos em que tu achas que o poder judicial tem autonomia a mais e a contabilidade a menos e há outros em que achas que tem autonomia a menos. Exato, portanto, eu acho que... Ou seja, não é fácil de resolver numa só variável. Não, porque eu acho que
Nuno Garoupa
há questões, por exemplo, claramente em termos de alocação de recursos, de gestão e de, digamos, orçamentação, o poder judicial, na minha opinião, tem poderesamentos, tem insuficiência de poderes. E penso que já foram feitas algumas tentativas que falharam sempre. Porque essencialmente o Ministério das Finanças não quer abdicar, mais do que o Ministério da Justiça, o Ministério das Finanças, não quero abdicar desse género.
José Maria Pimentel
Mas poderes é que são na prática, desculpa. Ou seja, não há orçamento próprio.
Nuno Garoupa
Não tem orçamento, ou seja, o orçamento é imposto pelo Ministério das Finanças, essencialmente ao Ministério da Justiça, que por sua vez impõe ao Conselho Superior de Magistratura. Os conselhos não decidem por eles qual é o orçamento que necessitam. E quando
José Maria Pimentel
falamos de orçamento estamos a falar de salários, não é? Estamos a
Nuno Garoupa
falar de salários e estamos a falar, por exemplo, dos quadros, não é? Quer dizer, quantas pessoas é que devem trabalhar no Conselho Superior de Master de Letura? Essa resposta não é dada porque trabalham tantas pessoas quanto o Ministério das Finanças orçamentar para lá poderem trabalhar, não é? E portanto, nunca há uma questão de pensar. É pouco a ideia de que o Conselho Superior Espanhol provavelmente tem funcionários a mais, mas eles controlam o orçamento e têm cerca de 450 funcionários. O nosso Conselho não chega a duas dezenas. Obviamente que Conselho com essas diferenças não pode exatamente fazer exatamente as mesmas coisas. Outra área onde eu acho que há grave déficit, por exemplo, de gestão, é na área das estatísticas da Justiça. Nós continuamos a ter o Ministério da Justiça, é que gera as estatísticas da Justiça. Isso para mim é realmente problemático e, na minha opinião, explica alguns dos vícios que nós temos nessas estatísticas da justiça. Agora, por outro lado, depois o Conselho não tem nem responde de forma clara em outras áreas em que lá está, na minha opinião, tem poderes a mais e acountability a menos. Por exemplo, o facto de as promoções continuarem a ser largamente endogâmicas ao sistema, o facto das classificações durante muito tempo... É verdade que as coisas melhoraram alguma coisa nos últimos anos, mas durante muito tempo foram inconsequentes, no sentido de que toda a gente dizia, toda a gente é muito bom, depois os juízes vinham explicar que não é bem assim, mas o problema é que até há muito pouco tempo havia muito pouca punição de mestrados que incumpriam claramente as suas obrigações, nomeadamente atrasos e outras questões. Isso é verdade que mudou nos últimos anos, porque as últimas pessoas que tiveram à frente do Conselho de Superministratura, na minha opinião, foram bastante ativas nessa matéria, mas nós continuamos a ter, por exemplo, problemas graves no Ministério Público, quer dizer, o Conselho Superior do Ministério Público não consegue estabelecer metas nenhuma gestão eficiente da magistratura do ministério público, por isso continuamos a ter a acumulação de atrasos e todo o conjunto de processos que nós temos, não é? Portanto, há matérias em que de facto não têm poderes suficientes, mas há matérias em que claramente têm competência a mais e não estão a prestar contas sobre aquilo que deveriam estar a fazer. Aqui, o
José Maria Pimentel
teu ponto, o que eu entendo não é terem competências a mais, é suposto que eles a gerir as promoções, é não prestarem contas dessa...
Nuno Garoupa
Não, e é sistema, claro que é, que é sistema altamente endogâmico, portanto, não é sistema que está aberto à sociedade civil, não está aberto a quem está de fora e é sistema que persiste e tem vindo a complicar-se, não é? Porque é óbvio que aquilo que a maioria das pessoas pensa sobre a justiça em Portugal não é aquilo que os magistratos pensam da justiça em Portugal. E neste momento o fosso entre aquilo que a magistraturas pensam e aquilo que o resto da sociedade pensa é muito maior do que era há 10 ou 20 anos, não é? Achas que sim? Acho que sim, porque os magistrados continuam a insistir que, na verdade, o sistema funciona bem. Há casos pontuais em que não está a funcionar bem, quando, obviamente, a imagem pública, como sabemos até das últimas inquéritas, a opinião pública, é de que os tribunais funcionam muito mal, não é? E, portanto, a certa altura há aqui programa claro de que aquilo que as pessoas pensam na sociedade não é aquilo que pensam os magistrados sobre o próprio funcionamento da Justiça.
José Maria Pimentel
Tu à bocado falaste do Ministério da Justiça gerir as estatísticas judiciais. Qual é o problema? Ou seja, o que é que isso implica na prática?
Nuno Garoupa
O problema na prática é que nós não vamos nunca ter medidas de produtividade que usem essas estatísticas judiciais, a não ser que essas estatísticas judiciais estejam na mão de conselho superior, porque obviamente o que o corporativismo das minhas estruturas vai levar é desconfiar que essas medidas vão ser geridas de forma a satisfazer determinadas preferências e portanto não as podemos usar para questões de promoção. Nós somos praticamente o único país deste contexto que não tem medidas de produtividade quantitativas, que nem as tenta calcular. Nós somos país que anda a falar há não sei quantos anos, há 20 anos pelo menos, de fazer a contigentação processual. Não faz contigentação processual, não consegue fazer contigentação processual. A contigentação processual é dizer quantos processos é que magistrado deveria ter que decidir para, por exemplo, ter uma promoção. Quantos processos é que se esperaria que cada magistrado tivesse? Esse tipo de medidas, o que significa quantificar e, portanto, com todos os problemas que a quantificação tem, mas isso significa que haverá pessoas que satisfazem as metas e pessoas que não satisfazem as metas, para definir essas metas, essas metas têm que ser deixadas aos Conselhos Superiores, porque se são impostas pelo Ministério da Justiça, vai criar problemas de natureza política e isso tem sido o grande problema. A estatística justiça espanhola e italiana são geridas pelos seus respectivos conselhos superiores e há muito tempo que têm contingentação e medidas dessa natureza.
José Maria Pimentel
Mas, portanto, tu achas que se as estatísticas fossem geridas pelos conselhos, eles teriam, enfim, outro tipo de monitorização da produtividade que não têm?
Nuno Garoupa
O que eu acho é que se estivesse sido assim há
José Maria Pimentel
20 anos... Eu estou a perguntar isto porque isto parece confluir com a tua tratada.
Nuno Garoupa
Se isto tivesse sido assim há 20 anos, a conversa teria sido mais semelhante à espanhola e italiana. Como nós não tivemos, não temos sequer essa conversa. Repara, a própria contingentação processual e a introdução de medidas quantitativas está na lei desde 2014. Até hoje não foi implementada. Agora, não foi implementada por culpa dos magistrados? Não, não é culpa dos magistrados, eu não sei o que é culpa dos magistrados, porque quem tem que implementar a Ministério da Justiça é quem o implementou. Portanto, a falha
José Maria Pimentel
é primeiro dos políticos. Mas os conselhos judiciais que queriam? Eu estou a perguntar isto porque em órgãos muito corporativos é difícil implementar esse tipo de...
Nuno Garoupa
Claro que é, mas repara...
José Maria Pimentel
No fundo há coligações que o senhor põe a ele, não é?
Nuno Garoupa
Claro, mas isso também acontece em Itália, em França e em Espanha. Ou seja, as agendas corporativas dos nossos masteralhos não são horríveis comparadas com as outras. A questão é que as dinâmicas foram diferentes. Ora, aqui o que aconteceu foi que a dinâmica política ajudou a dinâmica corporativa e aqui as coisas não foram sem feitas. E isso, obviamente, que tem a ver em larga medida também com o papel que, E já lá vamos, que o Ministério da Justiça e os políticos desempenharam nesta matéria.
José Maria Pimentel
Pode falar já.
Nuno Garoupa
Não, não, no sentido que é evidente que o Ministério da Justiça prescindiu desse conjunto de medidas para agradar aos magistrados. Como por exemplo, quer dizer, todas as reformas que nós temos feito, elas oscilam entre prescindir de fazer reformas para agradar às forças corporativas, ou fazer reformas a heito, que não contam com as profissões judiciárias, com os operadores, e que depois simplesmente falham porque nem conseguem explicar-se como é que são implementadas. É isso que nós temos visto. Quase todas as reformas que se têm falado, elas francamente não alteram drasticamente absolutamente nada porque não é possível fazer
José Maria Pimentel
isso. Mas espera, como é que num Poder Judicial com a força para impedir esse tipo de reformas, como é que esse poder judicial, pois, não tem força para ganhar mais autonomia financeira?
Nuno Garoupa
Não, mas a autonomia financeira é claramente uma questão do Ministério das Finanças, não
José Maria Pimentel
é? Ou seja, o teu ponto é que no Ministério das Finanças há uma intransigência que consiste...
Nuno Garoupa
Sim, e há, porque nós temos visto várias reformas, até importantes, e estou-me a lembrar, por exemplo, das várias reformas da lei de falências, tanto da liquidação, estou-me a lembrar das próprias reformas de inventário, estou-me a lembrar de próprias reformas na segurança social, onde são adotados procedimentos para facilitar os litígios, para facilitar a gestão processual, e vem do lado do Ministério da Justiça, e depois a parte que se opõe sistematicamente em muitas é o Estado, ou seja, Finanças e Segurança Social, porque querem cobrar as dívidas ao fisco ou as dívidas à segurança social. Ou seja, o mesmo Estado que facilita, por lado, a reforma para facilitar procedimentos, é depois o Estado, ele próprio, o primeiro ator que se opõe à implementação dessas reformas, porque obviamente os objetivos do Ministério das Finanças e os objetivos do Ministério da Segurança Social, como quiseram chamar, são opostos à Justiça. Exemplo é a conversa que se prolonga desde o tempo da Troika da crise nos Tribunais Administrativos e Fiscais. O único problema dos Tribunais Administrativos e Fiscais é que a Autoridade Tributária e o Ministério das Finanças não querem pagar o que deve. E, portanto, como não quer pagar o que deve, os processos prolongam-se à diterno dos tribunais. E podem fazer as reformas que quiserem, que o problema é sempre o mesmo. E esse problema não está resolvido. E não vai ser resolvido enquanto o Ministério das Finanças, não ele próprio, prescindir de receitas óbvias que tem, que não deveria ter, obviamente, porque os contribuintes estão a pagar o que não devem pagar, por isso é que depois ganham em litígio, frente à responsabilidade do Estado.
José Maria Pimentel
Mas estamos a falar de que receitas? De quê? De quê que é?
Nuno Garoupa
De imposto? De IRS, IVA, Imposto de Selo, IRC, segundo os estudos que têm sido feitos, aliás, são essencialmente o IVA e o IRS que são os mais problemáticos, não é? Quer dizer, quando as pessoas dizem, ah, como é que é possível o Estado perde tantos processos em litígio e a introdução da arbitragem não alterou grandemente isto, ou seja, o Estado de facto perde mais do que ganha, porque o Estado, ele próprio, está a utilizar a ineficiência dos tribunais como forma de se financiar. Isto exigiria ao Ministério das Finanças ter que repensar como é que se vai financiar naqueles anos em que vai fazer as reformas para acelerar as decisões em tribunais administrativos e fiscais.
José Maria Pimentel
E tu faz uma distinção que eu acho interessante entre separação de poderes e checks and balances, freios e contrapesos, normalmente é o que é trazido para o português. Ou seja, o que tu diz é que mais do que uma separação de poderes do CUR, o que nós precisamos é de sistema de checks and balances em que no fundo os dois, o sistema judicial e o sistema político, não estão separados mas estão em interação e precisamente cada a vigiar o outro de certa forma e a contrabalançar o outro.
Nuno Garoupa
É, só que isso tem uma questão, que é uma questão de que isso significa que o poder judicial também tem que prestar contas do que faz. E neste momento o que nós temos é...
José Maria Pimentel
Sim, o teu ponto é esse, acho que é o mesmo.
Nuno Garoupa
Exato, é que uma organização como ela está, o nosso poder judicial não presta contas. E ao não prestar contas, cria-se este mito da separação de poderes, em vez de ser os feios e contrafeiros. Quando as pessoas dizem, E há muita gente que é muito crítica do Tribunal Constitucional. Porque o Tribunal Constitucional é tribunal partidarizado, politizado, tem todos esses defeitos. O Tribunal Constitucional, na minha opinião, tem, aliás nesse mesmo livro, muito antes de todas as peripécias que aconteceram com o Tribunal Constitucional nesses últimos anos, já na altura faço várias críticas ao Tribunal Constitucional. Mas o problema do Tribunal Constitucional, na minha opinião, não está na estrutura do Tribunal Constitucional, está sim na questão da cultura política, porque o nosso Tribunal Constitucional não é diferente do Tribunal Constitucional alemão ou do italiano, e são dois Tribunais Constitucionais com elevado respeito e prestação na Alemanha e na Itália. Se o nosso não tem e está totalmente partidarizado, o problema não é o tribunal concessionário, o problema são os partidos políticos e aí temos que perguntar e pensar porque é que os partidos políticos decidiram partidarizar o tribunal concessionário. Isto para dizer o quê? Eu também percebo a crítica de que se nós tentarmos ter sistema de freios e contra freios, ou até sistema mais semelhante ao sistema alemão, vai ser complicado porque a montante, temos problema com o sistema partidário e temos problema com a cultura política. Mas isso significa que primeiro teremos que então discutir a cultura política e o sistema partidário e não o sistema de justiça.
José Maria Pimentel
E nós não temos problema de cultura política antes de ter problema de sistema partidário? Ou por outra, isto não é uma consequência daquilo?
Nuno Garoupa
Sim, claro, mas aqui, claro, isto é como aquelas conversas que nós às vezes estamos aqui todos à volta da mesa, em sentido figurado, obviamente, e metafórico, a discutir o que é a origem, de onde é que vêm os problemas, não é? E o nosso amigo e companheiro Nuno Palma gosta muito de utilizar aquela palavra, é tudo endógeno. Claro que tudo é endógeno, mas o problema a certa altura é que se tudo é endógeno, nós temos que decidir para onde é que nós vamos cortar a melancia. E claro, se é a cultura política que criou o sistema partidário ou se foi o sistema partidário que alimentou a cultura política...
José Maria Pimentel
Sim, se calhar é mais interessante pôr a coisa de outra forma. E eu por acaso já tive essa discussão com ele e chegamos exatamente ao mesmo ponto, que é independentemente da origem, como é que se resolve? Exatamente. Porque há aspecto peculiar do nosso, do Constitucional, mas sobretudo da relação, quer dizer, do lugar do Tribunal Constitucional e do Poder Judicial em geral na política, que é, há certo desinteresse, não é? Quer dizer, E mesmo quando há nomeações para o curso de jornal, é que dá uma coisa que passa, e tu no livro dás o exemplo, que é evidente, dos Estados Unidos, é contraste, quer dizer, maior contraste era impossível. Lá é tema central.
Nuno Garoupa
Nós começamos por ter o primeiro problema, que é a ausência da sociedade civil. Claro, lá podemos voltar a este tema bem, mas a ausência da sociedade civil é em tudo, portanto não é de espantar que também seja nisto, mas de facto há uma total ausência da sociedade civil no sentido em que isto é visto como uma questão para conjunto de juristas e que mais ninguém tem que participar nela. Depois temos ela própria uma ausência dos partidos políticos. Eu não falo só da questão do PS e do PSD terem processo de seleção bastante pouco transparente, que o têm, mas o que é curioso é que as outras forças políticas, quer à esquerda, quer à direita, parecem abdicar do papel de monitorização que elas têm a direito. Ou seja, o Bloco e o Partido Comunista de lado, e o CDS, a IEL e o Chega, enfim, em diferentes momentos, só parecem participar quando há, de facto, algum nome que por qualquer razão mediática se torna bastante incontrolável.
José Maria Pimentel
Sim, que aí deixa de ser possível ignorar.
Nuno Garoupa
Exatamente. De outra forma, isto é problema do PS e do PSD. Mas é bizarro, não é? É completamente bizarro. E depois, o próprio papel do Tribunal Constitucional, se nós pensarmos, é curioso porque, dependendo dos ciclos políticos, o Tribunal Constitucional é visto bem ou mal de acordo com os interesses. Portanto, durante a heteroica, a direita dizia que o Tribunal Constitucional era travão às reformas que são precisas fazer e a esquerda elogiava o papel democrático do Tribunal Constitucional. Pronto, está muito bem e, portanto, temos a versão maximalíssima nisto. Bem, mas de repente agora, quando passamos à eutanásia, o discurso muda para o outro lado. É a esquerda que diz que o Tribunal Constitucional está a interferir naquilo que é o processo democrático, nas reformas que eles entendem que têm que ser feitas, e a direita que diz que o Tribunal Constitucional tem papel importantíssimo porque está a proteger a Constituição. E portanto, nós estamos constantemente a mudar quando, no facto, não estou a dizer que não podemos discutir os acordos do Tribunal Constitucional e que não podemos dizer que estão corretos, Mas, de facto, temos que ter consenso sobre qual é o papel do Tribunal Constitucional. E parece-me que o Tribunal Constitucional só tem papel quando os políticos, por qualquer razão, decidem transferir para o Tribunal Constitucional ondes de uma decisão. E aí, de facto, as coisas acontecem. Agora, se nós pensarmos, entre a troika e praticamente a decisão de Eutanasia, o Tribunal Constitucional não foi em notícia durante 5, 6,
José Maria Pimentel
7 anos. Exatamente, sim, sim. Desapareceu completamente.
Nuno Garoupa
Desaparece completamente. Portanto, se não são decisões polémicas, que eu usualmente repito, foi porque a classe política decidiu transferir para o Constitucional o ondes da decisão, tirando essas circunstâncias, ninguém parece estar preocupado com o que faz ou deixa de fazer o Tribunal Constitucional.
José Maria Pimentel
Sim, e mesmo quando há nomeações, por exemplo, houve aqui há ano, talvez, houve aquela nomeação que não chegou a ser, não é, da polémica daquele juiz, e agora houve, enfim, houve aquele problema, daquela demora gigantesca e depois daquela tensão entre os faculdades de Direito e o Imóvel de Lisboa, aí a coisa foi pouco mais discutida, mas mesmo assim se compararmos com outros temas, foi menos e sobretudo muito mais temporário.
Nuno Garoupa
Mas eu acho que o mais grave disto tudo, toda esta discussão, é aquela inconsequente, porque passado o sobressalto, volta tudo à mesma e nós não vamos voltar a ter essa outra discussão até haver outra nomeação polémica daqui a três ou quatro anos. Ou seja, as coisas são completamente inconsequentes. E uma das coisas que se saiu óbvia toda esta discussão é que nós nem conseguimos explicar como é que os nomes são gerados. Mas isso não é só no Terminal Constitucional. Isso mesmo, por exemplo, no processo da Procura da Geralda da República, ninguém consegue explicar quem é que gera os nomes, porque não há concurso. Ou seja, não é pessoas que dizem eu quero ser candidato à Procura Geral da República e depois o Primeiro-Ministro, o Presidente da República, o líder da oposição escolhe. Não. No fundo, como artigo que eu escrevi antes, isto é como no tempo do Estado Novo. Portanto, os nomes são gerados nos corredores do poder político, são negociados de forma pouco transparente e, pois, é dito que a pessoa que é nomeada é muito boa. Mas nós nem sabemos que outras pessoas foram consideradas, quem é que foi considerado e porque é que foi esta pessoa e não outra pessoa. E estou-me a recordar que a última escolha para a Procuradora Geral da República, mais uma vez, foi imensamente polémica. Talvez quem nos está a ouvir já não está recordado que o grande discussão era se há recondução ou não. E, portanto, havia teses da Constituição e uns que diziam que sim e outros que não, acabou o assunto, nunca mais se ouviu falar do assunto e continuamos na mesma. Pode ou não pode ser reconduzida? Não sei. E vamos ver se dentro de dois, três, quatro, cinco, seis anos não vamos ter a mesma discussão com os partidos em posições opostas porque agora preferem que se reconduz e os outros preferem que não se reconduz. Mas o que é muito desta discussão é que ela é completamente inconsequente, ou seja, há uma discussão, nós percebemos que há vícios institucionais, nós percebemos que há ali problema, há problemas que não são transparentes, depois a discussão morre, o assunto continua exatamente na mesma.
José Maria Pimentel
E qual era a maneira de resolver? Ou seja, como é que se gera mais transparência, mais accountability, sem retirar
Nuno Garoupa
a autonomia necessária? Eu acho que nesta questão do
José Maria Pimentel
juízo nacional... Era ter concurso.
Nuno Garoupa
Claro. Era ter concurso, ou seja, no concurso se sentia dizer quem entende que tem condições para se apresentar ao lugar, pois uma comissão ad hoc nomeada, envia os currículos e essa comissão, por exemplo no caso da própria Jornal da República, faz ranking dos candidatos, se apresenta ao Sr. Primeiro-Ministro ou se apresenta à República. Olhe, estes são os 10 candidatos, a nossa opinião é esta.
José Maria Pimentel
E uma comissão, desculpa, uma comissão vinda do Parlamento ou
Nuno Garoupa
composta por... Eu até nem teria qualquer objeção que viesse do próprio governo, mas que houvesse pessoas a concorrer. No fundo, qual é o problema?
José Maria Pimentel
Eu estou a tentar perceber quem é que está a necessariamente a comissão. São políticos ou são magistrados?
Nuno Garoupa
Poderia ser, eu não teria grande problema nem uma coisa nem outra. Porque eu acho que nós já percebemos que quando somos obrigados a fazer isso, e fomos obrigados a fazer isso, e temos sido obrigados a fazer isso, para as nomeações para tribunais europeus e para a Procuradoria Europeia, as broncas que têm sido umas a outras, não há concurso que não acabe bastante mal.
José Maria Pimentel
Aliás, há aí paradoxo engraçado que é a democracia europeia é obviamente muito eficiente, no sentido em que nós não temos uma união política, mas tem esse aspecto em que está à frente a democracia nacional do caso de Correios.
Nuno Garoupa
Claro, porque nos força a tomar conjunto de instituições que nós naturalmente não teríamos, porque seria, se não fôssemos obrigados pela União Europeia, isto seria uma nomeação do Ministro da Justiça ou do Primeiro-Ministro e seria o mesmo problema, nem se sabia, não sei o quê.
José Maria Pimentel
E o mesmo para os ministros, os comissários europeus.
Nuno Garoupa
Como são obrigados a fazer concursos, e há concursos, depois sabemos que há candidatos e depois em todos praticamente até agora, os candidatos perdedores obviamente dizem que tinham mais competências técnicas, que estavam melhor... E só não foram porque houve influência partidária, etc. Claro, podemos dizer, bem, mas isso é aspecto negativo. É, mas pelo menos é transparente porque nos cria a discussão, ok, aquela pessoa foi nomeada porque tem confiança política, pode ser positiva, pode ser negativa, mas eu sei porque aquela foi nomeada. Eu neste momento não sei, nós não sabemos porque é que as pessoas que foram nomeadas para a Procuradora Geral da Cura foram aquelas. Até temos coisas sui generis. Nas suas memórias o professor Cavaco Silva, portanto Cavaco Silva diz que na nomeação, pensou em 2011, não podem falhar as contas, da doutora Joana Marques Vidal, diz qualquer coisa num parágrafo como depois de terem sido considerados três candidatos em que não houve consenso entre Pedro Pazos Coelho e António José Seguro, surgiu o nome de Joana Marques Vidal. Quer dizer, nós não sabemos quem são esses transcaridades, porque é que não houve consenso, quem foram essas pessoas, quais foram os argumentos para que essas pessoas não podiam ser competentes para aquele lugar e depois apareceu nome que parece que fez o consenso daquelas pessoas. E portanto, eu acho que isto é o típico instituição que é herdada do Estado Novo, porque não é isso em dúvida. Tal como o Terminal Constitucional, a grande questão que não se percebia, quanto a mim, daquele nome muito polémico, o ano passado, que levou a toda a celebração do Terminal Constitucional, era como é que aquele nome surgia? Quer dizer, quem é que estava a propor aquela pessoa? Porquê que era aquela pessoa?
José Maria Pimentel
É feito nas sombras, não é?
Nuno Garoupa
Exatamente. Uma pessoa que até, independentemente das ideias que tinha, parecia uma pessoa que está já no final da sua carreira académica. Porquê que está a ser nomeada esta pessoa? Qual é o argumento? E a reação do Tribunal Constitucional era, ninguém tem que participar nesta discussão. Isto é problema interno. Só os 10 juízes é que temos direito a saber isto. Os outros têm todo... Aquilo não pode ser. Uma coisa é, os 10 juízes é que votam, obviamente, eles é que vão votar. Agora, tem que ser explicado porque é que são escolhidos estes nomes e não foram escolhidos outros nomes? Sim, porque é uma
José Maria Pimentel
instituição da democracia, como várias outras. O que eu acho curioso neste caso, neste e noutros, enfim, não é caso único, para todos os efeitos há aí equilíbrio, ou seja, há esquema, há uma maneira de fazer as coisas que existe já há décadas, num equilíbrio, no sentido em que é estável, e que apesar de tudo exige uma coordenação entre lá está partido que está no poder e outro que está na oposição, até os outros partidos de modo próprio afastarem-se do processo, o poder judicial, e mesmo entre os vários candidatos estarem de acordo e não rebentarem a bolha, digamos assim. É curioso isso persistir, não é? Onde eu quero chegar é que havia... Não para ser equilíbrio muito estável, não é? Descrito assim, não é? Porque tanto os dois partidos, como os outros partidos, como dentro do poder judicial... Mas na
Nuno Garoupa
verdade o mais curioso do caso português, comparado com o que tem acontecido em Espanha e em outros países, é que nós copiámos exatamente a receita alemã. Nós desde 82 que decidimos que atrás dos juízes seis são da direita, seis são da esquerda, isto depois evidentemente evoluiu para seis do PS, daí seis do PS, não era necessariamente assim, e o 13º é por consenso desses juízes. O que é interessante é que, como estamos a dizer, como nós temos essa regra, ao contrário dos espanhóis, o programa em Espanha é que, como não há essa regra, o partido que fica muito prejudicado bloqueia as nomeações, não é? Portanto, a crise constitucional que vivemos há este último ano foi o PP, vetou as nomeações do PSOE, não é? Porque o PSOE não tinha maioria suficiente para impor os seus lugares e meteu, na minha opinião, cegamente, a decisão de negociar com o Podemos, quando o Podemos não faz maioria. Portanto, negociar é que o PP não conseguiu. Agora, qual é o problema? O interessante nosso é que o bloqueio veio dos juízes eleitos do Tribunal Constitucional, dos cooptados, não veio da Assembleia da República. O PS e o PSD, eles negociam sempre as suas cotas. O problema foi dentro do Tribunal Constitucional, nos cooptados, que era previsto serem os que desempatam, e não os que empatam, que criaram o problema. E daí vem a tal história, se foi a Faculdade de Direito de Coimbra contra a Lisboa, se foi problema de perfis, enfim, de degos, isso nós não sabemos, não vale a pena darmos a especular. E, portanto, o sistema acaba por funcionar na parte que não era suposto ser assim que é, nas cotas dos partidos, não funcionou por problema interno que não é claro porque é que não funcionou, nem é claro que se vai se repetir o problema ou não se vai voltar a repetir o problema e por isso eu também, na altura, a minha opinião é que não devemos agora ir mudar a Constituição para resolver bloqueio que nós não sabemos exatamente de onde é que ele veio e para onde é que ele vai, porque é possível que seja bloqueio por problema de egos pessoais e que não se voltará a repetir tão cedo.
José Maria Pimentel
Não sabe se é sinal ou se é ruído. Exatamente.
Nuno Garoupa
Mas o curioso é que é completamente diferente dos bloqueios que têm existido em Itália ou em Espanha.
José Maria Pimentel
Aliás, fazendo bocado a devogada do diabo, este é contrário que acho que já ter ouvido várias vezes, não é? Não é argumentável dizer que este modelo impede justamente a politização do Constitucional, como acontece em Espanha e nos Estados Unidos, por exemplo?
Nuno Garoupa
O que eu acho que ele tem feito é que ele tem evitado que dos dois partidos consiga ter poder enorme no Tribunal Constitucional, porque no fundo, se seixam de lado e seixam do outro, é muito difícil isso não acontecer. Eu acho que houve, de facto, uma exceção em toda a história do Tribunal Constitucional, que foi a fase da austeridade, mas eu acho que A grande questão da austeridade é que ela rompeu barreiras meramente ideológicas, isto é, havia vários juízes próximos do PSD que também não queriam austeridade. E, portanto, isso rompeu completamente a questão das barreiras ideológicas. Aliás, Pedro Passos Coelho, na altura, chegou a fazer, num dos seus comentários, que o PSD deveria ter mais cuidado a selecionar os juízes que iam para o Tribunal Constitucional, o que eu penso que ele estava a dizer, enfim, para sermos benevolentes, e eu penso que é isso que ele estava a dizer, que descobriu que tinha nomeado para o Tribunal Constitucional pessoas que tinham uma visão da sociedade que não era a visão do PSD, mas que afinal era a visão mais próxima do Partido Socialista. Mas eu acho que esse foi o único período em que isso é verdade. Portanto, o nosso Tribunal Constitucional, desse ponto de vista, é Tribunal Constitucional bastante equilibrado. Agora, é tribunal constitucional que de facto, pelo seu sistema de nomeação, e aqui entra na questão geral da cultura política, claro, a percepção geral é que aquilo é para aparatos chiques dos partidos e que, portanto, não há sistema exigente de nomeação, mas isso, voltamos à minha questão, eu acho que o problema não é o Tribunal Constitucional, o problema são os partidos políticos. Deixamos só dar tema ao lado, que também é importante a chamar a atenção, que é tema que não está no meu livro, porque não era tema tão importante em 2011, 12, 13, mas que é muito importante, que são as portas giratórias. Ou seja, os juízes que andam na política e depois voltam para os tribunais. Isso era fenómeno bastante menos frequente antes de 2010, apesar de já haver alguns dessas pessoas.
José Maria Pimentel
Não, tu referes isso no livro. Não é tema... Não, tema
Nuno Garoupa
tão... Já havia no tempo do governo de Guterres, do governo de Durão e no governo de Sócrates, há algumas pessoas, mas não era nada como foi no governo de António Costa, em que chegaram a haver 16 juízes em cargos de nomeação governamental. A determinação governamental. Isso é problema muito complicado e lá está. Quando nós olhamos para esse problema e percebemos neste último ano que o próprio Conselho de Suprema Estratura pediu para que fosse alterada a lei para não facilitar as portas giratórias e é o próprio IPS e PSD que não fazem isso na Assembleia da República, nós percebemos que o problema não são as judicaturas, não são os magistrados, é a cultura política, porque é bem visível que do ponto de vista do magistrado, não quer dizer que todos, mas pelo menos os que estão representados, eles também acham que as portas e diretórios começam a ser problema grave.
José Maria Pimentel
Claro, aliás, porque há aqui, no fundo, há aqui ponto crucial, não é? Uma coisa é o que é benéfico para uma minoria de pessoas que calha serem magistrados, outra coisa é o que é benéfico para o poder judicial como todo, que obviamente não é isso,
Nuno Garoupa
não é? Obviamente, obviamente. E isto não quer dizer que as pessoas não tenham que ter a capacidade e a oportunidade de escolher as opções na vida que querem. Eu acho muito bem e percebo que pessoas que estão nas minhas literaturas, a certa altura, decidem fazer a carreira política. Parece-me perfeitamente razoável, como parece perfeitamente razoável que isso se faça nas forças armadas ou que se faça no corpo diplomático. Agora, quem está nesses corpos que se exige o mínimo de exigência, tem que perceber que quando faz essa opção, depois tem que sair do outro corpo, não é? Quer dizer, não pode voltar para exercer funções nesse corpo. E isso obviamente cria problemas, e eu penso que se vão agravar, quando nós começamos a ver muitos magistrados nos Tribunais Superiores, em particular no Supremo Tribunal, que são pessoas que foram Secretários de Estado ou que tiveram chefes de gabinete ou que exerceram funções de natureza política e que eventualmente estarão a decidir processos que envolvem políticos ou decisões eventualmente de natureza sensível do ponto de vista político e eu acho que isso vai criar problemas de legitimidade. Não é fenómeno único, bem sei, nós tivemos o mesmo problema em Espanha. Na própria Alemanha há este problema que ninguém estava muito preocupado enquanto esses juízes eram da CDU ou do SPD, agora quando passam a ser pessoas do Alternative for Deutschland, de repente passou a ser grande problema que querem alterar completamente isso, porque é evidente que o problema agora é que inclusivamente neste último golpe de Estado fantoche que houve da tentativa da extrema-direita de implementar a monarquia na coisa. Duas das pessoas envolvidas são juízes dos tribunais alemães, que eram pessoas que tinham sido deputados do Alternativo für Deutschland e que simplesmente voltaram às magistraturas, são magistrados e por acaso estão envolvidos num golpe de Estado, numa tentativa de golpe de Estado. E, portanto, isso começa a levantar questões de... As portas giratórias têm que ser acauteladas.
José Maria Pimentel
E tu defendes uma coisa rígida de... Sai e não volta.
Nuno Garoupa
Exatamente, eu defendo que sai e não volta. E sai com os direitos todos adquiridos em termos de pensões, de promoções, etc. Mas não volta, pois evidentemente. Aliás, como temos tido muitos exemplos dos quais, obviamente, dos mais conhecidos é o Dr. Fernando Negrão, que obviamente a certa altura saiu e foi se dedicar à política e fez a sua carreira política, não voltou às maestraturas, não é? Portanto, temos muitos exemplos de pessoas que fizeram isso. E esse é o que eu diria que é o regime que se deve aplicar. Quem sai, não volta.
José Maria Pimentel
Voltando à questão da prestação de contas, da transparência do Poder Judicial, tu defendes, na nomeação, defendes, no fundo, que haja transparência, que exista uma comissão, que se unisse aos candidatos de modo a que possa haver algum escrutínio, mesmo, quer dizer, e sendo realista, é desejável que se mantenha, pelo menos é a minha opinião, que se mantenha parte do poder de escolha de quem percebe o assunto, mas que exista transparência, como de resto era desejável que houvesse para outros cargos, de reguladores e até de ministros. É isto, certo? Certo. Resume bem. E depois, durante o mandato, a minha dúvida é, durante o mandato tu defendes também algum tipo de prestação de contas ao Poder Legislativo?
Nuno Garoupa
No caso do Tribunal Constitucional, como no caso da Procura Geral da República, eu acho que os mecanismos durante o mandato não têm que ser muito exigentes porque as pessoas têm mandatos limitados. E portanto são mandatos de tempo limitado. Outra questão é nos tribunais em que as pessoas fazem a sua carreira ao longo de 30 ou 35 anos. Eu aí acho que tem que haver mecanismos de avaliação e esses mecanismos de avaliação, obviamente, serão mecanismos internos. Quer dizer, não são mecanismos que têm que ser feitos pelos próprios políticos, deviam ser feitos mecanismos dos próprios conselhos. Agora, eles têm que ser feitos porque o que nós assistimos sistematicamente é que, por exemplo, os dados indicam que existem importantes variâncias em termos de produtividade e de decisões nos tribunais, estamos a falar do STJ e do STA, isso tem que ser justificado, quer dizer, não pode ser, há porque sabemos que há juízes mais produtivos que outros, mas vamos fingir que isso não é problema, que isso não existe. Porque quando eu e outras pessoas estamos envolvidos neste género de estudos, o que se descobre é que há imenso manancial de informação sobre o funcionamento dos nossos tribunais e dos nossos magistrados que depois não está pasmado em nenhum documento oficial, nem faz parte de nenhuma decisão e, portanto, inspeções judiciais... Ah, todos sabemos que há problemas com as inspeções judiciais, mas não se discutem as
José Maria Pimentel
inspeções judiciais. As inspeções judiciais é a auditoria interna.
Nuno Garoupa
É, as auditorias internas que se fazem. A certa altura, por exemplo, num estudo que se fez, perguntava-se, mas se o Código de Processo Civil já permite a opção por procedimentos orais, inclusive a sentença oral, porquê que isso, isto não me refere ao ano 2013-14, que é na altura que fizeste o estudo, porquê que são exatos em 5% das decisões? Quer dizer, nos Estados Unidos são 90%, no Reino Unido são 90 e poucos por cento, na Alemanha são 60%, porquê que em Portugal é 5% apesar de isto estar previsto na lei há 10 anos? E a resposta era, porque as inspeções judiciais só querem ler as decisões escritas e, portanto, se eu quero ser promovido para o Tribunal da Regulação, eu tenho que fazer decisões escritas porque se faço oral sou prejudicado na minha classificação. Ora, nada disso está na lei, isto não é reflexo da lei, nem de formalidades. Isto são práticas e práticas que têm que ser discutidas e que normalmente o sistema é muito reticente a discutir e a mudar e lá está. Como não há critérios quantitativos nem há qualquer indicadores, continuamos a usar as velhas inspeções judiciais para fazer este tipo de decisões em relação às promoções.
José Maria Pimentel
Mas isso no fundo, isso é problema de uma natureza pouco diferente daquilo que estávamos a discutir, no sentido em que isso prejudica quem está lá dentro, não é? É problema organizacional, não é? Não, claro.
Nuno Garoupa
E no fundo intruso aquilo que nós em Economia estamos sempre a chamar, que não sei bem qual é a tradução em português, da stickness das normas, não é? Que as vezes normas persistem. A persistência das normas não tem uma base legal, formal, ou seja, não é porque a lei manda fazer, mas é porque se faz assim há muitos anos e se continua a fazer assim. E portanto, não houvem de fatores perturbadores, ou seja, que venham a alterar esse tipo de normas, as normas persistem e depois nós fazemos imensas reformas e perguntas, mas porquê que as reformas não têm qualquer impacto? Não têm porque há conjunto de normas internas, profissionais, que continuam a funcionar assim. Vou dar outro exemplo, que também tem sido recorrente.
José Maria Pimentel
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Nuno Garoupa
Agora já é consensual que o grande problema são os megaprocessos, que os megaprocessos não funcionam. Bem, mas porquê que os megaprocessos não
José Maria Pimentel
funcionam? É consensual agora.
Nuno Garoupa
Exatamente, porquê que funciona? Porque era consensual há 15 anos que ter processos conexos com procuradores diferentes a fazer investigações separadas era dos grandes problemas de porque é que nós não tínhamos combate efetivo à criminalidade financeira e à corrupção. Então criámos os megas processos e agora, 15 anos depois, estamos a dizer afinal agora são os megas processos. Não, porque o problema continua a ser conjunto de normas internas de funcionamento do Ministério Público que evidentemente não são corrigidas e que, portanto, seja qual for a estrutura que se vá usar, vamos continuar a bater nesse conjunto.
José Maria Pimentel
Mas que são quais e gera o quê?
Nuno Garoupa
Por exemplo, que não há, de facto, a responsabilização hierarquizada das decisões, que, por exemplo, as promoções continuam a ter... Não vou sugerir, como se faça em outros países, que só sejam promovidos os procuradores que têm taxas de êxito de 60 ou 70 ou 80%. Mas não é aceitável que haja procuradores a ser promovidos que sistematicamente não têm taxas de sucesso elevadas. Tem que ser avaliados. Claro que os procuradores não querem ouvir falar disso, não querem ouvir falar de ser avaliados pelas taxas de êxito, mas tem que haver. Quer dizer, não é possível.
José Maria Pimentel
Mas não querem porquê? Porque depois tem
Nuno Garoupa
a ver também com a cultura portuguesa.
José Maria Pimentel
Talvez mais por isso, porque na verdade beneficia quem...
Nuno Garoupa
Não vamos só batendo os procuradores, porque nós sabemos que os professores também não queriam ser avaliados e ninguém quer ser avaliado, mas quer dizer, a questão é que nós temos sucessivamente...
José Maria Pimentel
Mas uma certa desconfiança do sistema também, que não é injustificada. Obviamente,
Nuno Garoupa
não é possível continuar a insistir, por exemplo, que há uma série de situações em que obviamente houve falhas objetivas dos inquéritos e que essas pessoas não sejam responsabilizadas nas promoções. Outra coisa, que obviamente não faz sentido, é estar a responsabilizá-los naquele inquérito em particular, suspendendo procuradores, penalizando procuradores. Mas tem que ser visto numa avaliação total. E não pode ser que os procuradores passem a vida a dizer que não são responsáveis pelas consequências das decisões que tomaram nos vários inquéritos, que é o que neste momento nós estamos a assistir. Mais uma vez, insisto, isso não é aspecto unicamente, digamos, daquela corporação, é aspecto da cultura corporativa que nós temos em Portugal.
José Maria Pimentel
Sim, E na verdade, quer dizer, há aqui... Desculpa estar a insistir neste ponto, mas eu acho que há aqui duas dimensões que é importante distinguir. Porque uma é uma certa opacidade institucional, que existe, não é só o caso do Poder Judicial, não existem várias instituições portuguesas, e no fundo quebrar ou diminuir essa opacidade em nome da accountability e no fundo em nome da democracia e de uma governação mais eficiente no geral. Outra, esta é a questão que tu estás a relatar, que na verdade é uma questão de organização interna e que, ao contrário da outra, que no curto prazo até pode beneficiar os magistrados, neste caso não parece nada óbvio que beneficie os magistrados, beneficia alguns e prejudica outros, não é?
Nuno Garoupa
Obviamente, mas aí voltamos à mesma coisa.
José Maria Pimentel
Então é bloqueio, não é? É
Nuno Garoupa
bloqueio, mas nós temos que pensar uma coisa, é que, no fundo, o que se está a dizer é de forma diferente. Há questões que são questões, digamos, pontuais, em que nós ainda estamos muito longe da nossa, digamos, utilizando outra vez a linguagem económica, da nossa fronteira de possibilidades. E portanto nós podemos melhorar e aproximarmos dessa fronteira de possibilidades. Isso tem a ver com melhorias de gestão, melhorias de organização interna, que tem a ver com a questão da forma de incentivar os procuradores e os juízes. Outras questões são questões em que nós temos problemas graves, mas na verdade nós estamos na nossa fronteira de possibilidades, ou seja, não é possível melhorar sem melhorar o contexto. E o exemplo que eu costumo dizer é que não vale a pena, nós estamos a discutir como é que nós vamos ter umas magistraturas muito eficientes num país que tem uma administração pública muito ineficiente. Isso é como se estivesse a dizer, eu quero ter call and back, mas vou meter o motor do Rolls Royce. Eu posso ter o motor do Rolls Royce, mas ele não anda, porque ele tem toda a outra parte estrutural numa companhia. E muitas das questões que nós estamos às vezes a falar na área da justiça são reflexos de problemas de contexto. E que, portanto, estamos a perder o tempo, porque nós não vamos conseguir corrigir isso. Quando aquilo que podemos corrigir se calhar é muito menos ambicioso, mas pode ser pontualmente aquilo que pode fazer alguma diferença, pelo menos durante algum tempo. E para dizer a verdade, algumas dessas coisas nem vêm de melhorar, porque nós temos as estatísticas da justiça, por exemplo, na área civil e na área, digamos, penal, fora da criminalidade financeira, que não são muito diferentes do resto da Europa. Portanto, nós estamos vindo a fazer essas pequenas melhorias. Agora, isso não tem impacto grande naquilo que é a imagem da justiça.
José Maria Pimentel
Está a falar com estatísticas do constitucionamento, ou seja, do
Nuno Garoupa
número de casos? Do constitucionamento, a própria duração dos processos, quer dizer, há coisas que têm vindo lentamente.
José Maria Pimentel
Pois, e ser objetiva, porque olhando para os números, tem melhorado desde o teu ensaio.
Nuno Garoupa
Sim, os números têm vindo.
José Maria Pimentel
Menos no administrativo, creio que não tanto.
Nuno Garoupa
Sim, mas quer dizer, mas lá está, também essas melhorias, que se são melhorias, claro, que se são melhorias porque há menos processos, porque as pessoas também vão desistindo de pôr processos e portanto há menos congestão porque também há uma quebra de processos, não é? Ou se são melhorias porque nós expandimos muito o número de juízes e portanto, obviamente, os juízes até podem ser menos produtivos individualmente, mas coletivamente são mais produtivos que há mais e portanto isso é discutível. Sim, mas
José Maria Pimentel
isso nunca se saberá.
Nuno Garoupa
Pois, mas o que eu quero dizer é, as estadísticas mostram que há melhorias. Agora, elas não são melhorias espetaculares ao ponto de estarmos a dizer que resolveram os constrangimentos que nós tínhamos. A minha percepção, por exemplo, enfim, porque as estatísticas também não são muito específicas, mas a minha percepção é que fora da área da criminalidade financeira e da grande corrupção, o nosso sistema penal não é exageradamente ineficiente. Isso quer dizer, para aquilo que será o colarinho azul, digamos assim, o sistema até é capaz de ser bastante mais rápido e pesado do que é noutros países. Agora, de facto, o sistema não consegue lidar com a criminalidade financeira e com a questão. Por exemplo, como estava a dizer, eu acho que na área civil provavelmente estamos a ter indicadores que já não andam muito longe de outros países europeus. Onde é que nós temos o problema? Administrativo fiscal e problema de execução. Isto é, executar muitas daquelas decisões que os tribunais fazem e que depois é preciso executá-las porque alguém não cumpre. Aí continuamos a ter algum desse tipo de problemas. Por exemplo, em família, qual é o nosso problema? O nosso problema é que, de facto, ao criar todo o sistema de divórcio amigável e tudo isso, nós esvaziámos muito os tribunais de problemas de divórcio. Mas temos problemas agora de incumprimento dos acordos de divórcio, nomeadamente em relação a pensões de alimentos, custódias, etc. Mas isso
José Maria Pimentel
já podias ter, já terias antes também, não é?
Nuno Garoupa
Só que nem chegávamos aí porque estávamos com problemas... Ah, ok,
José Maria Pimentel
mas menos mal.
Nuno Garoupa
Só que aí de facto o sistema, por exemplo, revela-se mais uma vez lento e claro, quando estamos a falar de custódia e de pensões de alimentos, levar dois, três, quatro anos, de facto é grande problema, porque as crianças não estão à espera quatro anos para o senhor juiz decidir. E portanto, nós temos vindo a melhorar, mas de facto, lá está, são melhorias que têm fundamental a ver com questões de desconjustamento e de gestão, mas não necessariamente melhorias estruturais. Em parte também, e é outro tema que eu sei que querias falar, que nós não falámos, que é, claro, nós temos o sistema de justiça, podemos criticar os magistrados e tudo isto, mas a função deles é aplicar as leis. Se as leis não estão bem feitas, é outro problema que aqui se adiciona. E dos grandes problemas que nós temos, como tu sabes, é que nós, desde a agenda de Lisboa, portanto há cerca de 25 anos, que andamos a conversar sobre introduzir medidas de qualidade de legislação que nós não introduzimos. Nós continuamos a não ter avaliação retrospectiva e perspetiva de legislação, nós continuamos a ter uma avaliação de impacto muito mínima, continuamos a ter legislação a torte e a direito, todos os juízes queixam que não conseguem perceber qual é o quadro legislativo, porque nós temos excesso de legislação. Foram feitos avanços, novamente. Foram, mas não são infelizmente os suficientes. Isto é como dizer, enfim, para quem é economista e nos ouve, percebe perfeitamente o que eu vou dizer. Nós não nos podemos confundir, o problema não é a primeira derivada, a primeira derivada é positiva, o problema é a segunda derivada, é a velocidade a que as coisas estão feitas e infelizmente não são feitas a uma velocidade que seria desejável, o que significa que nós estamos melhor, mas por comparação com outros países nós continuamos a perder terreno porque os outros estão a avançar mais rapidamente.
José Maria Pimentel
Antes de irmos à avaliação legislativa, para já queria voltar ainda ao poder judicial e aquilo que tu estavas a falar agora que é da evolução nos últimos anos, e no fundo há aqui evolução de sentido contrário, porque o filme que tu estiveste a descrever é filme em que na justiça civil há uma evolução positiva, ou seja, há menos congestionamento, os números estão a melhorar, na administrativa já não, e na administrativa fiscal já não, sendo que dentro da justiça civil também tens a questão dos crimes de colorinho branco, que são uma mancha, no fundo, de uma evolução positiva, e que são o que dá mais nas vistas, ou seja, para o cidadão comum, enfim, e eu aqui no quadro no cidadão comum, é o que dá mais nas vistas.
Nuno Garoupa
Mas eu acho que os problemas também aí, podemos ver que os problemas são diferentes, quer dizer, na área administrativa e fiscal, fundamentalmente a área fiscal, há questões administrativas também, obviamente, licenças, decisões das câmaras, decisões do governo que são ilegais, mas a questão é fiscal. A questão fiscal também é fácil de explicar e é fácil perceber que mais uma vez foi fala de visão. Quer dizer, se nós vamos reformar a ATE e vamos transformar a ATE numa máquina ineficiente de impostos, é óbvio que vamos passar de ter o falso negativo, que era ele não paga impostos quando deve pagar, para ter o falso positivo, ou seja, ele tem que pagar impostos quando não deve. Portanto, o que se devia ter feito logo era reformar os tribunais fiscais para estarem preparados para a enchente de processos que iam ser decorrentes da reforma profunda que se estava a fazer, o Paulo Macedo que se estava a fazer, nada a ter. Não se fez, não se mexeu. E portanto, ao não se mexer, criou-se uma bola de neve que obviamente 10, 15 anos depois reabentou em todos estes tribunais. E dos quais a única solução que arranjaram foi a arbitragem, que não resolve porque a arbitragem tem interesse obviamente, digamos, para as empresas, enfim, para a grande...
José Maria Pimentel
Pois existe arbitragem entre o Estado e privado? Sim, o CAD, não é? Ah, não sabia, não sabia.
Nuno Garoupa
O centro que faz a arbitragem fiscal. Que levanta outros problemas. Eu próprio estive envolvido em algumas polémicas, discussões com o Cado, porque, claro, há falta de transparência na nomeação dos árbitros, as pessoas rodam, porque obviamente o país é pequeno e, portanto, o número de fiscalistas não é muito grande e, portanto, aparecem pessoas que dia são árbitros, mas depois também são advogados às partes e depois também tiveram algumas das funções políticas e, portanto, há todo aqui depois problema que só se resolve com muita transparência porque, obviamente, nós não podemos gerar pessoas, enfim, perdoem lá, trás dos montes, mas pessoas vindas trás dos montes, lá de trás dos montes, literalmente, não é trás dos montes da nossa geografia, trás dos montes que apareçam a fazer, e portanto, só se resolve isto com transparência. Mas eu acho que aí, mais uma vez, foi falhanço de previsão, Porque era evidente, quer dizer, se nós vamos ter uma autoridade tributária muito mais proactiva, nós vamos ter muito mais litígio, obviamente. Porquê que havia muito menos litígio antes? Porque as pessoas não pagavam impostos. Nem havia grande coisa para litigar. As regras do IVA que mudaram, os problemas do IRC, tudo isso são coisas que nós estávamos mesmo a ver que iam criar isto.
José Maria Pimentel
Sim, se tens uma A.T. Mais assertiva é normal que...
Nuno Garoupa
Quando, por exemplo, se tomam aquelas decisões de transformar a A.T. No cobrador do frac, das portagens e outras coisas, aquilo parece bom para o Estado? Parece, porque cada vez que se dá descoberança o Estado vai ganhar uma porcentagem. Qual é o problema? Obviamente vai haver litígio a prazo, porque vai haver muita gente que vai litigar a cobrança da portagem, aquelas multas completamente desproporcionais e tudo aquilo. De repente uma nuvem de processos cá em cima dos tribunais, pessoas a litigar, a empolgar as cobranças de portagens. Portanto, as coisas eram previsíveis, simplesmente não se fez nada, e agora está-se a tentar, de forma ad-hoc, a tentar resolver o problema. Arbitrais, uma vez mais, obviamente contribui para a solução, mas não é a solução, e na minha opinião, cria outras questões que seriam mais complexas. Na questão da criminalidade, do colarinho branco, eu acho que o grande problema tem a ver com duas questões. Primeiro, que não se formaram a tempo pessoas para o Ministério Público que entendessem da complexidade. Isto tem a ver com a velha questão, que só têm juristas, portanto não foram buscar pessoas de contabilidade, não foram buscar pessoas de gestão para coadjuvar equipas multidisciplinares que estivessem preparadas para aquilo que era óbvio que vinha aí, que era esse o problema.
José Maria Pimentel
Era óbvio, mas eu suspeito que não sejamos o único país com esse problema.
Nuno Garoupa
Não, mas os problemas foram mais rápidos do que nós fomos. Por exemplo, os italianos e os espanhóis há muito tempo constituíram intercambios de unidades, por exemplo, entre o Banco Central e o Ministério Público, para que o Banco Central possa dar know-how do que é que estes crimes são ou potencialmente são. E nós continuamos, vamos muito tempo a criar esse know-how. Mas depois eu penso que isso junta-se segundo aspecto que é a estrutura do nosso direito está voltada para a punição e não para a recuperação de créditos ou património. E portanto, de repente, nós descobrimos que estamos todos muito mais preocupados em quantos anos de prisão é que se quer dar a Salgado, ou alegadamente ao Granadeiro, ou alegadamente ao Bava, quando a discussão que interessa era quanto património é que desapareceu e como é que se recuperam esse património. E o que nós estamos a ver, sistematicamente, é que o Ministério Público vem dizer nós não estamos mandatados nem entendemos que a nossa responsabilidade é andar à procura desse património. E podemos ver, já neste momento, quer no BEX, quer nos casos anteriores do BPP e do BPN, o recuperação de património foi mínima. Nós temos que fazer recuperação de ativos, quer dizer, o sistema penal na área do cloridinho branco tem que estar vocacionado para a recuperação de ativos e menos para saber se vamos ter uma punição muito grande ou muito pequena para as pessoas que fizeram o que fizeram. Porquê?
José Maria Pimentel
Mas isso não daria para ter duas equipas diferentes?
Nuno Garoupa
Não, não, não é nem a questão das equipas, é uma questão do foco. Quer dizer, o foco não é tanto quantos crimes é que nós vamos acusar a pessoa A ou B, se vamos acusar por 67 crimes, por 75 crimes ou por 83 crimes. O objetivo deveria ser como é que se faz a recuperação de ativos e para recuperar ativos que crimes é que nós temos que acusar estas pessoas.
José Maria Pimentel
De acordo até aí, mas o único objetivo não é, ou não é o objetivo único rever o dinheiro, não é? Há uma parte de punição, quer dizer, as pessoas esperam no fundo, quer dizer, para falar curto e grosso, que as pessoas vão parar a cadeia.
Nuno Garoupa
Sim, mas o problema é que neste momento as pessoas não vão parar à cadeia e não há recuperação
José Maria Pimentel
da demanda. Não, certo, de acordo.
Nuno Garoupa
Portanto, não há absolutamente nada de nada. E o
José Maria Pimentel
dinheiro, enfim, a recuperação do dinheiro podia acontecer mais cedo do que...
Nuno Garoupa
Obviamente que todos percebemos que há elemento social de punir estas pessoas de forma clara, sem dúvida. Agora, isto também nos leva depois exatamente como é que nós queremos fazer isso, não é? Porque reparem, nós ainda por cima no nosso sistema jurídico temos cumulativo de penas, coisa que por exemplo outros países não têm. Nós temos coletivamente. Portanto, a certa altura estamos a perder tempo porque nós sabemos que as pessoas não vão cumprir mais do que 20 ou 25 anos de cadeia, sejam 10, 20, 100 ou 400 crimes, porque simplesmente não há cumulativo de penas, não é?
José Maria Pimentel
É, é verdade, mas o Ministério Público não está a jogar por cima para compensar perdas pelo caminho. Claro, mas tudo isto
Nuno Garoupa
se transforma depois num problema nesse problema, não é? Quer dizer, no fundo, depois o que estamos a assistir é, acusa-se de muitos crimes para ver se consegue condenar as pessoas de alguns crimes. Exatamente. Depois, temos muitas situações em que o Ministério Público, ele próprio vem dizer que pede a absolvição do réu porque, afinal, não havia provas constitutivas dos crimes. Quer dizer, quando nós olhamos para isso, temos que perceber que, obviamente, há uma enorme ineficácia. Pode ser ineficácia do Ministério Público, pode ser ineficácia da lei, pode o que seja. Agora, o que não é possível é dizer assim, em crimes de corrupção nos últimos 15 anos, a taxa de condenação transitada em julgado é inferior a 10%. Desculpem, portanto isso significa que ou foram feitas muitas acusações que não deviam ter sido feitas e portanto é problema de excessiva criminalização ou há problema de má gestão, quer dizer, o que não é possível é dizer que sistema que tem uma taxa de êxito, 10% é sistema...
José Maria Pimentel
Não, certo, sim, sim, aí quanto a isso...
Nuno Garoupa
Mas eu estou aberto a queixa de diferentes explicações. Portanto, quando os procuradores dizem que a culpa é da lei, eu não estou a dizer que a culpa é dos procuradores, eles podem ter razão. A culpa é da lei, o que não podemos é dizer que é sistema de êxito.
José Maria Pimentel
Não, aí de acordo. Mas é isso, ou seja, pode ser problema da lei, pode ser problema de
Nuno Garoupa
recursos insuficientes, pode
José Maria Pimentel
ser problema de estratégia de investigação, não é? Sim.
Nuno Garoupa
Portanto, há muitas coisas que podem justificar. Mas qual é o teu palpite? Eu acho que é misto de tudo. Acho que há coisas já também que são perversões. Muitos anos, por exemplo, uma das coisas que nós estamos a falar de segurança e justiça, eu acho que dos problemas que já está a acontecer é que há uma imensa frustração dos efetivos da Polícia Judiciária, dos efetivos do Ministério Público, por muitos destes processos acabarem em prescrição e, portanto, acabam por sair na comunicação social, que é a única forma de dar a conhecer ao público aquilo que está a conhecer. Conseguir alguma coisa. Exatamente. E, portanto, isso é perverso, é, mas é compreensível, também é, não é? Quer dizer, porque quando as pessoas dizem o segredo de justiça, bem, o segredo de justiça só é problema porque os processos levam 10 anos, porque em processos que levam 2 anos o segredo de justiça não é grande problema porque não se esperamos 2 anos, o Ministério Público faz a acusação, a investigação, a acusação e daqui a dois ou três anos nós vamos saber. Agora, se os processos levam dez anos, a certa altura, quer dizer, o que é que aconteceu? O que está a acontecer? E nós vemos, quer dizer, com este processo que está no Tutti Frutti, não há argoídos ao fim de 7 anos? Como é que isso é possível? Agora, se é o Ministério Público é totalmente ineficiente, se é o Ministério Público não tem recursos, se é problema da lei e da forma como nós constituímos argoídos na lei, se é inclusivamente problema que eu acho que começa a haver da opinião pública, isto é, é verdade que os processos levam muito tempo, mas muitos dos processos o Ministério Público também não se sente à vontade a arquivá-los porque tem medo que ao arquivar vai ser acusado de captura política ou de estar a favorecer os interesses. Portanto, Os processos estão ali a burburar porque o Ministério Público não tem coragem política de os arquivar.
José Maria Pimentel
Às vezes é cuidado do contrário, de querer dar nas vistas...
Nuno Garoupa
Exato. E portanto, todo este conjunto de circunstâncias pode ajudar a explicar porque é que em muitos processos nós temos estas coisas que não são muito claras de como é que acontecem, não é? Quer dizer, e portanto, as coisas são como são. O que eu acho é que muitas destas questões já têm tantos fatores que se nós nos quisermos sentar a tentar resolver vai ser muito complicado, porque qual é o fator que explica isto? Não é claro. E nós podemos até dizer, olha, mudamos isto, mas ainda piora porque afinal o problema não era bem esse, era outro.
José Maria Pimentel
Por exemplo, só olhando para a lei o problema pode ser, provavelmente pode ser mais do que estes dois, mas pode ser pelo menos uma lei eventualmente demasiado garantista, de lado, mas também uma lei que permite uma série de recursos.
Nuno Garoupa
Mas aí é que está, em minha opinião, há muito tempo, é que o problema depois é uma certa hipocrisia de assumir isso, porque assim, eu acho que argumentos fortes para nós termos uma lei garantista e generosa em recursos, quer dizer, nós saímos de estado ditatorial, nós queríamos de facto que não houvesse, e nós valorizamos muito que não haja pessoas inocentes a cumprir pena de prisão, e portanto queremos ter sistema muito garantista.
José Maria Pimentel
Mas há lado, desculpa, não percas a vocinha, mas há lado dos recursos que é até administrativo, Ou seja, tem que ver com os prazos, com o poder, com apenas recursos administrativos.
Nuno Garoupa
A questão é que se nós dissemos, eu quero ter sistema muito garantista, que eu acho que há, volto a dizer, acho que há argumentos filosóficos fortes para dizer que eu quero, mas então eu tenho que assumir a consequência disso. E a consequência disso é que haverá muita gente que comete crimes importantes e que não vai ser condenada, porque eu tenho sistema garantista. Lá está, como eu não quero, voltando à nossa linguagem económica, como eu não quero ter falsos positivos, isto é, inocentes acusados, então eu vou ter falsos negativos, vou fazer a absolvição de muita gente que na verdade é causada. Agora, o nosso problema é que depois eu acho que há uma certa hipocrisia, porque nós queremos sistema garantista, mas ao mesmo tempo queremos sistema que seja muito exigente na corrupção. Isso não é possível.
José Maria Pimentel
Eu acho que não são as mesmas pessoas que querem o sistema garantista em si.
Nuno Garoupa
Mas eu até acho que há pessoas que fazem os dois argumentos ao mesmo tempo, numa tentativa de dizer que não há trade-off, ou seja, que eu não estou a fazer escolhas. Não é possível, porque se eu tenho sistema garantista, obviamente vai ser muito complicado fazer sistema que seja altamente punitivo e coercivo. Se eu quero ser punitivo e coercivo, então não posso ter sistema tão garantista.
José Maria Pimentel
Mas é argumentável dizer que mesmo dentro de sistema garantista dava para fazer melhor.
Nuno Garoupa
Claro, e aliás nós estamos aqui a falar de garantista coercivo como se fosse uma escolha binária, quando na verdade é contínuo, não é? Quer dizer, eu posso, ok, quero garantista, mas bocadinho menos garantista e quero bocadinho mais coercivo, não é? Eu acho que, obviamente, nós temos sistema que, infelizmente, na minha opinião, ele até é garantista em função dos rendimentos, que é o mais grave, não é? Porque ele, para o blue collar, não é assim tão garantista. E é por isso que ele funciona bem com o blue collar. O problema é que ele é extremamente garantista no white collar que tem os rendimentos e o acesso à assessoria jurídica que pode ter para torná-lo extremamente garantista.
José Maria Pimentel
Mas no fundo o que isso prova é que não é tanto garantismo filosófico...
Nuno Garoupa
Não, não, não, é garantismo que depende muito dos recursos... É garantismo processual muito dependente dos recursos que estão disponíveis para o orgulho.
José Maria Pimentel
Ou seja, é efeito inesejável em parte, não é? Exatamente. Ou seja, quer dizer, nós temos de facto uma tradição de direito garantista, mas aqui a grande parte do fenómeno que não vem dessa tradição vem simplesmente de sistema que permite, bem, isso também não é exclusivo, obviamente, do sistema de justiça, não é? Mas que permite que quem tem dinheiro, quem no fundo é este binómio, entra a conhecê-lo bem e... Ou no fundo, Se resumindo, poder pagar a quem eu conheço bem, no fundo é isso.
Nuno Garoupa
Mas a própria discussão pública nós refletimos isso, porque, quer dizer, quando nós estamos a falar de crimes que não são colorido branco, e tivemos várias experiências nas últimas semanas, não quero datar muito o nosso podcast, mas tivemos várias experiências, desde a questão da Igreja Católica, até aos casos que têm andado na berra, infelizmente, da mãe que matou a criança. Nesses casos, eles são discutidos e na comunicação social eles são revistos e não há presunção de inocência. Ou seja, a mãe matou a criança, ninguém diz a mãe alegadamente matou a criança. Os padres são pedófilos, não são alegadamente pedófilos. Assim que nós entramos na corrupção política e nos crimes de clarinho branco, passámos ao alegadamente. O próprio uso coloquial da presunção de inocência, ele próprio reflete as duas dimensões, que é, quando é uma dimensão em que não há grandes recursos económicos, isto já está visto, toda a gente fala como se a questão tivesse arrumada. Quando estamos no outro lado, de repente toda a gente lembra-se da presunção de inocência e não podemos dizer porque há presunção de inocência. Ora, a presunção de inocência... Nunca me
José Maria Pimentel
reparado nisso, mas é capaz de ser verdade. Estás a dizer na própria comunicação social e
Nuno Garoupa
nos comentários. Exatamente. Porquê? Porque a presunção de inocência, de repente, só é instrumento naquilo que é a litigância white collar ou de corrupção. Nos outros, que tecnicamente há, porque obviamente juridicamente todos têm presunção de inocência, mas na linguagem com a qual nós não estamos muito preocupados nessa presunção de inocência naquela matéria.
José Maria Pimentel
Bem, sendo benevolente com essa tendência, não terá também que ver com o facto de nunca ser muito mais evidente do que no outro, ou seja, num crime físico é crime, quer dizer, alguém que mata alguém pode não ter sido aquela pessoa, enquanto crime de colorinho branco é uma coisa mais cinzenta.
Nuno Garoupa
Obviamente, mas aqui a questão que está em causa é o facto de nós depois termos uma definição de presunção de inocência absolutamente absurda porque é ter transitado em julgado, literalmente transitado em julgado, quando em qualquer outro país de Estado de Direito, essa presunção de inocência altera-se drasticamente assim que o terminal de primeira instância tomar uma decisão, não é? Quer dizer, e isto aqui, obviamente, lá voltamos, do ponto de vista jurídico é debate, agora do ponto de vista social e político é outro debate. E depois, evidentemente, não vamos agora entrar aqui porque é que politicamente também entrámos numa fase em que tudo o que é legal é ético e a ética e a legalidade são a mesma coisa, mas isso tem a ver com dinâmicas políticas que infelizmente tivemos. Não vamos agora entrar aqui nesse debate.
José Maria Pimentel
Há bocadinho tinha deixado pendente o tema da avaliação legislativa, que é tema interessante porque, bem, eu acho que nunca falei disso no podcast, e na verdade é tema que eu conheço mal, ou seja, eu não conheço bem o que acontece noutros países.
Nuno Garoupa
Nós na União Europeia, com a agenda de Lisboa, fez-se aquele compromisso de fazer avaliação legislativa, não é? Aquilo que chamava, começou-se por chamar o Regulatory Impact Assessment e depois passou a Impact Assessment, para dar a entender que não é só as Regulatory Agencies
José Maria Pimentel
que têm que fazer isso. E que é também o poder dos deputados no fundo.
Nuno Garoupa
E que no fundo vem da tradição norte-americana, que foi introduzido para o administrador Reagan e depois que o administrador Clinton apareceu mais, que é a introdução do cost-benefit, a análise de custo-benefício. Ora bem, nós somos praticamente o único país, digamos, da ordem ocidental que não tem, não conseguiu implementar em 25 anos. Nós não temos qualquer tipo de avaliação. Ora, isso tem a ver com duas ou três questões. Tem a ver com, na minha opinião, há certo falta de capital humano, obviamente, mas isso eu acho que é a menos importante, porque quando há falta de capital humano, deforma-se o capital humano. De facto, só agora é que começou a haver licenciaturas, da dupla licenciatura em economia e direito, ou gestão e direito, e portanto as pessoas de direito não têm nada de métodos quantitativos e portanto isso criava problema que não havia capital humano, porque as pessoas não sabiam fazer, não sabiam do que se estava a falar. Então nós vamos 20 anos a superar isso. Mas eu acho que isso nem é a questão principal. As duas questões principais são falta de planeamento legislativo, nós não temos planeamento legislativo absolutamente nenhum, e depois não temos de facto nenhuma estrutura para fazer avaliação de custo-benefício a sério, porque há problema de informação, ou seja, a própria presidência do conselho, onde tem essas estruturas que poderiam fazer isso, tem dificuldade em ter informação para fazer análise de custo de benefício. Porquê? Porque o nosso Estado funciona como funciona e estas informações não são disponibilizadas. Depois nós fizemos coisas caricatas. A certa altura nós tínhamos aquilo que se chamava o teste simplex, porque estávamos obrigados pela União Europeia e portanto tinha que se fazer uma análise de impacto mínima. Eu li muitos dos testes simplex, que atenção, o próprio governo não partilhava com a Assembleia da República depois do PCP várias vezes ter pedido que isso fosse, mas era considerado quase segredo de Estado. Porquê? Porque quase todos os testes simplexes eram simplesmente uma frase a dizer o benefício justificou o custo por decisão da tutela. Portanto, ou seja, não havia análise rigorosamente nenhuma, simplesmente a dutela mandou. Isso praticamente acabou por cair com a troika, porque não faz que não tenha importância absolutamente nenhuma, só que não foi substituído e portanto nós continuamos largamente a ter uma legislação de péssima qualidade.
José Maria Pimentel
Mas que órgão é que é suposto fazer esta avaliação legislativa?
Nuno Garoupa
É o governo, a presidência do conselho.
José Maria Pimentel
É o próprio governo? Não é
Nuno Garoupa
a Assembleia da República, porque a Assembleia da República, no panorama português, de facto não é o principal legislador na prática, muito menos quando há uma maioria absoluta governamental.
José Maria Pimentel
Não, mas não devia ser órgão independente?
Nuno Garoupa
Não, sim, devia ser órgão independente, mas dentro da presidência do Conselho. Como aliás os ingleses têm, os espanhóis têm, muitos deles têm, e nós temos, nós supostamente temos.
José Maria Pimentel
No fundo, onde eu quero chegar é órgão independente do governo, porque tens não só o problema da cor política do governo, também o problema do governo mudar, não é? Sim, sim,
Nuno Garoupa
mas o problema é que o que o Estado deveria ter feito, é assim, é perceber, quer dizer, o que nós deveríamos ter nesta altura, por exemplo, na discussão do aeroporto, são o custo de benefício de cada das localizações do aeroporto e comparar. Nós não temos. É isto supostamente que agora estão
José Maria Pimentel
a fazer. Mas aí é uma avaliação, quando se fala de avaliação legislativa é
Nuno Garoupa
uma avaliação... Pode ser perspectiva e retrospectiva. Pode ser a avaliação perspectiva no sentido eu quero fazer determinada legislação, quatro opções e vamos ver, mas também pode ser retrospectiva, ou seja, eu fiz a legislação e idealmente, se isso fosse bem feito, quando se faz uma legislação que quer sujeitar à avaliação retrospectiva, eu devia ter indicadores, ou seja, devia ter metas razoavelmente quantificáveis para poder avaliar. O problema é que muitos destas, das nossas leis não têm metas. E, portanto, vamos avaliar o quê? Eu não sei exatamente o que é que as leis pretendiam e, portanto, tudo isso é muito lento, estamos muito atrás dos outros países da OCDE nessa matéria, é que se junta depois aqui uma questão que também sabemos, que é o problema do outsourcing legislativo. Quer dizer que há muitas leis que já não são feitas no governo, são feitas nas sociedades de advogados, e isso obviamente também prejudica qualquer avaliação legislativa, porque é uma contratação, outsourcing, com o objetivo muito claro que é dar uma legislação sobre este problema, a sociedade de advogados não tem qualquer incentivo em ir ela agora fazer a avaliação legislativa pelo contrário.
José Maria Pimentel
E, enfim, isso não é problema português, não é verdade?
Nuno Garoupa
Sim, mas deixa-me só dizer, eu gosto muito de dizer...
José Maria Pimentel
Mas é uma coisa que é pouco falada e vai se tornando cada vez mais importante.
Nuno Garoupa
Uma coisa que eu gosto de dizer das sociedades advogadas é que eu acho que as sociedades advogadas em Portugal fazem três papéis muito importantes. Fazem, obviamente, advocacia, consultoria jurídica, fazem lobbying e fazem outsourcing legislativo. Estas três coisas são todas muito importantes. E eu insisto no lobbying porque eu acho que o lobbying é importante, ao contrário das pessoas que estão sempre a dizer mal, eu acho que o lobbying tem papel muito importante. Tem que ser transparente. Claro, o problema das sociedades de advogados é fazer as três coisas ao mesmo tempo. Se fizessem isto de forma transparente e accountable, seria completamente diferente, porque teríamos, digamos, a maximizar o retorno nessas três áreas. Assim como temos sistema opaco, pouco transparente, na melhor das hipóteses com aquilo que nós chamamos de uma Chinese Walls, que não se percebe muito bem, que é o terceiro andar faz a legislação, o quarto andar tem os clientes e o quinto andar está a fazer o lobbying e ninguém percebe muito bem onde é que estão os conflitos de interesse, etc. Mas eu não queria ficar sem pressão do que eu acho que as sociedades de advogados não devem estar envolvidas nisto, porque eu acho que o Estado, também não vale a pena, estamos aqui agora a discutir, o Estado perdeu muita qualidade de capital humano, é normal que faça outsourcing, porque há muitas questões que o Estado já não sabe fazer, não tem capital humano para fazer. E portanto, não acho mal que vá para as sociedades de advogados. Agora o problema é a falta de transparência em todo este processo.
José Maria Pimentel
Sim, mas apesar de tudo, tu podes dizer, dadas as circunstâncias, é a melhor solução, mas achas mal que as circunstâncias sejam estas? Ou seja, achas...
Nuno Garoupa
Não, não, acho que as coisas podem ter sido acauteladas há 30 anos para nós chegarmos aqui e acho que agora há problema, lá voltamos aqui à conversa do endógeno, que é como é que se sai daqui, porque nós estamos sempre no curto prazo e portanto isto é a melhor solução de curto prazo mas estamos sempre a aprofundar problema de médio prazo, porque nós nunca estamos a resolver o problema de médio prazo.
José Maria Pimentel
E este problema na verdade não é só português, há aqui problema que vem em parte da globalização, os governos, os Estados centrais têm dificuldade em ter salários competitivos e depois têm dificuldade em ter
Nuno Garoupa
know-how de muitas questões complexas. É obviamente, aliás, saiu há pouco tempo livro, estão-me a faltar agora os autores, mas é livro sobre este problema no Reino Unido e que se passa exatamente o contrário. A única diferença é que o Reino Unido, como a advocacia, está regulada de uma forma diferente da nossa, há mais transparência e é mais fácil perceber os diferentes interesses. O nosso problema aqui é que não se percebe muitas vezes quais são os interesses e como é que isto funciona. Porque, por exemplo, o grande problema da assimetria em Portugal é que nós temos lobbying. O lobbying para funcionar bem, mesmo dentro da advocacia, nós precisaríamos que, por exemplo, lado fizesse lobbying pelo produtor e o outro lado fizesse lobbying do consumidor. O problema é que em geral em Portugal só há lobbying do lado do produtor, o consumidor não está organizado para fazer lobbying e isso é que começa a criar os problemas de falta de transparência. Porque houvesse lobby de produtor e de consumidor, nós o que iríamos encontrar em muitas das discussões que temos em Portugal eram diferentes propostas relativas. Ou seja, os que são de lobby faziam outros faziam outro. Como temos pouco no Reino Unido e nos Estados Unidos. O nosso problema é que nós temos uma espécie de cartelização do lobbying e aí é que começam os problemas derivados dessa cartelização.
José Maria Pimentel
Sim, e falta de transparência, no fundo.
Nuno Garoupa
Claro, mas vem daí, não é? Quer dizer, a falta de transferência leva à cartelização e depois enfim com todas as
José Maria Pimentel
consequências. Uma coisa que eu queria perguntar que está relacionada com isso é como combater o corporativismo. E nós enfim, tivemos aqui a falar do corporativismo em relação aos magistrados e ao poder judicial, mas na verdade isso é problema,
Nuno Garoupa
enfim, antropologémico. Absolutamente, nós estamos a ver a legislação que o Partido Socialista aprovou sobre as ordens como está a criar uma reação extraordinariamente corporativa em profissões que supostamente são as profissões mais liberais que existem, como por exemplo a advocacia. O que
José Maria Pimentel
eu quero dizer com isto é que é problema que não está circunscrito aos juristas de todo. E para mim é mistério em certo sentido porque, por vezes diz-se que Portugal é país com o peso da família e das relações, da amizade e de meios pequenos muito grandes e em comparação com outros países, certamente isso é verdade. Mas não é bem nesse nível que nós estamos, porque o corporativismo é algo que existe acima desta esfera, não estamos a falar de pessoas que cresceram juntas, não estamos a falar de amigos de infância ou pessoas que andaram na escola, embora muitos casos curiosos.
Nuno Garoupa
Mas eu acho que isso tem a ver com a questão que nós já falámos num outro programa e que estamos a falar com outras pessoas aqui, que é a questão da falta de confiança interpessoal de social capital. E como não há confiança nas instituições e não há confiança interpessoal, tu tens que criar outras redes de confiança, não é? E eu acho que as corporações em geral dão essa... Substituem esse papel, não é? E aliás, eu acho que vão substituir cada vez mais, conforme como estás a dizer, a própria estrutura familiar se vai alterando. Como as estruturas familiares se estão a alterar e de alguma maneira se estão a minimizar, todo esse capital tem que ser transferido para algum lado, porque as pessoas têm que ter confiança em alguém. Sim, sim. Começa a ser no fundo... No sentido de pertença, não é? Isso é no sentido de pertença, e começa a ser a corporação. E aqui a corporação no sentido de sindicato, grémio, portanto todo o conjunto em que a pessoa se insere e se sente...
José Maria Pimentel
Sim, a organização, a própria embexo, o setor e fim.
Nuno Garoupa
Isso cria uma espécie de uma estrutura pouco tribal, não é? Ou seja, de que a pessoa... O que é a minha tribo? A minha tribo é a minha corporação.
José Maria Pimentel
Sim, mas o que é peculiar, o que é peculiar é que isto não é uma coisa orgânica. Não é uma agremiação, quer dizer, não é uma captura, sei lá, do poder local orgânica pelas elites da terra, por exemplo. Não, não, pelo contrário, são instituições que foram criadas, até em muitos casos, top down, mas que depois desenvolvem essa estrutura corporativa quase num certo automatismo. O que para mim é, por lado, é misterioso isso acontecer, é em parte misterioso, quer dizer, a minha tese no fundo é parecida com a tua, mas não estou 100% acho que me falta ingrediente qualquer. E por outro, quer dizer, no fundo o que interessa mais é como é que se quebra isso. Independentemente de se ele está a ser endógeno ou não, como é que se...
Nuno Garoupa
Vamos lá, a mesma coisa é quebrar ao poder algumas corporações e, por exemplo, a lei das ordens, no fundo, que vem fazer pouco isso, na questão das ordens, não é? Porque a própria União Europeia e o CDE, no fundo, o que vieram dizer é que nós temos excesso de ordens e, portanto, que convinha introduzir uma variável de mais concorrência nas ordens. Mas eu acho que isso é muito localizado, enfim, é sempre polémico, como já houve na altura... E veio de fora, certo? E como já houve na altura, fizemos reformas nos notários, as pessoas já estão esquecidas que já houve reformas de várias questões que foram sempre criando estas polémicas. Agora, eu acho que no sentido mais social, não vejo muito bem como é que isto se altera, porque eu acho que há problema de estrutura da própria economia e da própria sociedade portuguesa e isto vai de encontrar outra tese, que nós aqui também conversámos, que é o problema da economia rentista e das elites extrativas, quer dizer, porque quando tu vives numa sociedade com elite extrativas, qual é o teu objetivo na vida? Fazer parte das elites extrativas, porque se não és parte das elites extrativas, fazes parte das pessoas a quem são extraídos recursos. Qual é a forma de ter acesso às elites extrativas? Através de corporações. E pronto, eu acho que isto tudo se retroalimenta entre a estrutura das elites trativas e o teu acesso, não é?
José Maria Pimentel
Mas é que estás a tocar exatamente no ponto onde eu queria chegar, que é nós falamos e falámos no outro episódio de elites trativas E quem ouça falar em elites extrativas parece que estamos a falar de uma espécie de aristocracia, que já foi, mas é verdade, já não é. Ou seja, nós somos de facto país com desigualdade de oportunidades e há pessoas que pelo meio social não têm hipóteses de chegar aí. Mas quer dizer, desde pelo menos o Salazar que temos pessoas de todos os meios, ou quase, a ascender. O que
Nuno Garoupa
nós temos é uma forma de oligarquia mitigada, não é? Por isso é que elas são extrativas.
José Maria Pimentel
E é uma espécie de oligarquia de cooptação. Exato.
Nuno Garoupa
Nós temos sistema em que as elites não são competitivas, mas cooptadas. É bocadinho como o nosso tribunal constitucional. Quem lá está escolhe quem entra a seguir. Nós temos pouco esse sistema. Esse sistema tem problema que é só é sustentável se a esmagadora maioria das pessoas achar que tem alguma oportunidade de obter algum payoff. Porque se não, quer dizer, se não temos o 25 de Abril ou o 28 de Maio ou o 5 de Outubro, quer dizer, a certa altura, a maioria percebe. Bem, para isso é que eu acho que é o papel das corporações, porque no fundo as corporações o que fazem é organizar os interesses, de tal forma a dizer, há alguma capacidade de seres parte desta economia extrativa. Tens é que estar numa corporação. Se estás fora de qualquer corporação, não tens isto. E eu acho que outra questão muito desafiante, que nós não falámos a última vez, porque eu acho que isto se tem vindo a desenvolver, é que além das corporações, só há outra estrutura em Portugal, na minha opinião, neste momento, que é elevador social. E que não são nem as empresas, nem as forças armadas que já foram, nem a igreja católica, mas são os partidos políticos. Na verdade o maior elevador social nascimento em Portugal são os partidos políticos. Porque quem não nasceu em Barcedouro e quem não faz parte da oligarquia, qual é a única hipó... E não nasceu no centro. Para onde é que pode tentar subir? Através dos partidos políticos. No fundo, o Jobs for the Boys, que tem sentido perverso, como todos nós sabemos, no fundo também tem outro lado, que é o lado elevador social. Porque, na verdade, o Jobs for the Boys abre a hipótese de quem quer ser boy tem ali alguma oportunidade. E eu não sei, de facto, neste momento, se isso não se vai complicar ainda mais, não é? Quer dizer, porque se de facto os partidos são o elevador social, isso significa que só vai agravar a partidarização, que já é muito grande, na minha opinião, mas de toda a sociedade civil e de tudo o que existe em Portugal. Porque realmente não se vê outro grande mecanismo de elevação social. São as corporações e os partidos políticos. Fora disto, não se vê muito bem que outras instituições é que permitem essa elevação social.
José Maria Pimentel
E no fundo tens desafio duplo, porque tens que mitigar o corporativismo não perdendo o pouco elevador social que já tens. Claro. Ou seja, idealmente até aumentando. Mas isso
Nuno Garoupa
lá vem à questão das anedrogenidades, porque é que o nosso elevador social é perverso e não é elevador social, enfim, como nas democracias liberais que deveria ser elevador social que vem, fundamentalmente, do capital humano, do mercado de trabalho, etc, etc. Mas, de facto, não foi isso que nós... Não interessa agora porquê, mas, de facto, nós estamos numa circunstância em que é muito complicado ver como é que se pode sair desta estrutura.
José Maria Pimentel
E tu, enfim, para terminar de maneira mais ou menos otimista, o que é que tu achas que se podia fazer? Olhando, enfim, nestas coisas é sempre, em vez de reinventar a roda, é sempre bom olhar para outros países, não é? O que é que...
Nuno Garoupa
Eu acho que há questões que nós podemos melhorar porque ainda não estamos na nossa fronteira de possibilidades. E, portanto, melhorias de gestão, melhorias da alocação de recursos, melhorias da formação de capital humano, mesmo em questões que parecem complicadíssimas neste momento, como o combate aos crimes fiscais e clima em branco, eu acho que há possibilidades ainda de fazer muita coisa positiva. Novamente, A primeira derivada é francamente positiva, o nosso problema é a segunda derivada e, portanto, há condições para melhorar essa segunda derivada. Em questões de contexto, acho que é muito mais complicado, porque nós estamos novamente num ciclo em que estamos numa espécie de país adiado. E o problema do país adiado, que é uma conversa que nós temos praticamente desde os anos 50, em que estamos sempre no país adiado, e que não se percebe muito bem o que é que nós estamos à espera. Nós estamos sempre à espera de qualquer coisa. E eu acho que o problema é que quando a economia desafoga pouco, como foi o período, digamos, 2016 a 2020, cria-se uma sensação de bem-estar que vem do consumo e há uma sensação de desafogo, quando o país volta a estar com problemas económicos, volta a estar muito deprimido, como está neste momento, e de facto reforçam-se esses aspectos corporativos, não é? Porque, mais uma vez, quando as coisas não estão a correr bem, onde é que nos podemos identificar? Na corporação. E, portanto, eu acho que nós vivemos momento de alta tensão, que não vejo muita saída fácil. Acho que, por exemplo, em relação a esta questão, neste momento, quando nós estamos a gravar este programa, dos advogados, dos médicos, enfim, da lei das ordens, acho que vai ser como aos notários, vai haver muita luta, muita gente a chorar, muita barraria, mas depois a coisa passa. Mas também não acho que isto vai resolver muita coisa, porque o contexto é o que é e nesse sentido, talvez para terminar, eu gosto sempre de dizer, acho que temos que sacar muita responsabilidade aos magistrados de muitas coisas, mas não podemos só sacar responsabilidade aos magistrados do que está a acontecer, como temos que sacar muita responsabilidade aos políticos, mas não podemos sempre estar a dizer que a culpa é dos políticos e que os políticos são uma espécie de marcianos, que não sabem como é que estão ali, porque eles refletem a sociedade, como os magistrados refletem a sociedade, todos refletem a sociedade, nas suas virtudes e nos seus defeitos.
José Maria Pimentel
Sim, o sistema... Ambos emergem da sociedade, mesmo que indiretamente são reflexos. Mas tentando de alguma forma imaginar soluções, tu achas que o que nos impede de fazer algumas reformas é falta de coragem política? Falta de imaginação?
Nuno Garoupa
Não, nós faltamos de imaginação e falta-nos consistência, porque o problema é que muitas das formas...
José Maria Pimentel
Falta a capacidade de planeamento a prazo.
Nuno Garoupa
Exatamente, nós precisamos de planeamento a prazo e isso exige compromissos, que infelizmente nosso sistema político partidário, como já aliás falámos no outro programa, transformou-se num sistema de soma nula e isso complica muito este tipo de pactos de médio e longo prazo. E é porque, fundamentalmente, as lideranças partidárias estão preocupadas com o seu horizonte de liderança, nem sequer estão preocupados com o futuro do próprio partido. E, portanto, os partidos, eles próprios, são umas instituições cheias de fluidez e que elas próprias não existem para além das lideranças partidárias do momento. E, claro, quando se fazem determinado tipo de reformas a 10, 20 anos, é óbvio que os partidos têm que aceitar que os benefícios se calhar vão ser do outro partido e que os custos podem ter que ser pagos mais por partido do que por outro. Isto faz parte, não é? Quer dizer, todos sabemos que o SPD hoje na Alemanha continua-se a dizer que está a pagar o custo da reforma que fez da segurança social há 25 anos, ganhou as eleições estas últimas ao fim de 25 anos, mas parece que já está, talvez, afundado nas sondagens. Quer dizer, porque os partidos têm... Acontece.
José Maria Pimentel
Mas a questão é, para mim, a grande questão é que condições é que é preciso haver para que isso aconteça, ou seja, para que decisores políticos tomem essa decisão, aparentemente contra o próprio interesse de...
Nuno Garoupa
Não, tem que haver uma sociedade civil e tem que haver eleitorado mais exigente. Eu acho que o nosso eleitorado também não é muito exigente, não é? Quer dizer, o nosso eleitorado... E volto outra vez, o nosso eleitorado, não estou a dizer que as decisões não são racionais, são. O nosso eleitorado é eleitorado que valoriza muito mais o consumo de curto prazo do que o investimento a médio prazo. Mais uma vez, complemento racional numa economia extrativa.
José Maria Pimentel
Sim, porque não confia, não é?
Nuno Garoupa
Obviamente, como não confia, consumo já do que me estarem... E isso, tudo isto se retroalimenta novamente. O facto de ser extrativo significa que eu, como eleitor racional, quero é, consumo no curto prazo porque eu não sei. Estão-me ali a dizer que se eu não consumir agora para investir para amanhã, eu não sei se amanhã me vão dar alguma coisa. E essa é que é a grande questão, que eu penso que vai ser o grande desafio dos nossos 10, 15 anos, que é como é que se reconstrói a confiança nas instituições. Porque nós, ciclicamente, fizemos isso na nossa história através de revoluções, não é? Portanto, faz-se uma revolução, tira-se as instituições anteriores, vem uma nova geração, como dizia o Fernando Lopes, levanta-se uma nova geração e temos aquela esperança toda e reconstitui-se ali a confiança nas instituições pontualmente, porque depois começa a degradar-se também. O problema é que nós estamos num contexto histórico muito diferente em que não podemos ter pronunciamentos militares, nem revoluções populares e, portanto, como é que se vai fazer dentro deste contexto essa renovação das instituições? E eu acho que está a ser uma transição muito complicada, eu acho que nós estamos nesta transição, já tínhamos falado no último programa, desde a Troika, ou seja, a própria Troika já é parte dessa transição. E vamos 10 anos e não conseguimos perceber como é que isto vai conseguir sair deste bloqueio.
José Maria Pimentel
E não achas, assim, sendo pouco mais otimista, não achas que apesar de tudo a sociedade civil tenha se tornado mais ativa?
Nuno Garoupa
Eu acho que sim, e volto a dizer, eu acho que nós vamos
José Maria Pimentel
sair deste bloqueio. Se os seus discordares desavontaram, não é? Não, não,
Nuno Garoupa
E nós vamos sair deste bloqueio. O que nós não estamos a ver é comum.
José Maria Pimentel
Eu digo isso porque há sinais positivos, quer dizer, há uma série de iniciativas interessantes vindas da sociedade civil.
Nuno Garoupa
Obviamente. Assim, se nós olharmos há 10 anos, por exemplo, o consenso que se conseguiu e a exigência que nós temos neste momento, em grande parte da opinião pública, sobre a corrupção, não existia há 15 anos, não é? Exatamente. Quer dizer, eu acho que francamente, muitas das coisas que aconteceram durante o governo de José Sócrates, hoje muito dificilmente aconteceram. Porque, apesar de haver clacks e tudo isso, as coisas teriam sido mais exigentes.
José Maria Pimentel
E coisas que hoje deram nas vistas, por exemplo, no governo atual, que aconteceram nos governos que evacuaram.
Nuno Garoupa
E o próprio papel de Ricardo Salgado hoje seria completamente diferente. Não estou a dizer que Ricardo Salgado não pudesse fazer outro tipo de spinning, mas quer dizer, as coisas evoluíram. Agora, voltamos à mesma coisa que eu digo. O meu problema nunca é a primeira derivada, o meu problema é a segunda derivada, ou seja, ele não está a evoluir à velocidade que eu gostaria. Agora, a primeira derivada ser positiva, acho que nos deve dar otimismo, quer dizer, não vale a pena estarmos a pensar, quer dizer, quando há pessoas que dizem, isto está pior do que há 20 anos, ou está pior no tempo de socialização, não é verdade, quer dizer, isso francamente, Há mais corrupção hoje do que havia tempo de socialização. Isso francamente não é verdade. Isso não corresponde à verdade. Nós, de facto, fizemos uma evolução muito positiva. O problema é não tão positiva quanto poderíamos e quanto deveríamos fazer. E não é claro, neste momento, dadas as nossas condições, como é que isso se pode fazer de forma mais rápida.
José Maria Pimentel
Boa maneira de terminar. Nuno, obrigado. Este episódio foi editado por Hugo Oliveira. Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no site 45grauspodcast.com Selecione a opção Apoiar para ver como contribuir, diretamente ou através do Patreon, bem como os benefícios associados a cada modalidade. Legendas pela comunidade Amara.org