#146 Raquel Vaz Pinto - Estamos a entrar numa guerra fria entre os EUA e a China?
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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o
45 Graus. Muito obrigado a quem se inscreveu nos workshops de pensamento
crítico que tenho anunciado aqui nos episódios. O workshop de Lisboa que
anunciei aqui no último episódio e que vai ser no dia 17
de junho, encheu em 12 horas. E este fim de semana lancei
as sessões do Porto e online, que encheram ambas em menos de
24 horas. Muito obrigado, fico muito contente por todo este interesse. Sei
que muitos de vocês queriam inscrever-se e já não foram a tempo.
Eu limitei propositadamente as vagas a 20 pessoas, porque a ideia é
ter uma sessão o mais interativa possível, mas vai haver mais sessões
no futuro, pelo menos nestes 3 sítios. Ou seja, 2, Lisboa, Porto
e a versão online. Deixo link na descrição do episódio em que
se podem escrever, podem deixar o vosso e-mail e depois serão avisados
no futuro quando voltarem a abrir novas sessões deste workshop. Aproveito para
agradecer também aos novos mecenas do 45 Graus, ao André Garrido, ao
José Martins, ao Afonso Vieira, ao Cris Bierenbach, não sei se estou
a pronunciar bem, ao Miguel Carvalho, ao Cristóf Afonso, ao Pedro Vasconcelos,
ao Bernardo Caria e ao João Carolina. Muito obrigado a todos. E
agora, ao episódio de hoje. Pode parecer estranho isto que vou dizer,
tendo em conta a predominância que tem a guerra da Ucrânia na
política internacional. Mas a verdade é que, muito provavelmente, não será esse
o tema central das relações internacionais da nossa época. O tema que
vai marcar, muito provavelmente, a geopolítica nas próximas décadas é outro, A
rivalidade entre os Estados Unidos e a China. Rivalidade essa que se
vai instalando à medida que a China vai ganhando poder e vai
disputando a ordem unipolar que era, desde o fim da Guerra Fria,
dominada pelos Estados Unidos. Há mesmo analistas e académicos que acham que
estamos, já hoje, a viver uma nova guerra fria, desta vez opondo
os Estados Unidos e a China. Esta ideia não será uma novidade
para os mais atentos a estes temas e, sobretudo, não será para
quem ouviu o episódio número 38 do 45°, publicado em 2018, e
cuja convidada foi Raquel Vaz Pinto. Nesse episódio falámos da China e
dos temas que discutimos foi precisamente até que ponto a competição entre
Pequim e Washington iria marcar as próximas décadas nas relações internacionais. Ora,
se já na altura, há quase 5 anos, isso era uma probabilidade
forte, hoje a importância dessa rivalidade é quase uma certeza. Ao mesmo
tempo, passou-se entretanto muita coisa na relação entre os dois países, o
que nos veio a dar uma ideia mais clara, embora ainda com
muitas incógnitas, sobre a forma que esta rivalidade poderá tomar nos próximos
anos. Além disso, fui recebendo muitos elogios vossos ao episódio, não só
pela relevância do tema, com muitos ouvintes a sugerir voltar a ele,
mas sobretudo pela convidada. É que a Raquel não só sabe muito
sobre este tema e outros, como é também uma excelente comunicadora. Por
isso, decidi convidá-la para regressar ao 45° para discutir este tema, desta
vez focando-nos em mais profundidade, especificamente nesta questão da rivalidade entre os
Estados Unidos e a China e tirando partido da informação adicional que
hoje temos para compreender este fenómeno. E ela, como já perceberam, teve
a gentileza de aceitar. A Raquel é investigadora do Instituto Português de
Relações Internacionais, chamado IPRI, da Universidade Nova de Lisboa, onde é também
professora, lecionando as disciplinas de estudos asiáticos e história das relações internacionais.
Entre 2020 e 2022 foi também consultora do Conselho de Administração da
Fundação Gulbenkian e entre 2012 e 2016 foi presidente da Associação Portuguesa
de Ciência Política. Os principais interesses de investigação da Raquel são a
política externa e a estratégia chinesa, os Estados Unidos e o Indo-Pacífico
e liderança e estratégia. É atualmente analista residente de política internacional da
SIC e da TSF. É autora de vários livros e artigos sobre
estes temas e atualmente está a terminar livro sobre os desafios colocados
pela China às democracias liberais europeias, incluindo a portuguesa. Quando gravámos a
nossa primeira conversa, em 2018, as tensões entre os Estados Unidos e
a China estavam ainda, de certa forma, no início. Donald Trump tinha
tomado posse apenas no início do ano anterior e pôs em prática
uma mudança radical na postura do país em relação à China, impondo
tarifas a uma série de bens chineses. Essa medida gerou, como seria
de esperar, réplica do lado chinês, dando início a uma guerra comercial
entre os dois países que dura até hoje. Mas desde então já
muita tinta correu. A guerra comercial acentuou-se e estendeu-se a outras áreas,
mesmo já com a administração Biden e os dois países têm acumulado
várias divergências na arena internacional, nomeadamente em relação à guerra da Ucrânia,
na qual a China tem adotado uma postura, no mínimo, ambivalente, neutra
no discurso, mas bastante favorável à Rússia nas ações. Ao mesmo tempo,
a retórica belicosa de Trump do lado americano tem sido mais do
que correspondida do lado chinês com políticos e diplomatas adotarem discurso em
relação aos Estados Unidos e ao Ocidente cada vez mais assertivo e,
em alguns casos, mesmo agressivo. Estas disputas comerciais e divergências geopolíticas são,
no entanto, apenas aquilo que poderíamos chamar as causas próximas do aumento
da conflitualidade entre os dois países. A causa última, ou seja, o
fator fundamental por trás desta mudança reside, para muitos analistas, na chamada
Armadilha de Tucídides, que já tínhamos abordado no episódio de 2018. A
dita armadilha tem este nome porque foi postulada pela primeira vez pelo
historiador ateniense Tucídides, lá está, na sua famosa obra História da Guerra
do Peloponneso. Segundo ele, essa guerra, que opôs Atenas à Esparta, era
inevitável, uma vez que Atenas estava a crescer e a ganhar poder,
o que fazia aumentar a sua ambição, enquanto essa situação gerava uma
ansiedade crescente do lado de Sparta. A ideia desta armadilha, quando há
uma potência incumbente e uma potência emergente, tem sido amplamente discutida nos
últimos tempos a propósito da rivalidade entre a China e os Estados
Unidos. E esta discussão ocorre tanto nos Estados Unidos como na própria
China, onde existe também uma discussão académica ampla sobre este tema. Dos
mais conhecidos defensores desta ideia é o professor da Universidade de Harvard,
Graham Ellison, que popularizou o conceito no livro publicado em 2018. Segundo
os proponentes desta armadilha, Portanto, sempre que uma potência emergente está a
convergir no sentido de se tornar mais poderosa do que a potência
incumbente, existe uma tendência inexorável para conflito entre as duas. Aplicada esta
lógica à relação entre a China e os Estados Unidos, isto implicaria
que à medida que o poder económico e militar da China se
vai aproximando do norte-americano, isso crie-lhe inevitavelmente sentimento de autoimportância crescente e
de vontade de ter papel mais ativo na política global. Ao mesmo
tempo, isso queria nos Estados Unidos a potência incumbente, medo, insegurança e
uma determinação em defender o status quo a todo custo. Esta visão
sobre a armadilha de Tusidides enquanto uma espécie de lei das relações
internacionais tem o seu exponente máximo hoje nos académicos da chamada escola
ultrarrealista das relações internacionais. O maior exemplo desse grupo é talvez o
investigador americano John Mershimer, de quem já tínhamos falado no primeiro episódio
e de quem falei também no episódio sobre a guerra da Ucrânia
com Lívia Franco. Para Mershimer, esta armadilha de two-sideds é de tal
modo uma inevitabilidade das relações internacionais, que ele afirma que o governo
norte-americano deveria ter antecipado o perigo do crescimento económico acelerado da China
nas últimas décadas e, basicamente, feito tudo para impedi-lo. Citando-o a partir
de artigo recente, tradução minha, e cito. A escolha lógica para os
Estados Unidos era clara, desacelerar a aceleração da China. Em vez disso,
encorajou-a. Seduzidos por teorias equívocas sobre o inevitável triunfo da ordem liberal
e pela ideia de que a guerra entre as grandes potências era
uma coisa do passado, os governos adotaram uma política de aproximação que
procurava ajudar a China a desenvolver-se, promovendo o investimento no país e
dando-lhe as boas vindas no sistema comercial global. A ideia era que
assim a China se tornaria uma democracia amante da paz e membro
responsável da ordem internacional liderada pelos Estados Unidos. Claro que isso não
aconteceu. Fim de citação. Ancorados nesta lógica da armadilha dos tucídides, há
assim número crescente de analistas e oficiais, tanto nos Estados Unidos como
na China, que discutem hoje abertamente a possibilidade de conflito entre os
dois países, seja ele uma guerra direta, de maior ou menor escala,
ou uma guerra fria, sem conflitos diretos, mas, como aconteceu na Guerra
Fria original, com as chamadas guerras por procuração. No entanto, como a
Raquel chama a atenção ao longo da nossa conversa, as relações internacionais,
enfim, o mundo em geral, são demasiado complexas para podermos tomar esta
armadilha como lei de forma simplista. Há muitos fatores que podem contribuir
positiva ou negativamente para a maneira como esta rivalidade evolui e, sobretudo,
persistem ainda imensas incógnitas sobre o que pode acontecer no futuro. Durante
esta nossa hora e meia de conversa, comecei por perguntar a Raquel
o que mudou na relação entre os dois países desde o nosso
episódio de 2018. De seguida, discutimos o argumento destes analistas realistas, ou
seja, se a política externa dos Estados Unidos e do Ocidente em
relação à China começou por ser de facto demasiado complacente. E também
o que é que o Ocidente está a fazer agora para tentar
diminuir a dependência, nomeadamente a dependência económica, face à China. Falamos também
sobre as iniciativas que Pequim tem tomado para se afirmar enquanto potência,
quer na sua vizinhança, quer chegando a lugares tão longínquos como o
Ártico, local onde a China tem agora várias ambições. E, claro, inevitavelmente
falamos sobre as semelhanças e as diferenças entre esta situação e a
Guerra Fria original que opôs os Estados Unidos à União Soviética. No
final, claro, perguntei à Raquel o que podemos esperar do futuro desta
rivalidade e, sobretudo, o que podem aqueles que desejam a paz fazer
para que se evite uma escalada no conflito entre os dois países.
Espero que gostem desta conversa com Raquel Vaz Pinto. Não se esqueçam
de preencher o formulário que deixo na descrição do episódio para terem
informações sobre os workshops futuros e até ao próximo episódio. Raquel Vaz
Pinto, muito bem-vinda de volta ao 45 Graus.
José Maria Pimentel
Poucos convidados bizarram. É verdade, e neste caso faz todo sentido. E
aliás, vou começar exatamente por aí, porque Nós gravámos o primeiro episódio
em 2018, portanto há quase 5 anos, e na altura se calhar
para algumas pessoas pareceu tema bocadinho extemporâneo, ou exagerado, não é? Estarmos
a falar da... A conversa não foi só sobre isso, mas falar
da rivalidade dos Estados Unidos-China. E no entanto, o que aconteceu entretanto
só provou que isso era... Se calhar até estávamos a subavaliar o
que estava em causa, porque hoje em dia acho que a maior
parte das pessoas já percebeu que esse é o tema que provavelmente
vai definir o século XXI, mais até do que a guerra da
Ucrânia, e hoje em dia está em todo lado, quer dizer, tu
vais a uma livraria e tens livros sobre... Já tinhas muitos livros
sobre a ascensão da China, mas focado no desenvolvimento económico e agora
tens muitos livros de geopolítica, ou pelo menos com esse foco focado
na rivalidade China-Estados Unidos. Abres jornal, sobretudo se for mais semanário, é
uma revista e...
Lá está ela.
Lá está ela, ainda no outro dia, há duas semanas o Economist
era quase todo dedicado a isso, portanto hoje em dia está em
todo lado. O que é que, enfim, para quem ouviu o episódio
de 2018, o que é que mudou, entretanto, principal, de lado e
do outro, do lado da China e do lado dos Estados Unidos?
Ui, olha,
Raquel Vaz Pinto
Sim, ou seja, também introduzo aqui elemento de reforço, sejas tu investidor,
sejas tu analista, em termos de olhares para o mundo, não só
enfatiza aquela ideia de que a China é excepcional, excepcional no sentido
de ser diferente, como também permitia dizer, olhem, nós, enfim, somos uma
ditadura, claro, com todos os outros tipos de adjetivos muito maravilhosos, mas
a diferença entre nós e o Turcomunistão ou o Uzbequistão, para citar
assim dois países ali mais perto, é que de facto a China
assegura a transição pacífica, pelo menos que é B, dentro daquilo que
nós vamos sabendo, mas sobretudo previsível. Ou seja, Nós estamos a falar
de país no qual o coletivo do partido é que interessa. E,
portanto, é tudo isso que ficou questionado, virado avesso com este terceiro
mandato de Xi Jinping. Do lado dos Estados Unidos temos alguns elementos
de continuidade. A administração Trump tinha caracterizado a China como uma potência
revisionista, a administração Biden, e para não deixar quaisquer dúvidas, faz uma
leitura mais profunda, mais abrangente e considera a China rival, ou seja,
claramente neste sentido de temos aqui país que, tendo em conta conjunto
de dimensões do seu poder, é, olhando para o mundo, o único
país que pode vir a ser, ou já é, rival dos Estados
Unidos. Assim, em suma, tendo em conta estes últimos anos que têm
sido, de facto, muito intensos e muito desafiantes ao mesmo tempo. Mas
uma, De facto, a tua observação é a Namush. Cinco anos depois,
aquilo que nós falamos em 2018 é ainda mais importante, ou pelo
menos hoje já não questionamos. Nós há cinco anos falávamos assim 5G,
a rede 5G e a Huawei era parceiro evidente. Cinco anos depois
não é nada evidente, pelo contrário. Ou seja, há de facto aqui
e até me parece que a Europa e o posicionamento da Europa
é talvez o fator ou o barómetro mais interessante até do que
esta rivalidade entre dois países que têm uma forma de se entender
muito excepcional e muito peculiar.
José Maria Pimentel
Eu já não me lembro exatamente do histórico todo, mas eu tenho
ideia que quando nós falámos há cinco anos a própria postura dos
dois países ou dos dois estados era apesar de tudo bastante diferente
do que é hoje. Do lado dos Estados Unidos, todos sabemos o
que aconteceu, quando nós falámos já tinha havido a eleição de Trump,
já tinha havido toda aquela retórica, mas agora o que tivemos foi,
passo que não é disso menos, que foi a continuação de uma
retórica bastante agressiva com Biden, inclusivamente com algumas declarações bocado incendiárias em
relação à Taiwan. E do lado da China, o próprio discurso de
Xi tem estado cada vez mais agressivo, quer dizer, ele tem dito
coisas que aliás é engraçado porque uma das coisas interessantes das relações
internacionais é que há tanta incerteza que é muito fácil mesmo especialistas
a meterem o pé na argola, quer dizer, dizerem coisas ou partirem
de pressupostos que não se comprova porque há muita opacidade, estamos a
falar de uma arena onde jogam não sei quantos, quer dizer, número
enorme de estados diferentes, cada com a sua política interna, portanto é
muito fácil isso acontecer. Em relação à China havia muita ideia, Pelo
menos a impressão que eu tenho, que havia uma certa contenção da
parte da China, contrastava até com aquela abrasividade mais típica dos Estados
Unidos, em que o discurso é todo mais hiperbólico, até era normal
surgir tipo como o Trump, mas que do lado da China havia
uma contenção, até vinda do D. Xi Jinping, hoje em dia o
que nós vemos Não é isso, quer dizer, hoje em dia há
discurso da parte do Xi que é ostensivamente agressivo, quer dizer...
Raquel Vaz Pinto
fortíssimas. E nessa matéria, como aliás recentemente se provou, não há ninguém
que bata a embaixada chinesa em França. É imbatível nesta matéria de
comentários incendiários, expressões que tu ficas, olhas para o Twitter e pensas,
não, isto não saiu da embaixada. E na prática é mesmo isso
que acontece. Dou-te talvez aqui exemplo. Há especialista francês que trabalha muito
sobre Taiwan, mas não só, e às tantas ele… a falar justamente
sobre as questões entre Taiwan e para aí fora, e às tantas
ele é apelidado de… a palavra-chave é hiena, já Não me lembro
do adjetivo, mas a palavra-chave é hiena. Portanto, essa assertividade, essa agressividade,
quando, por exemplo, a Austrália questionou e pediu uma investigação independente sobre
a origem do vírus, no sentido de nós percebermos e, sobretudo, aprendermos
com o que aconteceu para que se tente, que não volte a
repetir e tiveste chorrilho de expressões e palavras que tu não estarias
à espera, em particular, num meio diplomata. E, portanto, aliás, cada vez
mais se vai estudando essa diplomacia no Twitter e em particular estes
casos muito abrangentes, ou seja, não é uma coisa que tu digas
é o caso de uma pessoa que perdeu as estribeiras, saiu fora
daquilo que seria argumento tradicional ou uma forma de estar, como aliás
se viu recentemente naquela entrevista que o embaixador da China em França
deu a uma televisão francesa, na qual questionou a existência formal da
Ucrânia e de todos os países que saíram da União Soviética e
depois, não contente com isso, avançou para as partes dos territórios e
disse que a Crimea não era território ucraniano e por aí fora.
Depois tiveste até aqui uma espécie de danos colaterais, da tentativa de
controlar toda esta onda do ponto de vista diplomático, mas é impressionante.
Ou seja, não é fenómeno isolado, isto para resumir, não é fenómeno
isolado, é fenómeno muito mais abrangente e isso é fator que distingue
claramente.
E que vem de cima.
Xi Jinping, exatamente. E muitas vezes quase que parece que tens aqui
conjunto destas pessoas que querem agradar, ou que querem quase, enfim, a
expressão ou a comparação talvez não seja a melhor, porque o partido
é oficialmente ateu, mas é esta ideia de que são mais papistas
que o Papa, não é? Ou seja, há aqui claramente esta tentativa
de agradar. Portanto, não é só do lado de Washington que tu
encontras esses adjetivos, assim, muito grandes, mas também do lado chinês. Eu
acho que essa também é uma característica que nós podemos ler, sobretudo
quando olhamos para as duas capitais.
Raquel Vaz Pinto
Como normal. Eu pensei que o que foi, Não é estranho, mas
talvez o que tenha sido mais a exceção à regra tenha sido
justamente o período entre Mao Zedong e Xi Jinping. Geralmente na literatura
académica distingue-se três fases ou três revoluções, depende do autor. E tens
o período Mao Zedong, mais revolucionário, mais ideológico. E aqui Mao Zedong
no sentido da influência do todo. Depois tens esta segunda fase, que
é Deng Xiaoping, que vai até ali 2008, sensivelmente. Ele morre em
97, mas as suas ideias e a sua forma de estar. E
depois tens, a partir daí, Xi Jinping. E, portanto, talvez a forma
de nós olharmos para a China seja… nós estamos muito colados a
essa fase de Deng Xiaoping, justamente para que a China pudesse crescer
economicamente, crescer tecnologicamente, normalizar as suas relações com o mundo e o
mundo normalizá-las com a China, fosse também necessário ter esse, como se
diz, o perfil mais discreto ou uma forma mais discreta de estar.
A Elizabeth Economy faz essa distinção entre três revoluções ou três formas
diferentes. O European Council on Foreign Relations Fala em China 1.0, 2.0
e 3.0, mas no fundo esta é a ideia de teres três
fases de forma muito clara e também quando olhas mais no século
XX, quando olhas até para outras épocas, porque de facto a China
tem essa vantagem, é muita história, Tens momentos de fortíssimo sentimento de
uma forma até quase hostil de entender. O que também tem muito
contribuído para essa nossa perplexidade É a propaganda ou a narrativa cada
vez mais eficaz que a China vai tendo, que entre vários aspectos
que se tenta destacar, e tu vês isto agora com esta gestão,
esta proposta da China para uma resolução política, é assim o título
do documento da crise da Ucrânia, mas que muita gente refere como
plano de paz, que é erro crasso porque não é plano e
não há certamente ali uma proposta de paz. Este seu posicionamento como
país de uma grande potência, a ideia da excecionalidade, a ideia de
não ser bélica ou oblicuosa como os Estados Unidos,
a
ideia de que a China não entra em guerras, há conjunto de
ideias diferentes. Outra que eu, a mim, pessoalmente, me deixa logo com
nervos
José Maria Pimentel
E tu não compras, porque isso de facto é uma coisa que
se ouve em muitos comentadores chineses, enfim, que a pessoa fica sempre
com alguma dúvida se são comentadores independentes ou que estão a passar,
no fundo, uma propaganda do Estado. Essa ideia de que nós, nós,
ocidentais, que olhamos para esta questão, olhamos com os nossos olhos ocidentais,
habituados ao continente europeu, que durante séculos estava sempre em guerra e,
portanto, com uma mentalidade, e que eu estou a citar, de jogo
soma nula, ou seja, deixando que as coisas se resolvem tirando o
outro e que a China não olha dessa forma e que se
olharmos para a história da China não teve essa postura. Eu também
não acho que isso seja verdade, mas é argumento interessante, enfim, porque
a pessoa pode sempre, de facto, a cultura enviesa, não é? E
nós podemos estar a olhar com olhos... Por outro lado, esta retórica
de que nós estávamos a falar do Estado Chinês, contraria completamente essa
tese. E apesar de tudo há aqui dois planos. Nós podíamos ter
uma agressividade crescente no plano estritamente económico ou militar, uma guerra comercial,
investimento cada vez maior no exército, de enviar, quer dizer, armadas ou,
enfim, ou pelo menos equipamento militar para as zonas do mar da
China, mas nós não temos só isso, temos também esta retórica incendiária
que contraria completamente esta tese, não é?
Raquel Vaz Pinto
É verdade que é óbvio que há também aqui uma grandose de
verdade quando tu muitas vezes olhas para os países europeus e para
os Estados Unidos ou para, se quiseres, o Ocidente em geral, que
é uma expressão que levanta aqui alguns problemas em vários temas, Mas
há uma posição de privilégio, é claro, ou seja, tu tens aqui
uma perspectiva de pensares desde logo que tudo gira à tua volta,
não é? E essa faz parte, e de forma muito inteligente por
parte da China, acrescentar essa dimensão como justificação ou como subjacente a
conjunto de leituras. Agora, é também uma questão do teu ponto de
partida, porque se tu viajares para A Ásia, se tu viajares para
aquilo que hoje se chama o Indo-Pacífico, a tua perspectiva é, claro,
com nuances e com casos concretos, extraordinariamente diferente. Porque, se tu perguntares
aos vietnamitas o que é que eles pensam sobre esse argumento da
China, a resposta é de dada quase aos berros. Porquê? Porque se
há país que foi invadido, ocupado e que conseguiu resistir a essa
força do Império Chinês é o Vietnãme. E é de tal forma
que hoje em dia o Vietnãme não só tem de forma muito
consistente nos inquéritos internacionais uma população pró-Estados Unidos ou com uma perceção
positiva dos Estados Unidos que tu imediatamente pensas, então mas espera lá,
não houve ali uma guerra terrível, horrível, na qual os Estados Unidos
não só perderam, que implicou conjunto de bombardeamentos, uma guerra terrível, E
tu pensas em todo esse pacote e no entanto, tu tens Vietnãme
que quer participar em tudo o que são iniciativas e tudo o
que são propostas dos Estados Unidos. Ou olhas para a Índia e
a Índia...
Raquel Vaz Pinto
Tem uma postura ambivalente, eu acho que já foi mais ambivalente do
que é hoje, sobretudo porque os conflitos fronteiristas continuam e de que
maneira, com mortos e portanto está muito presente. E a Índia, aliás,
eu diria que está a olhar para a invasão da Rússia em
relação ao território ucraniano e está a ver uma das consequências óbvias
desta guerra, que é a maior dependência da Rússia face à China
e deve estar com várias palpitações, porque tudo o que for reforçar
a China é para a Índia problema, é genuinamente problema. Depois, a
nível externo, há sempre imenso cuidado, seja no registro dos BRICS, Ou
seja, daquele conjunto de países, seja em várias cimeiras e encontros, mas
não podemos ter quaisquer ilusões. A grande razão que explica a presença
da Índia no chamado Cov, ou seja, nesta coisa quadrilateral que foi
proposta por Shinzo Abe ainda, já há muito tempo.
Raquel Vaz Pinto
Exatamente, e que depois foi avançada, depois foi de certa forma reforçada
com Trump e com Biden. Foi a primeira cimeira de Biden, ainda
virtual, mas foi a primeira cimeira do Biden, que é a Austrália,
o Japão, a Índia e os Estados Unidos. O que é que
a Índia está ali a fazer? A Índia é não só o
contrapeso óbvio à China naquela região, razões demográficas, razões de mercado e
por aí fora, mas porque a Índia também tem valor em si
mesma do ponto de vista estratégico e aquilo que tem empurrado a
Índia a mexer-se do ponto de vista externo e com Modi isso
é muito evidente, é justamente a presença chinesa, a nova rota da
seda e olhando à sua volta, no seu contexto regional, há aliados,
aliados não é bem a palavra, mas parceiros da China em quase
todo o lado. E, portanto, o ponto de partida é muito diferente,
ou seja, nós podemos pensar, quando olhamos para o que antigamente durante
a Guerra Fria se chamava Ásia Pacífica, e é termo que a
China hoje prefere,
do
que hoje se chama o Indo-Pacífico, porque isso obviamente inclui a Índia,
inclui este oceano Índico e, sobretudo, é uma definição geográfica que está
propositadamente em aberto. Então, é muito interessante esta forma de olhar. Mas
o ponto de partida de muitos destes países, as Filipinas, que agora
com o novo presidente esteve em Washington estão a redirecionar, o Japão
com Kishida a fazer o mesmo, a reaproximação, por exemplo, com a
Coreia do sul e com este novo presidente. Olha o que está
a acontecer à Austrália, que recentemente publicou a sua revisão do ponto
de vista da defesa e que obviamente aqui está a fazer uma
espécie de marcha atrás face àquela opção que foi de se aproximar
mais à China e agora claramente regressa, olha para a Índia, olha
para a Tailândia que parece que agora finalmente vai ter, espero bem
que sim, governo genuinamente democrático depois de muitos anos a sofrer. Ou
seja, quando perguntamos a muitos destes vizinhos, não são todos evidentemente, a
resposta que tu tens é muitas vezes de perplexidade, do estilo porquê
que vocês não se mexem de forma mais rápida ou porquê que
vocês não atuam de forma mais rápida, então mas a União Europeia
anda a dormir.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. Exatamente. Tu achas que os Estados Unidos de certa
forma sobrecorrigiram? Tu dizias que falando com pessoas de muitos países asiáticos,
eles no fundo achavam que o Ocidente devia agir de maneira mais
assertiva, mas é argumentável dizer que os Estados Unidos passaram de uma
certa passividade para uma sobre-reação. Por exemplo, e aqui podíamos falar da
guerra comercial, barra tecnológica, mas eu acho que o exemplo mais vívido
disso são as declarações do Biden em relação à Taiwan. Ele tem
declarações em relação à Taiwan que são perigosas, que a pessoa nunca
percebe se aquilo lhe saiu espontaneamente. Quer dizer, é difícil de sair
espontaneamente o que ele fez pelo menos duas vezes, não é? Mas
que são declarações que podem produzir uma escalada relativamente rápida.
Ou
não. Aparentemente não, não é?
José Maria Pimentel
Mas desculpa interromper-te, é que são duas coisas diferentes apesar de tudo,
não é? Uma é quanto é que se sub-reagiu,
isso, acho
que esta palavra não existe exatamente assim, até aqui, e outra é
se agora estamos a sobrecorrigir num outro sentido, mas vamos esperar em
dois, ou seja, pegando no que passou até aqui, tu achas que
de facto houve uma espécie de ingenuidade do Ocidente e dos Estados
Unidos em particular, que foi mantida em relação à China durante muitos
anos, com expectativas de... Afim, no fundo, e esta é até uma
versão mais agressiva do nosso amigo John Marsheimer, que nós falámos... Ui,
ui,
ui, ui, ui, ui, ui, ui,
ui, ui, ui,
ui, ui, ui, ui, ui, ui, ui, ui,
ui, ui, ui, calma, calma que
Raquel Vaz Pinto
Não, não, não, não, não, não. É difícil. Não, não, tenho mesmo
muita dificuldade. Então deixa ver se eu consigo explicar o meu ponto.
Eu acho que é uma mistura de duas coisas, ou seja, ingenuidade
no sentido de tu teres até de certa forma uma certa arrogância
de pensares que tu consegues mostrar uma espécie de farol do que
deve ser. E eu aqui não estou obviamente a dizer que isso
não era bom, claro que sim, mas o meu ponto é se
tu és capaz de o fazer, de liderares esse processo. E em
segundo lugar, é uma ingenuidade que, por outro lado, teve uma componente
comercial e económica extremamente generosa. Dito de outra forma, esta componente de
política externa foi acompanhada do mercado chinês. Portanto, é ingênuo quebê. É
a mesma coisa que pensar que a própria Alemanha e a sua
relação energética com a Rússia foi de ingenuidade, no sentido de pensando
que desta forma a interdependência, enfim, já aí podemos discutir, mas que
a Rússia se iria integrando e seria pelo menos racional nessas… Mas
há também aqui uma componente de imenso valor que é ganho pelas
empresas norte-americanas ou pelas empresas alemãs que assim concorrem ou têm acesso
neste caso ao mercado chinês ou que concorrem, no caso destas empresas
alemãs, com custos muito mais baixos. Então é uma certa ingenuidade mas
ao mesmo tempo deu imenso jeito a muitas empresas. Portanto, tens aqui
estas duas. Nesse sentido, eu acho e o Obama faz isso de
forma muito explícita em 2011, quando faz aqueles dois discursos na Austrália
em que anuncia o dito pivô para o Pacífico, é primeiro esta
ideia de que devido à década de combate aos movimentos terroristas, que
os Estados Unidos reagiram às coisas e que agora paravam como se,
ok, nós agora temos que pensar de forma mais estratégica e isso
para cá é muito claro nos discursos dele, e claro, sempre com
aquela retórica maravilhosa que o presidente Obama consegue ter do ponto de
vista escrito e do ponto de vista depois da comunicação. E ouvir,
ou seja, a capacidade dos Estados Unidos de ouvirem muitas dessas capitais,
muitos desses países que quase que dizem nós queremos ter contrapeso, queremos
ser capazes de não ser engolidos comercialmente pela China, mas vocês, Estados
Unidos, estão a dormir, ou pelo menos estão concentrados noutros teatros de
operações e portanto há esse reajuste. E isso depois foi continuado de
forma… lá está mais uma vez, eu tenho muita… se por lado
me parece que a administração de Trump aquilo que são os documentos,
aquilo que é as orientações, leu bem, depois a forma, o estilo
do presidente muitas vezes minou essa orientação que é clara. E com
a administração Biden essa orientação foi reforçada de forma muito mais coerente,
de forma muito mais organizada e sobretudo com uma equipa que tem
uma qualidade absolutamente, eu acho que penso eu, que é inequívoco. Dito
isto, nós estamos aqui a testar as águas em muitas coisas e
repara como o comunicado desta reunião do G7 adotou a ideia do
de-risk, eu traduzo como mitigar os riscos, e não a ideia do
de-coupling. Isso vem explícito no comunicado final do G7. E essa é
uma perspectiva, parece-me a mim, muito mais equilibrada, que é a perspectiva
da Comissão Europeia, é a perspectiva do Ursula von der Leyen, em
particular, porque a cara é a representante, é a líder, e isso
parece-me a mim muito mais equilibrado. Mas também porque a administração Biden,
ao contrário da administração Trump, houve os seus aliados.
Ou
seja, houve neste sentido de, não quer dizer que não decida de
forma diferente, a retirada do Afeganistão foi aliás exemplo crasse dessa forma
de não ouvir e de não falar, mas em tudo o que
tem acontecido a nível internacional, tu vês isso. Agora, por outro lado,
também essa ingenuidade ou essa forma cega de ver as coisas levou
a que os Estados Unidos em matérias sobretudo estratégicas, desculpa,
quer
dizer, estivessem realmente a dormir.
Raquel Vaz Pinto
Depois há as 17 terras raras, eu ando completamente fascinada com isto.
O despróxio, todo conjunto de componentes que existem num telemóvel como os
nossos e que tu nem imaginas, tu nem sonhas o que
é que
está ali. Ando fascinada com isto, confesso. Esse é tema, porque aí
a China o que fez foi, em matéria de terras raras, uma
coisa é tu ter os minérios ou as matérias-primas, depois outra coisa
é o processamento de maneira a que esteja pronto a entrar em
ação.
E
a China quando não tem o domínio, quando não tem as reservas,
as minas, especializou-se no processamento. E, portanto, nesse sentido, e tu repara
como, para mim, dos documentos da União Europeia mais importantes a nível
estratégico foi, agora em março, esta proposta da Comissão para as chamadas
matérias-primas críticas e uma calendarização de tornar todo este processo, que em
alguns casos vai quase 90% de dependência da China, e que é
fundamental para tudo, energia eólica, baterias dos carros elétricos, sei lá, pensa
tudo o que for a economia verde ou a economia digital, em
tudo isso e fazer aqui uma espécie de ou diversificar, diversificar é
aqui a palavra-chave e tornar a União Europeia menos dependente de só
país, mas está lá dito de forma explícita. Esse é dossier fundamental.
Raquel Vaz Pinto
Estratégicas, exatamente. E esse, essa foi uma ilusão, uma ilusão. Lá está,
eu tenho alguma dificuldade, não é? Tenho dificuldade em comprar o argumento
ingênuo, porque também há aqui fator muito de ganho imediato, mas que
depois compromete o próprio Estado a médio e longo prazo. E, portanto,
esse sim, eu acho que fruto da pandemia e fruto desta guerra
que estamos a viver, a estratégia voltou a ter lugar de onde
nunca devia ter saído, em boa rigor. Terras Raras e as 5
Amigas, por favor, é toda a gente a pesquisar, o mundo fica
com uma geografia totalmente diferente. É impressionante. E aqui eu diria até
que dos grandes vencedores vai ser a Austrália. A segunda é a
questão de outra coisa na qual nós hoje em dia andamos todos
a falar disto, os microprocessadores, os chamados chips, não é? E questões
tecnológicas também como o 5G, 6G, 7G ou o que seja, Já
não sei em quantos dias é que vamos ou estamos a pensar
nisso. E a terceira é uma região, que é a região Ártica.
São três barómetros excelentes para nós percebermos a posição da China, a
forma como nós nos relacionamos com estes três temas, vá lá, sendo
que uma é uma região, não é só a questão dos recursos,
é também a questão das rotas de navegação, é o facto da
China ter feito dos seus papers, que no fundo são documentos de
política oficial, em que se considera país quase Ártico.
Raquel Vaz Pinto
Eu também gostava muito de ser país quase Pacífico, mas aqui a
ideia é uma região, tu olhas para o Conselho do Ártico, não
é, e tu percebes como há tanta coisa que está ali a
acontecer e na qual a China tem mesmo interesse extremamente importante. Portanto,
eu escolheria, são três barómetros de temas que nos vão, quer se
queira quer não, vão ocupar muito, ou pelo menos deveriam, muito da
nossa atenção.
Raquel Vaz Pinto
Não, eu não gosto nada da expressão guerra fria porque,
por lado,
não quer evidentemente que a guerra seja quente, que fique bem claro,
e portanto não acho nada que seja inevitável e parece-me que muito
a ideia do Murchimer, da Gathering Storm e tal, enfim, acho que
é preciso ter aí alguma cautela. Guerra, conflito, sim. Penso que já
estamos nesse conflito e não há pensar
que
o que nós temos que evitar é que ele passe justamente essa
linha, atravessa o Rubicão em termos nucleares. Isso nós, aliás, agradecemos todos
que isso aconteça.
Raquel Vaz Pinto
É porque a Guerra Fria está muito associada, por razões óbvias, a
esse período e tenho receio de que a utilização dessa expressão nos
faça pensar na China como algo distante, como era a União Soviética,
distante, estanque, quando no entanto uma diferença, desde logo, assim, nos salta
à vista é... Eu não me recordo, durante o tempo da Guerra
Fria, a União Soviética ter uma fatia muito relevante da nossa EDP.
Não me lembro. Portanto, é desafio muito mais... Como é que eu
ia dizer isto sem parecer?
José Maria Pimentel
Isso, porque isso é forte demais. Sim, sim, é uma coisa bocadinho
fraquinha. Mas seja como for, estes terrenos, estas áreas de conflito de
pretensão de que tu falavas, que já são reais hoje, dão de
certa forma razão a esse argumento, não digo de uma certa ingenuidade,
mas no fundo o argumento gira todo em torno da chamada armadilha
Tucídides, que ainda não tínhamos falado estranhamente neste episódio, de que falamos
no outro episódio, que é uma tese interessante e arrojada porque não
é uma tese, pelo menos na sua formação, não é uma tese
probabilística, é uma tese determinística, ou seja, que no fundo estabelece uma
condição suficiente, diz, se houver uma determinada potência e surgir uma potência
emergente, pelos incentivos que isso cria tanto na ação da potência incumbente,
chamemos-lhe assim como da potência emergente, isso vai gerar equilíbrio instável que
inevitavelmente vai redundar em guerra. No fundo é esta a tese, nós
podemos depois usar isto com várias gradações, mas se tu tomares isto
por verdadeiro e a verdade é que nós podemos achar que não
é inevitável, e eu acho e acho que tu partilhas essa visão,
que não é inevitável que vá dar em guerra, a verdade é
que muito do que está a acontecer hoje é a armadilha tucídese
a funcionar, pelo menos na escalada de tensão entre país e outro.
E se nós tomarmos isto por verdade, de facto é ingênuo, há
30 anos ou 40, não ter olhado para o mapa e ter
pensado, ok, agora, vamos supor, estamos no início dos anos 90, a
Guerra Fria acabou, temos o mundo unipolar, que país é que pode
ser uma ameaça aos Estados Unidos de maneira a que não só
eles, porque isto tem os dois lados, é que não só esse
país pode tornar ameaçador como o surgimento desse país vai constranger a
própria ação dos Estados Unidos. Ou seja, isso mesmo do ponto de
vista de quem estava no poder americano há 30 anos, isso implicava
também, com incerteza, não só do lado da ação dessa eventual potência
emergente, mas também do próprio país. E se tu olhasses para o
mapa, de facto, a China era grande candidato. Quer dizer, não ter
havido ali uma espécie de indicador, como se fosse dashboard com o
indicador da ascensão da China, em retrospectiva, de facto, parece pelo menos
bocadinho ingênuo, porque...
Raquel Vaz Pinto
Não, não, mas que fique bem claro, não se pense que este
imenso esforço não beneficiou os chineses, com certeza que sim e ainda
bem que assim foi. Eu acho que sim, podes-lhe chamar em ingenuidade,
Eu pensei que foi momento tão triunfalista, sobretudo nessa década de 90,
que tornou a estratégia ou olhares para o mundo dessa forma muito
racional, quase algo de secundário.
Exato.
E aquilo que a história nos mostra é que quando tu deixas
de pensar, deixas de ter imaginação, capacidade de adaptação, estás a pôr
em linguagem super sofisticada, estás a pôr a jeito. Em particular quando,
do outro lado, tu tens país, que é o caso da China,
que é herdeira e aqui Xi Jinping é exemplo muito importante nesse
sentido, de país que tem uma história absolutamente extraordinária, ou seja, país
que mais cedo ou mais tarde quer regressar a uma posição na
qual, não a neste nível global como vivemos hoje, mas na qual
já esteve durante muitos séculos.
José Maria Pimentel
Eu acho que, enfim, não tenho certeza disto, não sei se tu
concordas, mas uma das relações, pelo menos, se não explícita, pelo menos
implicitamente tirada da Guerra Fria e do colapso da União Soviética é
que o crescimento económico e a abertura comercial, para lá dos benefícios
económicos que tinha, ou seja, ultimamente para a própria vida das pessoas,
era também uma estratégia vencedora a nível geopolítico. Ou seja, é quase
uma conclusão. Porque de facto, em comparação com a União Soviética, isso
aconteceu. Aliás, dos factoides interessantes que eu me voltei a lembrar na
preparação desta conversa. Não sei se tu sabias disto, mas durante muito
tempo, nos principais livros, isto é, textbooks, livros universitários pelos quais os
estudantes de economia aprendiam. Os manuais. Manuais, desculpe. É que
José Maria Pimentel
Nos principais manuais de economia houve durante muito tempo uma sobreapreciação, uma
sobrevalorização da dimensão da economia soviética. Que é engraçado. Durante muito tempo
e depois aquilo era sobrecorrigido, portanto achava-se muitas vezes o que aparecia
era catching up da economia soviética com a dos Estados Unidos, que
se previa vir, houve previsões dos anos 80, anos 90, talvez no
livro do Samuelson. E depois, quando a União Soviética cai, tu percebes
que a economia deles, quer dizer, o reino de repente vinha no
completamente, porque a economia já estava completamente pantanas. E, portanto, uma das
relações que tu tiras é a nossa estratégia ainda estava mais certa
do que nós achávamos, né? E, portanto, integrar a China fazia todo
o sentido. Mas eu
Raquel Vaz Pinto
Então, Esse também é fator, não teres a informação e depois o
show off que era feito para fora e que depois aliás acabou
por cavar ainda mais fundo justamente esse fim da União Soviética. Por
outro lado, isso por exemplo, para ir outra vez para as bandas
que eu gosto mais. Esse fator da prosperidade do lado do bloco
liderado pelos Estados Unidos é muito evidente, por exemplo, quando tu olhas
para o Japão, nesses tempos, quando tu olhas para a Coreia do
Sul, quando tu olhas para outros países, sobretudo o Japão, que os
Estados Unidos te pediram dizer, olhem, isto é a nossa montra, isto
é o que acontece quando se tem esta dupla, não é? Portanto,
de lado a democracia, do outro lado a economia de mercado, por
mais estatista dirigida pelo Estado que fosse. O ponto não é esse.
E esse elemento de prosperidade, por exemplo, também funcionou muito bem, sobretudo
nas regiões fronteiras, como por exemplo a cidade de Berlim, em que
até tiveste que construir muro do lado soviético para justamente impedir a
fuga das pessoas para o outro lado, claro que tem esse valor,
mas a palavra chave quando se tem uma estratégia ou quando tu
pensas de forma estratégica é flexibilidade. Uma coisa é a União Soviética,
ou foi a União Soviética, outra coisa é a República Popular da
China. E, portanto, penso que sem dúvida há aí déficit muito importante
de pelo menos duas décadas a pensar, sobretudo em termos económicos, it's
the economy, stupid, não é? Aquela frase que pode ser aplicada a
muitos contextos, mas também. O brixo, não é? Certo triunfalismo de que…
Raquel Vaz Pinto
Uma complacência, olha, isto há uma ótima palavra, complacência de pensarmos que
está a resolver.
Acho que
chegam mais tarde, com uns precalços aqui a mais, umas democracias bocadinho
mais iliberais, menos liberais, mas a coisa vai andando. E depois foi
conjunto de choques de vários tipos, mas sobretudo, eu acho que sim,
a palavra seria complacência. E o país que não teve qualquer complacência
e fez bem o trabalho de casa foi justamente a China.
Pois, exatamente.
E aproveitou todas as oportunidades, não é?
Raquel Vaz Pinto
isto. Essa ideia, ou seja, é crescer, crescer, crescer, não arranjar confusões
internacionais, não nos metermos entrapalhadas. Na verdade, Deng Xiaoping começa o seu
domínio da política chinesa invadindo o Vietnã em 79 e mais uma
vez o Vietnã de forma muito inteligente recusou-se a entrar em confronto
direto e lá tiveram os chineses que saíram do Vietnã, como tantos
outros anteriormente, sem conseguirem vencê-los, mas depois entrou neste registro. Mas é
sobretudo essa ideia de economia, formar as pessoas, porque a China está
a sair da chamada década perdida, da revolução cultural, Precisa de pessoas
formadas, técnicos, precisa de estudantes em boas universidades. Talvez das coisas mais
importantes que Deng Xiaoping tenha feito foi programa de intercâmbio universitário com
as universidades dos Estados Unidos. Isso é uma das dimensões da sua
forma de entender a força da China que muitas vezes não tem
o reconhecimento devido, mas é muito essa ideia de perfil discreto. E
depois começas a assistir àquela mudança quando em 2004, 2005, de repente
te falam em Ascensão Pacífica e tu nem chegas à parte do
Pacífico, ficas na parte da Ascensão. Rise! E tu pensas, hum, isto
já me soa a qualquer coisa diferente. E depois eles até trocaram
para desenvolvimento porque acharam que a ascensão era muito forte e depois
chega Xi Jinping e fala-te no grande rejuvenescimento da nação chinesa Ou
aquela ideia, aquele slogan fabuloso que é o sonho chinês, ou the
Chinese dream,
que tu
imediatamente estás a ouvir aquilo e a pensar American dream, não é?
Portanto, há claramente uma China diferente. A lentidão ou a dificuldade de
reconhecer, de mudar, de se adaptar, também é... Ou seja, todos os
nossos países, todas as... Sejam eles que tipo de regime forem, têm
às vezes dificuldade em mudar o chip, mudar em termos, por exemplo,
de recolha de intelligence, não é? Às vezes as tuas agências que
recolhem informação estão tão programadas para determinado tipo de ameaça, em termos
de saber a cultura, de teres pessoas que falam a língua, não
é? Que fazer essa viragem, essa adaptação, obviamente, muitas vezes também não
é fácil.
José Maria Pimentel
Agora dá jeito, sim, sim. E alguns de fluente de Árabe, por
exemplo. Era preciso mais mandarin. Contribua para a continuidade e crescimento deste
projeto no site 45grauspodcast.com Selecione a opção apoiar para ver como contribuir
diretamente ou através do Patreon, bem como os benefícios associados a cada
modalidade. Há aspecto muito diferente neste conflito entre a China e os
Estados Unidos face à Guerra Fria, isto para não dizer diferente nesta
nova Guerra Fria, diferente neste conflito entre Estados Unidos e China face
à Guerra Fria, potencialmente perigoso, que é o facto de agora tu
tens de facto a armadilha de Tocídides, pelo menos tens, enfim, os
elementos que tradicionalmente são descritos lá, que tu tens uma potência incumbente
que é os Estados Unidos e uma potência emergente. Na Guerra Fria,
embora tenhas tido uma tensão, Nidla, se tu sei, não é muito
grande entre os Estados Unidos e a União Soviética, tu não tiveste
exatamente isso, ou seja, tu tiveste duas potências que resultaram da Segunda
Guerra Mundial, chamemos-lhe assim. Ou seja, não havia incumbente, porque os Estados
Unidos não eram incumbente, quer dizer, em retrospectiva nós percebemos que os
Estados Unidos já eram incumbente, mas não havia a noção na altura,
como nós hoje temos, de que havia mundo unipolar em torno dos
Estados Unidos, não é? No fundo, os Estados Unidos emergem, claramente com
uma potência ocidental do pós-segunda guerra mundial, no exato momento em que
no outro polo emerge a União Soviética. Ou seja, não há displacement,
digamos assim, agora estou a usar muitos anglicismos, não há incumbente e
uma potência ameaçadora. Há mundo dividido em dois, enquanto agora tu tens
de facto... Vocês não estão a ouvir mas a Raquel está a
torcer o nariz.
Raquel Vaz Pinto
Fulton-Missouri, a cortina de ferro. Sim, isso eu percebo. Há essa afirmação.
Portanto, até aí vou. O que eu não vou é do lado
soviético, porque em 45, de facto, do ponto de vista da ocupação
territorial da União Soviética, o Exército Vermelho ocupa, entre aspas, meia Europa,
mas não são, eu diria, em 1945, uns desafiadores do poder dos
Estados Unidos. Como é que
Raquel Vaz Pinto
Tenho dificuldade em ver isso. Mais tarde, sem dúvida, e até em
alguns momentos de forma até muito quase, desculpem lá a palavra que
eu vou dizer, quase histérica. O ruído ideológico, a competição ideológica, aquilo
é de tal maneira gritante, mas eu penso que ela vai se
consolidando e aí, claro, Berlim, a cidade de Berlim, aquilo que acontece
em Berlim, aquilo que depois vai acontecer nas duas Alemanhas, quer dizer,
ok, mas 45 tem alguma dificuldade em comprar essa ideia logo?
Raquel Vaz Pinto
Aliás, nesse aspecto até, se quiseres, há o bloqueio de Berlim em
1948, com certeza, e depois em 1949, a formação das duas Alemanhas,
mas também há... E o ano de 1949 é o ano em
que, de facto, as coisas mudam, porque é o ano no qual,
no verão, a União Soviética passa a ter arma nuclear, então destilhaça
por completo a ideia do monopólio.
Raquel Vaz Pinto
o elemento ideológico, ou seja, a ideologia explica-te tudo. Não explica. A
ideologia muitas vezes fez-te afunilar a tua forma de ver, E isso
no continente asiático é tão evidente que tu não foste capaz de
destrinçar que em muitos destes países os líderes eram num primeiro grau
nacionalistas e depois sim comunistas. E a tua forma de ler, Porque
era essa a grelha que tu tinhas, eu ao contrário. E nesse
sentido os Estados Unidos perderam aqui… é dos grandes em termos de
política externa, é uma coisa aflitiva. E por isso é que eu
tenho, mais uma vez, também muito receio que se agora nos pisemos
a falar em guerra fria vamos voltar a ter esta mensagem ou
esta ideia que te esmaga tudo o que são as outras dimensões
e
que fez os Estados Unidos, por exemplo, tomar certas decisões de política
externa que ainda hoje pagam a fatura.
Por exemplo?
Por exemplo, o apoio à África do Sul do Apartheid. Porquê? Porque
eram anticomunistas.
Raquel Vaz Pinto
Ditaduras militares na América do Sul, na América Latina, em que tu
pensas que tens toda uma geração de pessoas que sofreram na pele
ou cujos familiares sofreram na pele, o que foi o apoio dos
Estados Unidos a ditaduras militares absolutamente horrendas. Militares e não só, ditaduras,
ponto. O que interessa aqui é ser ditadura. E com isso tu,
entre aspas, na perspectiva apenas do Washington, tu perdeste e perdes muito
daquilo que é uma geração e uma forma de entender o mundo.
Estas ideias que esmagam tudo, uma coisa muito manicaísta, eu espero que
tenham sido aprendidas algumas lições com tudo isso e que agora não
se olhe para o mundo apenas nessa forma manicaísta porque ela é
inevitavelmente redutora.
José Maria Pimentel
Eu percebo o que quero dizer e esse ponto é muito relevante,
enfim, como os Estados Unidos tiveram balas nos olhos que me pediram
de ver Sim, balas
nos olhos é bom.
De ver, enfim, algumas saídas com potencial, o caso mais óbvio é
o da China durante algumas décadas. Mas é possível, quer dizer, parece-me
que é possível nós termos mundo, ou convergirmos para mundo dividido em
que há uma espécie de alinhamento de vários países em torno das,
neste caso, das duas potências, mesmo sem essa componente ideológica, ou seja,
apenas...
Raquel Vaz Pinto
Foi o exemplo que nós usamos. E aquilo que se vê hoje
é reforço do político em detrimento das restantes dimensões. Ou seja, a
China é hoje mais estatista em relação à sua economia do que
era há cinco anos, talvez o melhor exemplo de todos seja o
grupo Alibaba e Jack Ma, ou seja, a ideia de que mesmo
grandes grupos que podem não ter começado com desenho explícito do Partido
hoje, inequivocamente, estão integrados na órbita do Partido, ponto. E em termos
dos direitos e das liberdades dos seus cidadãos, já nem vamos falar
de Hong Kong, que então aí toda aquela ideia, aquele conceito maravilhoso,
país do sistema está morto e enterrado, mas mesmo nesse aspecto houve
aqui claro reforço da tendência da opressão, do diminuir, acompanhado de regresso
em força do ensino ideológico, ou seja, tu tens reforço nas universidades,
em particular, dessa componente ideológica no sentido de estudar o marxismo, leninismo,
pensamento de mil nuances e, obviamente, de Xi Jinping. Esse é componente
importante.
Raquel Vaz Pinto
De forma pragmática, à maneira chinesa, ou seja, enfatizando que a China
é tão excepcional, é tão especial, que adapta todas essas ideias à
sua realidade e olhem à volta. Tudo o que vocês veem só
comprova que a China tem sido capaz de adaptar aquela expressão de
com características chinesas, não é? A tudo. Olhem à vossa volta. E,
portanto, nesse sentido, há esse reforço ideológico. Ao mesmo tempo, também há
o reforço dos mecanismos de controlo digital. Há aquela expressão, aquele conceito
que é aquela ideia das ditaduras digitais. Ou seja, que é conceito
e aqui a China é claramente o exemplo mais extraordinário que distingue
entre ditaduras que controlam os seus cidadãos à maneira antiga, vamos usar
assim uma expressão muito... E a China que o faz cada vez
mais através da tecnologia. Seja o chamado, como se diz, algoritmo vermelho,
seja a inteligência artificial, seja através do sistema de crédito social, seja
através da base de dados biométricos, portanto reconhecimento facial, seja por exemplo
uma outra dimensão que é uma base de dados de reconhecimento de
voz, ou seja, cidadão chinês pega no telefone, atende o telefone e
a partir da sua voz é automaticamente identificado como cidadão tal, ta-ta-ta-ta-ta,
infrator, ta-ta-ta-ta-ta-ta, pronto. Esse elemento do digital parece-me a mim uma característica
fundamental deste regime e que também te mostra, ao mesmo tempo, para
voltar a dos temas que nós afloramos em 2018, se Por lado
a China é de facto uma ditadura, país, regime que tem uma
componente de sofisticação muito grande, por outro lado continua a ter o
seu maior receio é a sua própria população. Portanto, É uma tensão
que continua muito presente e que me parece que vai continuar e
quando começamos a estudar bocadinho melhor estes mecanismos, este conceito de ditador
digital, de facto é bastante assustador, sinistro mesmo, o nível de intromissão
na tua vida e a forma como tu consegues ser ou és
controlado nas várias dimensões de toda a tua vida.
Raquel Vaz Pinto
Não, não, tens razão. É mais essa aproximação à China tem, mais
uma vez, interesses, nuances diferentes. Tu tens países cuja elite claramente quer
copiar sobretudo a eficácia do regime em controlar a sua própria população,
então está aqui certo fascínio ditatorial. Tens também outros que querem sobretudo
copiar a prosperidade e a capacidade de retirar centenas de milhões de
pessoas da pobreza e por aí fora. Portanto, o lado mais daquilo
que o regime tem feito concretamente, sem se preocuparem. E depois outro
setor que pode acumular com estes, que é aqueles países que têm,
por razões históricas, por razões próprias, ressentimento ou então nem é questão
do ressentimento, é não querem pertencer a mundo que é liderado pelos
Estados Unidos ou pelos países europeus. Querem ter maior margem de autonomia,
querem fazer caminho diferente. A mim parece-me claramente que é alguma ilusão
em relação ao que a China pode oferecer, ou o que a
China pode permitir nesse conjunto. E é aquilo que a China tem
feito nas últimas semanas, em particular, nos últimos dois meses, que é
muito inteligente, que é posicionar-se a nível internacional, do ponto de vista
diplomático, no contexto da guerra, como o não-Ocidente, como a voz daqueles
que não querem ser obrigados a tomar partido, que são pela, entre
aspas, paz, não é?
Raquel Vaz Pinto
Eu vejo a China com duas identidades ou com duas dimensões. Uma
dimensão que é esta da tentativa da diplomacia, de ter diplomata, Li
Hui, que é enviado para périplo com o intuito de fazer esse
caminho, e depois vejo uma outra China que, de forma nem sei
bem inteligente, prática, pragmática, está a roubar, está a esvaziar a Rússia.
Para mim, há muitos exemplos, o melhor de todos talvez seja, nos
últimos dias, nos últimos tempos, a primeira cimeira entre a China e
os cinco países da Ásia Central, que Moscouvo considera, primeiro por razões
da União Soviética e depois, se for pouco mais atrás, por razões
do seu império, embora em termos do império dos Romanov a parte
da Ásia Central e em particular os uzebecos só foram integrados com
umas belas aspas e muita violência no século XIX, que a Rússia
considera também pela questão de três desses cinco países terem recursos energéticos
importantes, Turquia, Uzbequistão e o Cazaquistão, considerar aquilo uma área quase sua.
Portanto, Eu penso que a China, para mim é claro, tem todo
o interesse em, até de forma bastante, enfim, como dizer isto, que
a guerra se prolongue, que os países sejam europeus, sejam estados unidos,
continuem muito empinhados neste conflito, que a Rússia vá ficando cada vez
mais dependente, mas nunca ao ponto de ocorrer uma possível fragmentação ou
algo que leve mesmo a uma perturbação interna na Rússia que seja
incontrolável. É jogo, é aqui equilíbrio difícil, mas esta cimeira da China
com os cinco países da Ásia Central, uff, se a bufetada não
foi sentida em Moscovo, então Vladimir Putin está ainda pior do que
se possa pensar.
Raquel Vaz Pinto
Depois olhas para a Arménia, que também tem esse seu conflito com
o Azerbaijão e no qual a Rússia não tem tido tempo de
apoiar aquilo que tem sido ao longo dos tempos aliado seu, por
razões, sobretudo, face à Turquia, a Arménia tem por razões evidentes esse
diferendo importante e tu olhas como com esta invasão ou esta ainda
maior invasão, porque a Rússia desde 2014 que já está a fazer
isso, como é que a Rússia acabou por perder aquilo que era,
até aqui, o seu grande aliado na Europa, que por cima era
o país incontornável, que é a Alemanha. Nesse sentido, olha, documento interessantíssimo
é documento que foi publicado pelo Partido Social-Democrata Alemão, o equivalente ao
nosso PS, o SPD, que publicou documento de posição do ponto de
vista de política externa no final de janeiro, em que fazem uma
fotografia do mundo, e aqui temos que ser muito justos, à boa
maneira alemã, lente, foi difícil chegar aqui, mas fazem uma fotografia do
mundo e sobretudo em relação à Rússia, à China, sem mais. E
admitem que é raro na forma de avaliar e que agora é
preciso mudar e é preciso pôr em marcha. Portanto, isto
há dois
anos os alemães estavam a falar do Nord Stream 2, como se
o 1 já não tivesse sido suficiente, não é? E, Portanto, olha,
penso que nesse sentido a China tem vindo a ser capaz de
capitalizar muito bem todo este aspecto e, mais uma vez, dos grandes
barómetros vai ser justamente a zona Ártica. Vai ser muito interessante para
mim perceber como é que a Rússia já tinha problemas de tecnologia
e de investimento na região e agora vai ter ainda mais com
as nações. Portanto, vai ser interessante perceber se a Rússia vai deixar
uma espécie de momento Tolkien, my precious, my precious, para a China,
porque de facto naquela região é assim o último reluto em termos
de área de aposta, em termos de soberania até russa. Então vai
ser muito interessante ver essa dinâmica.
Raquel Vaz Pinto
Também, se o gelo continuar à forma como está, isto, repara que
isto é pensar a médio e longo prazo.
Sim, sim.
E o imenso interesse chinês de investir na Grunilândia, o imenso interesse
na Islândia, sei lá, tudo o que for ali naquela região. Olha,
agora não, mas recentemente o Péria foi feito pelo ministro de negócios
estrangeiros chinês, Claro, França, Alemanha e depois Noruega. E tu pensas, Noruega?
Sim, claro, vai assumir a presidência do Conselho do Ártico, portanto assume.
Depois tem este pronome muito delicioso que é, a China participar ou
no Atlântico ou no Ártico é muito irritante para conjunto de países
que são mesmo do Ártico. A começar, desde logo, por uns tais
dos Estados Unidos.
Exato, sim.
Portanto, também tem essa leitura e É tema assustador, por lado, porque
nós vimos de facto uma alteração, exemplo concreto de como as alterações
climáticas são uma evidência e, por outro lado, uma zona de cada
vez maior competição.
Raquel Vaz Pinto
Ou outra região, as Ilhas do Pacífico, nas quais a China começou
a ter uma presença maior, aliás nas Ilhas de Salmão, caiu o
Carme a Trindade, mas de facto lá está, É não fazeres o
trabalho de casa e achares que não fazes nada que, obviamente, aquelas
ilhas vão. E é particularmente preocupante que, devido justamente à polarização, à
divergência, à radicalização, sei lá mais o que dizer, da política dos
Estados Unidos interna. O presidente Biden, tenha que acabou o G7, ia
ter uma cimeira do Quad e não teve, ia fazer uma coisa
histórica que era visitar uma ilha do Pacífico, neste caso a Papua
Nova Guiné, que estava em pulgas para o receber e que ficou
de mãos a abanar porque ele teve que ir para casa tratar
do teto da dívida e dos republicanos e dos democratas e desculpa
lá toda aquela atrapalhada.
E
isso é preocupante. O Modi deixou ficar a visita e portanto foi
recebido com toda a pompa e circunstância e a Índia acabou por
estar a fazer este caminho interessante. Mas repara como nós hoje discutimos
ou mencionamos lugares que, honestamente, não quero que me levem a mal,
habitantes da Papua Nova Guiné, mas não falarias em termos de relações
internacionais. Portanto,
José Maria Pimentel
Para terminar, da única maneira como podemos terminar uma conversa deste tipo,
que é olhando para a frente e voltando à armadilha do nosso
amigo dos CIDIDS, o que é que é preciso fazer para que
ela não se concretize? Porque é preciso encontrarmos uma solução que… ou
é preciso encontrar-se uma solução que atua tanto do lado da China
como do lado dos Estados Unidos, porque o ambiente em que tu
estás, em que tens uma potência em combate e uma potência emergente,
cria incentivos para determinados comportamentos tanto do lado de como do lado
de outro e, por exemplo, no caso da China, ela por lado
vai se tornando mais agressiva, como nós vemos e como tu descreveste
no início da conversa, até dos tweets dos embaixadores, mas por outro
lado, a China, admitindo que as coisas continuam como têm corrido, e
Há quem diga que não, há quem diga aquela tese do pico
de China, que o crescimento chinês está a chegar a pico, mas
apesar de tudo o cenário mais provável é que a China continua
a crescer, tanto econômica como militarmente, e portanto a China tem o
tempo a jogar a seu favor e os Estados Unidos não. E
portanto, por lado a China vai se tornando mais agressiva, mas sabe
que se as coisas continuarem, a economia a certo ponto vai ultrapassar
a economia dos Estados Unidos, já ultrapassou em paridades de poder de
compra mas não em preço de mercado, o orçamento militar ainda continua
bom bocado abaixo dos Estados Unidos mas está sempre a crescer e
o dos Estados Unidos, à verdade, está a diminuir bocadinho, portanto a
China tem o tempo a favor dele. Aliás, há quem, os realistas
dos realistas, até dizem que, na verdade, os Estados Unidos até deviam
pensar numa espécie de, numa guerra preventiva, porque no fundo, se tu
tomares a previsão deste modelo à letra, até era o que fazia
sentido, impedir a outra potência. Isso, claro, numa perspectiva bastante simplista. Mas
que instituições, quer dizer, que regras, que acordos é que é possível
criar para impedir que isto descambe? Ou para minimizar, para mitigar o
risco de que isto descambe, voltando ao termo?
Raquel Vaz Pinto
As principais incógnitas prendem-se com, em primeiro lugar, os problemas internos da
China. Em primeiro lugar, as questões que não foram de todo resolvidas
e a pandemia de certa forma até acabou por cortar esse caminho,
claro, usando métodos à Xi Jinping, que fica bem claro, mas por
exemplo a questão da dívida das províncias, a opacidade do sistema bancário,
imensas fragilidades internas da própria economia chinesa, que nós por lado não
conseguimos seguir com toda a informação e que muitas vezes escondem conjunto
de aspectos como, por exemplo, as imobiliárias, a especulação imobiliária. Ou seja,
há muito mais nesta China que tem qualidades e aspectos que tu
destacaste bem. Eu também não compro a ideia de que não, temos
de tentar ter uma fotografia mais realista possível e sermos humildes no
sentido de tentar fazer uma leitura objetiva do que está a acontecer.
Portanto, essa seria a segunda, inequivocamente, a questão demográfica. E esse é
tema, para quem quer ser superpotência, muito sério. Porque nesta fase da
vida a China neste momento tem problemas seríssimos, mas seríssimos, ou seja,
devido à sua política de uma só criança, tem conjunto de problemas
demográficos hoje, que como qualquer problema demográfico não é de fácil correção,
apesar dos imensos estímulos dados pelo Partido Comunista da China, ou seja,
no sentido de os casais terem mais filhos e isso não está
de todo a funcionar. Depois, em terceiro lugar, destacaria uma... É meia
população, no fundo, mas as mulheres. Dos aspectos mais... Como é que
eu ia dizer isto? Mais perniciosos desta tentativa agora de passar do
8 para o 80 por parte do partido em matéria de natalidade,
vai e já subescarrega e de que maneira as mulheres chinesas. E
tu vais ter aqui, e já tens, setor de enorme insatisfação de
muitas mulheres que agora não vão querer abdicar da sua carreira para
casar ou para ter filhos, não interessa. E é muito interessante porque,
por exemplo, temos algumas notícias que vão saindo de casais que, imagina,
casam, não é? E passado uns meses, já não me lembro o
número de meses, mas não é muito, recebem uma chamadinha amorosa super
preocupada do partido a perguntar então, já há bebê ou não? Ou
seja, há aqui uma dimensão, ou seja, não é rastilho que tu
digas que rebenta, mas que introduz aqui imensa insatisfação. Há aqui uma
autora que é excelente e que tem trabalhado muito esta questão das
mulheres, que é a Leta Hong Fisher, e que tem feito justamente
este percurso de como em vários momentos e hoje, essa insatisfação é
visível. E vai ser, eu diria, já é, mas tema com consequências
também muito mais sistémicas. E depois, por último, eu gostava de pensar
em termos até da própria liderança. Se, por lado, a imagem que
nós temos projetada de Xi Jinping é uma imagem de força, ou
seja, toda a coreografia do congresso, toda aquela cena que foi o
mais próximo que nós vamos ter de uma novela à série na
China, que foi o pobre do Rui Gental. Pobre, quer dizer, pronto,
daqui no contexto para a
Raquel Vaz Pinto
Agora, o ponto é, se tu precisas de tornar essa mensagem tão
pública, para mim é sinal de fraqueza,
não é
sinal de força. É essa a minha leitura. E depois, voltando a
ponto que tu há pouco destacaste e que era uma das grandes
forças desta China, que era justamente a transição de poder. Ou seja,
os investidores, as pessoas em geral, sabiam com o que contavam. É
assim tão boa ideia? Isto, claro, não pode ser descontextualizado. Ter líder,
não digo vitalício, mas no poder, porque uma das riquezas ou uma
das forças do partido era justamente adaptar, corrigir. Claro, nunca dizendo oficialmente
que é raro, mas não interessa, mas corrigir, adaptar.
Raquel Vaz Pinto
processo interno. E tu agora olhas para as 7 pessoas mais poderosas,
pelo menos tecnicamente, ou seja, os 7 membros do comitê permanente do
Politburo, do Partido comunista da China, que são os sete, e tu
o que é que os distingue em termos de percurso? Lealdade a
Xi Jinping. Aliás, a escolha do primeiro-ministro, Li Cheng, é o exemplo,
mas acabadinho, feito e resolvido nessa matéria. Portanto, isso para mim são
fatores ou áreas possíveis, entre muitas, que eu penso que temos que
prestar, talvez, na medida do possível, mais atenção e que podem não
ser necessariamente uma China... Não sei se compro muita do Pico de
China, mas lá está, eu também não sou economista, portanto também não
sei até que ponto é que isso é ou não verificável, mas
a mim é mais o outro lado, o lado mais político da
condução que a mim me levanta muitas dúvidas. Da mesma forma que
em relação aos Estados Unidos, fazendo aponte, a mim preocupa-me e esse,
olha, é dos aspectos que de facto o nosso Tussidits é mestre
a descrever, que é a falta de qualidade das elites ou as
elites más, ponto final, e de como uma Atenas liderada por Pericles
é uma Atenas que pensa, que reflete de forma estratégica, que é
cuidadosa, que pensa aliás até numa primeira estratégia defensiva, uma Atenas liderada
pelos caramelos que se seguiram, ainda assim com algumas diferenças, porque obviamente.
Mas A parte final do regime ateniense é particularmente dolorosa. É uma
das grandes lições, para mim, do livro, deste clássico, ou seja, que
muitas vezes tu perdes as guerras ou os conflitos em casa.
E
nesse sentido, seja Trump ou seja o outro, tu tens partido neste
momento dos dois grandes partidos dos Estados Unidos que nessa matéria atravessa
momento de fragmentação, de radicalização, de estupidificação, acho que posso dizê-lo com
todas as letras, que é extremamente preocupante. E, portanto, esse pode ser
ponto. E em segundo lugar, também, nessa ótica, o relacionamento com os
seus aliados. Eu Parece-me que é evidente que seja a União Europeia,
seja outros países, o Japão, enfim, em matéria militar tem outro tipo
de problemas, sobretudo ligados ao que foi a Segunda Guerra Mundial e,
portanto, há países que reagem mal e compreende-se a uma possível normalização
total
do
Japão enquanto país militar, na sua dimensão militar. Mas é preciso também
assumir aqui uma maior autonomia. Não me parece que os Estados Unidos
vão, como é evidente, desligar-se, acho que nem por sombras, mas também
talvez este século XXI seja diferente do século XX, no qual durante
justamente o conflito da Guerra Fria houve uma dependência tremenda, excessiva, sobretudo
na parte europeia, tirando lá o exemplo francês, de todo aquele entusiasmo
com estas ideias, mas eu penso que também há aqui, pode ser
interessante nesse aspecto, ou seja, que também é outra vertente da guerra
do Peloponese, que é interessante, é a qualidade dos aliados,
dos
júniores, dos parceiros júniores.
Raquel Vaz Pinto
Podem introduzir maior instabilidade, mas também podem ser uma força enorme, coisa
que se tu pensares bem a China não tem. A China não
tem aliados, no sentido daquilo que uma aliança verdadeira te pode ter.
Os Estados Unidos têm. Têm a NATO, têm o Japão, têm a
Coreia do Sul, têm a Austrália, grande aliado, talvez de todos até
o mais consistente. Isso é uma força, mas sim, sem dúvida. Sim,
porque
Raquel Vaz Pinto
Claro, nesse aspecto, sem dúvida. E depois, juntando àquelas áreas pelas quais
eu agora ando em total relação quase amorosa, que é esta das...
De todos estes minérios, terras raras destes... E convido mesmo os nossos
ouvintes a irem ler esta em inglês Critical Raw Materials Act, esta
lei da Comissão Europeia em meados de março,
é
extraordinária, porque faz-te o caminho, diz mesmo de forma explícita, para a
economia verde, para a economia digital, para o que queremos ser, nós
precisamos diversificar. E dá exemplos, aliás, muito concretos. Para fazer isto precisamos
tornar, ou fazer isto dentro da Europa, com todas as preocupações laborais
e ambientais, coisa que também quando tu faz outsourcing subias para o
lado e não prestas atenção, ou então ir buscá-los a parceiros que
são mais...
José Maria Pimentel
Ou diversificar os fundos de doutorado.
Exatamente.
Por acaso, a economia é engraçada, nós há bocado não falámos disso,
mas numa fase inicial, e aliás, na nossa primeira conversa eu dei
bocado de voz a essa perspectiva, tu ouvias muita perspectiva de que
a integração económica jogava a favor da estabilidade, digamos assim, ou seja,
o facto dos Estados Unidos e a China, ou da economia mundial
como todo estar muito integrado hoje em dia, tornava menos provável haver
uma escalada do conflito porque isso no fundo não interessava a ninguém.
Mas hoje em dia vais ouvindo mais uma tese que é contrária,
ou pelo menos aponta para o sentido contrário, e que tem muito
a ver com isso que tu falavas, que é precisamente a integração
económica que contribui para sugerir intenções, porque a integração económica leva a
que os países comecem a pensar em problemas de acesso a materiais,
de propriedade intelectual, ou seja, tudo isto que tu vês hoje em
dia. Então é engraçado, ou seja, a integração económica que parecia ser
algo favorável à paz, digamos assim, ou à estabilidade, agora parece ser
cada vez mais visto como o contrário, porque isso não existia na
Guerra Fria. Na Guerra Fria as duas economias estavam praticamente... Não era
totalmente, mas estavam praticamente...
Raquel Vaz Pinto
E uma coisa é fazer integração económica sem pensar ainda de forma
estratégica. É tirar a estratégia toda desta conversa. A China tornou-se a
fábrica do mundo, certo? E nesse aspecto até eu acho que a
pandemia foi até mais relevante no sentido de, olha, nos fazer todos
pensar em coisas tão simples quanto máscaras que todos nós precisamos, não
é? Coisas do nosso dia a dia, porque às vezes uma dificuldade
de tudo isto é tu explicar às tuas sociedades democráticas, liberais, estas
questões mais, parece, de análise mais geral, quando a pandemia trouxe temas
muito concretos, coisas muito concretas que as pessoas conseguiram identificar. Isso é
ponto. Agora, repara, do outro lado, A China o que fez foi,
pensou nessa integração, nessa normalização com o mundo, mas não deixou de
pensar estrategicamente. E, portanto, a questão das terras raras, para citar exemplo,
que aliás foram, Quando houve aí pequeno diferente com o Japão, eu
penso que foi 2011, uma das medidas da China foi a retaliação
com o não exportar terras raras para país que tem uma indústria
eletrónica brutal e, portanto, isso foi assim uma espécie de último aviso.
Eu penso que aqui o que está a ser feito a nível
internacional é o recalibrar, o reequilibrar a tal diversificação.
Raquel Vaz Pinto
de o fazer de forma muito hábil. E por isso é que,
por exemplo, este comunicado, o G7, é importante Porque já não vai
tão longe, já não te fala em decoupling de forma total, que
é no fundo o afastamento gradual mas com uma direção, e já
assumes a ideia do de-risking, que é aqui uma espécie de híbrido
entre o deixar tudo como está, que não é possível, ou fazer-se
esse afastamento. Dito isto, há obviamente setores que são setores estratégicos, que
é outra conversa interessante, o que é que nós hoje consideramos setor
estratégico, que com a pandemia tu passas a incluir nesta conversa o
fabrico ou a produção de materiais, por exemplo, de proteção, materiais médicos,
que tu se calhar antes da pandemia não pensavas sequer no assunto,
não é?
José Maria Pimentel
Sim, e provavelmente a muita gente é retrospectiva, porque de facto é
estranho. E Houve aspecto que tu falaste há bocadinho, que eu achei
particularmente interessante, que é a questão da política interna dos dois países.
E não é só a política, se quiseres, é o funcionamento interno
dos dois países. Porque quando nós... Enfim, lá estavam os conceitos e
voltando à tua versão, nós chamamos a isto de Segunda Guerra Fria,
Os conceitos têm este problema de que, por lado, clarificam porque te
ajudam a ordenar ideias mas, por outro lado, metem-te palas nos olhos.
E nós, quando estamos a olhar para isto do ponto de vista
estritamente geopolítico e, por exemplo, usando outro conceito da armadilha dos Two
Cities ou a armadilha de Ellison para deixar o power do Two
Cities descansar em paz, nós estamos a olhar para as duas potências
como monolíticos, quando na verdade não são. E tu tens a política
inteira nos Estados Unidos, enfim, não é surpresa, nada do que tu
disseste aí é surpresa para qualquer pessoa que esteja a atender, mas
na China não é bem assim, porque na China, de facto, durante
muitos anos tínhamos a crença de que o desenvolvimento económico ia gerar
democratização. Não gerou. E agora, se calhar também nos esquecemos de que
pode haver algumas surpresas eventualmente positivas, positivas do nosso ponto de vista,
dessa dinâmica interna do país e tu falavas disso, quer dizer, qualquer
alteração drástica como essa demográfica vai gerar descontentamento em muita gente, da
mesma forma que essa vigilância gera descontentamento e portanto pode haver ali...
Nós não sabemos, mas de repente, tal como aconteceu aliás com a
queda da União Soviética, pode vir uma surpresa daí. E depois do
outro lado, que eu acho que é tão ou mais interessante, é
a questão das mudanças na dinâmica de poder que houve na China.
Porque a China é caso... O desenvolvimento da China é enorme puzzle.
Aliás, há uma imensa literatura sobre isso. Porque tu achavas que, basicamente,
para ter desenvolvimento económico, para ter prosperidade, tu precisavas ter uma qualidade
institucional que praticamente pressupunha uma democracia. Lá está. Até podia não ser
uma democracia liberal do core, mas no melhor das hipóteses pressupunha uma
coisa tipo Singapura. Era assim o mínimo. E a China é puzzle,
porque era país autoritário em que isso não funcionava. Ora, uma das
razões, não é originalidade nenhuma minha, mas uma das razões, uma das
maneiras de mais ou menos tentar quadrar esse puzzle tinha precisamente que
ver com, apesar de todas as regras que tinham sido instituídas no
país, tinha-se esse sistema em que as pessoas faziam o estirocínio nas
províncias e depois as ascendiam, portanto, tinhas uma certa contenção ao autoritarismo
porque tinhas o limite de dois mandatos, provavelmente tu não consegues ter
o bolo e comer, ou a China não consegue ter o bolo,
ou o Xi Jinping neste caso não consegue ter o bolo e
comer, ou seja, ao, de repente, instituir aquilo que é cada vez
mais uma ditadura clássica, no sentido de líder que se eterniza no
poder, que está rodeado por uma corte que está lá por ser
fiel a ele e não por ter percurso mais ou menos meritocrático,
dificilmente isto vai subsistir sem ter o outro lado da moeda.
Raquel Vaz Pinto
Encontrar inimigo externo. Isso mesmo, isso mesmo. Que, aliás, vemos como Vladimir
Putin, nessa matéria, é talvez, ou tristemente, exemplo muito claro. Aqui, no
caso da China, o bote expiatório ou a questão externa, mas que
é interna na ótica de Beijing, seria obviamente Taiwan.
José Maria Pimentel
Exato, exato. Bom, vamos terminar? Alguma coisa que não tenha perguntado? Várias,
mas alguma coisa...
Não, acho que não,
Zé. Especialmente importante. Olha, Raquel, obrigadíssimo.
Obrigada, Hugo. Como eu
previa, foi uma excelente segunda parte, cinco anos depois.