#146 Raquel Vaz Pinto - Estamos a entrar numa guerra fria entre os EUA e a China?

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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45 Graus. Muito obrigado a quem se inscreveu nos workshops de pensamento crítico que tenho anunciado aqui nos episódios. O workshop de Lisboa que anunciei aqui no último episódio e que vai ser no dia 17 de junho, encheu em 12 horas. E este fim de semana lancei as sessões do Porto e online, que encheram ambas em menos de 24 horas. Muito obrigado, fico muito contente por todo este interesse. Sei que muitos de vocês queriam inscrever-se e já não foram a tempo. Eu limitei propositadamente as vagas a 20 pessoas, porque a ideia é ter uma sessão o mais interativa possível, mas vai haver mais sessões no futuro, pelo menos nestes 3 sítios. Ou seja, 2, Lisboa, Porto e a versão online. Deixo link na descrição do episódio em que se podem escrever, podem deixar o vosso e-mail e depois serão avisados no futuro quando voltarem a abrir novas sessões deste workshop. Aproveito para agradecer também aos novos mecenas do 45 Graus, ao André Garrido, ao José Martins, ao Afonso Vieira, ao Cris Bierenbach, não sei se estou a pronunciar bem, ao Miguel Carvalho, ao Cristóf Afonso, ao Pedro Vasconcelos, ao Bernardo Caria e ao João Carolina. Muito obrigado a todos. E agora, ao episódio de hoje. Pode parecer estranho isto que vou dizer, tendo em conta a predominância que tem a guerra da Ucrânia na política internacional. Mas a verdade é que, muito provavelmente, não será esse o tema central das relações internacionais da nossa época. O tema que vai marcar, muito provavelmente, a geopolítica nas próximas décadas é outro, A rivalidade entre os Estados Unidos e a China. Rivalidade essa que se vai instalando à medida que a China vai ganhando poder e vai disputando a ordem unipolar que era, desde o fim da Guerra Fria, dominada pelos Estados Unidos. Há mesmo analistas e académicos que acham que estamos, já hoje, a viver uma nova guerra fria, desta vez opondo os Estados Unidos e a China. Esta ideia não será uma novidade para os mais atentos a estes temas e, sobretudo, não será para quem ouviu o episódio número 38 do 45°, publicado em 2018, e cuja convidada foi Raquel Vaz Pinto. Nesse episódio falámos da China e dos temas que discutimos foi precisamente até que ponto a competição entre Pequim e Washington iria marcar as próximas décadas nas relações internacionais. Ora, se já na altura, há quase 5 anos, isso era uma probabilidade forte, hoje a importância dessa rivalidade é quase uma certeza. Ao mesmo tempo, passou-se entretanto muita coisa na relação entre os dois países, o que nos veio a dar uma ideia mais clara, embora ainda com muitas incógnitas, sobre a forma que esta rivalidade poderá tomar nos próximos anos. Além disso, fui recebendo muitos elogios vossos ao episódio, não só pela relevância do tema, com muitos ouvintes a sugerir voltar a ele, mas sobretudo pela convidada. É que a Raquel não só sabe muito sobre este tema e outros, como é também uma excelente comunicadora. Por isso, decidi convidá-la para regressar ao 45° para discutir este tema, desta vez focando-nos em mais profundidade, especificamente nesta questão da rivalidade entre os Estados Unidos e a China e tirando partido da informação adicional que hoje temos para compreender este fenómeno. E ela, como já perceberam, teve a gentileza de aceitar. A Raquel é investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais, chamado IPRI, da Universidade Nova de Lisboa, onde é também professora, lecionando as disciplinas de estudos asiáticos e história das relações internacionais. Entre 2020 e 2022 foi também consultora do Conselho de Administração da Fundação Gulbenkian e entre 2012 e 2016 foi presidente da Associação Portuguesa de Ciência Política. Os principais interesses de investigação da Raquel são a política externa e a estratégia chinesa, os Estados Unidos e o Indo-Pacífico e liderança e estratégia. É atualmente analista residente de política internacional da SIC e da TSF. É autora de vários livros e artigos sobre estes temas e atualmente está a terminar livro sobre os desafios colocados pela China às democracias liberais europeias, incluindo a portuguesa. Quando gravámos a nossa primeira conversa, em 2018, as tensões entre os Estados Unidos e a China estavam ainda, de certa forma, no início. Donald Trump tinha tomado posse apenas no início do ano anterior e pôs em prática uma mudança radical na postura do país em relação à China, impondo tarifas a uma série de bens chineses. Essa medida gerou, como seria de esperar, réplica do lado chinês, dando início a uma guerra comercial entre os dois países que dura até hoje. Mas desde então já muita tinta correu. A guerra comercial acentuou-se e estendeu-se a outras áreas, mesmo já com a administração Biden e os dois países têm acumulado várias divergências na arena internacional, nomeadamente em relação à guerra da Ucrânia, na qual a China tem adotado uma postura, no mínimo, ambivalente, neutra no discurso, mas bastante favorável à Rússia nas ações. Ao mesmo tempo, a retórica belicosa de Trump do lado americano tem sido mais do que correspondida do lado chinês com políticos e diplomatas adotarem discurso em relação aos Estados Unidos e ao Ocidente cada vez mais assertivo e, em alguns casos, mesmo agressivo. Estas disputas comerciais e divergências geopolíticas são, no entanto, apenas aquilo que poderíamos chamar as causas próximas do aumento da conflitualidade entre os dois países. A causa última, ou seja, o fator fundamental por trás desta mudança reside, para muitos analistas, na chamada Armadilha de Tucídides, que já tínhamos abordado no episódio de 2018. A dita armadilha tem este nome porque foi postulada pela primeira vez pelo historiador ateniense Tucídides, lá está, na sua famosa obra História da Guerra do Peloponneso. Segundo ele, essa guerra, que opôs Atenas à Esparta, era inevitável, uma vez que Atenas estava a crescer e a ganhar poder, o que fazia aumentar a sua ambição, enquanto essa situação gerava uma ansiedade crescente do lado de Sparta. A ideia desta armadilha, quando há uma potência incumbente e uma potência emergente, tem sido amplamente discutida nos últimos tempos a propósito da rivalidade entre a China e os Estados Unidos. E esta discussão ocorre tanto nos Estados Unidos como na própria China, onde existe também uma discussão académica ampla sobre este tema. Dos mais conhecidos defensores desta ideia é o professor da Universidade de Harvard, Graham Ellison, que popularizou o conceito no livro publicado em 2018. Segundo os proponentes desta armadilha, Portanto, sempre que uma potência emergente está a convergir no sentido de se tornar mais poderosa do que a potência incumbente, existe uma tendência inexorável para conflito entre as duas. Aplicada esta lógica à relação entre a China e os Estados Unidos, isto implicaria que à medida que o poder económico e militar da China se vai aproximando do norte-americano, isso crie-lhe inevitavelmente sentimento de autoimportância crescente e de vontade de ter papel mais ativo na política global. Ao mesmo tempo, isso queria nos Estados Unidos a potência incumbente, medo, insegurança e uma determinação em defender o status quo a todo custo. Esta visão sobre a armadilha de Tusidides enquanto uma espécie de lei das relações internacionais tem o seu exponente máximo hoje nos académicos da chamada escola ultrarrealista das relações internacionais. O maior exemplo desse grupo é talvez o investigador americano John Mershimer, de quem já tínhamos falado no primeiro episódio e de quem falei também no episódio sobre a guerra da Ucrânia com Lívia Franco. Para Mershimer, esta armadilha de two-sideds é de tal modo uma inevitabilidade das relações internacionais, que ele afirma que o governo norte-americano deveria ter antecipado o perigo do crescimento económico acelerado da China nas últimas décadas e, basicamente, feito tudo para impedi-lo. Citando-o a partir de artigo recente, tradução minha, e cito. A escolha lógica para os Estados Unidos era clara, desacelerar a aceleração da China. Em vez disso, encorajou-a. Seduzidos por teorias equívocas sobre o inevitável triunfo da ordem liberal e pela ideia de que a guerra entre as grandes potências era uma coisa do passado, os governos adotaram uma política de aproximação que procurava ajudar a China a desenvolver-se, promovendo o investimento no país e dando-lhe as boas vindas no sistema comercial global. A ideia era que assim a China se tornaria uma democracia amante da paz e membro responsável da ordem internacional liderada pelos Estados Unidos. Claro que isso não aconteceu. Fim de citação. Ancorados nesta lógica da armadilha dos tucídides, há assim número crescente de analistas e oficiais, tanto nos Estados Unidos como na China, que discutem hoje abertamente a possibilidade de conflito entre os dois países, seja ele uma guerra direta, de maior ou menor escala, ou uma guerra fria, sem conflitos diretos, mas, como aconteceu na Guerra Fria original, com as chamadas guerras por procuração. No entanto, como a Raquel chama a atenção ao longo da nossa conversa, as relações internacionais, enfim, o mundo em geral, são demasiado complexas para podermos tomar esta armadilha como lei de forma simplista. Há muitos fatores que podem contribuir positiva ou negativamente para a maneira como esta rivalidade evolui e, sobretudo, persistem ainda imensas incógnitas sobre o que pode acontecer no futuro. Durante esta nossa hora e meia de conversa, comecei por perguntar a Raquel o que mudou na relação entre os dois países desde o nosso episódio de 2018. De seguida, discutimos o argumento destes analistas realistas, ou seja, se a política externa dos Estados Unidos e do Ocidente em relação à China começou por ser de facto demasiado complacente. E também o que é que o Ocidente está a fazer agora para tentar diminuir a dependência, nomeadamente a dependência económica, face à China. Falamos também sobre as iniciativas que Pequim tem tomado para se afirmar enquanto potência, quer na sua vizinhança, quer chegando a lugares tão longínquos como o Ártico, local onde a China tem agora várias ambições. E, claro, inevitavelmente falamos sobre as semelhanças e as diferenças entre esta situação e a Guerra Fria original que opôs os Estados Unidos à União Soviética. No final, claro, perguntei à Raquel o que podemos esperar do futuro desta rivalidade e, sobretudo, o que podem aqueles que desejam a paz fazer para que se evite uma escalada no conflito entre os dois países. Espero que gostem desta conversa com Raquel Vaz Pinto. Não se esqueçam de preencher o formulário que deixo na descrição do episódio para terem informações sobre os workshops futuros e até ao próximo episódio. Raquel Vaz Pinto, muito bem-vinda de volta ao 45 Graus.
Raquel Vaz Pinto
É verdade, é regresso.
José Maria Pimentel
Poucos convidados bizarram. É verdade, e neste caso faz todo sentido. E aliás, vou começar exatamente por aí, porque Nós gravámos o primeiro episódio em 2018, portanto há quase 5 anos, e na altura se calhar para algumas pessoas pareceu tema bocadinho extemporâneo, ou exagerado, não é? Estarmos a falar da... A conversa não foi só sobre isso, mas falar da rivalidade dos Estados Unidos-China. E no entanto, o que aconteceu entretanto só provou que isso era... Se calhar até estávamos a subavaliar o que estava em causa, porque hoje em dia acho que a maior parte das pessoas já percebeu que esse é o tema que provavelmente vai definir o século XXI, mais até do que a guerra da Ucrânia, e hoje em dia está em todo lado, quer dizer, tu vais a uma livraria e tens livros sobre... Já tinhas muitos livros sobre a ascensão da China, mas focado no desenvolvimento económico e agora tens muitos livros de geopolítica, ou pelo menos com esse foco focado na rivalidade China-Estados Unidos. Abres jornal, sobretudo se for mais semanário, é uma revista e... Lá está ela. Lá está ela, ainda no outro dia, há duas semanas o Economist era quase todo dedicado a isso, portanto hoje em dia está em todo lado. O que é que, enfim, para quem ouviu o episódio de 2018, o que é que mudou, entretanto, principal, de lado e do outro, do lado da China e do lado dos Estados Unidos? Ui, olha,
Raquel Vaz Pinto
primeiro, os aspectos em comum. A pandemia veio acelerar muitas das tendências ou muitas destas dinâmicas que nós tínhamos visto no nosso episódio em 2018. Em segundo lugar, é inevitável que o 24 de Fevereiro de 2022 também tenha acelerado muitos desses elementos desta rivalidade e também temos, assim de forma muito sucinta, do lado da China, Xi Jinping entronizado num terceiro mandato, portanto, virando-se do avesso todo conjunto de regras, até mais importante do que está escrito no papel, aquilo que era a prática com Daniel Shelping. Nós falámos sobre isso.
José Maria Pimentel
Que é uma peculiaridade de uma ditadura, porque a China é regime autoritário, mas que tinha essa peculiaridade, que é relativamente rara nos regimes autoritários, de ter uma regra de contenção do poder, digamos assim.
Raquel Vaz Pinto
Ou de assegurar que a transição de poder é previsível.
José Maria Pimentel
E que a pessoa não se pode eternizar. Pelo menos era essa a ideia.
Raquel Vaz Pinto
Sim, ou seja, também introduzo aqui elemento de reforço, sejas tu investidor, sejas tu analista, em termos de olhares para o mundo, não só enfatiza aquela ideia de que a China é excepcional, excepcional no sentido de ser diferente, como também permitia dizer, olhem, nós, enfim, somos uma ditadura, claro, com todos os outros tipos de adjetivos muito maravilhosos, mas a diferença entre nós e o Turcomunistão ou o Uzbequistão, para citar assim dois países ali mais perto, é que de facto a China assegura a transição pacífica, pelo menos que é B, dentro daquilo que nós vamos sabendo, mas sobretudo previsível. Ou seja, Nós estamos a falar de país no qual o coletivo do partido é que interessa. E, portanto, é tudo isso que ficou questionado, virado avesso com este terceiro mandato de Xi Jinping. Do lado dos Estados Unidos temos alguns elementos de continuidade. A administração Trump tinha caracterizado a China como uma potência revisionista, a administração Biden, e para não deixar quaisquer dúvidas, faz uma leitura mais profunda, mais abrangente e considera a China rival, ou seja, claramente neste sentido de temos aqui país que, tendo em conta conjunto de dimensões do seu poder, é, olhando para o mundo, o único país que pode vir a ser, ou já é, rival dos Estados Unidos. Assim, em suma, tendo em conta estes últimos anos que têm sido, de facto, muito intensos e muito desafiantes ao mesmo tempo. Mas uma, De facto, a tua observação é a Namush. Cinco anos depois, aquilo que nós falamos em 2018 é ainda mais importante, ou pelo menos hoje já não questionamos. Nós há cinco anos falávamos assim 5G, a rede 5G e a Huawei era parceiro evidente. Cinco anos depois não é nada evidente, pelo contrário. Ou seja, há de facto aqui e até me parece que a Europa e o posicionamento da Europa é talvez o fator ou o barómetro mais interessante até do que esta rivalidade entre dois países que têm uma forma de se entender muito excepcional e muito peculiar.
José Maria Pimentel
Eu já não me lembro exatamente do histórico todo, mas eu tenho ideia que quando nós falámos há cinco anos a própria postura dos dois países ou dos dois estados era apesar de tudo bastante diferente do que é hoje. Do lado dos Estados Unidos, todos sabemos o que aconteceu, quando nós falámos já tinha havido a eleição de Trump, já tinha havido toda aquela retórica, mas agora o que tivemos foi, passo que não é disso menos, que foi a continuação de uma retórica bastante agressiva com Biden, inclusivamente com algumas declarações bocado incendiárias em relação à Taiwan. E do lado da China, o próprio discurso de Xi tem estado cada vez mais agressivo, quer dizer, ele tem dito coisas que aliás é engraçado porque uma das coisas interessantes das relações internacionais é que há tanta incerteza que é muito fácil mesmo especialistas a meterem o pé na argola, quer dizer, dizerem coisas ou partirem de pressupostos que não se comprova porque há muita opacidade, estamos a falar de uma arena onde jogam não sei quantos, quer dizer, número enorme de estados diferentes, cada com a sua política interna, portanto é muito fácil isso acontecer. Em relação à China havia muita ideia, Pelo menos a impressão que eu tenho, que havia uma certa contenção da parte da China, contrastava até com aquela abrasividade mais típica dos Estados Unidos, em que o discurso é todo mais hiperbólico, até era normal surgir tipo como o Trump, mas que do lado da China havia uma contenção, até vinda do D. Xi Jinping, hoje em dia o que nós vemos Não é isso, quer dizer, hoje em dia há discurso da parte do Xi que é ostensivamente agressivo, quer dizer...
Raquel Vaz Pinto
Não, sem dúvida, e Xi Jinping, outras partes, outras fações dentro do que é o próprio Partido Comunista da China, o próprio Estado e muitos dos seus diplomatas. Eu quando tenho que dar exemplo aos meus alunos da chamada diplomacia wolf, não é? O lobo solitário ou wolf warrior, esta ideia do guerreiro...
José Maria Pimentel
Que história, eu não conheço
Raquel Vaz Pinto
esse termo. É uma coisa que começou como filme, hit total na China, que é no fundo esta história típica daquela pessoa que está numa situação difícil e depois para salvar os seus nacionais, enfim, assim uma espécie de Rambo em versão mais espião e tal e coisa e não sei quê. E nesse sentido...
José Maria Pimentel
Isso foi filme recentemente popular na China.
Raquel Vaz Pinto
Não é recente mas é uma expressão e depois começaste a ter, sobretudo mais acentuado depois com o início da pandemia, mas já tinhas anteriormente, é isso, conjunto de diplomatas que tu à partida pensas que seriam as pessoas menos propensas a utilizar este tipo de linguagem, sobretudo no Twitter, é todo tema,
José Maria Pimentel
de expressões
Raquel Vaz Pinto
fortíssimas. E nessa matéria, como aliás recentemente se provou, não há ninguém que bata a embaixada chinesa em França. É imbatível nesta matéria de comentários incendiários, expressões que tu ficas, olhas para o Twitter e pensas, não, isto não saiu da embaixada. E na prática é mesmo isso que acontece. Dou-te talvez aqui exemplo. Há especialista francês que trabalha muito sobre Taiwan, mas não só, e às tantas ele… a falar justamente sobre as questões entre Taiwan e para aí fora, e às tantas ele é apelidado de… a palavra-chave é hiena, já Não me lembro do adjetivo, mas a palavra-chave é hiena. Portanto, essa assertividade, essa agressividade, quando, por exemplo, a Austrália questionou e pediu uma investigação independente sobre a origem do vírus, no sentido de nós percebermos e, sobretudo, aprendermos com o que aconteceu para que se tente, que não volte a repetir e tiveste chorrilho de expressões e palavras que tu não estarias à espera, em particular, num meio diplomata. E, portanto, aliás, cada vez mais se vai estudando essa diplomacia no Twitter e em particular estes casos muito abrangentes, ou seja, não é uma coisa que tu digas é o caso de uma pessoa que perdeu as estribeiras, saiu fora daquilo que seria argumento tradicional ou uma forma de estar, como aliás se viu recentemente naquela entrevista que o embaixador da China em França deu a uma televisão francesa, na qual questionou a existência formal da Ucrânia e de todos os países que saíram da União Soviética e depois, não contente com isso, avançou para as partes dos territórios e disse que a Crimea não era território ucraniano e por aí fora. Depois tiveste até aqui uma espécie de danos colaterais, da tentativa de controlar toda esta onda do ponto de vista diplomático, mas é impressionante. Ou seja, não é fenómeno isolado, isto para resumir, não é fenómeno isolado, é fenómeno muito mais abrangente e isso é fator que distingue claramente. E que vem de cima. Xi Jinping, exatamente. E muitas vezes quase que parece que tens aqui conjunto destas pessoas que querem agradar, ou que querem quase, enfim, a expressão ou a comparação talvez não seja a melhor, porque o partido é oficialmente ateu, mas é esta ideia de que são mais papistas que o Papa, não é? Ou seja, há aqui claramente esta tentativa de agradar. Portanto, não é só do lado de Washington que tu encontras esses adjetivos, assim, muito grandes, mas também do lado chinês. Eu acho que essa também é uma característica que nós podemos ler, sobretudo quando olhamos para as duas capitais.
José Maria Pimentel
E como é que tu interpretas isso? Ou seja, como é que tu interpretas essa maior agressividade chinesa?
Raquel Vaz Pinto
Como normal. Eu pensei que o que foi, Não é estranho, mas talvez o que tenha sido mais a exceção à regra tenha sido justamente o período entre Mao Zedong e Xi Jinping. Geralmente na literatura académica distingue-se três fases ou três revoluções, depende do autor. E tens o período Mao Zedong, mais revolucionário, mais ideológico. E aqui Mao Zedong no sentido da influência do todo. Depois tens esta segunda fase, que é Deng Xiaoping, que vai até ali 2008, sensivelmente. Ele morre em 97, mas as suas ideias e a sua forma de estar. E depois tens, a partir daí, Xi Jinping. E, portanto, talvez a forma de nós olharmos para a China seja… nós estamos muito colados a essa fase de Deng Xiaoping, justamente para que a China pudesse crescer economicamente, crescer tecnologicamente, normalizar as suas relações com o mundo e o mundo normalizá-las com a China, fosse também necessário ter esse, como se diz, o perfil mais discreto ou uma forma mais discreta de estar. A Elizabeth Economy faz essa distinção entre três revoluções ou três formas diferentes. O European Council on Foreign Relations Fala em China 1.0, 2.0 e 3.0, mas no fundo esta é a ideia de teres três fases de forma muito clara e também quando olhas mais no século XX, quando olhas até para outras épocas, porque de facto a China tem essa vantagem, é muita história, Tens momentos de fortíssimo sentimento de uma forma até quase hostil de entender. O que também tem muito contribuído para essa nossa perplexidade É a propaganda ou a narrativa cada vez mais eficaz que a China vai tendo, que entre vários aspectos que se tenta destacar, e tu vês isto agora com esta gestão, esta proposta da China para uma resolução política, é assim o título do documento da crise da Ucrânia, mas que muita gente refere como plano de paz, que é erro crasso porque não é plano e não há certamente ali uma proposta de paz. Este seu posicionamento como país de uma grande potência, a ideia da excecionalidade, a ideia de não ser bélica ou oblicuosa como os Estados Unidos, a ideia de que a China não entra em guerras, há conjunto de ideias diferentes. Outra que eu, a mim, pessoalmente, me deixa logo com nervos
José Maria Pimentel
vibrantes,
Raquel Vaz Pinto
esta ideia de que a China pensa de forma estratégica em tudo e é excepcional nesse seu pensamento estratégico. E tu depois olhas para a história e pensas, provem-me isso, não tens. A China, como qualquer outra grande potência, teve momentos em que pensou muito bem, estrategicamente, e teve outros que foi a desgraça total.
José Maria Pimentel
E tu não compras, porque isso de facto é uma coisa que se ouve em muitos comentadores chineses, enfim, que a pessoa fica sempre com alguma dúvida se são comentadores independentes ou que estão a passar, no fundo, uma propaganda do Estado. Essa ideia de que nós, nós, ocidentais, que olhamos para esta questão, olhamos com os nossos olhos ocidentais, habituados ao continente europeu, que durante séculos estava sempre em guerra e, portanto, com uma mentalidade, e que eu estou a citar, de jogo soma nula, ou seja, deixando que as coisas se resolvem tirando o outro e que a China não olha dessa forma e que se olharmos para a história da China não teve essa postura. Eu também não acho que isso seja verdade, mas é argumento interessante, enfim, porque a pessoa pode sempre, de facto, a cultura enviesa, não é? E nós podemos estar a olhar com olhos... Por outro lado, esta retórica de que nós estávamos a falar do Estado Chinês, contraria completamente essa tese. E apesar de tudo há aqui dois planos. Nós podíamos ter uma agressividade crescente no plano estritamente económico ou militar, uma guerra comercial, investimento cada vez maior no exército, de enviar, quer dizer, armadas ou, enfim, ou pelo menos equipamento militar para as zonas do mar da China, mas nós não temos só isso, temos também esta retórica incendiária que contraria completamente esta tese, não é?
Raquel Vaz Pinto
É verdade que é óbvio que há também aqui uma grandose de verdade quando tu muitas vezes olhas para os países europeus e para os Estados Unidos ou para, se quiseres, o Ocidente em geral, que é uma expressão que levanta aqui alguns problemas em vários temas, Mas há uma posição de privilégio, é claro, ou seja, tu tens aqui uma perspectiva de pensares desde logo que tudo gira à tua volta, não é? E essa faz parte, e de forma muito inteligente por parte da China, acrescentar essa dimensão como justificação ou como subjacente a conjunto de leituras. Agora, é também uma questão do teu ponto de partida, porque se tu viajares para A Ásia, se tu viajares para aquilo que hoje se chama o Indo-Pacífico, a tua perspectiva é, claro, com nuances e com casos concretos, extraordinariamente diferente. Porque, se tu perguntares aos vietnamitas o que é que eles pensam sobre esse argumento da China, a resposta é de dada quase aos berros. Porquê? Porque se há país que foi invadido, ocupado e que conseguiu resistir a essa força do Império Chinês é o Vietnãme. E é de tal forma que hoje em dia o Vietnãme não só tem de forma muito consistente nos inquéritos internacionais uma população pró-Estados Unidos ou com uma perceção positiva dos Estados Unidos que tu imediatamente pensas, então mas espera lá, não houve ali uma guerra terrível, horrível, na qual os Estados Unidos não só perderam, que implicou conjunto de bombardeamentos, uma guerra terrível, E tu pensas em todo esse pacote e no entanto, tu tens Vietnãme que quer participar em tudo o que são iniciativas e tudo o que são propostas dos Estados Unidos. Ou olhas para a Índia e a Índia...
José Maria Pimentel
Mas a Índia tem uma postura mais ambivalente, não é? Ou não?
Raquel Vaz Pinto
Tem uma postura ambivalente, eu acho que já foi mais ambivalente do que é hoje, sobretudo porque os conflitos fronteiristas continuam e de que maneira, com mortos e portanto está muito presente. E a Índia, aliás, eu diria que está a olhar para a invasão da Rússia em relação ao território ucraniano e está a ver uma das consequências óbvias desta guerra, que é a maior dependência da Rússia face à China e deve estar com várias palpitações, porque tudo o que for reforçar a China é para a Índia problema, é genuinamente problema. Depois, a nível externo, há sempre imenso cuidado, seja no registro dos BRICS, Ou seja, daquele conjunto de países, seja em várias cimeiras e encontros, mas não podemos ter quaisquer ilusões. A grande razão que explica a presença da Índia no chamado Cov, ou seja, nesta coisa quadrilateral que foi proposta por Shinzo Abe ainda, já há muito tempo.
José Maria Pimentel
Tipo o Primeiro-Ministro japonês.
Raquel Vaz Pinto
Exatamente, e que depois foi avançada, depois foi de certa forma reforçada com Trump e com Biden. Foi a primeira cimeira de Biden, ainda virtual, mas foi a primeira cimeira do Biden, que é a Austrália, o Japão, a Índia e os Estados Unidos. O que é que a Índia está ali a fazer? A Índia é não só o contrapeso óbvio à China naquela região, razões demográficas, razões de mercado e por aí fora, mas porque a Índia também tem valor em si mesma do ponto de vista estratégico e aquilo que tem empurrado a Índia a mexer-se do ponto de vista externo e com Modi isso é muito evidente, é justamente a presença chinesa, a nova rota da seda e olhando à sua volta, no seu contexto regional, há aliados, aliados não é bem a palavra, mas parceiros da China em quase todo o lado. E, portanto, o ponto de partida é muito diferente, ou seja, nós podemos pensar, quando olhamos para o que antigamente durante a Guerra Fria se chamava Ásia Pacífica, e é termo que a China hoje prefere, do que hoje se chama o Indo-Pacífico, porque isso obviamente inclui a Índia, inclui este oceano Índico e, sobretudo, é uma definição geográfica que está propositadamente em aberto. Então, é muito interessante esta forma de olhar. Mas o ponto de partida de muitos destes países, as Filipinas, que agora com o novo presidente esteve em Washington estão a redirecionar, o Japão com Kishida a fazer o mesmo, a reaproximação, por exemplo, com a Coreia do sul e com este novo presidente. Olha o que está a acontecer à Austrália, que recentemente publicou a sua revisão do ponto de vista da defesa e que obviamente aqui está a fazer uma espécie de marcha atrás face àquela opção que foi de se aproximar mais à China e agora claramente regressa, olha para a Índia, olha para a Tailândia que parece que agora finalmente vai ter, espero bem que sim, governo genuinamente democrático depois de muitos anos a sofrer. Ou seja, quando perguntamos a muitos destes vizinhos, não são todos evidentemente, a resposta que tu tens é muitas vezes de perplexidade, do estilo porquê que vocês não se mexem de forma mais rápida ou porquê que vocês não atuam de forma mais rápida, então mas a União Europeia anda a dormir.
José Maria Pimentel
É a reação contrária no fundo.
Raquel Vaz Pinto
Exatamente. É muito interessante, porque depois também tens que calibrar, não é? Tens que encontrar aqui equilíbrio. Mas eu penso que nós, europeus, falta-nos muitas vezes esta necessidade, que é sair da bolha, ir para o resto do mundo, tentar perceber porque é que no continente africano a China é a grande influência.
José Maria Pimentel
E já é há 20 anos.
Raquel Vaz Pinto
Há algum tempo. Portanto, sair da bolha, por todas as razões, é bom, permite-nos ter uma visão do mundo que nós muitas vezes não encaixamos. Isso eu acho que é uma forma de ler que a China aproveita muito bem.
José Maria Pimentel
Sim, e nós temos uma política externa bastante mais débil do que as dos Estados Unidos. Eu sinto que os Estados Unidos são mais etnocêntricos no sentido em que, como é continente muito grande, vivem mais para dentro, mas por outro lado, como atuam à escala do globo há muitas décadas têm de olhar para fora. O facto
Raquel Vaz Pinto
de ser Estado ajuda muito, não é?
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. Exatamente. Tu achas que os Estados Unidos de certa forma sobrecorrigiram? Tu dizias que falando com pessoas de muitos países asiáticos, eles no fundo achavam que o Ocidente devia agir de maneira mais assertiva, mas é argumentável dizer que os Estados Unidos passaram de uma certa passividade para uma sobre-reação. Por exemplo, e aqui podíamos falar da guerra comercial, barra tecnológica, mas eu acho que o exemplo mais vívido disso são as declarações do Biden em relação à Taiwan. Ele tem declarações em relação à Taiwan que são perigosas, que a pessoa nunca percebe se aquilo lhe saiu espontaneamente. Quer dizer, é difícil de sair espontaneamente o que ele fez pelo menos duas vezes, não é? Mas que são declarações que podem produzir uma escalada relativamente rápida. Ou não. Aparentemente não, não é?
Raquel Vaz Pinto
Ou não. Talvez seja aqui recalibrar, justamente,
José Maria Pimentel
da quase
Raquel Vaz Pinto
ausência de resposta ou de admissão de que as coisas não estavam de toa. Ou seja, aquela fotografia que se tinha, aquela ideia que nós aliás falamos no nosso episódio de 2018, a ideia da China mais democrática, a China mais aberta, a China mais integrada, esse de facto foi projeto que foi o que liderou a forma de entender a relação durante muito tempo. Agora é fácil de nós dizermos, criticarmos e dizermos como é que não perceberam ou não se aperceberam do que estava a acontecer. Eu não me parece que haja uma sobre, eu acho que aliás em relação a Taiwan eu discordo totalmente, acho que...
José Maria Pimentel
Acho que está no ponto certo.
Raquel Vaz Pinto
Acho que está no ponto certo, acho que é aviso sério à navegação daquilo que genuinamente pode acontecer naquela região e depois também por outro lado tens toda uma linha de aliados dos Estados Unidos, caso isso de facto aconteça, caso haja uma anexação violenta. Aliás, estou a dizer esta expressão como se uma anexação não fosse violenta, mas pronto, é para reforçar o meu ponto. O que é que os aliados dos Estados Unidos e o que outras democracias liberais na região, como é que tu respondes perante isto. Portanto, talvez o que nos tenha feito pensar que pode ser uma sobre-reação é o facto de termos quase uma total ausência de perspectiva pouco mais crítica sobre o que estava a acontecer.
José Maria Pimentel
Mas desculpa interromper-te, é que são duas coisas diferentes apesar de tudo, não é? Uma é quanto é que se sub-reagiu, isso, acho que esta palavra não existe exatamente assim, até aqui, e outra é se agora estamos a sobrecorrigir num outro sentido, mas vamos esperar em dois, ou seja, pegando no que passou até aqui, tu achas que de facto houve uma espécie de ingenuidade do Ocidente e dos Estados Unidos em particular, que foi mantida em relação à China durante muitos anos, com expectativas de... Afim, no fundo, e esta é até uma versão mais agressiva do nosso amigo John Marsheimer, que nós falámos... Ui, ui, ui, ui, ui, ui, ui, ui, ui, ui, ui, ui, ui, ui, ui, ui, ui, ui, ui, ui, ui, ui, calma, calma que
Raquel Vaz Pinto
eu já vou... Estou-te a pôr num campo de... Não, não, não, não, não punhas no campo do Marsheimer, se faz favor.
José Maria Pimentel
Era de propósito para te pôr no campo de início. De que no fundo o Ocidente foi muito ingênuo em relação à China e integrou a China no comércio internacional e nas organizações supranacionais com expectativas de certo fair play e até no limite de uma democratização que depois saíram completamente goradas e pelo contrário o que saiu dali foi país que conseguiu enriquecer economicamente à medida que se foi tornando mais agressivo.
Raquel Vaz Pinto
Bem, eu ainda estou a tentar recuperar psicologicamente o facto de me teres colocado nesse campo. Tu
José Maria Pimentel
vais tentar fazer uma coisa Que é dizer que de facto houve uma certa ingenuidade mas ao mesmo tempo não alinhas com esta tese completamente.
Raquel Vaz Pinto
Não, não, não, não, não, não. É difícil. Não, não, tenho mesmo muita dificuldade. Então deixa ver se eu consigo explicar o meu ponto. Eu acho que é uma mistura de duas coisas, ou seja, ingenuidade no sentido de tu teres até de certa forma uma certa arrogância de pensares que tu consegues mostrar uma espécie de farol do que deve ser. E eu aqui não estou obviamente a dizer que isso não era bom, claro que sim, mas o meu ponto é se tu és capaz de o fazer, de liderares esse processo. E em segundo lugar, é uma ingenuidade que, por outro lado, teve uma componente comercial e económica extremamente generosa. Dito de outra forma, esta componente de política externa foi acompanhada do mercado chinês. Portanto, é ingênuo quebê. É a mesma coisa que pensar que a própria Alemanha e a sua relação energética com a Rússia foi de ingenuidade, no sentido de pensando que desta forma a interdependência, enfim, já aí podemos discutir, mas que a Rússia se iria integrando e seria pelo menos racional nessas… Mas há também aqui uma componente de imenso valor que é ganho pelas empresas norte-americanas ou pelas empresas alemãs que assim concorrem ou têm acesso neste caso ao mercado chinês ou que concorrem, no caso destas empresas alemãs, com custos muito mais baixos. Então é uma certa ingenuidade mas ao mesmo tempo deu imenso jeito a muitas empresas. Portanto, tens aqui estas duas. Nesse sentido, eu acho e o Obama faz isso de forma muito explícita em 2011, quando faz aqueles dois discursos na Austrália em que anuncia o dito pivô para o Pacífico, é primeiro esta ideia de que devido à década de combate aos movimentos terroristas, que os Estados Unidos reagiram às coisas e que agora paravam como se, ok, nós agora temos que pensar de forma mais estratégica e isso para cá é muito claro nos discursos dele, e claro, sempre com aquela retórica maravilhosa que o presidente Obama consegue ter do ponto de vista escrito e do ponto de vista depois da comunicação. E ouvir, ou seja, a capacidade dos Estados Unidos de ouvirem muitas dessas capitais, muitos desses países que quase que dizem nós queremos ter contrapeso, queremos ser capazes de não ser engolidos comercialmente pela China, mas vocês, Estados Unidos, estão a dormir, ou pelo menos estão concentrados noutros teatros de operações e portanto há esse reajuste. E isso depois foi continuado de forma… lá está mais uma vez, eu tenho muita… se por lado me parece que a administração de Trump aquilo que são os documentos, aquilo que é as orientações, leu bem, depois a forma, o estilo do presidente muitas vezes minou essa orientação que é clara. E com a administração Biden essa orientação foi reforçada de forma muito mais coerente, de forma muito mais organizada e sobretudo com uma equipa que tem uma qualidade absolutamente, eu acho que penso eu, que é inequívoco. Dito isto, nós estamos aqui a testar as águas em muitas coisas e repara como o comunicado desta reunião do G7 adotou a ideia do de-risk, eu traduzo como mitigar os riscos, e não a ideia do de-coupling. Isso vem explícito no comunicado final do G7. E essa é uma perspectiva, parece-me a mim, muito mais equilibrada, que é a perspectiva da Comissão Europeia, é a perspectiva do Ursula von der Leyen, em particular, porque a cara é a representante, é a líder, e isso parece-me a mim muito mais equilibrado. Mas também porque a administração Biden, ao contrário da administração Trump, houve os seus aliados. Ou seja, houve neste sentido de, não quer dizer que não decida de forma diferente, a retirada do Afeganistão foi aliás exemplo crasse dessa forma de não ouvir e de não falar, mas em tudo o que tem acontecido a nível internacional, tu vês isso. Agora, por outro lado, também essa ingenuidade ou essa forma cega de ver as coisas levou a que os Estados Unidos em matérias sobretudo estratégicas, desculpa, quer dizer, estivessem realmente a dormir.
José Maria Pimentel
Pois, exato, o ponto é este. O ponto
Raquel Vaz Pinto
é este. E aqui eu destacaria três temas. Primeiro, a questão das matérias-primas críticas, sejam as terras raras, sejam aquelas cinco amigas, não é? O lítio, o níquel, a grafite, o magnésio e o cobalto.
José Maria Pimentel
Muito bem, estudo.
Raquel Vaz Pinto
Depois há as 17 terras raras, eu ando completamente fascinada com isto. O despróxio, todo conjunto de componentes que existem num telemóvel como os nossos e que tu nem imaginas, tu nem sonhas o que é que está ali. Ando fascinada com isto, confesso. Esse é tema, porque aí a China o que fez foi, em matéria de terras raras, uma coisa é tu ter os minérios ou as matérias-primas, depois outra coisa é o processamento de maneira a que esteja pronto a entrar em ação. E a China quando não tem o domínio, quando não tem as reservas, as minas, especializou-se no processamento. E, portanto, nesse sentido, e tu repara como, para mim, dos documentos da União Europeia mais importantes a nível estratégico foi, agora em março, esta proposta da Comissão para as chamadas matérias-primas críticas e uma calendarização de tornar todo este processo, que em alguns casos vai quase 90% de dependência da China, e que é fundamental para tudo, energia eólica, baterias dos carros elétricos, sei lá, pensa tudo o que for a economia verde ou a economia digital, em tudo isso e fazer aqui uma espécie de ou diversificar, diversificar é aqui a palavra-chave e tornar a União Europeia menos dependente de só país, mas está lá dito de forma explícita. Esse é dossier fundamental.
José Maria Pimentel
E no fundo é tratar questões económicas, que até aqui se tratavam como questões estritamente económicas, como questões também de segurança. Mas são questões
Raquel Vaz Pinto
Estratégicas, exatamente. E esse, essa foi uma ilusão, uma ilusão. Lá está, eu tenho alguma dificuldade, não é? Tenho dificuldade em comprar o argumento ingênuo, porque também há aqui fator muito de ganho imediato, mas que depois compromete o próprio Estado a médio e longo prazo. E, portanto, esse sim, eu acho que fruto da pandemia e fruto desta guerra que estamos a viver, a estratégia voltou a ter lugar de onde nunca devia ter saído, em boa rigor. Terras Raras e as 5 Amigas, por favor, é toda a gente a pesquisar, o mundo fica com uma geografia totalmente diferente. É impressionante. E aqui eu diria até que dos grandes vencedores vai ser a Austrália. A segunda é a questão de outra coisa na qual nós hoje em dia andamos todos a falar disto, os microprocessadores, os chamados chips, não é? E questões tecnológicas também como o 5G, 6G, 7G ou o que seja, Já não sei em quantos dias é que vamos ou estamos a pensar nisso. E a terceira é uma região, que é a região Ártica. São três barómetros excelentes para nós percebermos a posição da China, a forma como nós nos relacionamos com estes três temas, vá lá, sendo que uma é uma região, não é só a questão dos recursos, é também a questão das rotas de navegação, é o facto da China ter feito dos seus papers, que no fundo são documentos de política oficial, em que se considera país quase Ártico.
José Maria Pimentel
Curioso, sério, mas está relativamente longe apesar de tudo isso, eu tenho que passar pelo Japão e pela Rússia.
Raquel Vaz Pinto
Eu também gostava muito de ser país quase Pacífico, mas aqui a ideia é uma região, tu olhas para o Conselho do Ártico, não é, e tu percebes como há tanta coisa que está ali a acontecer e na qual a China tem mesmo interesse extremamente importante. Portanto, eu escolheria, são três barómetros de temas que nos vão, quer se queira quer não, vão ocupar muito, ou pelo menos deveriam, muito da nossa atenção.
José Maria Pimentel
Sim, o que tu acabaste de escrever no fundo são os focos sobre os quais vai girar a rivalidade entre a China e os Estados Unidos. Podemos chamar-lhe guerra fria já?
Raquel Vaz Pinto
Não, eu não gosto nada da expressão guerra fria porque, por lado, não quer evidentemente que a guerra seja quente, que fique bem claro, e portanto não acho nada que seja inevitável e parece-me que muito a ideia do Murchimer, da Gathering Storm e tal, enfim, acho que é preciso ter aí alguma cautela. Guerra, conflito, sim. Penso que já estamos nesse conflito e não há pensar que o que nós temos que evitar é que ele passe justamente essa linha, atravessa o Rubicão em termos nucleares. Isso nós, aliás, agradecemos todos que isso aconteça.
José Maria Pimentel
Mas isso era a Guerra Fria, não é? Tu hesitas em usar o termo.
Raquel Vaz Pinto
É porque a Guerra Fria está muito associada, por razões óbvias, a esse período e tenho receio de que a utilização dessa expressão nos faça pensar na China como algo distante, como era a União Soviética, distante, estanque, quando no entanto uma diferença, desde logo, assim, nos salta à vista é... Eu não me recordo, durante o tempo da Guerra Fria, a União Soviética ter uma fatia muito relevante da nossa EDP. Não me lembro. Portanto, é desafio muito mais... Como é que eu ia dizer isto sem parecer?
José Maria Pimentel
É diferente. É
Raquel Vaz Pinto
desafio diferente.
José Maria Pimentel
E quando nós transportamos conceito como a Guerra Fria...
Raquel Vaz Pinto
Eu tenho que receio que isso nos induza a fazer essa fotografia. Exatamente. É esse o ponto.
José Maria Pimentel
Porque depois constrange todo
Raquel Vaz Pinto
o raciocínio. Mas, sim, agradeço que não atravessemos a parte nuclear. Dava-me imenso jeito de não continuar cá durante mais
José Maria Pimentel
algum tempo. É conflito com características de Guerra Fria, mas não da Guerra Fria.
Raquel Vaz Pinto
Mas deixa lá
José Maria Pimentel
que os académicos
Raquel Vaz Pinto
são ótimos a inventar as chamadas buzzwords, slogan, alguém há de pensar num termo espetacular entretanto para designar isto.
José Maria Pimentel
Para que passar ao lado da hipótese de cunhar termo novo,
Raquel Vaz Pinto
não é?
José Maria Pimentel
Isso, porque isso é forte demais. Sim, sim, é uma coisa bocadinho fraquinha. Mas seja como for, estes terrenos, estas áreas de conflito de pretensão de que tu falavas, que já são reais hoje, dão de certa forma razão a esse argumento, não digo de uma certa ingenuidade, mas no fundo o argumento gira todo em torno da chamada armadilha Tucídides, que ainda não tínhamos falado estranhamente neste episódio, de que falamos no outro episódio, que é uma tese interessante e arrojada porque não é uma tese, pelo menos na sua formação, não é uma tese probabilística, é uma tese determinística, ou seja, que no fundo estabelece uma condição suficiente, diz, se houver uma determinada potência e surgir uma potência emergente, pelos incentivos que isso cria tanto na ação da potência incumbente, chamemos-lhe assim como da potência emergente, isso vai gerar equilíbrio instável que inevitavelmente vai redundar em guerra. No fundo é esta a tese, nós podemos depois usar isto com várias gradações, mas se tu tomares isto por verdadeiro e a verdade é que nós podemos achar que não é inevitável, e eu acho e acho que tu partilhas essa visão, que não é inevitável que vá dar em guerra, a verdade é que muito do que está a acontecer hoje é a armadilha tucídese a funcionar, pelo menos na escalada de tensão entre país e outro. E se nós tomarmos isto por verdade, de facto é ingênuo, há 30 anos ou 40, não ter olhado para o mapa e ter pensado, ok, agora, vamos supor, estamos no início dos anos 90, a Guerra Fria acabou, temos o mundo unipolar, que país é que pode ser uma ameaça aos Estados Unidos de maneira a que não só eles, porque isto tem os dois lados, é que não só esse país pode tornar ameaçador como o surgimento desse país vai constranger a própria ação dos Estados Unidos. Ou seja, isso mesmo do ponto de vista de quem estava no poder americano há 30 anos, isso implicava também, com incerteza, não só do lado da ação dessa eventual potência emergente, mas também do próprio país. E se tu olhasses para o mapa, de facto, a China era grande candidato. Quer dizer, não ter havido ali uma espécie de indicador, como se fosse dashboard com o indicador da ascensão da China, em retrospectiva, de facto, parece pelo menos bocadinho ingênuo, porque...
Raquel Vaz Pinto
Bocadinho ingênuo...
José Maria Pimentel
Independentemente de todos aqueles benefícios que houve, que tu dizias, como é lógico, para as empresas...
Raquel Vaz Pinto
Não, claro, mas que são importantes porque, ouve lá, o mercado chinês durante muito tempo foi e ainda hoje continua a ser, pelo menos para algumas empresas, as outras já começaram a fazer a mudança, olha a Apple, que começou a fazer a mudança para a Índia de forma muito clara.
José Maria Pimentel
E depois os milhões de pessoas que saíram da pobreza e tal também é importante.
Raquel Vaz Pinto
Não, não, mas que fique bem claro, não se pense que este imenso esforço não beneficiou os chineses, com certeza que sim e ainda bem que assim foi. Eu acho que sim, podes-lhe chamar em ingenuidade, Eu pensei que foi momento tão triunfalista, sobretudo nessa década de 90, que tornou a estratégia ou olhares para o mundo dessa forma muito racional, quase algo de secundário. Exato. E aquilo que a história nos mostra é que quando tu deixas de pensar, deixas de ter imaginação, capacidade de adaptação, estás a pôr em linguagem super sofisticada, estás a pôr a jeito. Em particular quando, do outro lado, tu tens país, que é o caso da China, que é herdeira e aqui Xi Jinping é exemplo muito importante nesse sentido, de país que tem uma história absolutamente extraordinária, ou seja, país que mais cedo ou mais tarde quer regressar a uma posição na qual, não a neste nível global como vivemos hoje, mas na qual já esteve durante muitos séculos.
José Maria Pimentel
Sim, isso seria normal.
Raquel Vaz Pinto
Claro que sim, mas eu penso que é sobretudo o termos deixado a estratégia, temos deixado a história e temos pensado que a economia ou esta interdependência resolvia tudo.
José Maria Pimentel
Eu acho que, enfim, não tenho certeza disto, não sei se tu concordas, mas uma das relações, pelo menos, se não explícita, pelo menos implicitamente tirada da Guerra Fria e do colapso da União Soviética é que o crescimento económico e a abertura comercial, para lá dos benefícios económicos que tinha, ou seja, ultimamente para a própria vida das pessoas, era também uma estratégia vencedora a nível geopolítico. Ou seja, é quase uma conclusão. Porque de facto, em comparação com a União Soviética, isso aconteceu. Aliás, dos factoides interessantes que eu me voltei a lembrar na preparação desta conversa. Não sei se tu sabias disto, mas durante muito tempo, nos principais livros, isto é, textbooks, livros universitários pelos quais os estudantes de economia aprendiam. Os manuais. Manuais, desculpe. É que
Raquel Vaz Pinto
eu detesto a palavra manual, portanto...
José Maria Pimentel
Não, mas é a palavra certa. Estaria como tu.
Raquel Vaz Pinto
Pior ainda se fosse sementes. Estamos na outra época já.
José Maria Pimentel
Nos principais manuais de economia houve durante muito tempo uma sobreapreciação, uma sobrevalorização da dimensão da economia soviética. Que é engraçado. Durante muito tempo e depois aquilo era sobrecorrigido, portanto achava-se muitas vezes o que aparecia era catching up da economia soviética com a dos Estados Unidos, que se previa vir, houve previsões dos anos 80, anos 90, talvez no livro do Samuelson. E depois, quando a União Soviética cai, tu percebes que a economia deles, quer dizer, o reino de repente vinha no completamente, porque a economia já estava completamente pantanas. E, portanto, uma das relações que tu tiras é a nossa estratégia ainda estava mais certa do que nós achávamos, né? E, portanto, integrar a China fazia todo o sentido. Mas eu
Raquel Vaz Pinto
penso que tem logo aí à partida problema muito sério que é a falta de informação. Tu em relação à União Soviética, tens de facto, primeiro não tens uma participação das empresas soviéticas na economia internacional.
José Maria Pimentel
Zero, os economistas estavam completamente separados. Certo? Uma coisa ou outra marginal.
Raquel Vaz Pinto
Esta frase até parece estranha. Depois em segundo lugar, tens genuinamente, vives num tempo em que obviamente já há mais informação, mas não há o que há hoje, mesmo que seja bloqueado pela China, mesmo que haja uma versão alternativa.
José Maria Pimentel
Sim, tens satélites, tens muitas coisas. Tem nada a ver.
Raquel Vaz Pinto
Então, Esse também é fator, não teres a informação e depois o show off que era feito para fora e que depois aliás acabou por cavar ainda mais fundo justamente esse fim da União Soviética. Por outro lado, isso por exemplo, para ir outra vez para as bandas que eu gosto mais. Esse fator da prosperidade do lado do bloco liderado pelos Estados Unidos é muito evidente, por exemplo, quando tu olhas para o Japão, nesses tempos, quando tu olhas para a Coreia do Sul, quando tu olhas para outros países, sobretudo o Japão, que os Estados Unidos te pediram dizer, olhem, isto é a nossa montra, isto é o que acontece quando se tem esta dupla, não é? Portanto, de lado a democracia, do outro lado a economia de mercado, por mais estatista dirigida pelo Estado que fosse. O ponto não é esse. E esse elemento de prosperidade, por exemplo, também funcionou muito bem, sobretudo nas regiões fronteiras, como por exemplo a cidade de Berlim, em que até tiveste que construir muro do lado soviético para justamente impedir a fuga das pessoas para o outro lado, claro que tem esse valor, mas a palavra chave quando se tem uma estratégia ou quando tu pensas de forma estratégica é flexibilidade. Uma coisa é a União Soviética, ou foi a União Soviética, outra coisa é a República Popular da China. E, portanto, penso que sem dúvida há aí déficit muito importante de pelo menos duas décadas a pensar, sobretudo em termos económicos, it's the economy, stupid, não é? Aquela frase que pode ser aplicada a muitos contextos, mas também. O brixo, não é? Certo triunfalismo de que…
José Maria Pimentel
Uma complacência grande também.
Raquel Vaz Pinto
Uma complacência, olha, isto há uma ótima palavra, complacência de pensarmos que está a resolver. Acho que chegam mais tarde, com uns precalços aqui a mais, umas democracias bocadinho mais iliberais, menos liberais, mas a coisa vai andando. E depois foi conjunto de choques de vários tipos, mas sobretudo, eu acho que sim, a palavra seria complacência. E o país que não teve qualquer complacência e fez bem o trabalho de casa foi justamente a China. Pois, exatamente. E aproveitou todas as oportunidades, não é?
José Maria Pimentel
Aquela frase conhecida do Deng Xiaoping que é... Esperar, esconder as forças e esperar, como é que é? É isto, basicamente assim.
Raquel Vaz Pinto
Bide your time. Esperar pela vez.
José Maria Pimentel
Hide your strength, bide your time. Ou ao contrário, já não sei, mas é
Raquel Vaz Pinto
isto. Essa ideia, ou seja, é crescer, crescer, crescer, não arranjar confusões internacionais, não nos metermos entrapalhadas. Na verdade, Deng Xiaoping começa o seu domínio da política chinesa invadindo o Vietnã em 79 e mais uma vez o Vietnã de forma muito inteligente recusou-se a entrar em confronto direto e lá tiveram os chineses que saíram do Vietnã, como tantos outros anteriormente, sem conseguirem vencê-los, mas depois entrou neste registro. Mas é sobretudo essa ideia de economia, formar as pessoas, porque a China está a sair da chamada década perdida, da revolução cultural, Precisa de pessoas formadas, técnicos, precisa de estudantes em boas universidades. Talvez das coisas mais importantes que Deng Xiaoping tenha feito foi programa de intercâmbio universitário com as universidades dos Estados Unidos. Isso é uma das dimensões da sua forma de entender a força da China que muitas vezes não tem o reconhecimento devido, mas é muito essa ideia de perfil discreto. E depois começas a assistir àquela mudança quando em 2004, 2005, de repente te falam em Ascensão Pacífica e tu nem chegas à parte do Pacífico, ficas na parte da Ascensão. Rise! E tu pensas, hum, isto já me soa a qualquer coisa diferente. E depois eles até trocaram para desenvolvimento porque acharam que a ascensão era muito forte e depois chega Xi Jinping e fala-te no grande rejuvenescimento da nação chinesa Ou aquela ideia, aquele slogan fabuloso que é o sonho chinês, ou the Chinese dream, que tu imediatamente estás a ouvir aquilo e a pensar American dream, não é? Portanto, há claramente uma China diferente. A lentidão ou a dificuldade de reconhecer, de mudar, de se adaptar, também é... Ou seja, todos os nossos países, todas as... Sejam eles que tipo de regime forem, têm às vezes dificuldade em mudar o chip, mudar em termos, por exemplo, de recolha de intelligence, não é? Às vezes as tuas agências que recolhem informação estão tão programadas para determinado tipo de ameaça, em termos de saber a cultura, de teres pessoas que falam a língua, não é? Que fazer essa viragem, essa adaptação, obviamente, muitas vezes também não é fácil.
José Maria Pimentel
Sim, sim, demora tempo, sim. Tinhas muita gente, imagino que nos Estados Unidos estivesse... Imensa gente
Raquel Vaz Pinto
de fluente russo que agora por acaso dá jeito.
José Maria Pimentel
Agora dá jeito, sim, sim. E alguns de fluente de Árabe, por exemplo. Era preciso mais mandarin. Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no site 45grauspodcast.com Selecione a opção apoiar para ver como contribuir diretamente ou através do Patreon, bem como os benefícios associados a cada modalidade. Há aspecto muito diferente neste conflito entre a China e os Estados Unidos face à Guerra Fria, isto para não dizer diferente nesta nova Guerra Fria, diferente neste conflito entre Estados Unidos e China face à Guerra Fria, potencialmente perigoso, que é o facto de agora tu tens de facto a armadilha de Tocídides, pelo menos tens, enfim, os elementos que tradicionalmente são descritos lá, que tu tens uma potência incumbente que é os Estados Unidos e uma potência emergente. Na Guerra Fria, embora tenhas tido uma tensão, Nidla, se tu sei, não é muito grande entre os Estados Unidos e a União Soviética, tu não tiveste exatamente isso, ou seja, tu tiveste duas potências que resultaram da Segunda Guerra Mundial, chamemos-lhe assim. Ou seja, não havia incumbente, porque os Estados Unidos não eram incumbente, quer dizer, em retrospectiva nós percebemos que os Estados Unidos já eram incumbente, mas não havia a noção na altura, como nós hoje temos, de que havia mundo unipolar em torno dos Estados Unidos, não é? No fundo, os Estados Unidos emergem, claramente com uma potência ocidental do pós-segunda guerra mundial, no exato momento em que no outro polo emerge a União Soviética. Ou seja, não há displacement, digamos assim, agora estou a usar muitos anglicismos, não há incumbente e uma potência ameaçadora. Há mundo dividido em dois, enquanto agora tu tens de facto... Vocês não estão a ouvir mas a Raquel está a torcer o nariz.
Raquel Vaz Pinto
Não, não, eu estou a tentar fazer aqui o percurso na cabeça para...
José Maria Pimentel
Tu agora tinhas o mundo unipolar que está a ser ameaçado pela Associação da China. Tu ali tiveste, aliás, na verdade, duas guerras mundiais praticamente seguida, das quais emerge mundo dividido em dois.
Raquel Vaz Pinto
Não sei se te acompanho. Eu estou
José Maria Pimentel
a perguntar isto precisamente porque...
Raquel Vaz Pinto
Não sei se te acompanho porque o mundo que sai da Segunda Guerra Mundial é mundo moldado pelos Estados Unidos. Podemos dizer que não há talvez a percepção do quão dominante os Estados Unidos eram naquele momento.
José Maria Pimentel
Quanto eram antes. O teu ponto é
Raquel Vaz Pinto
antes da Segunda Guerra Mundial.
José Maria Pimentel
Porque a Guerra Fria começa basicamente depois da... Logo a seguir. Logo a seguir.
Raquel Vaz Pinto
Aquela exército vermelho ali...
José Maria Pimentel
Os cursos do Churchill é de quando? Não é para ir de 46, 47? 46. É logo a seguir. O
Raquel Vaz Pinto
Fulton-Missouri, a cortina de ferro. Sim, isso eu percebo. Há essa afirmação. Portanto, até aí vou. O que eu não vou é do lado soviético, porque em 45, de facto, do ponto de vista da ocupação territorial da União Soviética, o Exército Vermelho ocupa, entre aspas, meia Europa, mas não são, eu diria, em 1945, uns desafiadores do poder dos Estados Unidos. Como é que
José Maria Pimentel
eu digo isto? Ah, estou a perceber o que queres dizer.
Raquel Vaz Pinto
Ou seja, não há de todo esse... Primeiro, devastação humana, a devastação económica, independentemente do modelo planificado e por aí fora. Mas, ou seja, eu acho que essa é uma leitura já à Guerra Fria daquilo que aconteceu no pós-segunda guerra mundial.
José Maria Pimentel
Então, percebe o que eu quero dizer. Ou seja, aquilo que nós chamamos de guerra fria, da crise dos mísseis de Cuba, dos porcos.
Raquel Vaz Pinto
Isso já é quentinho.
José Maria Pimentel
Exato, já não começa logo no pós-segunda guerra mundial. E, portanto, quando isso começa já há challenge.
Raquel Vaz Pinto
Quer dizer, há uma tensão, claro. O meu ponto é, há uma tensão evidente, há uma clara do que é que está ali a acontecer, mas sinceramente não há uma equivalência, não há uma perceção de que há duas superpotências que saem em 45, nem por sombras.
José Maria Pimentel
Exato, exato.
Raquel Vaz Pinto
Nem por sombras. Eu acho que depois sim. Se fores-te cimentando, o próprio Truman tem que, como forma até de convencer a sua própria população que era preciso continuar a ter forças armadas, grandes e com muita abrangência, mas teria alguma dificuldade em ver essa posição...
José Maria Pimentel
Em ver o mundo bipolar no fundo já ali, não é?
Raquel Vaz Pinto
Tenho dificuldade em ver isso. Mais tarde, sem dúvida, e até em alguns momentos de forma até muito quase, desculpem lá a palavra que eu vou dizer, quase histérica. O ruído ideológico, a competição ideológica, aquilo é de tal maneira gritante, mas eu penso que ela vai se consolidando e aí, claro, Berlim, a cidade de Berlim, aquilo que acontece em Berlim, aquilo que depois vai acontecer nas duas Alemanhas, quer dizer, ok, mas 45 tem alguma dificuldade em comprar essa ideia logo?
José Maria Pimentel
Sim, excelente resposta. Porque eu não tinha pensado nessa questão que é importante, porque embora nós possamos colocar a Guerra Fria, lá está logo, no post-World War I, não era o mundo bipolar e não era ainda o mundo bipolar que depois veio a caracterizar...
Raquel Vaz Pinto
Aliás, nesse aspecto até, se quiseres, há o bloqueio de Berlim em 1948, com certeza, e depois em 1949, a formação das duas Alemanhas, mas também há... E o ano de 1949 é o ano em que, de facto, as coisas mudam, porque é o ano no qual, no verão, a União Soviética passa a ter arma nuclear, então destilhaça por completo a ideia do monopólio.
José Maria Pimentel
Sim, é a guerra do Coreia, não é? De 49 também.
Raquel Vaz Pinto
É 50, mas antes disso é a proclamação da República Popular da China, justamente. Portanto, aí Washington... É lá, isto... Mas é tão interessante porque lá está, em termos de... Tu na altura pensaste que... Estamos mesmo a imaginar, na altura pensaste... Meu Deus, isto é tipo marionetas, não
José Maria Pimentel
é?
Raquel Vaz Pinto
Escovo a pôr tudo aqui em andamento. E foi assim porque não tens informação fiável no local, não sabes, tu não sabes que mouse e dog está ali, não podem ir com o outro, não sabes.
José Maria Pimentel
Só vês-se saber isso muito mais tarde.
Raquel Vaz Pinto
Claro, muito mais tarde é que tu depois tens essa leitura até mais fiável, essa fotografia mais correta, falta-te sempre qualquer coisa quando tens uma ideia ou uma ideia que domina tudo, sabes? Tipo, coisas que são explicadas com apenas uma grande ideia eu fico logo em stress.
José Maria Pimentel
Sim, fica sempre alguma coisa importante de fora. E aqui é
Raquel Vaz Pinto
o elemento ideológico, ou seja, a ideologia explica-te tudo. Não explica. A ideologia muitas vezes fez-te afunilar a tua forma de ver, E isso no continente asiático é tão evidente que tu não foste capaz de destrinçar que em muitos destes países os líderes eram num primeiro grau nacionalistas e depois sim comunistas. E a tua forma de ler, Porque era essa a grelha que tu tinhas, eu ao contrário. E nesse sentido os Estados Unidos perderam aqui… é dos grandes em termos de política externa, é uma coisa aflitiva. E por isso é que eu tenho, mais uma vez, também muito receio que se agora nos pisemos a falar em guerra fria vamos voltar a ter esta mensagem ou esta ideia que te esmaga tudo o que são as outras dimensões e que fez os Estados Unidos, por exemplo, tomar certas decisões de política externa que ainda hoje pagam a fatura. Por exemplo? Por exemplo, o apoio à África do Sul do Apartheid. Porquê? Porque eram anticomunistas.
José Maria Pimentel
E uma série de regimes autoritários.
Raquel Vaz Pinto
Ditaduras militares na América do Sul, na América Latina, em que tu pensas que tens toda uma geração de pessoas que sofreram na pele ou cujos familiares sofreram na pele, o que foi o apoio dos Estados Unidos a ditaduras militares absolutamente horrendas. Militares e não só, ditaduras, ponto. O que interessa aqui é ser ditadura. E com isso tu, entre aspas, na perspectiva apenas do Washington, tu perdeste e perdes muito daquilo que é uma geração e uma forma de entender o mundo. Estas ideias que esmagam tudo, uma coisa muito manicaísta, eu espero que tenham sido aprendidas algumas lições com tudo isso e que agora não se olhe para o mundo apenas nessa forma manicaísta porque ela é inevitavelmente redutora.
José Maria Pimentel
Eu percebo o que quero dizer e esse ponto é muito relevante, enfim, como os Estados Unidos tiveram balas nos olhos que me pediram de ver Sim, balas nos olhos é bom. De ver, enfim, algumas saídas com potencial, o caso mais óbvio é o da China durante algumas décadas. Mas é possível, quer dizer, parece-me que é possível nós termos mundo, ou convergirmos para mundo dividido em que há uma espécie de alinhamento de vários países em torno das, neste caso, das duas potências, mesmo sem essa componente ideológica, ou seja, apenas...
Raquel Vaz Pinto
Sim, sim, sim, sim, sem dúvida.
José Maria Pimentel
Portanto, mesmo sem haver a componente ideológica, tu podes ter países que gravitam para a esfera da China e países que gravitam para a esfera dos Estados Unidos por motivos puramente estratégicos. Ou táticos. Sim, ou táticos, sim.
Raquel Vaz Pinto
Sim, sim, sem dúvida. Ou podes mesmo ter uma leitura, se quiseres, mais, não digo ideológica, mas mais política. Podes ter mais democracias liberais para lado e mais regimes ditatoriais ou híbridos ou irliberais para o outro.
José Maria Pimentel
Tu vês papel nisso, ou seja, quanto de ideologia que há em Xi Jinping hoje? Há menos do que havia na União Soviética, isso é evidente, não é? E menos ainda do que se achava que havia na ordem soviética, mas existe alguma coisa?
Raquel Vaz Pinto
Existe, e aliás dos aspectos, uma das coisas que nós tínhamos falado em 2018, justamente, era perceber se a China faria caminho no sentido de ter uma espécie de estado de direito minimamente, não no sentido pleno, mas ter conjunto de regras que...
José Maria Pimentel
Não é estado de direito no sentido dos direitos individuais, mas no sentido de regras.
Raquel Vaz Pinto
Sim, regras... Tipo Singapura. Exatamente.
José Maria Pimentel
Acho que aliás tu deste o exemplo de Singapura.
Raquel Vaz Pinto
Foi o exemplo que nós usamos. E aquilo que se vê hoje é reforço do político em detrimento das restantes dimensões. Ou seja, a China é hoje mais estatista em relação à sua economia do que era há cinco anos, talvez o melhor exemplo de todos seja o grupo Alibaba e Jack Ma, ou seja, a ideia de que mesmo grandes grupos que podem não ter começado com desenho explícito do Partido hoje, inequivocamente, estão integrados na órbita do Partido, ponto. E em termos dos direitos e das liberdades dos seus cidadãos, já nem vamos falar de Hong Kong, que então aí toda aquela ideia, aquele conceito maravilhoso, país do sistema está morto e enterrado, mas mesmo nesse aspecto houve aqui claro reforço da tendência da opressão, do diminuir, acompanhado de regresso em força do ensino ideológico, ou seja, tu tens reforço nas universidades, em particular, dessa componente ideológica no sentido de estudar o marxismo, leninismo, pensamento de mil nuances e, obviamente, de Xi Jinping. Esse é componente importante.
José Maria Pimentel
E como é que eles compatibilizam o marxismo-leninismo com o capitalismo?
Raquel Vaz Pinto
De forma pragmática, à maneira chinesa, ou seja, enfatizando que a China é tão excepcional, é tão especial, que adapta todas essas ideias à sua realidade e olhem à volta. Tudo o que vocês veem só comprova que a China tem sido capaz de adaptar aquela expressão de com características chinesas, não é? A tudo. Olhem à vossa volta. E, portanto, nesse sentido, há esse reforço ideológico. Ao mesmo tempo, também há o reforço dos mecanismos de controlo digital. Há aquela expressão, aquele conceito que é aquela ideia das ditaduras digitais. Ou seja, que é conceito e aqui a China é claramente o exemplo mais extraordinário que distingue entre ditaduras que controlam os seus cidadãos à maneira antiga, vamos usar assim uma expressão muito... E a China que o faz cada vez mais através da tecnologia. Seja o chamado, como se diz, algoritmo vermelho, seja a inteligência artificial, seja através do sistema de crédito social, seja através da base de dados biométricos, portanto reconhecimento facial, seja por exemplo uma outra dimensão que é uma base de dados de reconhecimento de voz, ou seja, cidadão chinês pega no telefone, atende o telefone e a partir da sua voz é automaticamente identificado como cidadão tal, ta-ta-ta-ta-ta, infrator, ta-ta-ta-ta-ta-ta, pronto. Esse elemento do digital parece-me a mim uma característica fundamental deste regime e que também te mostra, ao mesmo tempo, para voltar a dos temas que nós afloramos em 2018, se Por lado a China é de facto uma ditadura, país, regime que tem uma componente de sofisticação muito grande, por outro lado continua a ter o seu maior receio é a sua própria população. Portanto, É uma tensão que continua muito presente e que me parece que vai continuar e quando começamos a estudar bocadinho melhor estes mecanismos, este conceito de ditador digital, de facto é bastante assustador, sinistro mesmo, o nível de intromissão na tua vida e a forma como tu consegues ser ou és controlado nas várias dimensões de toda a tua vida.
José Maria Pimentel
Enfim, esse é ressurgir da ideologia, mas apesar de tudo até vê mais para consumo interno, não é? Ou seja, a construção de uma órbita de países na órbita da China baseada em afinidades ideológicas, como acontecia com a União Soviética, apesar de tudo ela que nós temos muito a ver, não é?
Raquel Vaz Pinto
Não, não, tens razão. É mais essa aproximação à China tem, mais uma vez, interesses, nuances diferentes. Tu tens países cuja elite claramente quer copiar sobretudo a eficácia do regime em controlar a sua própria população, então está aqui certo fascínio ditatorial. Tens também outros que querem sobretudo copiar a prosperidade e a capacidade de retirar centenas de milhões de pessoas da pobreza e por aí fora. Portanto, o lado mais daquilo que o regime tem feito concretamente, sem se preocuparem. E depois outro setor que pode acumular com estes, que é aqueles países que têm, por razões históricas, por razões próprias, ressentimento ou então nem é questão do ressentimento, é não querem pertencer a mundo que é liderado pelos Estados Unidos ou pelos países europeus. Querem ter maior margem de autonomia, querem fazer caminho diferente. A mim parece-me claramente que é alguma ilusão em relação ao que a China pode oferecer, ou o que a China pode permitir nesse conjunto. E é aquilo que a China tem feito nas últimas semanas, em particular, nos últimos dois meses, que é muito inteligente, que é posicionar-se a nível internacional, do ponto de vista diplomático, no contexto da guerra, como o não-Ocidente, como a voz daqueles que não querem ser obrigados a tomar partido, que são pela, entre aspas, paz, não é?
José Maria Pimentel
E tu vejo a China alinhada com a Rússia ou ainda a tentar, pelo menos, projetar estatuto não alinhado do caso da guerra da Ucrânia?
Raquel Vaz Pinto
Eu vejo a China com duas identidades ou com duas dimensões. Uma dimensão que é esta da tentativa da diplomacia, de ter diplomata, Li Hui, que é enviado para périplo com o intuito de fazer esse caminho, e depois vejo uma outra China que, de forma nem sei bem inteligente, prática, pragmática, está a roubar, está a esvaziar a Rússia. Para mim, há muitos exemplos, o melhor de todos talvez seja, nos últimos dias, nos últimos tempos, a primeira cimeira entre a China e os cinco países da Ásia Central, que Moscouvo considera, primeiro por razões da União Soviética e depois, se for pouco mais atrás, por razões do seu império, embora em termos do império dos Romanov a parte da Ásia Central e em particular os uzebecos só foram integrados com umas belas aspas e muita violência no século XIX, que a Rússia considera também pela questão de três desses cinco países terem recursos energéticos importantes, Turquia, Uzbequistão e o Cazaquistão, considerar aquilo uma área quase sua. Portanto, Eu penso que a China, para mim é claro, tem todo o interesse em, até de forma bastante, enfim, como dizer isto, que a guerra se prolongue, que os países sejam europeus, sejam estados unidos, continuem muito empinhados neste conflito, que a Rússia vá ficando cada vez mais dependente, mas nunca ao ponto de ocorrer uma possível fragmentação ou algo que leve mesmo a uma perturbação interna na Rússia que seja incontrolável. É jogo, é aqui equilíbrio difícil, mas esta cimeira da China com os cinco países da Ásia Central, uff, se a bufetada não foi sentida em Moscovo, então Vladimir Putin está ainda pior do que se possa pensar.
José Maria Pimentel
Sim, a Rússia não ser convidada para essa cima era peculiar, de facto.
Raquel Vaz Pinto
Depois olhas para a Arménia, que também tem esse seu conflito com o Azerbaijão e no qual a Rússia não tem tido tempo de apoiar aquilo que tem sido ao longo dos tempos aliado seu, por razões, sobretudo, face à Turquia, a Arménia tem por razões evidentes esse diferendo importante e tu olhas como com esta invasão ou esta ainda maior invasão, porque a Rússia desde 2014 que já está a fazer isso, como é que a Rússia acabou por perder aquilo que era, até aqui, o seu grande aliado na Europa, que por cima era o país incontornável, que é a Alemanha. Nesse sentido, olha, documento interessantíssimo é documento que foi publicado pelo Partido Social-Democrata Alemão, o equivalente ao nosso PS, o SPD, que publicou documento de posição do ponto de vista de política externa no final de janeiro, em que fazem uma fotografia do mundo, e aqui temos que ser muito justos, à boa maneira alemã, lente, foi difícil chegar aqui, mas fazem uma fotografia do mundo e sobretudo em relação à Rússia, à China, sem mais. E admitem que é raro na forma de avaliar e que agora é preciso mudar e é preciso pôr em marcha. Portanto, isto há dois anos os alemães estavam a falar do Nord Stream 2, como se o 1 já não tivesse sido suficiente, não é? E, Portanto, olha, penso que nesse sentido a China tem vindo a ser capaz de capitalizar muito bem todo este aspecto e, mais uma vez, dos grandes barómetros vai ser justamente a zona Ártica. Vai ser muito interessante para mim perceber como é que a Rússia já tinha problemas de tecnologia e de investimento na região e agora vai ter ainda mais com as nações. Portanto, vai ser interessante perceber se a Rússia vai deixar uma espécie de momento Tolkien, my precious, my precious, para a China, porque de facto naquela região é assim o último reluto em termos de área de aposta, em termos de soberania até russa. Então vai ser muito interessante ver essa dinâmica.
José Maria Pimentel
E porquê que o Ártico interessa a China, particularmente?
Raquel Vaz Pinto
Porque Consegues, em termos das rotas de navegação, consegues encurtar muito em termos de tempo.
José Maria Pimentel
Para ir para a Europa, é isso?
Raquel Vaz Pinto
Sem indo, fazes isto. Portanto, eles têm mesmo uma das rotas da seda, é a rota ártica. E em segundo lugar, os recursos minerais, energéticos. E a possibilidade de tu...
José Maria Pimentel
Mas onde, desculpa, onde é que estão esses recursos?
Raquel Vaz Pinto
Estão no leito do mar.
José Maria Pimentel
Ah, estamos a falar de poços submarinos, é isso? Ou seja, de...
Raquel Vaz Pinto
De recursos minerais, uma parte da Rússia que ao ser, entre aspas, descongelada também fica acessível e de participar em todo esse percurso. Ok. O que eu quero dizer com isso é que eu estou
José Maria Pimentel
a ver isso muito difícil sem entrar diretamente em território, no mínimo território marítimo russo, na pele, ou seja, pode ser...
Raquel Vaz Pinto
Não, a China não tem lá território nenhum, mas a ideia é...
José Maria Pimentel
Ou seja, como rotas percebo, mas também são rotas mais... Enfim, eu percebo pouco disso, não é? Mas são rotas bastante mais difíceis do que... É certo que é atalho para chegar...
Raquel Vaz Pinto
Também, se o gelo continuar à forma como está, isto, repara que isto é pensar a médio e longo prazo. Sim, sim. E o imenso interesse chinês de investir na Grunilândia, o imenso interesse na Islândia, sei lá, tudo o que for ali naquela região. Olha, agora não, mas recentemente o Péria foi feito pelo ministro de negócios estrangeiros chinês, Claro, França, Alemanha e depois Noruega. E tu pensas, Noruega? Sim, claro, vai assumir a presidência do Conselho do Ártico, portanto assume. Depois tem este pronome muito delicioso que é, a China participar ou no Atlântico ou no Ártico é muito irritante para conjunto de países que são mesmo do Ártico. A começar, desde logo, por uns tais dos Estados Unidos. Exato, sim. Portanto, também tem essa leitura e É tema assustador, por lado, porque nós vimos de facto uma alteração, exemplo concreto de como as alterações climáticas são uma evidência e, por outro lado, uma zona de cada vez maior competição.
José Maria Pimentel
Sim, e é natural que a China não só queira tirar os Estados Unidos do Mar da China, ou seja, daquela zona próxima, mas também queira ela própria espreiar-se em direção à zona do Mírio.
Raquel Vaz Pinto
Ou outra região, as Ilhas do Pacífico, nas quais a China começou a ter uma presença maior, aliás nas Ilhas de Salmão, caiu o Carme a Trindade, mas de facto lá está, É não fazeres o trabalho de casa e achares que não fazes nada que, obviamente, aquelas ilhas vão. E é particularmente preocupante que, devido justamente à polarização, à divergência, à radicalização, sei lá mais o que dizer, da política dos Estados Unidos interna. O presidente Biden, tenha que acabou o G7, ia ter uma cimeira do Quad e não teve, ia fazer uma coisa histórica que era visitar uma ilha do Pacífico, neste caso a Papua Nova Guiné, que estava em pulgas para o receber e que ficou de mãos a abanar porque ele teve que ir para casa tratar do teto da dívida e dos republicanos e dos democratas e desculpa lá toda aquela atrapalhada. E isso é preocupante. O Modi deixou ficar a visita e portanto foi recebido com toda a pompa e circunstância e a Índia acabou por estar a fazer este caminho interessante. Mas repara como nós hoje discutimos ou mencionamos lugares que, honestamente, não quero que me levem a mal, habitantes da Papua Nova Guiné, mas não falarias em termos de relações internacionais. Portanto,
José Maria Pimentel
Há outras geografias que
Raquel Vaz Pinto
estão em marcha.
José Maria Pimentel
Para terminar, da única maneira como podemos terminar uma conversa deste tipo, que é olhando para a frente e voltando à armadilha do nosso amigo dos CIDIDS, o que é que é preciso fazer para que ela não se concretize? Porque é preciso encontrarmos uma solução que… ou é preciso encontrar-se uma solução que atua tanto do lado da China como do lado dos Estados Unidos, porque o ambiente em que tu estás, em que tens uma potência em combate e uma potência emergente, cria incentivos para determinados comportamentos tanto do lado de como do lado de outro e, por exemplo, no caso da China, ela por lado vai se tornando mais agressiva, como nós vemos e como tu descreveste no início da conversa, até dos tweets dos embaixadores, mas por outro lado, a China, admitindo que as coisas continuam como têm corrido, e Há quem diga que não, há quem diga aquela tese do pico de China, que o crescimento chinês está a chegar a pico, mas apesar de tudo o cenário mais provável é que a China continua a crescer, tanto econômica como militarmente, e portanto a China tem o tempo a jogar a seu favor e os Estados Unidos não. E portanto, por lado a China vai se tornando mais agressiva, mas sabe que se as coisas continuarem, a economia a certo ponto vai ultrapassar a economia dos Estados Unidos, já ultrapassou em paridades de poder de compra mas não em preço de mercado, o orçamento militar ainda continua bom bocado abaixo dos Estados Unidos mas está sempre a crescer e o dos Estados Unidos, à verdade, está a diminuir bocadinho, portanto a China tem o tempo a favor dele. Aliás, há quem, os realistas dos realistas, até dizem que, na verdade, os Estados Unidos até deviam pensar numa espécie de, numa guerra preventiva, porque no fundo, se tu tomares a previsão deste modelo à letra, até era o que fazia sentido, impedir a outra potência. Isso, claro, numa perspectiva bastante simplista. Mas que instituições, quer dizer, que regras, que acordos é que é possível criar para impedir que isto descambe? Ou para minimizar, para mitigar o risco de que isto descambe, voltando ao termo?
Raquel Vaz Pinto
Olha, desde logo deixa-me só fazer aqui uma asterisca importante, que é... Eu, se calhar, enfim, sou pouco injusta face ao Graham Allison, porque a mim a coisa de pegar no Tucídides daquela forma, eu acho... Eu percebo
José Maria Pimentel
a lógica. Acho ele exagerado.
Raquel Vaz Pinto
Ele como é evidente É professor excelente, extraordinário, não questiono. Mas para quem adora o Tusidic, aquilo é bocadinho redutor, não é? Há muita coisa que acontece no Tusidic. Portanto, amigos, só para que pensem isto bem claro, é a favor ler o Tusidic. Porque de facto há muito mais em Tusidic. Porque aquilo é uma fotografia importante, é o início das coisas, mas depois há ali toda uma guerra e todo conjunto de fatores que acabam por ser determinados.
José Maria Pimentel
Sim, provavelmente o próprio Tusidides não assinaria por baixo à... Podemos chamar-lhe à armadilha de Graham Ellison, se quiseres.
Raquel Vaz Pinto
Não, Não, não, não, não, porque acho que evidentemente... E a
José Maria Pimentel
tese dele não é, acho eu, que é uma guerra inevitável de todos. Não, não, não, não, é só... Há quem tenha essa tese, mas acho que não é a tese dele.
Raquel Vaz Pinto
Eu começo logo a embirrar, claro, mas tu para fazeres este tipo de coisas, tens que obviamente fazer uma leitura redutora. Isto é preciosismo, desculpei, mas pronto.
José Maria Pimentel
Sim, resumir uma obra daquelas em... É... Que tu citaste no fim da nossa primeira conversa.
Raquel Vaz Pinto
Que é magnífica. Olha, eu obviamente, de forma muito honesta, não tenho uma resposta concreta para te dar. Está tudo ainda muito incerto, nós ainda estamos numa fase de tentar perceber bem o alcance, a fotografia de cada lado. Há muitos aspectos que ainda estão em desenvolvimento e até teres uma ideia de como é que vão ficar, em particular, olha, aquilo que está a acontecer à pobre da Ucrânia, esse é aqui fator fundamental.
José Maria Pimentel
Para tentar, enfim, fiz-te uma pergunta muito, muito, muito aberta, para tentar, se inclusca vê-lo bocadinho, Por exemplo, do lado da China, para ti quais são as principais incógnitas?
Raquel Vaz Pinto
As principais incógnitas prendem-se com, em primeiro lugar, os problemas internos da China. Em primeiro lugar, as questões que não foram de todo resolvidas e a pandemia de certa forma até acabou por cortar esse caminho, claro, usando métodos à Xi Jinping, que fica bem claro, mas por exemplo a questão da dívida das províncias, a opacidade do sistema bancário, imensas fragilidades internas da própria economia chinesa, que nós por lado não conseguimos seguir com toda a informação e que muitas vezes escondem conjunto de aspectos como, por exemplo, as imobiliárias, a especulação imobiliária. Ou seja, há muito mais nesta China que tem qualidades e aspectos que tu destacaste bem. Eu também não compro a ideia de que não, temos de tentar ter uma fotografia mais realista possível e sermos humildes no sentido de tentar fazer uma leitura objetiva do que está a acontecer. Portanto, essa seria a segunda, inequivocamente, a questão demográfica. E esse é tema, para quem quer ser superpotência, muito sério. Porque nesta fase da vida a China neste momento tem problemas seríssimos, mas seríssimos, ou seja, devido à sua política de uma só criança, tem conjunto de problemas demográficos hoje, que como qualquer problema demográfico não é de fácil correção, apesar dos imensos estímulos dados pelo Partido Comunista da China, ou seja, no sentido de os casais terem mais filhos e isso não está de todo a funcionar. Depois, em terceiro lugar, destacaria uma... É meia população, no fundo, mas as mulheres. Dos aspectos mais... Como é que eu ia dizer isto? Mais perniciosos desta tentativa agora de passar do 8 para o 80 por parte do partido em matéria de natalidade, vai e já subescarrega e de que maneira as mulheres chinesas. E tu vais ter aqui, e já tens, setor de enorme insatisfação de muitas mulheres que agora não vão querer abdicar da sua carreira para casar ou para ter filhos, não interessa. E é muito interessante porque, por exemplo, temos algumas notícias que vão saindo de casais que, imagina, casam, não é? E passado uns meses, já não me lembro o número de meses, mas não é muito, recebem uma chamadinha amorosa super preocupada do partido a perguntar então, já há bebê ou não? Ou seja, há aqui uma dimensão, ou seja, não é rastilho que tu digas que rebenta, mas que introduz aqui imensa insatisfação. Há aqui uma autora que é excelente e que tem trabalhado muito esta questão das mulheres, que é a Leta Hong Fisher, e que tem feito justamente este percurso de como em vários momentos e hoje, essa insatisfação é visível. E vai ser, eu diria, já é, mas tema com consequências também muito mais sistémicas. E depois, por último, eu gostava de pensar em termos até da própria liderança. Se, por lado, a imagem que nós temos projetada de Xi Jinping é uma imagem de força, ou seja, toda a coreografia do congresso, toda aquela cena que foi o mais próximo que nós vamos ter de uma novela à série na China, que foi o pobre do Rui Gental. Pobre, quer dizer, pronto, daqui no contexto para a
José Maria Pimentel
nossa conversa. Sim, mas aquela cena foi bastante humilhante.
Raquel Vaz Pinto
A cena é bastante humilhante.
José Maria Pimentel
Já O pequeno está ouvindo, ele é levantado, aparentemente, muito aparentemente contra a sua vontade.
Raquel Vaz Pinto
Mas sobretudo o facto de aquelas imagens ter sido possível gravá-las, porque a imprensa não está lá sempre, só está lá em determinadas partes, e ter tido divulgação internacional. Aquilo é uma mensagem.
José Maria Pimentel
Claro, é deliberado.
Raquel Vaz Pinto
Agora, o ponto é, se tu precisas de tornar essa mensagem tão pública, para mim é sinal de fraqueza, não é sinal de força. É essa a minha leitura. E depois, voltando a ponto que tu há pouco destacaste e que era uma das grandes forças desta China, que era justamente a transição de poder. Ou seja, os investidores, as pessoas em geral, sabiam com o que contavam. É assim tão boa ideia? Isto, claro, não pode ser descontextualizado. Ter líder, não digo vitalício, mas no poder, porque uma das riquezas ou uma das forças do partido era justamente adaptar, corrigir. Claro, nunca dizendo oficialmente que é raro, mas não interessa, mas corrigir, adaptar.
José Maria Pimentel
Sim, tinha, digamos que sem ser uma democracia e sem ter componente de direitos individuais e de voto, tinha alguma da flexibilidade que as democracias têm.
Raquel Vaz Pinto
E tinha processo interno de intra-partidário, nota-se, portanto não há checks and balances e coisas maravilhosas, mas os líderes eram testados num processo. Tinhas que ir para uma província, por exemplo, daquelas mais ricas, para perceber como é que tu lidavas com a corrupção. Tinhas que ir fazer caminho mais para o interior para lidares com aquelas províncias que são obviamente muito mais pobres. Foi o
José Maria Pimentel
que o Xi Jinping fez, já foi. Há
Raquel Vaz Pinto
processo interno. E tu agora olhas para as 7 pessoas mais poderosas, pelo menos tecnicamente, ou seja, os 7 membros do comitê permanente do Politburo, do Partido comunista da China, que são os sete, e tu o que é que os distingue em termos de percurso? Lealdade a Xi Jinping. Aliás, a escolha do primeiro-ministro, Li Cheng, é o exemplo, mas acabadinho, feito e resolvido nessa matéria. Portanto, isso para mim são fatores ou áreas possíveis, entre muitas, que eu penso que temos que prestar, talvez, na medida do possível, mais atenção e que podem não ser necessariamente uma China... Não sei se compro muita do Pico de China, mas lá está, eu também não sou economista, portanto também não sei até que ponto é que isso é ou não verificável, mas a mim é mais o outro lado, o lado mais político da condução que a mim me levanta muitas dúvidas. Da mesma forma que em relação aos Estados Unidos, fazendo aponte, a mim preocupa-me e esse, olha, é dos aspectos que de facto o nosso Tussidits é mestre a descrever, que é a falta de qualidade das elites ou as elites más, ponto final, e de como uma Atenas liderada por Pericles é uma Atenas que pensa, que reflete de forma estratégica, que é cuidadosa, que pensa aliás até numa primeira estratégia defensiva, uma Atenas liderada pelos caramelos que se seguiram, ainda assim com algumas diferenças, porque obviamente. Mas A parte final do regime ateniense é particularmente dolorosa. É uma das grandes lições, para mim, do livro, deste clássico, ou seja, que muitas vezes tu perdes as guerras ou os conflitos em casa. E nesse sentido, seja Trump ou seja o outro, tu tens partido neste momento dos dois grandes partidos dos Estados Unidos que nessa matéria atravessa momento de fragmentação, de radicalização, de estupidificação, acho que posso dizê-lo com todas as letras, que é extremamente preocupante. E, portanto, esse pode ser ponto. E em segundo lugar, também, nessa ótica, o relacionamento com os seus aliados. Eu Parece-me que é evidente que seja a União Europeia, seja outros países, o Japão, enfim, em matéria militar tem outro tipo de problemas, sobretudo ligados ao que foi a Segunda Guerra Mundial e, portanto, há países que reagem mal e compreende-se a uma possível normalização total do Japão enquanto país militar, na sua dimensão militar. Mas é preciso também assumir aqui uma maior autonomia. Não me parece que os Estados Unidos vão, como é evidente, desligar-se, acho que nem por sombras, mas também talvez este século XXI seja diferente do século XX, no qual durante justamente o conflito da Guerra Fria houve uma dependência tremenda, excessiva, sobretudo na parte europeia, tirando lá o exemplo francês, de todo aquele entusiasmo com estas ideias, mas eu penso que também há aqui, pode ser interessante nesse aspecto, ou seja, que também é outra vertente da guerra do Peloponese, que é interessante, é a qualidade dos aliados, dos júniores, dos parceiros júniores.
José Maria Pimentel
Mas que também podem introduzir aqui maior instabilidade.
Raquel Vaz Pinto
Podem introduzir maior instabilidade, mas também podem ser uma força enorme, coisa que se tu pensares bem a China não tem. A China não tem aliados, no sentido daquilo que uma aliança verdadeira te pode ter. Os Estados Unidos têm. Têm a NATO, têm o Japão, têm a Coreia do Sul, têm a Austrália, grande aliado, talvez de todos até o mais consistente. Isso é uma força, mas sim, sem dúvida. Sim, porque
José Maria Pimentel
tem uma geografia melhor, os Estados Unidos.
Raquel Vaz Pinto
Claro, nesse aspecto, sem dúvida. E depois, juntando àquelas áreas pelas quais eu agora ando em total relação quase amorosa, que é esta das... De todos estes minérios, terras raras destes... E convido mesmo os nossos ouvintes a irem ler esta em inglês Critical Raw Materials Act, esta lei da Comissão Europeia em meados de março, é extraordinária, porque faz-te o caminho, diz mesmo de forma explícita, para a economia verde, para a economia digital, para o que queremos ser, nós precisamos diversificar. E dá exemplos, aliás, muito concretos. Para fazer isto precisamos tornar, ou fazer isto dentro da Europa, com todas as preocupações laborais e ambientais, coisa que também quando tu faz outsourcing subias para o lado e não prestas atenção, ou então ir buscá-los a parceiros que são mais...
José Maria Pimentel
Ou diversificar os fundos de doutorado. Exatamente. Por acaso, a economia é engraçada, nós há bocado não falámos disso, mas numa fase inicial, e aliás, na nossa primeira conversa eu dei bocado de voz a essa perspectiva, tu ouvias muita perspectiva de que a integração económica jogava a favor da estabilidade, digamos assim, ou seja, o facto dos Estados Unidos e a China, ou da economia mundial como todo estar muito integrado hoje em dia, tornava menos provável haver uma escalada do conflito porque isso no fundo não interessava a ninguém. Mas hoje em dia vais ouvindo mais uma tese que é contrária, ou pelo menos aponta para o sentido contrário, e que tem muito a ver com isso que tu falavas, que é precisamente a integração económica que contribui para sugerir intenções, porque a integração económica leva a que os países comecem a pensar em problemas de acesso a materiais, de propriedade intelectual, ou seja, tudo isto que tu vês hoje em dia. Então é engraçado, ou seja, a integração económica que parecia ser algo favorável à paz, digamos assim, ou à estabilidade, agora parece ser cada vez mais visto como o contrário, porque isso não existia na Guerra Fria. Na Guerra Fria as duas economias estavam praticamente... Não era totalmente, mas estavam praticamente...
Raquel Vaz Pinto
Mas uma coisa é a integração económica, outra coisa é a integração ao ponto da dependência económica.
José Maria Pimentel
Sim, mas é contínuo.
Raquel Vaz Pinto
E uma coisa é fazer integração económica sem pensar ainda de forma estratégica. É tirar a estratégia toda desta conversa. A China tornou-se a fábrica do mundo, certo? E nesse aspecto até eu acho que a pandemia foi até mais relevante no sentido de, olha, nos fazer todos pensar em coisas tão simples quanto máscaras que todos nós precisamos, não é? Coisas do nosso dia a dia, porque às vezes uma dificuldade de tudo isto é tu explicar às tuas sociedades democráticas, liberais, estas questões mais, parece, de análise mais geral, quando a pandemia trouxe temas muito concretos, coisas muito concretas que as pessoas conseguiram identificar. Isso é ponto. Agora, repara, do outro lado, A China o que fez foi, pensou nessa integração, nessa normalização com o mundo, mas não deixou de pensar estrategicamente. E, portanto, a questão das terras raras, para citar exemplo, que aliás foram, Quando houve aí pequeno diferente com o Japão, eu penso que foi 2011, uma das medidas da China foi a retaliação com o não exportar terras raras para país que tem uma indústria eletrónica brutal e, portanto, isso foi assim uma espécie de último aviso. Eu penso que aqui o que está a ser feito a nível internacional é o recalibrar, o reequilibrar a tal diversificação.
José Maria Pimentel
Só que nesse caminho tu tens muitas tensões. Claro que tens. Ou seja, esse reajuste é doloroso, não é?
Raquel Vaz Pinto
Muito doloroso.
José Maria Pimentel
Cada passo nesse reajuste, cada tarifa que tu acrescentas, cada proibição...
Raquel Vaz Pinto
Vais ter produtos mais caros, vais passar a
José Maria Pimentel
ter que pensar... Isso também é verdade, mas o que eu quero dizer é cada passo desse reajuste gera potenciais tensões geopolíticas. Exatamente.
Raquel Vaz Pinto
E tu tens que ter a capacidade de liderar
José Maria Pimentel
esse processo e
Raquel Vaz Pinto
de o fazer de forma muito hábil. E por isso é que, por exemplo, este comunicado, o G7, é importante Porque já não vai tão longe, já não te fala em decoupling de forma total, que é no fundo o afastamento gradual mas com uma direção, e já assumes a ideia do de-risking, que é aqui uma espécie de híbrido entre o deixar tudo como está, que não é possível, ou fazer-se esse afastamento. Dito isto, há obviamente setores que são setores estratégicos, que é outra conversa interessante, o que é que nós hoje consideramos setor estratégico, que com a pandemia tu passas a incluir nesta conversa o fabrico ou a produção de materiais, por exemplo, de proteção, materiais médicos, que tu se calhar antes da pandemia não pensavas sequer no assunto, não é?
José Maria Pimentel
E também é preciso ter cuidado para não meteres lá tudo porque depois retiras grande parte dos
Raquel Vaz Pinto
benefícios da integração. Essa é uma grande discussão, é o que é que hoje, mas não choca e só surpreende, porque a pessoa pensa, então mas isso já não estava, como é que os Estados Unidos não consideram ou não consideravam as terras raras ou as taxinca migas como setor estratégico. Me faz-me a maior das confusões que isso já não tivesse sido feito antes.
José Maria Pimentel
Sim, e provavelmente a muita gente é retrospectiva, porque de facto é estranho. E Houve aspecto que tu falaste há bocadinho, que eu achei particularmente interessante, que é a questão da política interna dos dois países. E não é só a política, se quiseres, é o funcionamento interno dos dois países. Porque quando nós... Enfim, lá estavam os conceitos e voltando à tua versão, nós chamamos a isto de Segunda Guerra Fria, Os conceitos têm este problema de que, por lado, clarificam porque te ajudam a ordenar ideias mas, por outro lado, metem-te palas nos olhos. E nós, quando estamos a olhar para isto do ponto de vista estritamente geopolítico e, por exemplo, usando outro conceito da armadilha dos Two Cities ou a armadilha de Ellison para deixar o power do Two Cities descansar em paz, nós estamos a olhar para as duas potências como monolíticos, quando na verdade não são. E tu tens a política inteira nos Estados Unidos, enfim, não é surpresa, nada do que tu disseste aí é surpresa para qualquer pessoa que esteja a atender, mas na China não é bem assim, porque na China, de facto, durante muitos anos tínhamos a crença de que o desenvolvimento económico ia gerar democratização. Não gerou. E agora, se calhar também nos esquecemos de que pode haver algumas surpresas eventualmente positivas, positivas do nosso ponto de vista, dessa dinâmica interna do país e tu falavas disso, quer dizer, qualquer alteração drástica como essa demográfica vai gerar descontentamento em muita gente, da mesma forma que essa vigilância gera descontentamento e portanto pode haver ali... Nós não sabemos, mas de repente, tal como aconteceu aliás com a queda da União Soviética, pode vir uma surpresa daí. E depois do outro lado, que eu acho que é tão ou mais interessante, é a questão das mudanças na dinâmica de poder que houve na China. Porque a China é caso... O desenvolvimento da China é enorme puzzle. Aliás, há uma imensa literatura sobre isso. Porque tu achavas que, basicamente, para ter desenvolvimento económico, para ter prosperidade, tu precisavas ter uma qualidade institucional que praticamente pressupunha uma democracia. Lá está. Até podia não ser uma democracia liberal do core, mas no melhor das hipóteses pressupunha uma coisa tipo Singapura. Era assim o mínimo. E a China é puzzle, porque era país autoritário em que isso não funcionava. Ora, uma das razões, não é originalidade nenhuma minha, mas uma das razões, uma das maneiras de mais ou menos tentar quadrar esse puzzle tinha precisamente que ver com, apesar de todas as regras que tinham sido instituídas no país, tinha-se esse sistema em que as pessoas faziam o estirocínio nas províncias e depois as ascendiam, portanto, tinhas uma certa contenção ao autoritarismo porque tinhas o limite de dois mandatos, provavelmente tu não consegues ter o bolo e comer, ou a China não consegue ter o bolo, ou o Xi Jinping neste caso não consegue ter o bolo e comer, ou seja, ao, de repente, instituir aquilo que é cada vez mais uma ditadura clássica, no sentido de líder que se eterniza no poder, que está rodeado por uma corte que está lá por ser fiel a ele e não por ter percurso mais ou menos meritocrático, dificilmente isto vai subsistir sem ter o outro lado da moeda.
Raquel Vaz Pinto
É, e é isso que é muito preocupante porque, ao contrário de outras ditaduras de outros tempos, se as coisas correrem muito mal na China, correm muito mal para o mundo. Ou seja, o choque em termos de economia, em termos de política, em termos de tudo, é global.
José Maria Pimentel
E até pode agravar o conflito neste sentido, não é? Claro, claro.
Raquel Vaz Pinto
Encontrar inimigo externo. Isso mesmo, isso mesmo. Que, aliás, vemos como Vladimir Putin, nessa matéria, é talvez, ou tristemente, exemplo muito claro. Aqui, no caso da China, o bote expiatório ou a questão externa, mas que é interna na ótica de Beijing, seria obviamente Taiwan.
José Maria Pimentel
Exato, exato. Bom, vamos terminar? Alguma coisa que não tenha perguntado? Várias, mas alguma coisa... Não, acho que não, Zé. Especialmente importante. Olha, Raquel, obrigadíssimo. Obrigada, Hugo. Como eu previa, foi uma excelente segunda parte, cinco anos depois.
Raquel Vaz Pinto
É verdade, cinco anos depois, meu Deus.
José Maria Pimentel
Incrível. Obrigado. Obrigada. Este episódio foi editado por Hugo Oliveira. Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no site 45grauspodcast.com Selecione a opção Apoiar para ver como contribuir, diretamente ou através do Patreon, bem como os benefícios associados a cada modalidade.