#144 João Zilhão - Uma revolução no nosso entendimento dos Neandertais

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José Maria Pimentel
Olá, bem-vindos a este humilde podcast que continua a existir e a crescer graças ao vosso apoio e por isso muito obrigado às novas mecenas do 45°, à Ana Padilha, ao Alexandre Pinto e, em especial, à Carla Cassote. Há dois episódios, falei-vos dos dois workshops que estou a pensar lançar, um sobre diferenças políticas e o outro sobre pensamento crítico. Se forem ao site do podcast, 45grauspodcast.com, encontram lá mais detalhes em relação a cada um dos workshops. Não tem ainda os detalhes mais importantes das datas e dos formatos em que vão decorrer. Eu prometo manter-vos atualizados em relação a isso. Mas por exemplo, no caso do workshop de pensamento crítico, pode ter interesse também caso tenham uma empresa ou caso trabalhem numa empresa em que achem que podem beneficiar deste tipo de formação. Se for esse o caso, já sabem, contactem-me pelos canais habituais. E agora ao episódio de hoje. O modo como olhamos para os neandertais é das áreas da ciência em que as coisas mais mudaram ao longo das últimas décadas. Até há não muito tempo, acreditava-se, e a essa a imagem que ainda persiste em muito do imaginário popular, que os Neandertais eram basicamente uns hominídeos primitivos e abrutalhados, uns antepassados remotos da nossa espécie, ainda com um intelecto mais próximo dos animais do que propriamente da nossa cognição avançada. Mas nas últimas décadas, várias descobertas arqueológicas, e como o convidado deste episódio realça, também uma mudança cultural no modo como vemos a diversidade humana, conjugaram-se para nos levar a perceber que esse entendimento estava errado, de pelo menos duas formas. Primeiro, sabemos hoje que os Neandertais não são na verdade nossos antepassados, mas sim nossos primos, ou seja, coexistiram com os humanos que vieram da África e cuja morfologia se parece mais com a nossa. Segundo, e relacionado com isto, os neandertais estavam muito longe de ser estúpidos e há cada vez mais vestígios arqueológicos, como o Arte Rupestre, por exemplo, a mostrar que eles tinham cultura e eram capazes de pensamento abstrato e simbólico. Mas será que a revisão do nosso entendimento sobre eles termina aqui? Ou será que eles eram ainda mais próximos de nós do que esta descrição faz parecer. É precisamente isso que propõe o convidado deste episódio. João Zilhão é arqueólogo e um dos principais investigadores mundiais na área da Paleoarqueologia. Atualmente é investigador coordenador na Universidade de Lisboa e foi anteriormente professor em várias universidades, incluindo as de Bristol e de Barcelona. Antes disso, em 1996, foi nomeado pelo governo para coordenar a criação do Parque Arqueológico do Val de Coa, onde estão as famosas gravuras que naquela altura deram tanta polémica, e onde depois, em 97, tornou-se o primeiro diretor do Instituto Português de Arqueologia. Na nossa conversa, o João defende uma interpretação ainda mais radical da nossa relação com os Neandertais. Primeiro, argumenta que, quanto mais evidência arqueológica encontramos, mais percebemos que os Neandertais não eram assim tão diferentes da população de sápienes que veio de África e sobretudo da população humana global que existia à época. E por isso, não faz na verdade sentido, segundo ele, que os consideremos uma espécie diferente da nossa. Em segundo lugar, ele diz que se olharmos sem preconceitos para os vestígios da cultura neandertal que nos chegaram, não há nenhuma razão para supor que eles fossem menos sofisticados cognitivamente do que as populações de sapiens que vieram da África. E é por isso que faz também sentido que tenha havido cruzamentos entre os neandertais e os sapiens vindos da África. E se é verdade que os genes que têm maior peso no nosso genoma, entre 96% a 98%, são os das populações que vieram da África, isso, segundo o convidado, é apenas resultado de um desequilíbrio de números que existia entre as duas populações. Esta tese do convidado é provocadora, e está longe de ser consensual no meio, mas os argumentos em que ela sustenta são, na minha opinião, um excelente exemplo prático de pensamento crítico aplicado à ciência e também, já agora, de um problema da ciência contemporânea que já abordei em vários episódios, a hiperespecialização. O contrário disto, a interdisciplinaridade é por isso muitas vezes essencial para conseguir entender verdadeiramente problemas complexos como este. E falando de interdisciplinaridade, os progressos recentes nesta área devem também muito aos trabalhos de muitos geneticistas que se debruçaram sobre esta área na última década. Aliás, se não o fizeram, sugiro que ouçam o episódio 115 com a Luísa Pereira, que aliás foi quem me instou a convidar o João para o 45°. Obrigado a ela por isso. Estes trabalhos da paleogenética têm sido por isso muito importantes, mas isso não implica que os geneticistas tenham estado sempre certos. O João conta durante a nossa conversa um episódio engraçado sobre um desentendimento que ele teve há uns anos com um investigador muito conhecido nesta área, Svante Pab, que aliás no ano passado recebeu o Prémio Nobel da Medicina, precisamente pelo seu trabalho nesta área. Na altura em que o encontro entre os dois aconteceu, os dados da genética ainda não validavam a hipótese do João de que tinha havido cruzamento entre as populações de sápiens vindas de África e os Neandertais e isso gerou uma discussão acesa entre os dois. Mas não digo mais para não fazer spoiling e por isso deixo-vos com o convidado de seu nome... João Julhão. O que é que eu disse? Desculpa. É difícil. É, é um bocado trava-língua. Por acaso é engraçado porque tu estás muito lá fora e deves ter um bocado essa dificuldade porque o teu nome não só tem este lado trava-línguas como é especialmente difícil
João Zilhão
para um estrangeiro dizer, porque tem o João e o Zilhão. Pois, e quando eles tentam dizer isso em inglês, em três sílabas, resulta uma coisa que parece chinês. Pois é, pois é. João Xilhão. Exato. E já me tem acontecido, em consequência disso, receber mensagens de revistas pensando que eu sou um especialista chinês. E já recebi um convite para fazer o peer review de artigos de paleontologia sobre dinossaurios da China. A
José Maria Pimentel
sério? A
João Zilhão
Palavra de honra.
José Maria Pimentel
Essa história é incrível. Por acaso, houve um dos comentários que tu partilhaste comigo antes de gravarmos, que era da PBS, se eu não me engano, do canal americano, e eles pronunciavam o teu nome precisamente dessa forma. Já não sei exatamente como é que era, mas parecia mesmo estrangeiro. Não é só o João, que é sempre impossível, mas o Zilau era uma coisa completamente estropeada. Mas pronto, vamos falar da tua investigação de Neandertais, de Homo Sapiens, são temas que eu já abordei aqui algumas vezes no podcast em episódios anteriores. Tu tens uma investigação fascinante nesta área porque é uma área em que se tem descoberto muito nos últimos anos e é uma área em que no caso dos Neandertais por exemplo se tem feito uma reinterpretação daquela ideia que se tinha, que eu me lembro de ouvir quando era miúdo, e que é uma ideia que basicamente persiste na cultura popular de que os Neandertais eram uma espécie de versão bastante mais básica de nós, bastante mais básica do Homo Sapiens e a tua investigação, e de vários outros, ter comprovado que não é assim, sendo que ainda existe aqui uma discussão muito grande, até como nós falávamos em off e já vamos falar disso a seguir, se sequer se pode chamar duas espécies diferentes o Homo Sapiens e o Homo Endianertal. Se calhar faz sentido começarmos por perceber, ainda antes de falar de se são ou não são duas espécies diferentes, ou se podemos chamar espécies exatamente a cada uma delas, de onde é que eles vêm? Ou seja, a partir de quando é que elas se separaram, qual é o ancestral mais comum, há quanto tempo é que isso aconteceu e depois como é que cada uma delas evoluiu até depois voltarem
João Zilhão
a cruzar na Europa com o Out of Africa, não é, do Homo Sapiens? Bom, isso é uma pergunta muito complicada porque os próprios termos que se utilizam condicionam a resposta. A minha resposta começaria por voltar ao princípio, isto é, aquilo que nós sabemos com certeza absoluta, enfim, tanto quanto se pode ter certeza absoluta nestas matérias, é que a humanidade no sentido do género homo aparece pela primeira vez em África há qualquer coisa como entre 2 e 2, 5 milhões de anos. Sabemos depois que, numa primeira fase, ainda essas primeiras populações são ainda contemporâneas dos australopitecos, que depois vão desaparecer, e a partir de 1, 8 milhões de anos começamos a encontrar restos que caem claramente dentro do género homo, fora da África. Portanto, os mais antigos são os de Dmanisi, na Geórgia, ou no sul do Cáucaso, que até que ponto é que isso representa uma saída da África? O homem a sair da África ou a África a sair da África, é justamente uma questão que se coloca porque, na realidade, o que acontece nessas épocas mais remotas é que as populações se expandem com os ecossistemas que estão adaptados ou adaptadas. E, portanto... O clima que mudou. Há mudanças climáticas, há uma expansão dos ecossistemas, portanto, nos quais o género homo aparece na África subsaariana e esses ecossistemas expandem-se pelo Médio Oriente, pelo Sul da Ásia, pelo Mediterrâneo, provavelmente, e em consequência disso, portanto, os habitantes do ecossistema, incluindo o homem, expandem-se também. Portanto, não há, digamos, o homem não expande o seu nicho… O homem expande-se com o nicho. O homem expande-se com o nicho a que pertencia. Portanto, vamos encontrar lá 1, 8 milhões de anos em Dmanisi, a questão da Indonésia, dos restos de Java não está ainda completamente esclarecida, mas o mais tardar a 1, 25 milhões de anos, portanto, estão lá e na Península Ibérica, na outra ponta da Eurásia, a crer, portanto, em algumas datações à volta de 1, 2, 1, 3 milhões de anos, mas seguramente entre 800 mil e 1 milhão de anos também já por cá estava instalado o homem. Portanto, digamos… E se era o homem ereto? Bom, aí também há quem faça classificações e distinções e tal, mas para se ter uma ideia, na jazida de Manizi há uma variação muito grande, há cinco crânios, não é? A tal da Geórgia. A tal da Geórgia, portanto, há crânios muito pequenos e há crânios em que o volume do cérebro, claro, o cérebro tem praticamente já dentro das margens de variação da humanidade atual. Digamos que há quase uma variação de um para dois, portanto, dentro da mesma população. Se eles tivessem sido encontrados em jazidas diferentes, tinha havido, aliás, mesmo assim, apesar de terem sido encontrados na mesma jazida, juntos uns dos outros, há quem proponha a existência, naquele conjunto, de várias espécies e até de dois géneros diferentes. Ora, na realidade, começa aí, portanto, a discussão sobre tudo o que vem depois. Se nós olhando para essa população e comparando essa variação com aquela que existe, por exemplo, entre os chimpanzés, nas populações atuais de chimpanzés que são o parente mais próximo do homem, o que é que verificamos? Que a quantidade de diferença que existe no interior dessa população definida pelos cinco crânios é, por muito grande que nos possa parecer, inferior à que
João Zilhão
existe no seio dos simpãsiais atuais que a gente sabe que pertencem à mesma espécie. E que é muito maior do que existe nos humanos
João Zilhão
atuais. Evidentemente. E que é muito maior do que existe nos humanos atuais. Portanto, o que acontece é que é um dos malefícios da especialização. Existe aquela piada, que não é só piada, tem um fundo de verdade, que é aquela coisa de dizer que o especialista é aquela pessoa que sabe tudo sobre nada e nada sobre tudo. Ora...
José Maria Pimentel
Ou sabe cada vez mais sobre cada vez menos.
João Zilhão
Ora, o que é que acontece? Neste caso é que O especialista em evolução humana, o Paulo Leontol, que se dedica e conhece os restos fósseis do nosso género, todos e mais alguns, com todos os seus pormenores nos mais ínfimos detalhes anatómicos. Sabe muito bem, com muita profundidade, desse assunto, mas muitas vezes perde de vista o panorama mais geral. Quando nós olhamos para o panorama mais geral, a ideia que me parece a lógica, que é a minha e que é de mais gente, é que se pode resumir desta maneira. O problema não é que a humanidade do passado fosse anormalmente heterogênea e, portanto, tenha que ser classificada em espécies diferentes. O problema é que a humanidade do presente é anormalmente homogênea. E, portanto, se o nosso termo de comparação é a humanidade atual, vamos olhar para o registro fóssil e dizer, epá, isto não pode ser, isto não é normal e, portanto, vamos ter a tendência para magnificar o significado das diferenças e multiplicar, portanto, as categorias taxonómicas e dizer que há aqui espécies, às vezes até géneros A, B, C, D, E, F, por aí fora. Se tomarmos como quadro de referência a variação que existe entre os chimpanzés, aquilo que no calão da podontologia em lingua inglesa se tomarmos como outgroup, portanto o grupo que nos serve de quadro comparativo de padrão for esse. Agora, há aqui outro assunto que é como é que nós vamos utilizar um sistema de classificação, que é um sistema lineano, que foi concebido no quadro de um paradigma fixista, não há evolução. A vida foi criada tal como nós a conhecemos, as espécies não têm história, foram criadas assim e, portanto, a diferença é o resultado, portanto, de uma criação e o mundo vivo é estático com como é que vamos fazer isso sabendo, ao mesmo tempo, A partir do momento em que aceitamos, portanto, a evolução como facto, que necessariamente as espécies têm de ter dado origem a outras espécies, porque a partir de uma origem comum temos uma diversidade enorme, portanto isso só pode acontecer porque de formas ancestrais serão formas descendentes que são diferentes e, evidentemente, não só por transformação de ano passado em descendente, mas também por divergência e por diferenciação a partir de um ano passado comum de várias formas divergentes e, por isso, se um mecanismo fosse só transformação de ano passado em descendente, não havia aumento da diversidade. Portanto, como há aumento da diversidade, há transformação de ano passado a indecendente e diversificação, portanto, um só ano passado dar origem a vários descendentes. Os dois processos existem na evolução da vida em geral e, portanto, é concebível que tenham acontecido na evolução humana. O que acontece é que, a partir do momento em que se utiliza a terminologia lineana, acho que era o Vito Gensain que dizia, portanto, que nós não podemos pensar sem palavras, mas as palavras condicionam a maneira como pensamos. E, portanto, ao utilizarmos essa terminologia, automaticamente condiciona, portanto, a nossa maneira de olhar para as coisas, a magnificar as diferenças e a classificar, portanto... Sim, porque classificar, no fundo, é separar, não é?
José Maria Pimentel
É separar. Portanto, ao usar essa teoreologia nós estamos sempre a tentar separar.
João Zilhão
É uma coisa que faz sentido. Se eu for conservador de museu e tiver que organizar os meus fósseis em gavetas ou em vitrinas, é útil saber onde é que põe este, onde é que põe o outro. Agora, se eu estou a pensar em termos da evolução, da transformação, de como é que as coisas... Da história, isso às vezes é uma complicação e eu penso que é o que se passa em evolução humana. Portanto, a tendência do paleontólogo é esta. Portanto, olhando para o mundo vivo atual, eu encontro uma certa relação entre a diferença morfológica, que é a única que eu como paleontólogo posso encontrar no passado, baseado no esqueleto, e o isolamento reprodutivo, que é aquilo que define duas espécies no sentido biológico do termo, duas populações constituindo duas espécies diferentes se estiverem reprodutivamente isoladas, isto é, se não for, digamos, a mistura entre ambas, pelo menos no mundo animal, não é? Entre um macho e uma fêmea de cada uma dessas populações não der origem à descendência ou se der essa descendência for estéril, como é o caso das mulas, etc. E, portanto, o raciocínio é este. A uma quantidade de diferença morfológica há de corresponder à existência de uma diferenciação a nível específico. Qual é o problema? É que nós olhando para o mundo vivo atual vemos que essa regra geral tem muitíssimas exceções. Basta pensar nos cães. Basta pensar nos cães, não é? Portanto, há espécies que são uma só, apesar de serem construídas por populações extraordinariamente diferentes do ponto de vista morfológico e até da morfologia do escoleto, não só, digamos, do tamanho, da cobertura pilosa, das coisas que não se conservam. Sim, os cães, não é? Um chihuahua e um sobranardo. E Depois, ao contrário, há espécies que são diferentes, apesar de morfologicamente serem extraordinariamente parecidas e serem muito difíceis de distinguir umas das outras. Por exemplo, no caso da palaeontologia, portanto, de interesse arqueológico, é o caso das cabras e das ovelhas. São espécies diferentes, claramente, mas há determinadas partes do esqueleto que não se consegue distinguir umas das outras, que têm implicações para o estudo da domesticação,
José Maria Pimentel
etc. Etc. Portanto... Tem a ver com o facto de terem sido ambas domesticadas que provocou o mesmo tipo de alteração no esqueleto?
João Zilhão
Não, mesmo na forma selvagem, portanto, mesmo o carneiro selvagem do Médio Oriente e a cabra selvagem dessa zona, que estão na origem do oveio e da cabra doméstica atuais, mesmo na sua forma selvagem não é fácil distinguir. Há alguns ossos que é mais fácil, há outros que é extraordinariamente difícil, portanto depende muito. Ou seja, isto vai tudo para chegar a onde? Para chegar a que quando os fósseis são muito poucos, quando a sua distribuição é muito heterogénea no tempo e no espaço, inevitavelmente as diferenças vão aparecer como muito significativas. E, portanto, quando começa o estudo de uma disciplina nova em que os dados são poucos, cada vez que há um fóssil, digamos aqui há 100 anos ou há 120 anos, quantos fósseis humanos é que havia? Meia dúzia de ocorrências, não é? É natural que nessa altura e nesse momento havia o Pitek Antropo de Java, o Neandertal de não sei o quê, a tendência era para... Aparecia
João Zilhão
tudo ultra diferente. Tudo era muito
João Zilhão
diferente uns dos outros e portanto foram-se criando estes nomes. Só que isso depois foi herdado pela disciplina apesar de os achados terem multiplicado. Por exemplo, para o caso do homem de Neandertal, o fóssil escolete que dá origem à designação foi encontrado em 1856 numa gruta na Alemanha. Antes disso já tinham sido descobertos restos que não foram reconhecidos enquanto tal, na Bélgica e em Gibraltar, só depois da descrição do fóssil Neandertal é que esses foram reconhecidos. Depois houve as descobertas de Java, do tal Pit Cantropo, e a partir dos princípios do século XX começaram a multiplicar-se. Por exemplo, do Neandertal que se conhecia, ou dos três que se conheciam em meados do século XIX, hoje na Europa e na Ásia conhecem-se restos de cerca de 500 indivíduos. Qual é o problema para a questão de Neandertais e Sápiens? Há 500 indivíduos, digamos, de morfologia tipicamente Neandertal na Europa e na Ásia e depois há, na África Subsaariana, meia dúzia de restos, se tanto, contemporâneos destas populações. De Homo Sápiens. Que já são, do ponto de vista anatómico, mais parecidos com as populações atuais, portanto, estão designados como homo sapiens, mas e no meio? No meio não há nada, ou muito pouco. O que é que tem acontecido? Sempre que se encontram fósseis ou restos humanos do género homo nessas regiões intermédias, e sobretudo em períodos de tempo intermédios, são sempre difíceis de classificar. Portanto, se nós olhamos para eles com o quadro de referência de que ou são uma coisa ou são outra, aquilo que o Richard Dawkins chamava a tirania da mente descontínua, que é no fundo uma herança do paradigma fixista que subjaga o sistema de Linneau, de classificação de Linneau, a tendência é para olhar para esses restos e encontrar maneira de os encaixar numa ou outra das duas categorias que a gente já definiu que existem. Em linguagem filosófica dizer que as reificámos, portanto que as transformámos de categorias do pensamento em realidades ontológicas que tiveram existência
José Maria Pimentel
real no passado. Desculpa só perguntar isto, mas eu tenho ideia que o que os dados mostram até da genética que as populações neandertais que existiam na Europa não tiveram contato com as populações africanas e as populações africanas que saíram saíram só até o Médio Oriente. Sim, essa é a
João Zilhão
ideia, portanto, digamos, ortodoxa e muito difundida. Mas tu contestas. Eu não contesto, é falso. Está a demonstrar que é falso. Não é assim. Voltando ao princípio, portanto, temos os homoerectos, enfim, para dar-vos o nome, que são os primeiros que saem para fora da África, etc. E, portanto, depois há uma evolução destas populações nos diferentes continentes e depois estamos a falar de centenas de milhares de anos. Depois começamos a ter, há um período, então, entre um milhão e 500 mil anos, onde os fósseis são muito poucos em todo o lado. E à volta de 500 mil anos começam a aparecer mais. Isso tem a ver com quanto mais próximos estamos no tempo, mais fácil é, mais fácil é, entre aspas, encontrar, portanto, quanto mais antigo mais difícil, porque há mais destruição, mais erosão, as probabilidades de encontrar são mais limitadas e também haveria seguramente já mais gente, não é? Portanto, havia mais gente, ficaram mais vestígios e quanto mais próximo no tempo estamos mais fácil é encontrar as coisas. Portanto, Quando chegamos a esse momento-chave, digamos assim, à volta de há 500 mil anos, o que é que acontece? Acontece que os paleotólogos não se entendem. Portanto, uns acham que os fósseis da Europa e da África são a mesma espécie e que depois é que vai acontecer a separação entre neandertais e sápiens. Outros acham que já nessa altura havia diferenciação e que os fósseis da Europa já têm características que mostram que estão, digamos, destinados a evoluir no sentido de se transformarem em neandertais, enquanto que os da África mostram já tendências para evoluir no outro sentido. E há ainda quem diga que os fósseis da Ásia, do extremo oriente, ainda eram, portanto, do tipo que... E depois há o outro ponto de vista, quer dizer, meus caros amigos, para já há aqui um problema base, é que muitos fósseis não estão bem datados. Portanto, quando a gente diz que são da volta de 500 mil anos, uns se calhar são de 300 mil e outros são de 600 mil e isso, pá, é muito tempo, não é? Sim, sim. E depois, estão muito separados no espaço e há poucos dados. Para as regiões intermédias, e portanto, a gente não sabe até que ponto aquilo que nos parece ser duas coisas diferentes não são duas manifestações possíveis de uma variação que é um contínuo. Dentro do normal. Dentro do normal, Portanto, a variação não é discreta, é contínua. Bom, o que é que acontece? Duas coisas. Primeiro, os avanços da genética têm demonstrado, têm tornado possível, responder a esta questão, mesmo na ausência de fósseis para preencher as lacunas, tanto no tempo como no espaço, o ADN fóssil diz-nos uma coisa muito interessante, que é esta nunca deixou de haver fluxo genético entre a África e a Europa durante o período subsequente, tanto entre 500 mil e 200 mil anos, que teria levado à diferenciação das populações da Europa e da África como constituindo duas espécies diferentes, nenhum dos detalhes na Europa e Ásia Ocidental e se há apenas em África. Houve sempre fluxo genético. E como é que se infere isso a partir do... Faz-se a sequenciação, portanto, do ADN e verifica-se que há constituintes que, por exemplo, em populações europeias, há 300 mil anos, que claramente são de origem africana. E vice-versa? Vice-versa, não. Não porque nos fósseis africanos o ADN não se conserva. O problema do ADN fóssil é este, é que é preciso condições muito especiais de conservação e geralmente isso é em climas frios, nas latitudes mais centrinais ou em grutas com condições de prevação muito boas, de estabilidade, etc. E os fósseis africanos não têm ADN. Pois, no fundo faltam
José Maria Pimentel
dados. Ou seja, há poucos fósseis e os poucos que hm não têm
João Zilhão
ADN. Não têm ADN e, portanto, têm que se fazer extrapolações, quando se ressuscitem em termos de paleogenética, a partir das populações africanas atuais, que se supõe que são populações que têm uma ancestralidade, que descendem em linha direta, sem interrupção, dos africanos há centenas de milhares de anos. Há uma linha contínua desde os primeiros homo erectus até aos anos passados das populações atuais, como os busquímanos e outros. Mas tu achas, desculpe, mas o teu palpite é que houve de gine flow nos dois sentidos, não houve fluxo genético? Claro, necessariamente. Quando há intercâmbio é sempre nos dois sentidos. Ora, isto não invalida, portanto, e essa é uma questão que é muito importante, que o isolamento geográfico prolongado tenha permitido a consolidação de diferenças, se quiseres, rácicas importantes, mais importantes e mais significativas do que qualquer diferença entre etíopes do presente e esquimós, por exemplo, entre aborígenes da Austrália e esquimós do Canadá. Portanto, não há dúvida que as populações humanas do passado, sobretudo nessa época, não é? Portanto, de entrar 100 mil e há 500 mil anos, eram mais diferentes umas das outras do que quaisquer duas populações humanas do presente que nós comparemos. Mas quer isso dizer que eram espécies diferentes? Essa é que é a questão que está a debate. O
José Maria Pimentel
teu ponto é que eram populações diferentes, mas da mesma espécie.
João Zilhão
Ora, se há fluxo genético, mostra que não havia isolamento reprodutivo. Se ainda por cima, de vez em quando, quando encontramos um fóssil num sítio onde nunca se tinham encontrado e esse fóssil, surpreendentemente, apresenta características que supostamente definiam duas populações diferentes, na mesma pessoa, no mesmo indivíduo, é razão para pensarmos que os critérios que estão a ser utilizados não têm o significado que lhes está a ser dado. Isso aconteceu há pouco tempo com o fóssil que excavámos em 2014 na Gruta da Aroeira, no sistema do Almonte, em Torres Novas, em Cusco, Coreia, e vamos encontrar combinados características que os especialistas da evolução humana dessa época diziam definirem duas populações europeias distintas, talvez até duas espécies europeus distintas que coexistiram aqui há volta de 400, 500 mil anos no continente. E na realidade encontra-se neste fóssil as características definidoras de uma e de outra combinadas no mesmo livro. O que é que é? Nenardal e Danisovianos? Não, os Danisovianos
José Maria Pimentel
são dos Trigamaurianos. Ah, esses são do Tadá, digamos.
João Zilhão
Não, era, enfim, uma coisa ainda mais, digamos, supermenor, mais interna, digamos, ao continente europeu. Portanto, seria o tipo de Tcheprano, que é um crânio que é de Itália, Tcheprano totavel, de um lado e de outro lado, portanto, por cima da Los Uesos, da Tapuerca, aqui ao lado, em Espanha, que supostamente, portanto, teriam, digamos, características que seriam exclusivas de uma e que seriam exclusivas da outra, aparecem neste indivíduo. Bom, Outra questão que é relevante neste tema. Isolamento geográfico, sim. Desenvolvimento de variantes geográficas, rácicas, se quiser, mais diferenciadas umas das outras do que no presente, sim. O isolamento e a separação foram suficientemente duradouros para que tivessem resultado espécies diferentes, contudo o que isso implica em termos de isolamento reprodutivo, de comportamento, cognição, etc, etc? Resposta a essa pergunta podemos encontrá-la de duas maneiras. Primeiro, olhando para a história do clima, das paisagens e de formação de barreiras geográficas importantes à comunicação entre continentes e outras populações, por exemplo, épocas em que o Sará é muito grande ou em que desaparece, épocas em que, portanto, o clima é muito frio, em que há anatóleo, um planalto gelado e os montanhas do Cálcoas que são difíceis de transpor, vemos que esses períodos extremos têm durações da ordem dos 10 a 15 mil anos. Portanto, no limite podemos supor que os intervalos durante os quais estes reservatórios genéticos estão isolados e não há qualquer contacto nem fluxo entre eles, serão dessa ordem de grandeza, 10 a 15 mil anos, 20 mil. Ora, nós temos uma experiência histórica recente que nos demonstra que isso em termos evolutivos é nada. A Tasmânia, os aborígenes da Tasmânia não tiveram contacto com ninguém, mais ninguém do mundo até ao século XVIII, desde que, com a subida do nível do mar, a Tasmânia ficou ilha separada da Austrália. Os aborígenes da Tasmânia são uma espécie diferente dos aborígenes da Austrália?
José Maria Pimentel
Não são. E nas Américas, não é? Isso ainda foi mais tempo, não é? Atravessia para o continente americano, vai para cá há quê?
João Zilhão
Há 15 mil anos. Há 15 mil anos, sim. Mas nessa altura, portanto, já havia, digamos, a colonização das regiões subárticas, já existia do lado da Sibéria. A passagem americana faz polístimo da Beríngia, que na altura estava imersa, havia ligação entre os dois, mas quando a água sobe e fica o estreito que separa a Sibéria do Alasca, as populações que viviam aí já dominavam, digamos, tecnologias de navegação que permitiam o contacto de um lado para o outro, não é? Portanto, as populações das Américas não ficaram separadas das populações da Sibéria quando o nível do mar subiu. Como assim? Não ficaram separadas? Ficaram separadas no sentido em que havia o estreito, mas esse estreito era navegável, elas tinham tecnologia que permitia passar de um lado para o outro, havia contactos. Continua a haver contactos? Continua a haver contactos e há até, portanto, vários modelos de colonização do continente americano que postulam, com base em critérios linguísticos, não é? Portanto, que houve várias migrações, posteriores à primeira, da Ásia para a
João Zilhão
América do Norte. Curioso. E quão recentes? Epá, isso é complicado, não é? Eu
José Maria Pimentel
estou a perguntar isto porque a pessoa tem a ideia que quando foi descoberta, se não me
João Zilhão
engano, o continente americano, eram populações que não estavam em contacto desde essa travessia. Não, não, não, continuavam a haver contactos e até em época mais recente, contactos na América do
João Zilhão
Sul com a Polinésia e ainda antes da chegada dos europeus. Há
José Maria Pimentel
a história dos vikings e tal, mas isso nunca foi... Sim, isso foi limitado. Sim, foi limitado porque não
João Zilhão
sabe bem quando, bem como... Não, sabe, sabe, sabe. Foi encontrado, portanto, o assentamento, a aldeia viking. Ah, é? Ah, não sabia. De Vinlandia, num sítio que hoje é chamado Lansomadows, na Terra Nova. Está identificada, tem sido escavada, portanto há provas, há coisas que vieram da Granulândia que estão lá, se pode determinar a proveniência, etc. Portanto, isso aconteceu mesmo, não está só nas sagas e não é lenda, é facto histórico provado pela arqueologia. Isto é o primeiro aspecto da questão. Portanto, quanto tempo seria concebível que estas populações tenham estado isoladas e que significado é que isso tem em termos evolutivos? As escalas de tempo envolvidas são em termos evolutivos zero, não têm grande significado. Chegam para gerar variantes, portanto, de cor da pele, até porque algumas dessas variantes têm que ver com a adaptação ao clima, com a cor da pele, tem a ver com o síntese da vitamina D. Que são as mais rápidas a... Que demoram tempo a adquirir, mas também demoram tempo a perder e, portanto, uma vez adquiridas, enquanto forem, digamos, vantajosas, mantém-se, não é? E sempre deve ter acontecido que as populações da Europa, e sobretudo as que vivemos mais próximo das zonas com frequência cobertas de gelo, da tundra e tal, fossem de pele mais clara que as populações dos trópicos, porque isso é uma questão de fisiologia que tem a ver com a síntese da vitamina D. Portanto, isso é um aspecto da questão. Depois outro aspecto da questão é assim, bom, e se nós olharmos para o que sabemos sobre os processos de diferenciação de espécies a partir do ano passado comum entre os mamíferos em geral, Mamíferos que atualmente sabemos que são espécies diferentes, mas são aparentados, portanto tiveram há relativamente pouco tempo em que passaram de mão. Esses estudos existem para muitas linhagens de mamíferos e aqui há uma dúzia de anos um colega americano, talvez já há mais de 15 ou 20 anos, teve uma ideia que, para mim, foi... Que aliás foi nosso colaborador no estudo da criança do Lapedo, teve uma ideia brilhante para mim e que extraordinariamente simples, como todas as ideias brilhantes, que foi assim, bom, vamos lá ver. Qual é, nas linhagens de mamíferos que nós conhecemos, o tempo mínimo que é necessário para que duas espécies atuais que sabemos terem um passado comum tenham evoluído separadamente a partir dele o suficiente para se transformarem em espécies diferentes. Não se conseguiam reproduzir. Não se conseguiam reproduzir. E ele fez um estudo comparativo, portanto, para uma série de linhagens e descobriu que a quantidade mínima de tempo necessária para que isso acontecesse era de um milhão e meio de anos. E isto era para duas espécies de gazelas que têm um intervalo intergeracional de quatro anos. Ora, o intervalo intergeracional dos primatas como nós é no mínimo de 15 anos. Portanto, se tivermos isso em conta, multiplicarmos por 4 o tal milhão e meio de anos, são 6 milhões de anos. Seriam necessários 6 milhões de anos de isolamento reprodutivo completo, que é mais do que toda... É mais do dobro do tempo que existem homens na Terra, para que se pudessem ter diferenciado espécies humanas no sentido pleno da palavra. Tendo tudo isto em conta, eu penso que o mais lógico, e é uma proposta que foi feita já há 30 e tal anos, 40 anos talvez, por um paleontólogo, especialista na evolução humana americana, o Milford Wolpof, que o mais simples e o mais lógico e que evita confusões é dizer o seguinte, o género Homo tem uma só espécie, Homo sapiens, e todos os fósseis conhecidos são, portanto, Homo sapiens. Os Homo sapiens há dois milhões de anos, ou há um milhão e meio de anos, ou há 500 mil anos, eram diferentes do Homo sapiens atual. Normal, chama-se isso evolução, não é? Portanto, a espécie humana evoluiu, transformou-se, não tem hoje o mesmo aspecto, sobretudo ao nível do crânio e da face, mas embora as diferenças também não sejam por aí além do que tinha há um milhão e meio de anos ou dois milhões de anos. Mas há uma relação de antepassado a descendente contínua e depois há, quando olhamos para a variação co-eva, em cada momento de tempo, variantes que mostram ou ilustram que no passado a espécie humana, essa espécie humana única a que pertencemos, foi muito mais heterogénea e diversificada do que é no presente. Olhando para as coisas desta maneira, os Neandertais são uma dessas variantes geográficas do passado. E se para adoptarmos este ponto de vista, tudo aquilo que aparentemente são problemas que resultaram da investigação moderna, da genética dos fósseis, como a crença de Lapêde e outros, não são problemas, não é? São aquilo que seria de esperar. Que nós, humanos do presente, tínhamos, cada um de nós, entre 2 a 4% da parte do nosso genoma que é especificamente humana, que é de origem neandertal, passa a ser algo que não precisa de ser explicado. É normal, são nossos antepassados, temos alguma coisa deles. Como esses 2 a 4% não são os mesmos em toda a gente, o resultado, se somarmos esses 2 a 4% de Neandertal que há em cada um de nós e que já foi encontrado ao sequenciar-se genomas de humanos atuais, chegamos à conclusão neste momento, e com a continuação da sequenciação de genomas seguramente a porcentagem aumentará, é que 45, se eu ver, é 45 ou 50% da parte do genoma Neandertal que era especificamente Neandertal ainda existe nos humanos atuais. Por isso é
José Maria Pimentel
interessante. Existe e em média existe, corresponde de 2 a
João Zilhão
4% dos gnomes de cada um de nós. Da parte especificamente humana dos gnomes, porque uma boa parte do nosso genoma é igual à das
José Maria Pimentel
nossas. Claro, claro. Embora a maior parte desses genes neandertais que estejam na parte do genoma que não codifica, ou seja, que não... Está por todo lado, está
João Zilhão
por todo lado, porque para o que pode ser 45% é muito, não é? Agora aí já entramos noutra questão.
José Maria Pimentel
45% dos genes de Neandertais estão no nosso nome. Do estímulo que era
João Zilhão
próprio dos Neandertais ainda se encontra nas populações humanas atuais. Mas pode vir
José Maria Pimentel
da parte dos nomes deles que não está... Antigamente se chamava junk DNA, na verdade não é bem junk, não sabem o que é, na verdade, mas é aquela parte que não está a codificar. Não é bem assim, até porque... Não está a ser utilizado no
João Zilhão
fundo. Há geneticistas que se têm dedicado ao passatempo de descobrir que consequências para as populações humanas atuais é que têm a posse dessas variantes genéticas que são características dos neandertais. E
José Maria Pimentel
a grande parte está a sustentar o sistema imunitário, não é?
João Zilhão
Pois vamos dizer que há um gene que quando está presente está ligado à propensão para a esquizofrenia.
José Maria Pimentel
Pois é, também apanhei isso.
João Zilhão
Disse a certa altura, portanto, que as pessoas que tinham umas variantes que eram próprias genandertais eram mais suscetíveis a ter doença grave por infecção Covid e uma série de outras coisas. Eu não sou geneticista e não vou comentar essas coisas, mas com toda a franqueza acho que isso não tem qualquer espécie de sentido. Portanto, porque é uma visão determinística da relação entre os géneros e a sua expressão que das leituras que eu tenho de como funciona o genoma são, digamos assim, primitivas. Mas isto para responder à questão, se se faz essa leitura é porque são genes que codificam e que desempenham algum papel no desenvolvimento do organismo. E depois, vendo as coisas desta maneira, muitas outras descobertas que se têm feito ultimamente também deixam de ser surpreendentes, não é? Porque, por exemplo, um dos projetos em que eu estive envolvido, que aliás começou por uma iniciativa, foi este que resultou na verificação de que a mais antiga arte rupestre, as mais antigas pinturas das cavernas da Europa, em três casos, portanto, de Espanha, foram feitas há mais de 65 mil anos. Uma época em que na Europa não havia nada a não ser neandertais, portanto é completamente, digamos, pacífico que isso demonstra, aceitando que a cronologia é correta, significa que todas aquelas coisas que se dizia sobre os neandertais do ponto de vista cognitivo, como eram uma espécie diferente, tinham que ser diferentes do homo sapiens. Em que é que o homo sapiens é sapiens? É porque é inteligente. Como é que se pode ser homem sem ser sapiens? Sendo menos inteligente. Este era o raciocínio. E há um raciocínio que tem raízes no século XIX, no conceito de que as funções cognitivas estão distribuídas no cérebro de forma rígida e compartimentada e que, portanto, das diferenças na morfologia da caixa craniana, que refletem as diferenças na morfologia do cérebro que está lá dentro, se podem fazer inferências sobre a cognição, a psicologia, a inteligência das pessoas. E isto dizia-se ser verdadeiro para as pessoas, em geral, portanto, e deu origem a uma disciplina... Era a frenologia. Era a frenologia, não é? Portanto, palpando pela forma da cabeça se podia chegar à conclusão de se observar mais ou menos inteligente. E essa era só entra ao Mossad, não é? E essa era... Com a sua pouca
José Maria Pimentel
variação, não é?
João Zilhão
Portanto, foi com base nesse raciocínio que o Neandertal, quando é descoberto em 1856 e é estudado e é proposto que seja uma espécie diferente por um naturalista inglês, irlandês, portanto na altura a Irlanda pertencia ao Império Britânico, chamado William King e é ele que, com base no raciocínio de que a caixa craniana era muito diferente desse humano fóssil da dos humanos atuais e mais parecida com a do chimpanzé, segundo ele, do que com a humanidade atual, a consequência é que, do ponto de vista, digamos, cognitivo, ele tinha que também estar mais próximo do chimpanzé do que da humanidade atual. E o facto de ele ter desaparecido também, não significaria que teria sido
João Zilhão
suplantado. E além de mais,
João Zilhão
numa época, século XIX, em que havia muita tendência para confundir evolução com progresso, portanto a evolução é do primitivo ao
João Zilhão
evoluído, ao avançado,
João Zilhão
é uma coisa teleológica, a árvore da vida, não é? Portanto, com os humanos sendo no topo, aquela imagem do Ekel, não é? Portanto, naturalmente, sendo fóssil, tem que ser mais primitivo. Portanto, as duas coisas, não é? Fóssil mais primitivo, caixa carneira diferente não pode ser tão inteligente, Neandertal protótipo, no fundo, do primitivo abrutalhado de que nos tínhamos, ao contrário dos africanos, dos selvagens, naquela visão vitoriana da diversidade humana, de que nós, europeus, nos tínhamos, digamos, livrado a humanidade atual como resultado da emancipação desses antepassados abrutalhados de que, ainda por aí, por esse mundo fora, na selva, nas selvas da América e da África, havia alguns representantes. Não é possível compreender os pontos de vista diferentes e as interpretações que se dão aos vestígios arqueológicos e aos fósseis, nem de heretagens relacionadas com a evolução humana em geral, sem ter bem presente este contexto histórico em que as ideias foram produzidas. Há aqui não só um problema de herança, de como a humanidade evoluiu ao longo das diferentes fases da sua história, há também a questão de saber como é que a ideia da humanidade evoluiu desde o século XIX até ao presente. As duas coisas têm que se conjugar para bem compreender, portanto, a natureza dos debates e ter posição. Agora, isto não quer dizer, Às vezes existe muito esta coisa de dizer, epá, cada um diz a sua coisa e na realidade não se sabe muito bem como é que é. Também não é bem assim. Há debate, há diferenças de pontos de vista, mas a ciência avança por falsificação de hipóteses e, portanto, há hipóteses que vão sendo falsificadas e, portanto, a gente pode não saber como é que as coisas foram, mas vamos conseguindo saber como é que não foram. Não é? Portanto, podemos ainda não saber muita coisa sobre os neandertais, mas algumas coisas já sabemos que, acerca deles, não são verdadeiras. E podemos dizer com segurança que não é verdadeiro, não há qualquer prova de que fossem fundamentalmente diferentes do ponto de vista cognitivo, porque os critérios que se podem utilizar, que são os critérios da cultura material, da manifestação prática da inteligência, Por esses critérios não há qualquer diferença entre a cultura material que vemos associada a eles e a que vemos associada aos seus contemporâneos africanos, a que chamamos antepassados do Homo sapiens, ou homo sapiens nesse sentido estrito, no sentido que lhe dá a visão da humanidade como resultado de uma evolução multispecífica, plurispecífica, com muitos processos de especiação e distinção. Mas espera, desculpa, isso era uma das coisas que eu te queria perguntar. Eu tinha a
José Maria Pimentel
ideia que esses vestígios que existem de Neandertais e Sápiens no caso da Europa, existem determinados aspectos que não têm correspondência nos Neandertais. Ou não, todos os vestígios que se encontram já depois dos Sápiens terem chegado à Europa, em termos da arte...
João Zilhão
Isso é uma excelente pergunta porque dá a pé para entrarmos noutra questão muito importante neste tipo de debates que é o pecado do anacronismo. Epá, o meu avô nunca usou correio eletrónico. No século XIX os paleontólogos comunicavam por carta. Atrasados, pá. Na Idade Média tinham que fazer sinais de fogo no alto das montanhas para comunicar, em vez de pegar um telemóvel para perguntarem como é que vai isso. Quando se fala, portanto, digamos de cultura, ela tem uma evolução ou um desenvolvimento que se processa por mecanismos lamarckianos e não darwinianos. No caso da cultura, é por transmissão de caracteres adquiridos. A gente aprende uma coisa e passa à geração seguinte. Portanto, a cultura é cumulativa. Aquilo que nós somos hoje, nós não podemos dizer que os Neandertais eram mais atrasados porque nenhum Neandertal pintou Altamira. Algo como Altamira. E algum africano, sápiens nesse sentido estrito, contemporâneo dos Neandertais, pintou alguma vez alguma coisa como Altamira? Na verdade não sabemos porque não há... Há poucos vestígios, não é? Está bem, mas
José Maria Pimentel
não há provas. Mas repara, eu percebo o que queres dizer, mas repara, essa evolução cultural traz sempre necessidade. Há quem diga que existem espécies como os chimpanzés, por exemplo, mas ocorreu um ritmo muitíssimo mais lindo antes da invenção da escrita e depois, para não falar sequer da invenção da imprensa e de outras inovações. Ou seja, se tu comparares vestígios neandertais com 70 mil anos, com vestígios sápiens com 40, estou-me a mandar duas datas que acho que não são completamente absurdas, eu não esperaria que houvesse uma grande evolução cultural durante aquele período. Ou estou errado a pensar assim? Enquanto que entrou o teu avô e nós, já houve de facto uma grande evolução cultural, não é? Justamente, A evolução cultural
João Zilhão
é um processo acumulativo e é exponencial. Tem inícios em que o aumento nota-se pouco e depois chega, quando acontece um certo patamar, dispara. Há vários patamares desses na história da humanidade. Os dois últimos e os mais importantes são a agricultura, a invenção da agricultura, que multiplica, portanto, a demografia da espécie e depois era industrial, não é? Portanto, que tem consequências ainda mais impactantes. Agora, 40 para 70 mil anos, sim, é muito diferente. Ou seja, tu achas que o que explica isso não é uma diferença, não nos chamemos espécies,
José Maria Pimentel
mas uma diferença entre aquelas duas populações, a nível cognitivo, é o facto de os sapiens terem mais de 30 mil anos em cima da evolução
João Zilhão
cultural? Vamos lá ver, há 40 mil anos, as pinturas de Altamira têm 15 mil anos, nem sequer estamos a falar de 30 mil. Só se pode comparar aquilo que é comparável. Se quisermos fazer análises de desenvolvimento comparado de sofisticação da cultura e tal e não sei o quê. Temos para já usar critérios que sejam mensuráveis, porque dizer assim não temos provas de que não tenham feito, mas se calhar tinham feito. Também posso dizer a mesma coisa dos Neandertais. Ah, ainda não encontro. Até 2018, até nós termos publicado aquele artigo na Science em 2018, era inimaginável que os neandertais tivessem deixado mão de negativo nas paredes das grutas, pintado símbolos geométricos etc. Essas pinturas eram atribuídas, eram prova, eram parte da prova de um pensamento complexo, sofisticado, que usava símbolos abstratos e tudo, dessas populações modernas do Homo Sapiens e distrito político superior. Afinal foram os neandertais que fizeram. Portanto, nós só podemos trabalhar com base
José Maria Pimentel
no conhecido. Sim, claro, aquela coisa da ausência de evidência não é evidência da ausência. Se alguém
João Zilhão
me disser assim, como é que eu sei que as populações africanas de há 70 mil anos não faziam pinturas com mais alta mira? Também faziam, até que não descobriu. Se estamos por aí, eu também posso dizer, então como é que eu sei que os neandertais de há 200 mil anos não eram capazes de fazer pinturas com mais alta mira. Não descobrimos, mas calhar também faziam, não é?
José Maria Pimentel
Não pode ser. Mas então deixe-me perguntar de outra forma. E já
João Zilhão
saímos do plano, do debate que tem solução do ponto de vista científico, não
João Zilhão
é? Sim, sim. Quer dizer,
José Maria Pimentel
pode vir a ter, mas para já ainda não existem dados. Mas durante quantos milhares de anos é que as populações sápienes e neandertais conviveram na Europa? Vamos lá ver. Ou seja, depois da chegada dos sápienes
João Zilhão
até à extinção dos neandertais. Os neandertais também eram sápienes, portanto... Eu disse populações sápienes. As populações... Quem é que é que eu lhes chamo?
José Maria Pimentel
Populações africanas?
João Zilhão
Eu uso... A maneira simples e elegante de resolver esse problema é falar, como se dizia, portanto, no princípio do século XX, em cromagnons e neandertais. São todos homo sapiens. Os cromagnons são as populações que, após a assimilação dos Neandertais, existem na Europa com um morfotipo esquelético que denota uma origem africana recente e que demonstra que na miscigenação predominou o tipo africano, pelo menos ao longo dos primeiros milénios. Podemos, em vez de chamar-lhes Cro-Magnons, que é um termo europeu para populações africanas, dizer os Agentes de Hérto, que é uma exército da Etiópia, portanto, onde apareceram restos já muito parecidos ou praticamente idênticos aos atuais, com à volta de 150, 200 mil anos. A gentes de Ertó e as gentes de Neander, para evitarmos a taxonomia lineana que depois confunde as coisas, não é? Os descendentes dessas gentes vão encontrar-se, depois de muitos milénios de desenvolvimento, mais ou menos isolado, mas sempre com fluxo. E essa questão é importante porquê? Porque nas regiões geográficas intermédias, como é o caso do Próximo Oriente, há uma coisa muito interessante que é, há fósseis, estou a pensar agora na mandíbula de Tabun, que os especialistas se dividem sobre se classificá-la como neandertal ou como sápiens.
José Maria Pimentel
Precisamente porque estão nessa zona intermédia.
João Zilhão
Há esqueletos dessa zona, datados de à volta de entre 50 mil e 120 mil anos, que alguns autores separam entre Neandertais e Sapiens, dentro do esquema, portanto, de se tratar de espécies diferentes. Há outros que uns dizem que são sápiens e outros dizem que são neandertais e há uma escola de pensamento que diz que aliás a escola de pensamento predominava na altura da descoberta de muitos destes fósseis nos anos 30. Não, isto é uma só população, só que é uma só população muito heterogênea. E, portanto, o que nós vamos encontrar na Europa é um polo dessa variação e na África o outro polo dessa variação, naquela zona intermédia. Encontramos uma população onde os dois polos estão misturados. Há pessoas que pendem mais para um, há pessoas que pendem mais para o outro, há outros que estão em intermédio e a gente não sabe muito bem o que é que eles há de chamar. Portanto, nestas zonas de confluência, que são a zona chave para compreender o processo, tirando o Próximo Oriente, há muito poucos fósseis. No Egito há muito pouco, se a conhece muito pouco, toda aquela zona do Val de Unil, da Arábia, do Irão, que são zonas por onde todos esses fluxos tiveram lugar, porque são as zonas da cintura do deserto, do Sará, Arábia e, portanto, do Irão. São as zonas onde, em épocas de aridez, os desertos se expandem e as populações estão mais isoladas, ainda por cima porque depois há glaciações nas montanhas, na Anatólia, no Cáucaso, no Pamir, etc. E são as zonas onde, quando, há fases de melhoramento climático, portanto, e esses desertos se transformam naquilo que se chama o Sará Verde, que existiu no início do Holocénico, não é? Com lagos, com rios, com uma vegetação de savana. O Holocénico
João Zilhão
é há 12 mil anos, não é? O Holocénico, pois, é o peridinho que vivemos
João Zilhão
atualmente, começou há 11.700 anos. Nas épocas de deserto verde, as populações de um lado e do outro vão convergir, porque tinham estado confinadas nos extremos, vão convergir, vão juntar-se aí, vai haver miscigenações e como as populações que vão para aí mantêm relações para um lado e para o outro, O resultado dos processos de intercâmbio que acontecem nessa cintura latitudinal chave vão ter eco para norte e para sul. O que é que acontece? Inevitavelmente, sobretudo quando as populações humanas vão aumentando de tamanho e vão sendo cada vez mais numerosas e mais densas na paisagem, que é isso que acontece há 100 mil anos para cá, mais ou menos. O peso da componente africana inevitavelmente vai sempre predominar, porque estamos a falar nos últimos 500 mil anos, 85% do tempo corresponde a fases de glaciação. Fases de glaciação onde metade da Europa estava, era desabitada ou coberta de gelo ou era tundra. O que é que é tundra? Tundra, portanto, é deserto ártico, não é? Portanto, é aquela zona na periferia dos gelos. Onde não cresce nada. Onde não cresce nada ou praticamente nada. Onde as renas vão pastar no verão, no Canadá, por exemplo. Ora, os neandertais eram os esquimós da
José Maria Pimentel
época.
João Zilhão
Não sei se... Mais ou menos, não é? Não todos, porque os do Mediterrâneo, digamos, que eram o núcleo duro da população, portanto eram, digamos, que se dizeram como os índios das pradarias da América do Norte e dos Estados Unidos e do sul do Canadá. E depois tens os milionertais da Alemanha, da França e não sei o quê, eram vocês que mostram a época.
José Maria Pimentel
Portanto, o teu ponto é que não havia condições para haver populações muito grandes na Europa,
João Zilhão
ao contrário do que acontecia em África. Havia
João Zilhão
muito pouca gente. A África, que é já atualmente 14 vezes também da Europa. Na época, quando metade da Europa não era desabitada e ainda por cima a parte que era habitada era habitada com densidades de população muito mais baixas, teve sempre muito menos população. Portanto, essa menos população, os neandertais, enquanto se mantém relativamente isolada, pode manter as suas características próprias. Se esse isolamento se quebra e o fluxo genético que até certa época era relativamente raro, mantinha a unidade da espécie mas não era suficiente para quebrar a diferenciação rácica, por exemplo, de algumas coisas de alguma maneira, quando isso desaparece. Inevitávelmente vai predominar na população mexigenada a componente demograficamente mais numerosa. Portanto, essa é a hipótese nula que tem que ser falsificada para explicar porque é que o tipo que predomina, porque é que os Cro-Magnons são mais parecidos com os africanos há 50 mil anos, do que com os Neandertais há 50
José Maria Pimentel
mil anos. Porque nós temos 96 a 98% de géneros cromanhões, para usar o...
João Zilhão
Sim, pois. Porquê? Vimos da África.
José Maria Pimentel
Mas eu ia-te perguntar isso, ainda bem que prestaste para aí. Ou seja, a tua tese é que a hipótese mais provável é que seja apenas um jogo de números e não tem a ver com diferenças de inteligência, como ainda, apesar de tudo, acho que ainda há quem proponha, não é? E não tem a ver
João Zilhão
com... Sim, há, mas cada vez menos hoje em dia. As provas são tantas. Aqui há 25 anos que ligamos a esta guerra, começou quando eu e um colega italiano que trabalha em França, por razões diferentes, mas acabámos por chegar à conclusão que a história estava mal contada. E juntámos esforços para começar a olhar para a cultura material dos últimos Neandertais com outros olhos, sem preconceito, não é? Aí começámos a ver coisas que isto não é uma coisa. E na altura publicámos dois ou três artigos, 98, 99, com muito impacto, mas éramos uma espécie de vistos como os marginais.
José Maria Pimentel
Aliás,
João Zilhão
em 2005 fui para a Inglaterra dar aulas, Fui contratado para Bristol e durante seis anos estive lá a dar aulas na Universidade de Bristol, no departamento de Arqueologia. Era o professor de Arqueologia Apodalítica da Universidade de Bristol. E na altura fui contratado e tal. Foi interessante, gostei muito da experiência, tive uns colegas ótimos e tal. E depois, entretanto, saí de lá, vim para Barcelona, que está mais perto de casa, e das asidas em que trabalhava e tal. E só quando eu já tinha vindo para Barcelona é que um colega colaborador e amigo que lá tenho me disse isto, olha, tenho que dizer uma coisa que nunca te contei. Quando a gente te contratou, nem queres saber a quantidade de mensagens do resto de colegas dos outros departamentos da arqueologia aqui de Inglaterra, nós recebemos e dizemos, vocês estão malucos, foram contratar aquele doido que defende que os Neandertais não eram uma espécie diferente. Isto foi em 2005, há 18 anos. Depois disso, agora é mainstream para dizer que os Neandertais afinal eram... Mesmo as pessoas que defendem, os colegas defendem ainda esse ponto de vista, apesar de serem uma espécie diferente do ponto de vista cognitivo, faziam as mesmas coisas, eram igualmente capazes, já não se põe isso em questão porque as provas são esmagadoras. Nós começámos com essa questão há 25 anos, olhando para coisas que já existiam, que estavam nos museus e tal. Mas depois disso eu encontrei em jazidas de Espanha objetos de adorno, portanto conchas perforadas com restos de ocre, em jazidas com 120 mil anos. Tivemos o projeto de datação para a nossa grande... Nós não estávamos à espera, mas para nossa grande surpresa fomos encontrar, portanto, que a mais antiga arte das grutas era ainda de época era de época de Neandertal e as provas são tantas, não é, que é muito difícil defender o ponto de vista tradicional sobre esse assunto e já praticamente não se vê ninguém que o faça. Então, é uma daquelas coisas que mostra que realmente há progresso no conhecimento.
José Maria Pimentel
É cumulativo, lá está. É cumulativo,
João Zilhão
é por avanço e recuso, discute-se muito, mas é daquelas coisas que da discussão nasce a luz, não é? Justamente é graças à discussão, à controvérsia e ao debate que as coisas vão avançando. Portanto, nesta altura, aliás, se fores a ver os artigos do genético, não é dos paleontólogos, dos geneticistas, Não vais encontrar a palavra espécie quando eles falam de Neandertais e de... Falam de Neandertais, falam de Denisovanos, falam de populações humanas, mas não vais encontrar a dicotomia.
José Maria Pimentel
Não está lá a palavra.
João Zilhão
Não está lá. Eles não usam homóniandertalências, não usam a categoria linear na homóniandertalências. Sim, sim, engraçado. Quem usa são os paleontólogos, alguns, não é? Portanto, os que ainda seguem, estão mais presos. Aderem a esse ponto de vista de que são espécies diferentes, porque resulta da maneira de pensar característica da disciplina, que os leva a ver as coisas dessa maneira. Sim, pois, a
José Maria Pimentel
genética tem por definição uma visão mais contínua, não é? Populações, não é? Claro, claro. E
João Zilhão
toda a vida. Populações de vestiginação, de intercâmbio, de... Enquanto éramos só alguns arqueólogos e alguns paleontólogos a ter este ponto de vista com base em dados de arqueologia, ou em fósseis com características intermédias como a Criança do Lapedo, depois com as fósseis que eu fui escavar em Oásia, na Romênia, ou mais recentemente com a história do Carintharo, era mais antigo, éramos minoritários.
José Maria Pimentel
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João Zilhão
Quando os geneticistas, que inicialmente eram grandes impulsionadores do ponto de vista que os nendertais eram completamente diferentes com base apenas no ADN mitocondrial.
José Maria Pimentel
Pois, eu ia te perguntar a relação a isso.
João Zilhão
Quando desenvolvem técnicos que permitem sequenciar o genoma completo, o genoma do núcleo e não apenas o das mitocôndrias, não se conta. Estavam lá os 2, 4%, não é? Estavam lá, pá, afinal... Eles nunca nos deram a razão explicitamente, atenção, mas a partir do momento em que eles entram no debate com este ponto de vista, ele rapidamente é adotado de forma geral. Nunca ninguém dizia, aqueles gajos afinal tinham razão, Mas na realidade, na prática, deram-nos a razão, que é o que interessa.
José Maria Pimentel
Sim, exatamente. Eu sabia dessa discussão, que tu dizias até, talvez, com o Cevante Pablo, que ganha recentemente o Prêmio Inova, quando ele e outros geneticistas diziam, lá está com base no ADN, apenas no ADN mitocondrial, que não havia ADN neandertal no nosso genoma. E eles diziam porquê? Ou seja, eles diziam ainda com base, quer dizer, diziam com base nos dados naturalmente, mas a hipótese que eles colocavam, ou eles defendiam esse resultado com base ainda na ideia da superioridade cognitiva dos sapiens ou com base na diferença populacional entre os dois que era tão grande que tinha
João Zilhão
eliminado completamente os géneros? Não, eles baseavam-se no ADN mitocondrial. O ADN mitocondrial é transmitido pela linha materna e o argumento era o ADN mitocondrial dos fósseis neandertais, dos quais foi possível extrair, portanto, esse ADN mitocondrial é muito diferente das populações humanas atuais, não há nenhuma linhagem, não há rastros daquela linhagem nas populações humanas atuais. Portanto, é uma espécie... Já nessa altura isso era controverso porque, outra vez tomando os chimpanzés como quadro de referência, atualmente a diferença entre linhagens de ADN mitocondrial que se pode encontrar entre dois indivíduos de uma mesma população, da mesma subespécie, de chimpanzé, é superior à diferença que pode existir entre quaisquer dois humanos, incluindo os neandertais entre os humanos. Portanto, Já nessa altura a questão era controversa e a proposta foi rebatida com base neste argumento. Mas havia outra questão muito importante, que é a seguinte, como é transmitido apenas por via materna, uma linhagem que por alguma razão seja rara facilmente desaparece. Facilmente desaparece porquê? Basta que uma mãe, que é a última representante dessa linhagem, só tem filhos do sexo masculino, a linhagem extingue-se. Mas a mãe teve filhos, não é? Portanto, esses filhos vão transmitir aos seus filhos o património genético herdado da mãe. O que não vão transmitir é a parte mitocondrial do genoma. E
José Maria Pimentel
além disso, o ADN mitocondrial é transmitido apenas por uma das quatro vias das nossas avós, porque
João Zilhão
é só pela mãe, é só pela mãe, portanto, só
José Maria Pimentel
pela avó materna, não é? E, portanto, aqueles 2%, para usar o mínimo do intervalo, do ADN Neandertal, aí só corresponderia a 0.5, portanto,
João Zilhão
também facilmente fica diluído. Não, não, não, esses 2% e 4% é do genoma do núcleo. Eu sei, eu sei, mas eu digo, no mitocondrial... No mitocondrial, não, porque o mitocondrial não está ligado, portanto, ao desenvolvimento do organismo, portanto não codifica, etc.
José Maria Pimentel
É o motor da célula. É o motor
João Zilhão
da célula apenas. E, portanto, aquele ADN que lá existe é um resíduo da época em que os seres celulares se formaram por junção de partes diferentes e, portanto, esses organelos mantêm o material genético, portanto que é o ADN mitocondrial. Mas não há recombinação, portanto é transmitido integralmente, não recombina. Ao contrário do que acontece com o ADN nuclear, portanto metade vem do lado da mãe e metade vem do lado do pai, no caso do ADN mitocondrial. Não há recombinação, é herdade integralmente, ou está lá ou não está lá. Há mutações e essas coisas todas e vai havendo modificações de forma aleatória e vão se perdendo e vão aparecendo linhagens. Mas
José Maria Pimentel
o raciocínio é diferente. Mas o que eu quero dizer é, dos 900 passados neandertais, só um quarto é que passaram ADN mitocondrial. Não, não. Porque para os outros perdeu-se, porque se é só herdado pela via materna...
João Zilhão
Não, não, mas não passou nada. Em teoria não passou nada. Eles diziam que não tinha passado nada. Nada, e não passou mesmo. O nosso ADN, nas populações humanas atuais, as linhagens que nós encontramos nos neandertais não existem. Portanto, são linhagens diferentes das que existiam entre os neandertais. Ou pelo menos das que existiam nos neandertais para os quais temos informação. É isso, nós vamos continuar a ver com isso. O que é que acontece? A explicação de porquê as linhagens que ocorrem entre os neandertais não existem no presente é tão simples quanto esta. Distinguiram-se da mesma maneira que é como a transmissão dos apelidos, não é? No nosso caso, em Portugal, o apelido dos filhos é o do pai.
João Zilhão
Eu, por acaso, dou-me um bom paralelismo. Só que é ao contrário. Se o pai só tem filhas, o apelido, perto, se for um apelido raro
João Zilhão
como o meu, é muito fácil perder-se. O ADN mitocondrial é o contrário, portanto, se uma mãe só tem filhos, não tem filhas, e for a última dessa linhagem, desapareceu. Isso não quer dizer que essa mãe não tenha tido descendência. Quer dizer que essa componente do seu material genético não passou para a descendência. O argumento baseado no ADN mitocondrial era fraco por essas duas razões. Simplesmente, as linhagens distinguem-se. Não há linhagens de há 40 mil anos no presente, ok? E conhecemos alguma linhagem africana de há 40 mil anos, não se estão extinguindo também muitas delas? Aquelas que chegaram até nós são as que chegaram até nós. Seguramente muitas se extinguiram, isso não quer dizer que as populações onde elas existiam se teriam extinguido sem descendência. Uma coisa é extinguir-se uma linhagem mitocondrial, outra coisa é a população onde essa linhagem existia não ter tido descendência. Isso é uma coisa que só através do genoma do núcleo é que podia ser tratada. E portanto, eu lembro-me, falaste agora no Pau, no ano de 2005, mesmo ano em que eu fui para Bristol, curiosamente tive um encontro imediato do terceiro grau com ele num congresso em Cambridge, destinado a discutir estes temas e por coincidência ele apresentou os primeiros resultados do projeto que estava a desenvolver para sequenciar até então só viadados das mitocôndrias e estavam a começar o projeto de sequenciar o genoma nuclear. Ele foi apresentar, depois virá a ser publicado nesse ano ou no ano a seguir, o primeiro milhão de barros de bases extraídos do genoma nuclear. E calhou que a seguir a ele, na lista dos intervenientes do Congresso, a seguir à comunicação dele era a minha. E eu passei a minha comunicação a explicar porque é que tudo aquilo que ele e outros tinham de dizer sobre essa questão, na minha opinião, não estava bem, estava errado, e porquê, e apresentar os argumentos, pagantológicos e arqueológicos, resultantes da minha investigação com outros colegas dos últimos anos, tinham um sentido oposto. O dia seguinte, estávamos num college, não é? Os participantes todos ao pequeno almoço, todos descansados de tomar o pequeno almoço, vejo o Pabllo dirigir-se para mim com uma cara... Ele era um tipo colérica, era conhecido por causa disso, zangadíssimo, acho chateadíssimo comigo, de passar-me um sermão, como é que eu me atrevia que não era geneticista? E eu respondi assim com ironia. É verdade, mas, sabes, sou um homo sapiens, sou dotado de inteligência avançada e, portanto, tenho o poder de uso da razão, posso usar a lógica e no uso dessas minhas capacidades atrevo-me a ter opinião sobre o assunto e acho que tenho razão e tal. Pois é, evoluiu, ele acalmou e traz uma conversa porreira de
João Zilhão
quase 40 minutos. Chegámos atrasados ao congresso e tal. Mas ele estava preso à teoria, ou seja? Completamente. Bem, é um dos desafios de fazer ciência, não é? Porque de facto
José Maria Pimentel
os dados diziam aquilo, não é? Pois. Mas depois tu podes ter duas atitudes em relação aos dados, que é, aliás, como tu já já passeou desta conversa, que é dizer, ok, estes são os dados que existem até ver, não é? E nós não sabemos o que é que falta descobrir, ou então podes passar a ter uma relação quase identitária com aquele resultado e construir uma teoria sobre ele e no fundo era isso que ele estava a fazer? Ou seja, estava...
João Zilhão
Não, ele estava amarrado aos resultados que tinha da disciplina dele que era o do ADN mitocondrial e ele dizia aquilo e eu explicava porque é que isso não era suficiente, podia ser interpretado de outra maneira e não contradizia, portanto, os dados.
José Maria Pimentel
Ou seja, mas ele não disputava os teus argumentos, não é?
João Zilhão
Não. Nomeadamente... Ele dizia, o que eu tenho é isto e isto significa isto e não pode significar outra coisa. Dizia, não, não, desculpa lá, não é
João Zilhão
assim. Há outras maneiras de... Mas era uma divergência empírica, estava a tentar perceber se era uma divergência argumentativa.
João Zilhão
É uma divergência empírica. Aliás, eu faço-lhe justiça, a ele e à profissão em geral, à disciplina da genética em geral, que justamente eles não ficaram amarrados a esse ponto de vista. Portanto, passado de poucos anos, 2010, fazem a publicação, portanto, do primeiro genoma nuclear completo e é onde dizem isso que, pela primeira vez, preto no branco, essa coisa, os neandertais não se extinguiram, contribuíram para o nosso património genético, 2 a 4% das populações humanas atuais ainda têm, portanto, genes oriundos desse processo de miscigenação.
José Maria Pimentel
Correram.
João Zilhão
Eles, pela força dos dados da própria disciplina deles, não se deixaram convencer por nós, mas deixaram-se convencer pelos seus próprios dados, mudaram de posição. Portanto, chapou, não é? O que é um bocado confrangedor é que na minha disciplina, que permanece muito aquele pessoal que... Está fechado nas caixas. Está fechado. Há 30 anos que defendem aquilo e não há maneira de aceitarem as coisas como são. Os neticistas não, pá, ok, afinal não é assim, é assim. Claro, atribuem-se a si próprios os méritos de não veres qualquer referência aqui. Isto é um ponto de vista com base noutros argumentos igualmente válidos. Lá está, são
José Maria Pimentel
todos a um do posse.
João Zilhão
Mas pelo menos deram essa contribuição e é uma contribuição muito importante, não há dúvida nenhuma.
José Maria Pimentel
Olha, duas perguntas rápidas que temos que acabar ainda sobre esse processo. Primeira, essa miscigenação, nós temos dados que indicam se foi mais comum pela via feminina ou masculina e dois, para além da mistura, ou seja, para além da reprodução, Nós temos algum tipo de informação que possa indicar se houve guerra também, à falta de melhor expressão, pelo facto de terem populações diferentes, mas nós sabemos que o Homo Sapiens também tem essa tendência. Opa,
João Zilhão
a resposta à primeira pergunta é não sabemos. O lógico é pensar, portanto, que foi nos dois. Não, porque olhando para o cromossomo e a hipostonte, conseguirias perceber se... Se calhar
José Maria Pimentel
é demasiado pequeno para isso, não sei. Não,
João Zilhão
não, justamente, por exemplo, a mandíbula de Olazé, portanto, que é juntamente com o crânio de Azizida, que é outro indivíduo que nós pescavamos na Roménia entre 2003 e 2005, que continuam a ser os mais antigos restos diagnósticos a que se pode chamar homo sapiens no sentido tradicional da Europa, foi sequenciado, o genoma nuclear foi sequenciado e justamente uma das coisas que se descobriu é que um dos cromossomas, não era o cromossoma Y, não me lembro agora qual é que era, um dos cromossomas tinha um segmento puramente neandertal tão comprido que, devido à maneira como se faz a recombinação, portanto, com a passagem das gerações, implicava que, quando muito, quatro ou seis gerações atrás, esse indivíduo tinha tido um passado neandertal puro. Um dia que tínhamos a sorte de encontrar, digamos, segmentos tão completos do cromossoma X ou do cromossoma Y em populações dessa época do contacto ou quase logo a seguir poderemos talvez vir a fazer inferências dessa natureza. Mas vamos lá ver, é preciso ser realista, não é? Portanto, a quantidade de fósseis dessa época, ao fim de 150 anos de investigação, é muito pequena. A probabilidade de que o ADN esteja conservado em cada um deles é igualmente muito pequena. Que tenhamos essa sorte, tenhamos a sorte de vir a ter dados desse tipo em quantidade suficiente para fazer extrapolações a nível populacional para além de casos individuais. Realisticamente, acho difícil nos tempos
João Zilhão
mais próximos, daqui a 100 anos, não sei, não é? Sim, sim, sim. Mas isso, olha, se
José Maria Pimentel
liga àquilo que eu tinha de perguntar para terminarmos, mas agora antes isso, desculpa, eu perguntei daquilo do conflito, não é?
João Zilhão
Ah, do conflito? Epá, não, não há. Sabemos que há exemplos de violência, não é? Digamos, há em esqueletos ou em restos esqueléticos, várias épocas da evolução humana, vestígios de trauma resultantes de pancada forte. Há alguns casos claramente a pancada forte é resultado de um instrumento e, portanto, aí são casos em que há um indivíduo que atinge outro, mas não conheço nenhum caso em que se possa dizer que é um indivíduo de uma espécie, entre aspas. Como é que podrias dizer também, não é? Podria dizer se fossem casos dessa época, desse período de 200, 300, 500 anos, em que numa mesma região pode ter ainda havido populações racialmente diferentes, outras espécies diferentes, por acaso, da maneira que... Mas se é um Neandertal de há 60 mil anos ou um Homo erectus de há 200 mil anos que tem esse tipo de vestígios... Havia outra maneira de saber, mas lá tem o mesmo problema de falta de dados,
José Maria Pimentel
se tivesse uma noção mais ou menos exata das populações na Europa e as que vieram da África nessa altura, ou seja, da relação do peso das populações que existiam na Europa de Neandertais e das que chegaram da África nessa altura e depois relacionasses isso com a porcentagem de genes neandertais que nós temos conseguirias perceber porque se imagina que havia, digo eu parece muito fazer sentido, imagina que a relação era 80-20 por exemplo, havia 20% de neandertais face a 80% dos que vieram e de repente as uma proporção de genes neandertais no nosso genoma que é apenas 2 a 4% houve uma mistura até certo ponto mas houve uma razia dos genes neandertais. Sim, mas isso vamos lá ver. Só que nós não temos essa informação.
João Zilhão
Mas a razia dos genes não é a razia das pessoas. Essa razia pode
João Zilhão
acontecer por vias naturais. Pode
João Zilhão
acontecer simplesmente como resultado de diluição ao longo do tempo, porque se este processo de que periodicamente vêm gentes da África...
João Zilhão
Pois, eu estava a assumir uma coisa estática, que é uma simbolificação muito grande. Há um primeiro
João Zilhão
contacto que desencadeia o fenómeno de miscigenação, que é muito mais importante e muito mais impactante de todos os que tinham acontecido em épocas anteriores e isso tem lugar há 45, 40, 45, 50 mil anos. Mas depois disso pode ter voltado a acontecer. Pode ter voltado a acontecer há 35 mil anos e há 30 mil, não é? E ainda por cima acontece outra coisa, é que as populações atuais não descendem necessariamente das populações paleolíticas dos locais onde nós atualmente vivemos.
José Maria Pimentel
Eu falei disso
João Zilhão
com a Luísa Pereira. Atenção,
João Zilhão
grande parte do nosso genoma, dos portugueses de hoje, tem a ver com
João Zilhão
os agricultores do
João Zilhão
Próximo Oriente, da Anatólia, das Estepes e não sei quê. Há uma pequena contribuição, por exemplo, há uma coisa que a Luísa Pereira não sabia porque vai ser publicada agora, mas através, portanto, enfim, da modelização dos dados cronológicos e raciocínios demográficos e etnográficos, aqui em 2017, com um colega espanhol, nós publicámos um modelo matematizando, digamos, a difusão da agricultura para a Península Ibérica, que eu já tinha defendido há muitos anos, que tinha que ter sido uma coisa por pequenos grupos, por via marítima e tal. E, portanto, demonstrámos que era impossível isso ter acontecido ao ritmo a que os dados arqueológicos demonstravam que tinha acontecido, sem que o processo tivesse consistido na chegada de pequenos grupos de fora, portadores dessa economia, que interagiram com os caçadores-recoletores locais e que, portanto, em consequência disso, no genoma dos primeiros agricultores, devia haver uma contribuição dos caçadores-recoletores, de tradição paleolítica, em Portugal, bastante maior do que no resto da Europa. Através da sequênciação do genoma nuclear de dois crânios, portanto, dos primeiros agricultores de uma gezida que eu excavei aqui nos anos 80, que vai agora ser publicado no quadro de um estudo mais fulso sobre o genoma dos primeiros europeus, confirmou-se. Mas, digamos, regra geral é esta. Os portugueses de hoje, ou os espanhóis, ou os franceses, não descendem dos cromainhões de há 30 mil anos, descendem de populações de origem Próxima Oriental, Asiática, em grande proporção. Isso tem muita piada. Em grande proporção e, portanto, obviamente, a preponderância nessas populações ancestrais da contribuição africana seria muito maior do que nas populações pauliticas cuevas do extremo ocidental da Europa e não admira, portanto, que se, digamos aqui há 20 mil anos ou 25 mil anos, os géneros neandertais fossem mais comuns em Portugal do que são hoje, não admira que isso tenha perdido, porque o nosso património genético é basicamente, não vem dos portugueses há 25 mil anos, vem dos turcos há 12 mil anos, não
João Zilhão
é? Ou dos cossacos há 5 mil anos ou há 4 mil anos. Eu já não me lembro se foi essa migração que iluminou completamente a linha masculina. Houve um desses
João Zilhão
processos de migração, já não lembro se foi esse. Já estamos a entrar numa época histórica que eu conheço pouco e não leio muito. Mas eu tenho ideia que isso é uma coisa que acontece em algumas regiões da Europa Central,
José Maria Pimentel
não é generalizado. Isto foi na Península Ibérica, isto que eu estou a falar. Eu já não me lembro qual desses movimentos foi. Bem, ouçam o episódio com a Luísa Pereira. Falamos disso lá. Olha João, vamos terminar. Enfim, eu acho que a pergunta mais interessante para te fazer para terminar, até por várias coisas que nós falámos aqui, é nós já percebemos que há nesta área uma limitação de dados. Ou seja, seria ótimo ter muito mais fósseis e mais ADN e não temos. E é por isso que existem várias perguntas em cima da mesa. Se tivesse que fazer algum palpite sobre descobertas que possam vir a ser feitas nos próximos 10, 15 anos, o que é que tu dirias? Ou seja, há algumas coisas que venham a dar que falar nos próximos 10, 20 anos que tenham que ver com as pessoas que estão aceitidas agora e que, sei lá, ocorrem por exemplo serem descobertas mais falsas em África, porque há de facto uma desproporção faixa ao que existe na Europa. Para quem está a ouvir e tem interesse por estes temas, o que é que pode esperar e o que é que deve estar a tendo?
João Zilhão
Eu o que antecipo e que acho que vai ser, não sei se vai acontecer, mas antecipo que seja possível e a acontecer, portanto acaba de vez com todas estas histórias, é a revelação de que a decoração por pintura ou gravura das paredes das grutas em zonas profundas não é que tenha mais de 65 mil anos, é uma coisa que começou há já 150 mil ou 200 mil anos. E digo isto porque há uma gruta em França, que é a gruta de Bruniquel, onde a 300 metros da entrada, na escuridão absoluta, há 175 mil anos, com uma datação extraordinariamente precisa, as populações da região construíram dois recintos circulares com troços de estalagmites que partiram. Ah, eu vi essas imagens, sim. Embutidos nesses recintos havia lareiras, implicando um trabalho coletivo organizado na escuridão, portanto com iluminação artificial, envolvendo a movimentação no interior da cavidade de toneladas e toneladas de pedra para aqui. Alguma coisa, obviamente de natureza ritual, qualquer que tenha sido a substância do ritual, aconteceu. Ora, as paredes dessas estão completamente cobertas de calcite, não se vê nada do que era a parede original. E
José Maria Pimentel
tu palpitas que retirando essa calcite... Eu
João Zilhão
um dia, retirando não, porque isso é estragar, não é? Mas há de haver... Alguém um dia há de inventar métodos para... Tipo raio-x para ver por trás da calcita o que é que lá está e quando isso acontecer eu estou convencido que vão aparecer coisas de... Das tais que têm mais de 65 mil anos, que encontramos em grutas de Espanha, mas atenção, a única coisa que a gente pode dizer com segurança é que tem mais de 65 mil. Podem ter 65 mil e um, ou
João Zilhão
66 mil, ou 100 mil, ou 175 mil. Porquê que só pode dizer que tem mais
José Maria Pimentel
a ver com a datação do carbono 14?
João Zilhão
Não, o método que se usa é o uranio e o tório que data a calcite que se formou por cima da pintura. Ah, claro, claro. Nós não datamos a pintura.
José Maria Pimentel
Sim, ou seja, aquilo tem que ser anterior à calcite. Pode ser um dia ou pode ser 100 mil anos. Ou pode ser, exatamente. Um dia, só para ser genérico. Sim, é uma datação indireta. Está bem, boa, João, excelente conversa, como eu calculava. Olha,
João Zilhão
não sei o que é que tens para recomendar. Não sei se é livro, se é... Olha, eu recomendava justamente para quem quiser mergulhar
João Zilhão
neste debate e o faça, tendo de presente aqui o que eu disse há bocadinho, que é que há que perceber que há aqui duas evoluções, a evolução humana e a evolução do pensamento sobre a evolução humana. E para perceber bem a importância que é este segundo aspecto da coisa, eu aconselho a todos que vejam um filme de 1956 chamado Neandertal. É um filme preto e branco, de Hollywood, que conta a história de um professor universitário. Não, eu não vou contar a história.
João Zilhão
Vejo o filme... Está só assim, não,
José Maria Pimentel
professor. De que é que trata?
João Zilhão
É um professor universitário que desenvolve a teoria de que os Neandertais, afinal, não eram uns brutos ignorantes, mas eram pessoas normais, como nós, tão inteligentes e capazes. E que, para demonstrar, portanto, a sua teoria, inventa, portanto, uma poção mágica, um elixir, que tomada transforma a pessoa em Neandertal. E eu, como bom científico,
José Maria Pimentel
primeiro
João Zilhão
experimenta em si próprio e transforma-se num Neandertal. E depois o que é que acontece? Não digo
José Maria Pimentel
mais. Agora é que é melhor não dizeres mais.
João Zilhão
Mas vale a pena ver. Não
José Maria Pimentel
fazia a mínima ideia que esse filómeno é muito proficiente, em certo sentido. É de 1958? 56. Eu vou ver, pelo menos. Já fiquei curioso.
João Zilhão
João, obrigado. Olha, é só obrigado a ele, pá. E boa sorte para o Sporting.
João Zilhão
É pá, isso é que vai ser muito preciso. Vai ser muito preciso. Este episódio foi
José Maria Pimentel
editado por Hugo Oliveira. Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no site 45grauspodcast.com Selecione a opção Apoiar para ver como contribuir, diretamente ou através do Patreon, bem como os benefícios associados a cada modalidade.