#138 Bruno Cardoso Reis - 1950, o Plano Schuman e a revolução diplomática que lançou as...

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José Maria Pimentel
♪ Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45 Graus. Muito obrigado àqueles que se tornaram mecenas do 45 Graus desde o episódio anterior. A Ana Luísa Guimarães, ao Enrico Valente, à Catarina Peschincha, que claramente achou que valia a pena apoiar o 45 Graus por este valor, ao Ivo Loureiro, ao Bruno Stewart e ainda ao Paolo Dalmazzo. E agora, ao episódio de hoje. No dia 5 de maio de 1950, Robert Schumann, então o Ministro dos Negócios Estrangeiros da França, fez uma das comunicações mais marcantes da história europeia desde a Segunda Guerra Mundial, ao anunciar o Plano Francês para que as nações europeias passassem a ingerir de forma partilhada os seus recursos de cravão e de aço. O plano era uma ideia da equipa de política económica do governo francês, liderada por Jean Monnet, que veio mais tarde a ser uma das principais figuras do projeto europeu. O plano Schumann, como ficou conhecido, levaria mais tarde, em março de 1951, à assinatura do Tratado de Paris e, com ele, à criação da Comunidade Europeia do Cravão e do Aço, a SECA, composta por seis países da Europa Ocidental, a França, a Alemanha Ocidental, a RFA, e ainda a Bélgica, Holanda e Luxemburgo, os membros do Benelux, e a Itália. Mas, embora a lógica aparente da SECA fosse sobretudo econômica, na verdade a principal consequência da iniciativa do governo francês foi sobretudo política, criar uma aliança franco -germânica que tem estado, desde então, na base do sucesso do projeto europeu. A proposta de Schumann e a aproximação à Alemanha apanharam, na altura, a maioria dos observadores de surpresa, porque marcaram uma viragem de 180 graus em relação à política externa que a França tinha seguido até aquela altura. Durante os anos do pós -guerra, o grande objetivo francês tinha sido resolver, de uma vez por todas, a eterna questão alemã, como era conhecida na altura, ou seja, impedir que o país vizinho pudesse, mais uma vez, reerguer -se e ameaçar a França militarmente, o que, a acontecer, seria já a quarta vez em menos de um século. Para isso, na visão francesa até aquela altura, era necessário restringir ao máximo a reconstrução da Alemanha a todos os níveis político, económico e, sobretudo, claro, militar. Ou seja, o poder político francês acreditava que a força da França dependia diretamente da fraqueza da Alemanha. Mas, de repente, em poucos meses, tudo mudou. Xumã anunciou o plano, a Alemanha aceita e os Estados Unidos apoiam -no entusiasticamente, contribuindo decisivamente para o sucesso das negociações. Os únicos a estragar a festa foram os britânicos, que optaram desde o início por ficar de fora. Perante isto, há uma pergunta óbvia que ressalta. Como foi possível esta mudança tão rápida e tão surpreendente? Este assunto é, simultaneamente, fascinante e, ao mesmo tempo, muito complexo. Porque, para compreendê -lo, temos de perceber o ambiente muito particular que se vivia na Europa do pós -guerra, temos de conhecer as prioridades da política externa e interna dos vários países envolvidos e ainda de ter em conta o peso que teve o escalar da Guerra Fria em acelerar todo aquele processo. Ou seja, por outras palavras, é preciso conhecer muito bem a história da Europa deste período, nestes vários níveis. É, por isso, uma job description muito difícil. Mas o convidado a este episódio, Bruno Cartoso Reis, encaixa nela perfeitamente. O convidado é mestre em História Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e em Historical Studies pela Universidade de Cambridge. Além disso, é doutorado na área das relações internacionais em War Studies pelo King's College de Londres. Atualmente, Bruno Cartoso Reis é professor no ISCTE, onde coordena o doutoramento em História e Defesa, uma parceria com a Academia Militar. Tem investigado e lecionado sobre História Global, Estudos Europeus, Relações Internacionais e Estudos de Segurança, entre outros. E é também, e se calhar conhecem -no daí, colaborador regular na imprensa, na análise destes temas, nomeadamente na Cic Notícias e no Observador. Como vão perceber, o convidado tem um grande conhecimento sobre a História das relações internacionais, que nos ajuda a compreender as várias dimensões deste período crucial em que começou o processo que viria a dar origem à União Europeia, tal como a conhecemos. E agora, deixo -vos com esta bela conversa com Bruno Cartoso Reis. Bruno Cartoso Reis, muito bem -vindo ao 45°. Obrigado pelo convite. Vamos falar do pós -guerra e do início do processo de integração europeia e também do que é que isso pode ensinar para hoje, para a política atual e também para tentar prever um bocadinho o futuro. Eu acho que o mais interessante é começarmos pelo ambiente que se vivia no pós -guerra. O processo de integração europeia começa em 1950, portanto, 5 anos depois do fim da guerra, mas resulta, no fundo, do que se passou durante aqueles 5 anos e, sobretudo, da maneira como durante aqueles 5 anos os Estados foram reconstruídos e como foram digerindo a experiência do que se tinha passado na guerra, sobretudo na Europa continental. Eu diria, qual era o ambiente neste período? Quer dizer, como é que tanto a população como as lideranças dos vários países, sobretudo a França, digo a França porque foi quem depois teve o protagonismo, a iniciativa no plano Schuman, como é que eles se sentiam, não é? Que prioridades, o que é que estava na cabeça deles?
Bruno Cardoso Reis
Bem, eu acho que uma primeira nota interessante é que Portugal é, sem dúvida, um país europeu, embora eu ainda me lembro de uma altura, por exemplo, nos anos 80, 90, em que ainda se falava de nós e Europa, mas Portugal realmente faz parte deste Europa muito periférica, do Sul, do Leste, que muitas vezes tem dúvidas se é plenamente parte da Europa ou não e, sobretudo, realmente tem experiências que não são bem as do núcleo duro da Europa. No fundo, esta Europa, se quisermos, central, mas é central aqui num sentido bastante amplo, não no sentido de república sécula, mas a Alemanha, a França, a Grã -Bretanha, a Itália, no fundo esse grande eixo que ninguém questiona, que é realmente a Europa e que as suas experiências são experiências europeias. E, realmente, Portugal foi afetado pela Segunda Guerra Mundial, mas é um dos poucos países que consegue escapar à Segunda Guerra Mundial, portanto, que não participa ativamente na guerra. E, portanto, esse é um bom exemplo de facto como nós muitas vezes temos aqui uma experiência histórica que é realmente diferente. E, no fundo, se nós quisermos conhecer a história da Europa no pós -guerra, Portugal não é um bom sítio para começar, vamos dizer assim, ou a história portuguesa que nós conhecemos não é um... Porque, realmente, a Europa está basicamente arrasada. Quer dizer, eu convido os ouvintes a verem fotografias das grandes cidades europeias. Em 1945, aquele famoso filme do Rossellini, não é? Europa em Zero, mas realmente é isso. Na Itália, na Alemanha, na França, Grã -Bretanha, Londres, mas Londres, mesmo assim, está menos destruída que... Quer dizer, vejam imagens de Berlim, não há uma casa de pé, portanto está tudo completamente arrasado. Enfim, depois há os enormes custos humanos, ou seja, estamos a falar da guerra mais destrutiva da história, dezenas de milhões de mortos, ainda hoje são tantos que é difícil estabelecer um número, até porque há mortos diretos da guerra, depois há mortos indiretos, não é? De fome, doença, tudo isso, mas 60, 70 milhões, enfim, nem todos foram na Europa, mas a Europa é, realmente, dos continentes mais sacrificados, o continente onde a guerra é mais intensa, a par da Ásia e, sobretudo, da China, mas, de facto, a Europa está arrasada. E, portanto, estamos a falar de milhões deslocados, milhões de mortos, portanto, a destruição física, a destruição material, mas também a destruição, vamos dizer assim, humana e, de facto, em muitos países, em países fundamentais, centrais na história europeia, a começar pela Alemanha, que pela sua localização, pela sua dimensão, pelo seu dinamismo económico, realmente é o coração da Europa, à questão alemã está no centro da questão europeia, pode ser há vários séculos, mas, sobretudo, desde a unificação, desde 1870, por exemplo, a Alemanha literalmente desaparece, portanto, em 1945 não há Alemanha, o território alemão está ocupado pelos quatro aliados vencedores da guerra na Europa, pela União Soviética, pela Rússia Comunista, pelos Estados Unidos, pela Grã -Bretanha e pela França. Mas mesmo a França, que é, tecnicamente, um vencedor, foi um país que esteve sob ocupação, que, basicamente, desapareceu também como um Estado independente durante um determinado período da guerra, portanto, a grande questão é, no fundo, como é que se vai reconstruir a Europa. E aí, vamos lá ver, para sermos completamente rigorosos, vai -se reconstruir toda a Europa, é preciso recordar que, digamos, a aversão e o medo, também, suscitado pela Alemanha, a Alemanha, de facto, unificada, vai desencadear duas grandes guerras, ou ser uma das principais responsáveis na Primeira Guerra e o grande responsável, no caso, na Segunda Guerra, a Alemanha nazi, vai ocupar praticamente todo o continente europeu, ou parece, a certo momento, que isso vai acontecer, em 1940 -41, e, portanto, há, inclusive, discussões não só na União Soviética, mas, por exemplo, nos Estados Unidos, que é sempre aqui visto como, digamos, o país mais generoso, o vencedor mais generoso, o chamado Plano Morgenthaus, a ideia é, não vamos reconstruir a Alemanha, sobretudo, não a vamos reconstruir com uma potência industrial, mas, portanto, isso rapidamente acaba por ser posto lá, porque percebe que teria implicações terríveis para o conjunto da economia europeia, se quer reanimar a economia, é preciso que a Alemanha faça parte desse esforço de reconstrução. E esse plano, desculpe, esse plano propunha o quê? O Plano Morgenthau, que é, no fundo, um dos braços direitos do Roosevelt, é, no fundo, a ideia de uma espécie de Alemanha potência agrária, portanto, é deliberadamente destruir e não reconstruir a indústria alemã. E, portanto, a ideia é, sem indústria... Uma Alemanha atrofiada, no fundo. Sem indústria, a Alemanha não se pode rearmar e, se não se pode rearmar, não pode voltar a causar problemas. Isto, obviamente, está diretamente ligado ao processo de construção europeu, não é? No fundo, o surgimento das instituições europeias, de instituições supranacionais, começando pela Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, no fundo, são uma outra forma de garantir que a reconstrução alemã, que a reindustrialização alemã, não vai levar ao rearmamento alemão, pelo menos de uma forma perigosa. Mas, pondo isso um pouco de lado, no fundo, é esta ideia e, obviamente, isto é feito num contexto de uma Europa dividida. No fundo, o grande tema da Europa, neste pós -guerra, é, de facto, a divisão, a partição, começando pela Alemanha, não é? Não só a Alemanha está partida, como, literalmente, a capital alemã histórica, Berlim, é uma cidade dividida, não é? E, portanto, isto significa que metade, basicamente, da Europa, Europa de Leste e Europa Central, está ocupada pelo Exército Vermelho, a outra metade ocidental está ocupada pelo Exército dos Aliados Ocidentais e, portanto, a questão que se coloca, o Stalin, aliás, diz isso diretamente a um dos líderes históricos da Jugoslávia, que, na altura, ainda não se tinha chateado com o Stalin, o Džilas, e diz -lhe, bem, isto não há aqui alternativa, nós temos de reconstruir a Europa e cada um vai fazer isso de acordo com o seu modelo, ou seja, obviamente, a União Soviética, sobretudo Stalin, não vai abdicar do predomínio de poder que adquiriu na Europa Central e de Leste, não vai retirar sem mais as suas tropas e, na medida em que vai ajudar a alguma reconstrução, porque isso é uma necessidade, não se pode deixar, simplesmente, digamos, os países em ruínas, até por uma questão não só de generosidade, mas de interesse próprio, na medida em que essa reconstrução tiver lugar, ela vai ser feita nas zonas de ocupação soviética, de acordo com o modelo soviético, comunista, se quisermos, e vai ser feita na Europa Ocidental de acordo com o modelo, vamos dizer, liberal capitalista. Mas, portanto, essa era, no fundo, a grande questão, que é a reconstrução, como lidar com a questão alemã, como lidar com esta questão de dois blocos, não é? Portanto, a Europa, naquela frase famosa do Churchill de 1946, uma cortina de ferro desceu sobre a Europa, não é? Se Tétin, ou seja, do mar Báltico até Trieste, até o Adriático, é uma Europa dividida em dois, como é que se lida com isso, também, sem se cair num novo conflito, numa nova guerra? Portanto, como é que se evita uma nova guerra? Mais uma vez, é fácil, se calhar, pôr -nos no contexto da época, perceber a urgência disso, ou se calhar isso não é tão evidente, mas, de facto, o projeto de reconstrução ou de construção das instituições europeias é, desde o início, embora tenha uma forte dimensão económica, ou acabe por ter uma dimensão económica, porque outras dimensões falham, é um projeto de paz, realmente. Ou seja, quando houve agora, por exemplo, esta controvérsia, acho que em 2012, não é? Quando a União Europeia recebeu o Prémio Nobel da Paz, que, no fundo, a ideia de que isto é uma tese dos federalistas, sem integração europeia não há paz na Europa, quer dizer, em 1945, 46, 47, 48, 49 até 50, quando a questão é colocada, quando se põe essa possibilidade de uma rotura com a tradição histórica europeia, de Estados Nacionais muito ociosos, ou de Estados, quisermos, e depois de Estados Nacionais muito ociosos da sua independência, a verdade é que isso é posto exatamente nesses termos, que é o nacionalismo, os Estados Nacionais levaram -nos a esta hecatombe, não é? À quase destruição da Europa. E, só para terminar, quando hoje nós falamos de crises na Europa, quer dizer, é verdade que isso é legítimo, e que muitas vezes sentimos essas crises, enfim, a crise do Euro, o impacto da Covid e tudo isso, agora, em 1945, os europeus, os intelectuais europeus, os políticos europeus, estavam a falar, literalmente, será que a Europa vai voltar a existir? Falava -se do fim da ex -Europa, do fim da Europa, porque lá estava tudo arrassado, não é? Mas o que é que significava esse fim da Europa? Era a ideia que, no fundo, a Europa não se conseguiria reconstruir, que tinha perdido muita da sua legitimidade, do seu prestígio, esta ideia da grande, o centro da civilização, não é? Se a civilização leva a isto, não é? Se leva a uma hecatombe que causa dezenas de milhões de mortos, então, que credulidade é que tem essa civilização para dar aqui lições ao resto do mundo, não é? É engraçado que a pessoa não...
José Maria Pimentel
É fácil nós afastarmos desse estado de espírito, não é? Sobretudo nós portugueses, esse ponto é importante, não é? Porque nós, eu imagino que para um francês ou para um alemão, essas histórias tenham vindo até dos avós, enquanto nós não as recebemos da mesma forma, não
Bruno Cardoso Reis
é? Sim, ou seja, realmente esta ligação ao projeto europeu, de facto, não se pode divorciar dessa experiência da guerra, quer dizer, eu lembro, por exemplo, quando estava a estar em Inglaterra, fui ouvir uma conferência do economista -chefe do Banco Central Alemão e ele começou a conferência, ou a certa altura, uma pergunta assim mais provocadora, britânica, sobre isto da construção europeia e tal, todas estas chatices, e ele disse, para mim é muito simples, o meu compromisso tem a ver com eu não conheci nem os meus avós, nem o meu pai. Os meus avós morreram na Primeira Guerra Mundial e o meu pai morreu na Segunda Guerra Mundial. Portanto, eu sou um filho quase, aposto -me, ele era muito jovem, não sei se tinha um ano ou dois anos ou o que era e, portanto, realmente é uma história vivida durante muito tempo. Quer dizer, ainda agora morreu o Papa Bento XVI para o qual a Segunda Guerra Mundial é uma experiência vivida, não é? Ele foi recrutado à força para aquelas milícias que supostamente iriam ajudar a defender a Alemanha em 1945. Portanto, é uma experiência vivida ou é a experiência dos pais e dos avós, não é? E, portanto, ainda é uma experiência muito próxima, não é? Sim, sim, sim. E essa distinção entre o lado da Alemanha e o lado
José Maria Pimentel
da França, eu acho que é interessante tentar perceber, porque para a França havia claramente a questão alemã, não é? E a questão alemã até vinha mais de trás, não é? Porque nós pensamos na Primeira e na Segunda Guerra Mundial, mas eles já tinham sido invadidos pela Prússia antes, não é?
Bruno Cardoso Reis
Sim, no caso da França, nós estamos a falar, basicamente, com intervalos de 20, 30 anos, temos três grandes invasões alemãs, não é? Portanto, 1870 -71, portanto, a Guerra da Unificação Alemã é uma guerra contra a França, não é? E em que a França sofre uma derrota, digamos, humilhante, histórica, em que perde o território, perde a Alsácia -Lorena, não é? Onde estará agora Estrasburgo, é depois a Primeira Guerra Mundial e depois a Segunda Guerra Mundial. Mas, realmente, sim. Portanto, vamos lá ver. A Alemanha não tem aqui um papel muito ativo, não é? Temos também de perceber isso. A Alemanha está a reconstruir -se. A Alemanha não é um Estado normal até 1994. Sim, sim. Portanto, até à queda do muro, ou seja, é um país ainda em que as potências ocupantes, em que os aliados vencedores na Segunda Guerra Mundial, continuam a ter alguns poderes. A Alemanha só se reconstitui como Estado, ou melhor, só se constitui como dois Estados, não é? A Alemanha Federal, a Alemanha Ocidental, vamos dizer assim, sob controle dos aliados ocidentais, e depois a chamada República Democrática Alemã, que obviamente não era democrática, como geralmente acontece com os países que têm esse nome. Portanto, o regime comunista alemão, na esfera soviética, isso só acontece em 1949 -1950, e, de facto, com muitas limitações. Portanto, no fundo, quem tem aqui o grande protagonismo é realmente a França, enfim, com algum papel para a Itália, com algum papel para os países do Benelux, que também convém não desvalorizar. Nós que somos um país pequeno -médio, às vezes também só nos focamos nos grandes, mas a Bélgica, a Holanda, mesmo o Luxemburgo, tem aqui algum protagonismo, mas sobretudo a Bélgica e a Holanda desenvolvem várias ideias importantes aqui, a própria Itália. E, no fundo, iniciam um processo de integração aos próprios, não é? Exatamente. Dão -lhes o primeiro passo. Porque o Benelux é logo do pós -guerra, não é? É ainda durante a Segunda Guerra. E, portanto, eles são e os grandes promotores sempre dessa ideia, não é? De instituições supranacionais. Não é por acaso que, digamos, a capital das instituições europeias vai ser também Bruxelas. Sim. Mas o Paul -Henri Sepak, o grande estadista da Bélgica do pós -guerra, socialista, por exemplo, vai desenhar, no fundo, vai ser encarregado de coordenar o projeto que vai desembocar depois no Tratado de Roma, entre 55 e 57. Mas, de facto, o arranque do processo, ou seja, nomeadamente a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, 1950, realmente é sobretudo uma iniciativa francesa. É o famoso Plano Schumann, não é? A Declaração Schumann. Portanto, maio de 1950. Depois, em 51, vai resultar nessa primeira comunidade europeia, se quisermos. E, realmente, a grande questão para a França, no fundo, são três questões. É, por um lado, como é que vai garantir que a reconstrução alemã não é uma ameaça, novamente. Essa é a grande questão. Exato. Como é que, no fundo, não vai voltar a ser invadida por uma Alemanha reconstruída. Portanto, no fundo, como é que se consegue que essa reconstrução, essa reindustrialização estejam mais possíveis sob algum controle internacional. E a França, durante algum tempo, acha que pode ser a França a fazer isso, ou podem ser as potências aliadas ocupantes a fazer isso. Mas, rapidamente, percebe que quer os Estados Unidos, quer a Grã -Bretanha, não querem fazer esse papel, digamos, de polícias da Alemanha.
José Maria Pimentel
E, pelo contrário, desculpe, eles até começaram a querer que a Alemanha se desenvolvesse.
Bruno Cardoso Reis
Sobretudo os Estados Unidos, que passam a ter como grande prioridade na sua agenda, a partir de 1946 -1947, a questão da Guerra Fria. Exatamente. Querem que a Alemanha se reconstrua aceleradamente e, inclusive, se comece a rearmar também. Exato. E, portanto, a França percebe que tem esse problema e, portanto, vê nestes projetos que começam a emergir, sobretudo lá está do Benelux, vê uma boa ideia que a França pode liderar. Portanto, a segunda questão é a liderança francesa, ou seja, como reafirmar o estatuto da França como grande potência, como uma potência liderante e, portanto, sem abdicar do seu império colonial, porque isso é algo que a França e a Grã -Bretanha não põem a hipótese de fazer em 1945, pelo contrário, vêem no império, ou pelo menos em partes do império, no caso da Grã -Bretanha, a questão da Índia é um pouco diferente e da Ásia é um pouco diferente, mas vêem, sobretudo no império africano, algo muito importante também para o esforço de reconstrução e desenvolvimento, mas sem abdicar desse papel, a França acha que pode realmente desempenhar esse papel de liderança na Europa, liderando, de facto, este processo. E, depois, a última questão é a questão da reconstrução económica, não é? Aí, no fundo, nós temos um outro grande precedente, que hoje em dia, também por razões que se percebem, geralmente não é muito referido, mas, na verdade, a primeira organização de cooperação económica europeia importante não é a Comunidade do Carvão e do Aço, é aquilo que nós hoje chamamos da OCDE, ou seja, é a antecessora da OCDE, a Organização de Cooperação Económica Europeia, ou seja, é a organização europeia que vai gerir o dinheiro do Plano Marshall, aquele grande plano de ajuda à reconstrução europeia pelos Estados Unidos, que avançem no 1947 -48, a grande questão que os Estados Unidos colocam é nós vamos dar estes bilhões de dólares, estes milhares de milhões de dólares, vocês têm de se organizar, têm de ser os europeus em conjunto, de forma cooperante, administrar este dinheiro. No fundo, o que isto quer dizer é uma outra coisa, que é uma mensagem sistematicamente passada pela administração Truman, pelo presidente americano, é se vocês querem apoio norte -americano, se querem, inclusive, uma presença militar norte -americana que vos ajude a dissuadir esta potencial ameaça do Exército Vermelho, de Stalin, da União Soviética que, de facto, reforçou tanto o seu poder com a vitória na Segunda Guerra Mundial, vocês têm de parar com a tradição de estarem constantemente em conflito, têm de acabar com os conflitos indistintos entre europeus. E, portanto, no fundo, é essa a mensagem que, com o incentivo do Plano Marshall, eles passam. Nós apoiamos, mas vocês têm de se entender, têm de cooperar. Mas depois nunca funcionou muito bem, não é? Quer dizer, funcionou naquele contexto...
José Maria Pimentel
Ou pronto, lá está, nunca extravasou esse mandato restrito. Qual é a grande questão aí?
Bruno Cardoso Reis
É que, de facto, basicamente reúne todos os estados europeus, inclusive Portugal. Durante algum tempo havia um pouco esta lenda em Portugal, que Portugal não tinha feito parte do Plano Marshall. Realmente não a der logo. O Salazar tinha muitas reservas, vamos dizer assim, em relação a este peso tão grande dos Estados Unidos, até sobre o modelo económico, digamos, de capitalismo desenfreado e liberal, também politicamente, dos Estados Unidos. E, portanto, inicialmente Portugal tinha tido problemas económicos sérios durante a guerra, ao que nós hoje percebemos melhor. Ou seja, questões, por exemplo, como a inflação e falta de certos produtos, o que gerou uma certa crise social, mas beneficiou bastante em termos de algumas exportações, a questão do famoso Wolfram, por exemplo. E, portanto, naqueles primeiros anos, logo a seguir do primeiro pós -guerra, logo em 45, 46, parece economicamente estar relativamente bem. Depois percebe -se que vai ter problemas graves, nomeadamente porque tem sobretudo reservas em libras e a Grã -Bretanha sai muito mais enfraquecida da 2ª Guerra Mundial do que parecia. Exato, exato. E, portanto, acaba por ter também de aderir. E, portanto, isso significa que, de facto, a ideia inicial de vários destes países, nomeadamente os países do Benelux, é a ideia de vamos utilizar esta organização para federalizar economicamente a Europa, vamos dizer assim. Mas isso não é consensual de todo. Há muitos países que não querem, Portugal é um bom exemplo, mas, sobretudo, o Reino Unido não vai querer.
José Maria Pimentel
E, portanto, no fundo havia, foi tomar a iniciativa de outra forma. Exato, foi criar estruturas paralelas.
Bruno Cardoso Reis
Obviamente a OECD mantém -se ainda hoje como uma organização tecnicamente muito interessante. Portanto, torna -se uma organização tecnocrática de consultoria em desenvolvimento, vamos dizer assim. E, de facto, aí mantém -se muito importante, mas, de facto, não foi o Fórum para a Reconstrução Económica Europeia e, inclusive, deixou de ser exclusivamente europeu. Hoje em dia é uma organização, por exemplo, põe -se agora a questão de saber se o Brasil vai aderir ou não à OECD, candidatou -se. Não sabia. O Chile, por exemplo, é membro. O Japão, obviamente, é membro, etc.
José Maria Pimentel
Pois, o Chile acho que é o único membro da América Latina. Da América Latina, sim.
Bruno Cardoso Reis
Ou seja, é, no fundo, o clube das economias mais envolvidas e que, no fundo, utilizam a OECD como organismo tecnocrático de consumo económico.
José Maria Pimentel
Mas é engraçado porque, olhando para a coisa de fora, parece que a França tomou a iniciativa porque estava na posição para tomar a iniciativa e a Alemanha não tinha outra solução senão aceitar. Mas, depois, é interessante porque se nós formos olhar para os documentos franceses, ou seja, no fundo, para aquilo que estava a ser discutido em França, a realidade era um bocadinho diferente. Porque eles estavam muito receosos, não só em relação à questão alemã, mas em relação a uma perda de protagonismo. Eles sentiam que podiam estar a perder o comboio, não é? Porque, primeiro, o Reino Unido, em certo sentido, estava em melhor posição do que a França porque tinha vencido a guerra, não é? Portanto, se o Reino Unido tivesse querido tomar a iniciativa, poderia tê -lo feito. E depois havia a Alemanha, claro que continuava a estar ainda muito atrofiada, não é? Mas a Alemanha, RFA, é criada em 49, se eu não me engano. Exatamente. E começa a ganhar uma autonomia crescente, lá está, no contexto da Guerra Fria, porque o Reino Unido e, sobretudo, os Estados Unidos estavam muito interessados em que crescesse economicamente e se voltasse a armar num contexto de defesa. Claro que isto, se calhar, era muito exagerado, como acontece sempre nestas coisas. Mas há documentos que mostram que, do lado francês, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, sobretudo, havia um receio crescente de que a Alemanha lhes passasse à frente. O que parece um bocadinho ridículo, porque claro que a Alemanha continuava a ter ainda um caminho grande a cavalgar para ser autónoma, mas havia, de facto, este receio deles, que é que a Alemanha passasse a ser o país dos Estados Unidos e do Reino Unido na Europa, sobretudo dos Estados Unidos, e que a França perdesse esse protagonismo, que é interessante.
Bruno Cardoso Reis
O Robert Schuman é realmente o Ministério dos Negócios Estrangeiros nessa altura, nesses anos, de 48 a 52. Na verdade, a declaração Schuman, nós sabemos, portanto, é apresentada como uma iniciativa francesa, mas foi, obviamente, os parceiros potenciais foram consultados e tinham dado o seu acordo, não só os países do Benelux, obviamente, os Estados Unidos, que acharam muito bem todos esses processos de integração. Depois, às vezes, noutras fases, sobretudo, quando se começa a criar um mercado único. Por exemplo, o Kennedy, sem nunca pôr em questão o seu apoio, manifesta preocupação de que isso possa levar, digamos, a uma fortaleza Europa em termos económicos, que exclua os Estados Unidos e, portanto, é isso que vai... E o de Gol, por exemplo, era muito vulgar. E, de facto, pelo menos certos políticos franceses alimentavam muito essa questão. De facto, o Schuman não tinha esse perfil, ou seja, não era, digamos, um nacionalista francês no sentido mais ameaçador. Quer dizer, o Schuman é, aliás, um bom exemplo de vários destes pais fundadores da Europa. Outro exemplo é o Alcide Gasperi, por exemplo, o primeiro -ministro italiano e mesmo um pouco o próprio Adenauer, mas, no fundo, são homens das fronteiras, não é? O Robert Schuman, por exemplo, literalmente não nasceu em França. Nasceu no Luxemburgo de pai alsaciano, ou seja, esta região da Alsácia Lorena que, entre 1871 e 1945, mudou duas vezes de país. Portanto, ele, por exemplo, fez todos os seus estudos na Alemanha. A própria Universidade de Estrasburgo era uma universidade de língua alemã. É a universidade onde o Goethe vai estudar. Era a língua -mãe dele, não é, no fundo? Eu penso que a língua -mãe dele até era o luxemburguês, porque ele acaba por ir viver para o Luxemburgo, que é mesmo ao lado da Alsácia, portanto ele é da zona do norte da Alsácia, mas, portanto, ele tem passaporte alemão. Na altura da Primeira Guerra Mundial, por exemplo, ele acaba por não combater a França, mas simplesmente porque foi declarado inapto por razões médicas, não é? Portanto, ele era cidadão do Império Alemão em 1914. O Alcide Gasperi, por exemplo, nasce na zona de Trento, que fazia parte da Áustria, do Império Austro -Húngaro. Portanto, o Alcide Gasperi começa a sua vida política como deputado no Parlamento em Viena, antes da Primeira Guerra Mundial, não é? Extraordinário. Portanto, e de facto, aqui temos duas redes, no fundo, que são fundamentais para a reconstrução da Europa e para o projeto de construção europeia, que é a rede dos partidos católicos, dos partidos da democracia cristã. Schuman é um exemplo, de Gasperi é outro exemplo. Eram todos, na verdade, não era? O Adenauer é outro exemplo, mas, por exemplo, nós hoje sabemos que há redes, encontros informais, etc. No fundo, o início de uma espécie de internacional democrata cristã, que tem como agenda, a partir de 1945, de facto, reconstruir a Europa e reconstruir os laços entre os países europeus e garantir uma paz, que lá está um ideal bastante cristão, diga -se, dentro de uma certa lógica de um certo internacionalismo católico, ou cristão, mas muito católico, na verdade. A cristandade, no fundo, é a herança histórica a partir da qual surge a própria Europa e, portanto, no fundo, é esta ideia que são políticos que, estando ligados a um estado de nação, têm outros princípios e outras redes, não é? Identificam -se com uma certa Europa cristã, não é? Não põem a nação acima de tudo. Isso no contexto da reconstrução da direita no pós -1945 é muito importante. Porque, obviamente, a direita ultranacionalista tinha -se desacreditado completamente. Enfim, o nazismo na Alemanha, o fascismo na Itália e, depois, muitos movimentos que acabam por colaborar com esses regimes durante o período da Segunda Guerra Mundial, até por proximidade ideológica. E do lado da esquerda, de facto, a esquerda socialista, por exemplo, o Spinelli, italiano, não é? Ou seja, no fundo, é esta ideia também de uma internacional socialista, ou seja, de uma esquerda socialista, mas moderada, de uma certa internacional socialista, mas que não é comunista e que até é bastante anticomunista, não é? E que vai reconstruir a esquerda europeia na Europa Ocidental, não é? E que, de facto, converge em muitos aspectos. Um deles é esta questão que é uma economia de mercado, mas social, o papel do Estado como algo importante e depois esta ideia da necessidade de reconstruí -lo lá, dentro dos países europeus e de lhe dar uma densidade institucional, formal, que vá para além daquilo que é o tradicional e que também ajude, lá está, à reconstrução económica, porque isso é uma questão fundamental. Mas, de facto, o Schuman é alguém que está em diálogo, por exemplo, com o Adenauer, o Adenauer que vai ser o líder da Alemanha reconstruída, um democrata cristão, informalmente diz que está de acordo com a declaração do Schuman. Para a França, lá está, isso significa que consegue recuperar um papel de liderança que, naturalmente, caberia à Grã -Bretanha. O Churchill é a grande referência nestes espaços iniciais. O Churchill valida esta ideia dos Estados Unidos da Europa. Aquilo que, rapidamente, os anglófilos no continente, e são muitos, pessoas como o Spock, percebem é, mas a Grã -Bretanha está -nos a dizer para avançar, mas eles próprios não vão fazer parte. Porque, sobretudo no caso do Churchill, bem, ele estava na oposição na altura, mas a Grã -Bretanha é um dos vencedores da Segunda Guerra Mundial, o Churchill esteve em Alta, esteve em Potsdam, portanto é um dos três grandes. Portanto, a Grã -Bretanha não tem ainda plenamente a noção do desgaste que sofreu com a Segunda Guerra Mundial em termos do seu poder. Isso é incrível porque as pessoas não têm a noção. E, portanto, continua a pensar -se como uma grande potência ao mesmo nível que os Estados Unidos ou que a União Soviética e, portanto, apadrinha este processo mas nunca põe a hipótese de desenvolver diretamente. E, à medida que ele se começa a aparecer como um projeto com alguns lives de federalismo, de criar instituições supranacionais, que é o caso, aliás, logo começando com a Unidade Europeia do Carvão e do Aço, os britânicos acham, começam por achar que vai falhar. Há que perceber isso. Nunca tinha sido bem sucedido na Europa esse tipo de esforços, não é? Claro, e em retrospectiva parece uma coisa óbvia, mas na altura... Isto está destinado a falhar. Na medida em que avance, não é para nós, porque nós não precisamos, estamos acima disto e temos muitas dúvidas que funcionam. Mesmo que avance para a fase de implementação eles vão acabar por se jatear e, portanto, não vai dar. Mas, portanto, isto está aqui uma oportunidade, de facto, à França de assumir um certo papel de liderança que a Alemanha não quer ter, não é? A Alemanha percebe que tem de pagar este preço que é... não pode aparecer como líder. A Alemanha ativamente encoraja a França a assumir esse papel de liderança e lá está. Do ponto de vista da perspetiva alemã isto tem duas grandes vantagens, que é mas os Estados estão a perder poder. Vão -se ter poder estas entidades supranacionais, não é? A Unidade Europeia do Carvão e do Aço tem uma alta autoridade que vai ser liderada pelo Jamonet, que é o braço direito do Schuman e, portanto, é o pensador um pouco por trás de tudo isto, que é ainda mais poderosa do que a Comissão Europeia atual e mesmo em décadas anteriores. Por isso é que os britânicos não gostavam, não é? Exatamente, portanto, para os britânicos era completamente anado. Mas, do ponto de vista alemão a alternativa era ou isto ou, por exemplo, a França continuar a controlar as minas de carvão do Sarre. Portanto, a Alemanha não tinha poderes soberanos, não é? Tinha uma soberania altamente condicionada. Portanto, tudo o que fosse participar nessa soberania era uma certa forma de recuperar até soberania. Portanto, a perspetiva era exatamente a oposta do que seria em circunstancias normais e, sobretudo, era, no fundo, uma demonstração da parte alemã de boa fé, uma demonstração de que tinha aprendido a lição. Ainda hoje se fala muito esta questão, que é, no fundo, a Alemanha prefere sempre europeizar as suas iniciativas, não é? Que elas apareçam como europeias e não simplesmente como alemãs, não é? E, no fundo, era esta ideia quanto mais europeia for a Alemanha, menos ameaçadora vai aparecer e, portanto, mais condições haverá para que o processo de reconstrução, de rearmamento, de recuperação da soberania não seja vista como ameaçadora pelos países vizinhos.
José Maria Pimentel
Sim. E aqui depois nós acabamos sempre por entrar um bocado naquela questão ultracimplista, mas é quase impossível fugir nas relações internacionais, que é tentar perceber até que ponto os motivos damos os lados eram mais cínicos, digamos assim, mais realistas para usar o termo técnico, ou mais idealistas. Ou seja, o que é que pesava mais nas cabeças, sobretudo, do Schumann e do Adenauer? Nós podemos ser cínicos ao ponto de dizer que as preocupações deles eram simplesmente securitárias, ou de segurança políticas e económicas ou esse lado idealista do projeto europeu tinha, de facto, um peso também. Ou seja, ou havia essa vontade de, independentemente dessas questões materiais e de segurança, de criar este projeto europeu.
Bruno Cardoso Reis
Eu acho que é uma combinação, mas eu não desvalorizo. Eu acho que às vezes os céticos ou os realistas são pouco realistas. As ideias têm um papel... As ideias têm um papel absolutamente crucial na história. A Segunda Guerra Mundial mostra que as ideias não têm importância. O que queremos é ser práticos. Queremos exemplo do poder, neste caso destrutivo, das ideias maiores do que, por exemplo, o papel da ideologia nazi. Era evidente que muitas daquelas opções do Hitler iam correr mal. Os generais deles estão -lhe a dizer, literalmente, não invada a União Soviética. A União Soviética é um aliado da Alemanha nazi. Está a fornecer -lhe todo o tipo de matérias -primas que eles precisam, petróleo, minerais, etc. Por obsessão ideológica para o Hitler é impensável não fazer uma guerra contra o inimigo bolchevique, judeu ou bolchevique, como ele dizia. Portanto, alguém como o Robert Schumann, que é um católico devoto, é alguém que dá muita importância às crenças. A mesma coisa o Adenauer, aliás. O Robert Schumann, por exemplo, em discursos anteriores, refere expressamente os grandes precursores a esta ideia de uma federalização da Europa. O A. B. Saint -Pierre, no século XVIII, a primeira ideia de uma federação europeia. Ele cita, ou canta... Portanto, são pessoas muito cultas, são pessoas que leem muito e são pessoas que valorizam o papel das ideias, das crenças, das convicções. Portanto, eu não desvalorizaria isso. Agora, obviamente, são políticos, não é? Portanto, eu acho, sobretudo, que nesta dicotomia extrema, que ou é pragmatismo puro ou é puramente ideal, é que não faz muito sentido, não é? Aliás, os políticos bem sucedidos geralmente combinam as duas coisas. Combinam algumas convicções, alguma visão estratégica que resulta até daí, não é? Definir prioridades mais a prazo e depois alguma capacidade pragmática de gerir o dia -a -dia, de gerir alianças, de gerir coligações, seja internamente, seja externamente. Às vezes isso falha. Por exemplo, no caso da Constituição Europeia, é uma iniciativa francesa, é o chamado Plano Pleven, que surge também em 1950. Ia perguntar em relação a isso, precisamente. Portanto, há a ideia de que a Alemanha está reconstruída como Estado. Era o plano Schumann para a defesa, não foi? Exatamente, era o plano Schumann para a defesa. Portanto, é a ideia que... Mas vai haver um novo exército alemão, que vai surgir só em 1955, mas isso é um problema. Então, mas como é que nós resistimos à pressão, nomeadamente dos Estados Unidos, que diz que é impensável nós continuarmos a ter centenas de milhares de tropas americanas na Europa. E, sobretudo, a linha da frente de uma possível terceira guerra seria a Alemanha dividida. Seria lá está esta Alemanha federal contra a Alemanha democrática, contra a Alemanha comunista. E, portanto, os alemães têm de se rearmar. Nós temos de ter aqui forças alemãs que nos ajudem nesta tarefa. E, portanto, o Plano Pleven é, no fundo, criar a Comunidade de Defesa Europeia e a Comunidade Política Europeia. Depois, isso são até mais os italianos que se envolvem assim. Mas ela é feita em paralelo. A ideia, no fundo, é criar logo aquilo que se veio criar muitíssimo mais tarde. Com o Tratado de Maastricht e depois com o Tratado de Lisboa, sobretudo. No fundo, é esta ideia de uma comunidade que abrange todas as áreas da política. Política económica, mas também defesa, de segurança externa, etc. E criar, lá está, a ideia de um exército europeu. Não como uma metáfora, como mais vezes agora aparece, mas realmente como forças integradas, com um comando integrado. Aí, o que também acontece muitas vezes é que, de facto, os políticos franceses se deixam entusiasmados pelas ideias e depois esquecem -se da gestão pragmática interna. E, portanto, a grande ironia é que tudo isso avança. A Alemanha está de acordo. Os outros cinco países fundadores, os países do Benelux, mais a Itália, estão de acordo. Simplesmente, a França rejeita o próprio Tratado, que a França foi a principal promotora em 1954. O regime francês, a chamada Quarta República, entre 1946 e 1958, é um regime parlamentar bastante instável. Com muitos partidos, com muita dificuldade em formar coligações e, portanto, há eleições, há mudança no Parlamento e, portanto, digamos, os federalistas, os defensores desta ideia perdem apoio e, nomeadamente, temos de perceber que quer o De Gaulle, no fundo a direita mais nacional francesa, quer os comunistas eram hostis ao projeto e, portanto, vai acabar por ser derrotada em 1954 e isso vai levar no fundo a esta ideia de uma divisão de tarefas. A NATO, a Aliança Atlântica, também criada em 1949, em que, obviamente, estão os Estados Unidos e o Canadá à par dos países europeus ocidentais, vai ser responsável pela questão da segurança, da defesa militar e as comunidades europeias vão ganhar nova dinâmica, portanto, é um exemplo precoce desta ideia de os avanços no processo de integração europeu, também resultam de crises, crises como oportunidades. Portanto, em 1954 há esta rejeição, em 1955 o Paulin Rispac, este socialista belga, é encarregue de pensar como é que se pode retomar o processo, dar nova dinâmica ao processo e o resultado disso vai ser em 1957 a assinatura do Tratado de Roma, portanto, a criação das comunidades europeias. No fundo, aprofundar ou expandir esta ideia da seca ao conjunto das dimensões económicas relevantes e avançar para a criação do mercado comum. É um exemplo precoce disso, mas, realmente, há esta divisão de tarefas que só vai ser retomada nos anos 90, na sequência daquele trauma das guerras da Jugoslávia, da Jugoslávia, sobretudo, da Bosnia e do Kosovo, também, e aí com a iniciativa britânica e francesa, sobretudo, vai -se iniciar o processo de constituição de uma capacidade militar mínima e a ideia é que, pelo menos, a União Europeia tem de ter aí algum papel, mas, como sabemos, até hoje, e ficou mais uma vez evidente com a invasão russa da Ucrânia, de facto, a organização de defesa coletiva na Europa é a Aliança Atlântica, é a NATO, e, no contexto atual, é evidente, nem se põe a questão de ser de outra maneira, seria terrível, não se improvisam alianças e, muito menos, a NATO não é só uma aliança, é, de facto, uma comunidade política e é um comando militar integrado, portanto, é uma organização militar integrada e, portanto, isso não se improvisa no meio de uma guerra, não é? Com uma invasão às portas e, portanto, a Europa está aí ainda muito longe de ter essas capacidades, ter uma capacidade militar mínima de treino e, com esta nova bússola estratégica, que foi aprovada agora em março de 2022, vai procurar ter uma capacidade mínima de comando militar de, realmente, operações militares de gestão de crises, não é? E se conseguir fazer isso até 2025, que é o prazo que está estabelecido, já será um passo importante em frente, mas, de facto, lá está, é um bom exemplo aqui da importância da história, de facto, durante uma série de décadas, a lição aprendida era isto da interação europeia não funciona na dimensão militar, na
José Maria Pimentel
dimensão da defesa. E é engraçado porque a NATO já existia, ou seja, houve esse projeto de criar uma comunidade na área da defesa, que depois acabou por ser deixado de parte para a NATO, ou seja, acabou por quase, informalmente, ser quase cooptado pela NATO, mas a NATO já existia antes desse projeto.
Bruno Cardoso Reis
A NATO é, sobretudo, é uma iniciativa americana, mas, na verdade, é muito resultado da pressão europeia. Mais uma vez os americanos dizem, então, mostrem -nos o que vocês conseguem organizar. E há uma organização militar europeia. Europeia francesa ou europeia britânica? Europeia, envolvendo, neste caso, os britânicos, que é o Tratado de Bruxelas, portanto, a Organização da Europa Ocidental, que é criada em 48, mas logo em 49, no fundo, passa a ser o braço europeu da NATO. Portanto, no fundo, é o preço, é a demonstração que os americanos tinham pedido em 49, o Tratado de Washington criar a NATO e, de facto, do ponto de vista europeu, ainda hoje nós temos essa discussão, há, de facto, uma enorme assimetria de poder militar entre a Europa e os Estados Unidos. Os Estados Unidos continuam a ser responsáveis, basicamente, por 70 % de investimento em defesa no conjunto da NATO. Os outros 29 % representam os outros 30%. Mas isso, do ponto de vista do funcionamento de uma aliança militar, é uma enorme vantagem. Porque é o líder natural. É verdade que todos os países têm um voto e isso não é só um formalismo. Houve alturas em que Portugal foi um membro altamente problemático da NATO e vetava coisas ou criava problemas para defender os seus interesses. Nesse caso, a ideia das guerras coloniais e tudo isso. Hoje em dia, a Turquia é um país altamente problemático e realmente os Estados Unidos, por exemplo, ninguém põe em questão que querem que a Finlândia e a Suécia façam parte. A Turquia está a dificultar o processo e a bloquear o processo. Mas a verdade é que, numa aliança militar em que é fundamental haver capacidade de decisão rápida, haver capacidade de resposta rápida, as respostas militares não se podem adiar, não podem ficar para daqui a uns anos. Não podemos criar uma comissão para pensar no assunto e depois vai -se resolver a invasão da Ucrânia. O facto de haver um país que tem essa capacidade e que, portanto, pode dizer, devemos avançar e se avançarmos, eu assumo o essencial desse esforço, é uma enorme vantagem. Esse é um problema, de facto, na Europa e era um problema que se punha na altura. Uma das razões da rejeição em 54 tem a ver um pouco também com isso, que é, isto não vai pôr em questão a NATO. Se calhar não é assim tão boa ideia, não é? É verdade que a rejeição francesa tem sobretudo a ver com dinâmicas internas e, no fundo, o facto do Gol e o Partido Comunista, por razões diferentes, não querem deixar de ter um exército francês, francês, não é? Que não sejam parte de um exército europeu. Mas essa questão coloca -se também desde essa altura, não é? Porquê estar aqui a criar uma estrutura que pode dar uma desculpa aos Estados Unidos para desinvestir da Europa, não é? O objectivo da NATO, que mais ou menos poderá dizer que se mantém, é brilhantemente sintetizado pelo seu primeiro secretário -geral, que é um general britânico, um dos braços direitos do Churchill, o Lord Ismay, mas que é o primeiro secretário -geral e que tem esta frase que é a NATO serve para três coisas que é keep the Russians out keep the Americans in keep the Germans down, não é? Portanto... Essa frase é ótima, sim. Portanto é manter os russos fora, voltou a ser uma questão importante novamente e obviamente foi durante toda a Guerra Fria, Rússia Soviética, União Soviética manter os americanos na Europa. Ou seja, nós mais uma vez não temos esta noção achamos o Trump uma coisa esquisitíssima e é depois de muitas e muitas décadas é uma coisa esquisitíssima. Mas os Estados Unidos tinham chegado em 1945 com uma tradição de mais de um século de isolacionismo. Exatamente. A grande lição que o pai fundador dos Estados Unidos, o pai dos pais fundadores o George Washington tinha deixado quando sai da presidência no seu discurso de despedida, o farewell address é não se metam em conflitos no exterior não entrem em alianças com o exterior nós viemos para o novo mundo para deixar de combater nas guerras europeias não é para nos envolvermos nas guerras europeias e portanto há esta ideia de que é preciso garantir que os Estados Unidos continuam a estar empenhados na defesa da Europa Ocidental, a dissuasão da União Soviética não seria credível sem isso e depois a questão da Alemanha que já discutimos ou seja, no fundo garantir que a Alemanha reconstruída e rearmada não seria novamente uma ameaça para os seus vizinhos como tinha acontecido com o 2º Império Alemão, com o Kaiser com o Guilherme II na 1ª Guerra Mundial e com a Alemanha Nazi, com o Hitler na 2ª Guerra.
José Maria Pimentel
Mas e os Estados Unidos é um tema interessante porque esse ponto faz todo sentido, não é? Nós muitas vezes compreendemos mal os Estados Unidos já hoje em dia, quanto mais à distância do tempo, não é? Ou seja, se somarmos à distância geográfica e cultural à distância do tempo há coisas que nos podem parecer lógicas ou óbvias e que não seriam passável. É claro que a Guerra Frio mudou as coisas para os Estados Unidos ou seja, levou a que houvesse um interesse maior ainda em que houvesse uma Europa não só que fosse capaz de defender o Ocidente, digamos assim, mas também que fosse próspera economicamente, não é? Até para lá está o nível das ideias contra a ameaça comunista, digamos assim. Mas como é que os Estados Unidos olhavam para a Europa e como é que... quer dizer, que debates internos é que havia nos Estados Unidos? Que dúvidas é que havia cuja resolução se tivesse dado para o outro lado, por exemplo se tivesse sido ganho por outra parte, podia ter dado um resultado
Bruno Cardoso Reis
diferente. Não, isso é uma questão muito interessante, mas já agora sobre esta questão do papel das ideias na política recordo -me de uma altura em que eu estava na Grã -Bretanha falei com o Douglas Hurt que é um dos grandes ministros de negócios estrangeiros daquele período, enfim, dos governos conservadores e que me contou essa história que é enfim, acho que é uma piada ele não deu aquilo como um testemunho, mas que é num conselho europeu, a certa altura estava -se numa discussão e o ministro francês diz, bem, mas eu já percebi aqui pelo meu colega britânico que isto funciona na prática a minha questão é, mas isto funciona na teoria? Já tinha ouvido uma variação dessa história e cantou. Exato, portanto é esta ideia que por exemplo aos franceses a questão da teoria, da filosofia, enfim da visão é muito importante eventualmente a cultura anglo -saxónica é um pouco mais pragmática, embora o Brexit mostre que mesmo aí às vezes o pragmatismo tem grandes limites. Mas na questão dos Estados Unidos eu acho que há sobretudo aqui a questão do trauma da Segunda Guerra Mundial, que vai permitir uma mudança de cultura estratégica, obviamente isso acontece muitas vezes, não é? Portanto a cultura estratégica no fundo é esta ideia de que os países de facto não olham todos para o mundo da mesma maneira não têm os mesmos preconceitos e as mesmas preferências e isso muitas vezes é resultado de facto de uma determinada experiência histórica que de alguma forma se cristaliza, não é? E portanto no caso dos Estados Unidos a experiência histórica fundadora no fundo era esta ideia que é, nós somos um mundo novo a new birth for freedom, não é? Portanto, e a forma de consolidar isso é o máximo de distância em relação à Europa, ao velho mundo aos conflitos, às guerras mesmo aos regimes, enfim, a Europa tinha regimes muito mais conservadores, depois foi -se liberalizando mas, portanto, a ideia da distância é aí o grande marco. A Segunda Guerra Mundial, o que no fundo vai demonstrar e obviamente aí o papel de líderes é fundamental, digamos como empreendedores ideológicos se quisermos, como criadores de uma nova visão é fundamental, em particular esse gigante da política do século XX que é o Franklin Delano Roosevelt, não é? E que de facto, de forma extremamente hábil ele tem esta imagem que é um líder não é um seguidor, não é? Ou seja, ele percebia, por exemplo, que a América é extremamente isolacionista, não é? Mas vai levando os americanos gradualmente a envolverem -se mais na Segunda Guerra até que o ataque japonês a Pearl Harbor lhe permite o envolvimento pleno, vamos dizer assim e também aquele erro do Hitler de declarar a guerra aos Estados Unidos que lhe facilitou ainda mais as coisas. Lá está o papel das ideias outra vez. Exatamente, mas o Roosevelt tinha esta ideia que é o líder não é um seguidor os americanos já tinham sondagens, não é? A gala começa nos anos 30, eu não posso simplesmente seguir as sondagens. Por outro lado, um líder também tem que ter seguidores, não é? Portanto, se eu for tão à frente, for tão sozinho, que não tenho ninguém a seguir -me, não vai resultar bem. Aliás, o Roosevelt tinha sido ministro tinha sido membro da administração do presidente Wilson. Obviamente tinha corrido muito mal toda aquela ideia da sociedade das nações que os Estados Unidos promovem e depois o próprio Wilson não consegue fazer retificar pelo Senado americano, que aliás é um problema que se mantém até hoje, não é? Muitas vezes o presidente assina um tratado e é por isso que nós temos o Acordo de Paris e não o Tratado de Paris, não é? Sobre o clima. O Obama assina um tratado e depois o Senado republicano não vai aprovar esse tratado, não é? Ou o Kyoto, o Protocolo de Kyoto Exatamente. Mas, portanto, o que o Roosevelt vai explicar, o que o Truman vai explicar, o seu assessor como presidente, o que cada vez mais também senadores importantes, o senador Vandermeer, por exemplo, que é o líder republicano vão explicar é que vinha dessa tradição isolacionista que é nós não temos o luxo do isolamento. O mundo está muito mais interdependente. Agora há mais aéreos. Os alemães que são os primeiros a utilizar missas de cruzeiros, chamados V1, V2, não é? Portanto, há aviões, há missas, há armamento atómico. Portanto, nós não vamos estar seguros porque estamos rodeados de dois grandes oceanos. Portanto, o isolamento deixou de ser uma opção. Obviamente está. Depois outras razões estruturais o crescimento económico americano é tal ordem que cada vez mais os Estados Unidos transformam num protagonista económico fundamental na economia mundial o que quer dizer que tem interesses, tem uma presença também crescente em cada vez mais mercados. Querem ter para onde exportar, não é? É evidente que, enfim, é conhecido como o gesto mais altruísta da história. Mas, por exemplo, os políticos americanos são muito claros a explicar também a sua opinião pública que é nós saímos da Segunda Guerra Mundial como de longe a maior potência militar e económica do mundo. Os Estados Unidos em 1945 representam sozinhos metade da produção industrial mundial. Portanto, todos os países do mundo combinados produzem tanto como os Estados Unidos. Obviamente, uma das principais razões é porque os Estados Unidos é a única grande potência que não é diretamente atingida pela guerra, não é? Portanto, não há bombardeamentos aos Estados Unidos. Há o caso de Pearl Harbor, mas na altura o Hawaii tecnicamente nem fazia parte, não era um Estado, não era um território ultramarino dos Estados Unidos. Mas, portanto, os Estados Unidos o que explicam é, de facto, nós temos, por exemplo, de ajudar a Europa a reconstruir -se porque senão vamos produzir para quem? Só para nós. Nós temos de exportar. O nosso principal mercado de exportação, aquele que tem mais condições também para ter grande dinamismo é a Europa. E, portanto, temos de ajudar a reconstruir a Europa. Temos de ajudar a defender a Europa porque não deixámos a Europa ser dominada pela Alemanha nazi. Se deixarmos a Europa cair, por exemplo, sob o controle da União Soviética, passado pouco tempo vamos ter uma ameaça muito mais séria ao próprio território dos Estados Unidos. E, portanto, eles conseguem, de facto, fazer passar esta ideia, não é? Lá está no contexto do plano Marshall este senador Vandenberg, que era um republicano, mas colabora com o Presidente, dentro desta ideia da necessidade de uma frente nacional para um período de grandes ameaças, terá dito ao Truman, sequer da real, não é? Portanto, tem de assustar mesmo a sério os americanos, não é? Tem de explicar porque é que isto é tão importante. Mas, portanto, de facto, os Estados Unidos têm esta questão, que é um país enorme, com imensos recursos, que tem esta enorme digamos, esta benção geopolítica que é a única grande potência bio -oceânica, não é? Sim, tem a melhor geografia de uma vez que estava... Acho que foi com o Ricardo Vaz Pinto que estávamos a falar disso.
José Maria Pimentel
E agora, em cima, tem o mapa atrás de si, portanto, é fácil de ver. Vamos imaginar que o planeta Terra estava vazio, não é? E a pessoa podia comprar um lote, como se fosse... Eu acho que era o melhor lote que existe, porque aquilo é extraordinário.
Bruno Cardoso Reis
Portanto, dotado de todo o tipo de recursos, tem acesso desimpedido aos dois grandes oceanos da Terra, que são, obviamente, o grande meio de comunicação de comércio, ainda hoje. 90 % do comércio mundial, sempre e hoje, continua a ser feito por via marítima. O grande meio de projeção de poder a nível global, não é? A grande potência global tem de ter uma grande marinha de guerra, como sabemos desde pelo menos o século XV ou XVI, e, portanto, e lá está um continente enorme, com imensos recursos agrícolas, minerais, etc. Portanto, é fácil perceber porque é que os americanos se colocam a questão, mas porque é que nós nos devemos chatear com o resto do mundo? Porque é que nos devemos envolver? Obviamente, há uma série de boas respostas. Hoje em dia, por exemplo, a ideia de que vamos retirar tropas e, se for preciso, mas é que os vazios de poder tendem a ser preenchidos, não é? Se os Estados Unidos retiram tropas da Europa, se retiram tropas da Coreia do Sul, isso vai ser interpretado como um desinvestimento e, portanto, pode provocar reações perigosas. Aliás, aconteceu isso, lá está, em 1950, sinais e equívocos da parte americana levaram a Coreia do Norte, com apoio da União Soviética e da China comunista, a concluir que podiam invadir a Coreia do Sul, não é? E depois os Estados Unidos tiveram de voltar rapidamente e, nesse caso, para combater, não é? Já agora, a Coreia é um bom exemplo de como realmente não podemos isolar a Europa do resto do mundo, não é? Portanto, há aqui, mesmo na altura, que não se falava tanto de globalização, não se falava, não havia ocupação de globalização, realmente já havia muita interdependência, ou seja, a Coreia, lá está, acho que foi também um lordesmake, a Coreia foi o exemplo da O -NATO, não é? Portanto, foi a Coreia, por exemplo, que levou a que a NATO, que tinha começado como uma aliança clássica em 1948, se tornasse realmente uma organização político -militar. É a partir de 1950, 51, aliás, há uma cimera em Lisboa. Sim, sim, sim. Que leva à criação...
José Maria Pimentel
Já agora, cujas imagens e até um vídeo estão disponíveis na internet, no outro dia apanhei isso. Exatamente. Foi no técnico. Exatamente.
Bruno Cardoso Reis
E, portanto, vêm cá os líderes dos países da NATO e, de facto, decidem -se criar o secretariado, ou seja, no fundo, uma organização política no seio da aliança, o secretário -geral da NATO, e decidem -se criar uma estrutura de comando integrado, que é a chave para a enorme robustez e capacidade militar da NATO. Ou seja, uma das coisas mais difíceis no contexto militar é conseguir aquilo que se chama o comando conjunto, não é? Ou seja, é conseguir que as diferentes unidades, os diferentes meios trabalhem uns com os outros. Isso é difícil a nível nacional. Entre países, muitas vezes é impossível, não é? Portanto, a chamada interoperabilidade é uma coisa extremamente difícil. Os países da NATO fazem isso de forma natural. Muitas daquelas missões que não são tecnicamente missões de NATO, coligações à DOC, as famosas coligações do tempo de George W. Bush e tudo isso, só são possíveis porque esses países falam a mesma língua, têm o mesmo vocabulário, têm a mesma doutrina. Muitos dos oficiais treinaram em conjunto. Exato. Comandaram em conjunto e, portanto, os códigos de comando, de comunicações e tudo isso são semelhantes, não é? Os sistemas de armamento são semelhantes. Por exemplo, há uma das questões que agora escuto na Ucrânia que é, quer dizer, não se pode simplesmente mandar munições para canhões, mas quais munições? É que as munições do fabrico soviético, dos modelos soviéticos são diferentes, podem ser 5 milímetros a mais ou a menos, mas já não dá, já não cabe, não é? Sim, sim. Parece a história dos caminhos de ferro. Portanto, essa standardização que a NATO traz é, de facto, fundamental. Mas isso corresponde, no fundo, a esta ideia que é, de facto, os Estados Unidos assumem -se como uma potência também europeia e, no contexto da estratégia da Guerra Fria para os Estados Unidos, isso é deixado muito claro, a famosa estratégia do containment que é desenvolvida por George Kennan e por outros, mas é esta ideia que é, há duas regiões que são absolutamente vitais para os interesses norte -americanos, que é a Europa Ocidental e, digamos, a Ásia, o extremo Oriente, a zona do Japão, da Coreia, a Ásia, vamos dizer assim, insular. Porquê? Porque, por um lado, são as plataformas naturais para atacar os Estados Unidos, aí no caso de Portugal, porque é que Portugal interessa tanto aos Estados Unidos no contexto da NATO. Os Estados Unidos pressionam, a Grã -Bretanha pressionam Portugal a fazer parte da NATO, apesar de uma resistência forte do Salazar, acaba por se deixar convencer por pressão interna, sobretudo dos militares e dos diplomatas portugueses, mas porque para os Estados Unidos, por exemplo, os Açores, nós hoje em dia já temos acesso a esses planos, no planeamento militar americano, os Açores são tão importantes como Nova Iorque ou como a Flórida ou como o Havaí. O pensamento americano, que faz todo o sentido, é, ninguém vai ocupar os Açores. Se alguém quiser ocupar militarmente os Açores é porque era atacar os Estados Unidos a seguir. Ninguém vai para os Açores só por causa das belezas naturais extraordinárias, é verdade, dos Açores. E, portanto, é preciso manter a Europa Ocidental como uma espécie de barreira geoestratégica e depois porque essas duas regiões são as regiões mais industrializadas, mais envolvidas em termos económicos, tecnologicamente também, e, portanto, se uma potência inimiga conseguir controlar esses territórios, não só tem uma base geográfica para atacar os Estados Unidos, mas tem uma base tecnológica, uma base militar muito maior para poder depois competir com os Estados Unidos de uma forma muito perigosa. E, portanto, isso é bastante claro para os Estados Unidos. A presença na Europa deixa de ser uma opção, passa a ser uma necessidade. Com a Segunda Guerra Mundial ou com a Guerra Fria? Com a Segunda Guerra Mundial e depois no contexto da Guerra Fria.
José Maria Pimentel
Mas, por exemplo, estes contrafactuais são sempre difíceis, não é? Mas vamos assumir que não tinha havido a Guerra Fria?
Bruno Cardoso Reis
Aí, sim. Hoje em dia nós apresentamos isto como uma solução evidente. Eu diria que era a solução mais racional. Mas a história mostra -nos muitas vezes que... Isto o quê? A integração europeia? O envolvimento dos Estados Unidos na Europa, manter uma presença militar na Europa, apoiar o processo de integração europeia para, lá está, consolidar aqui uma frente unida na Europa, nomeadamente contra a potencial ameaça soviética. Mas isso é discutido, quer dizer, há senadores importantes, há líderes importantes políticos nos Estados Unidos que dizem o que é que nós estamos a fazer na Europa. Devíamos retirar. Mesmo quando a administração democrática é substituída pelos republicanos pela primeira vez em 52, pelo Eisenhower, de facto põe -se essa questão que é será que os americanos vão desinvestir da Europa? Será que vão desinvestir da NATO? E o Eisenhower, apesar de ser um general ou sequer porque é um general, é alguém que quer limitar a despesa militar, por exemplo. E, portanto, é ele que tem aquele famoso discurso do complexo militar industrial, não é? Portanto, que há aqui um peso excessivo do lobby, digamos, a favor do investimento em defesa. Mas, ele chega a pôr essa hipótese que é, mas será que faz sentido ter tantas tropas na Europa? Isso foi quando? Foi em 52, 53. Ah, portanto, já depois da Guerra da Coreia. A Guerra da Coreia estava a correr e a puxar -se, mas, portanto, o Eisenhower é realmente também um grande defensor da paz possível, de cessar fogo na Coreia. Mas, de facto, aquilo que, a conclusão que se chega é, isso não é possível. Aquilo que os líderes europeus dizem é, se vocês saem da Europa, fica tudo em questão. E utilizando, inclusive, o exemplo da Coreia, que é, vocês também começaram a retirar da Coreia. Houve uma invasão. Portanto, vocês não podem sair. Não é só pela dimensão militar da dissuasão, é pela dimensão política, pela mensagem que se transmite quer aos europeus, que é, nós estamos convosco. E isto não é só uma declaração, não é só teoria. Por exemplo, estamos convosco na questão nuclear, não é? Vocês não precisam desenvolver armamento nuclear. A Alemanha não precisa ter armamento nuclear, porque nós damos a garantia de que se houver um ataque nuclear, pela outra potência nuclear que existia na altura, a União Soviética, nós vamos retaliar. Nós vamos retaliar, inclusive, com armamento nuclear. Portanto, há aqui uma garantia de destruição mútua, não é? Que vai garantir a dissuasão. Portanto, não só por essa dimensão de dissuasão militar, mas também pela dimensão política, que é, de facto, nós estamos convosco, não é? E isso não é só uma teoria. Isso, então, desenvolveu -se até com uma teoria estratégica, não é? A ideia do tripwire, não é? Portanto, a presença de tropas, por exemplo, em países da NATO, inclusive portugueses, na Roménia ou nos países bálticos, sobretudo nos países bálticos, que militarmente são difíceis de defender, na verdade. Mas tem este efeito que é, não é só nós dizermos, no tratado Washington e tal, que os países bálticos são membros da NATO e, portanto, nós vamos defender se eles forem atacados. É, se vocês atacarem os países bálticos, vão matar soldados americanos, vão matar soldados portugueses, vão matar... Porque eles estão lá. É impossível invadir os outros países. Porquê que Berlim, que é uma ilha ocidental no meio da Alemanha comunista, porquê que nunca cai? Porque atacar Berlim significava matar soldados americanos, matar soldados britânicos, portanto, tornaria uma guerra inevitável, não é? Uma guerra com esses países inevitável.
José Maria Pimentel
Sim, sim. E passa -se uma coisa semelhante hoje em dia com a questão da Ucrânia, não é? Com o cuidado da Rússia de não deixar cair mísseis para lá, em países da NATO, por exemplo, não é?
Bruno Cardoso Reis
Sim, exatamente. Ou seja, na discussão atual fala -se muitas vezes, mal do meu ponto de vista, de expansão da NATO, que é a narrativa russa. Não há expansão da NATO. A NATO é uma aliança defensiva que é de desão voluntária, ao contrário das alianças que a Rússia cria, não é? Como o Pacto de Varsóvia no tempo da União Soviética, ou como agora a Rússia critica muito a NATO, mas tentou criar uma organização igual, a Organização de Defesa Coletiva, não é? Sim, sim. O problema é que, no caso dessa organização, começou com nove estados ex -soviéticos, já só vai em seis, não é? Portanto, cada vez tem menos e aqueles que podem sair, geralmente saem, não é? Ou nem sequer aderem. O problema da Rússia, realmente, o drama da Rússia é que, de facto, não é uma alternativa atrativa e, pelo contrário, quanto mais tenta afirmar -se pela via militar e agressiva, como aconteceu também no período da Guerra Fria, não é? O Stalin, por exemplo, naquela cimeira de potes também em 1945, quando o embaixador americano em Moscou, que está lá presente, vai dar os parabéns, diz Marshall, parabéns, vencemos e tal, e o Stalin diz -lhe, bem, mas o Cesar Alexandre foi até Paris. A conclusão dos americanos foi, bem, o homem, se calhar, é realmente um risco para a segurança da resta da Europa, que está completamente destruída, não é? Não só tem um exército de milhões, claro que nós sabemos que a União Soviética também sofreu muito com a Segunda Guerra e, na verdade, sobretudo por isso... Foi o que sofreu mais, na verdade. Exatamente, teve milhões de mortos, enfim, foi... É verdade que a União Soviética também nunca teria conseguido sobreviver à Segunda Guerra Mundial sem o poder ocidental. Nós, por exemplo, hoje sabemos que aquilo que está a acontecer agora na Ucrânia estava a acontecer com a União Soviética contra o Hitler, não é? Ou seja, nós sabemos, por exemplo, 90 % do combustível usado pela aviação soviética vinha de países ocidentais, vinha dos Estados Unidos, sobretudo. Portanto, imaginem o que era a União Soviética vencer a Alemanha, a Názia e sem aviação, não é? Portanto, obviamente, não ia acontecer. Mas, portanto, realmente a União Soviética também estava muito desgastada e, portanto, o risco não era tanto como se pensou eventualmente, agora a verdade é que, essa era a perceção, houve uma convergência, de facto, de interesses, não é? Os europeus perceberam que precisavam do apoio norte -americano, os norte -americanos perceberam que era do seu interesse também ter aqui, digamos, uma barreira contra a União Soviética e ter aqui um conjunto de aliados que eram muito interessantes do ponto de vista económico, do ponto de vista também de ajudar, por exemplo, noutras áreas de crise, não é? Portanto, lá está, os americanos muitas vezes queixam -se com alguma razão que os europeus não gastam tanto como deviam em defesa, etc. Mas a verdade é que, quando há algum problema, quem é que são os países que mandam tropas com alguma capacidade militar efetiva e conseguem realmente, no fundo, ajudar as tropas americanas? São basicamente os aliados europeus.
José Maria Pimentel
Sim. Portanto, no fundo, os Estados Unidos queriam, sobretudo com a Guerra Fria, porque dispuseram -se a garantir a segurança europeia, mas, e para voltar ao plano Schuman, queriam que no plano político, digamos assim, os europeus se desenvolvesselhassem sozinhos, não é?
Bruno Cardoso Reis
Daí terem estimulado... Lá está, com a criação das comunidades europeias, portanto, o Tratado de Roma em 57, que entra em vigor em 58, começam a surgir algumas questões, que é uma certa ambiguidade, por exemplo, se vai manter no campo da defesa até bastante tarde. Que é, ok, nós queremos que os europeus se organizem, queremos que cooperem, mas, quer, também não queremos que cooperem demasiado ou, sobretudo, não de formas que ponham em causa os interesses americanos. Por exemplo, na questão do mercado único, lá está o Kennedy e vai levantar a questão a partir de 58, o Kennedy a partir de 60, mas os Estados Unidos vão levantar a questão logo a partir de 58, mas quais são as implicações disso em termos das relações econômicas com os Estados Unidos?
José Maria Pimentel
É verdade, isso já estava nos planos do Schuman, mesmo logo do início há referências a isso, criar uma concorrência aos Estados Unidos.
Bruno Cardoso Reis
Mas a questão aí é, quer dizer, vamos lá ver, isso está muito bem, mas não nos vão excluir a nós. O que acaba por acontecer é, de facto, uma negociação é um compromisso, que tem sido assim a forma como as relações entre os Estados Unidos e a Europa têm evoluído. Apesar da assimetria de poder, os Estados Unidos aceitam negociar e aceitam compromisso e, portanto, isso foi no fundo o início do processo que levou ao GATT e depois à Organização Mundial de Comércio. O início, digamos, da economia globalizada, das economias mais abertas, taxas alfandegárias bastante baixas, ou não existentes ou bastante baixas, é realmente com esse processo negocial entre os Estados Unidos e aquilo que eram as comunidades económicas europeias. Já agora, a Grã -Bretanha nesse contexto, de repente, depois de, portanto, esta atitude inicial de algum paternalismo e até arrogância e ceticismo, rapidamente vai perceber isto do ponto de vista económico é desastroso para nós. Porque o império é muito bonito, a Grã -Bretanha ainda tem um império nessa altura e ainda acredito que o Commonwealth vai ser... Mas já era versão Commonwealth, não é? Em 58, por exemplo, basicamente em África não há ainda independências, nas colónias britânicas. Na Ásia sim, a maior parte já é independente, mas na África subsaariana não e aquilo que nós sabemos do planeamento britânico é que eles pensavam que iam ficar durante longas décadas, pelo menos, e sobretudo achavam isto que é a Commonwealth seria um pouco como a Austrália ou como o Canadá. Na verdade, eles já deviam ter percebido nessa altura que mesmo a Austrália e o Canadá já estavam menos automaticamente alinhadas com Londres na política externa, na política de defesa. Por exemplo, tinham -se alinhado cada vez mais com os Estados Unidos do que propriamente aquilo que era a ideia inicial, não é? Portanto, que é, de facto, vamos dar aqui autogoverno, vamos dar plena liberdade em termos internos, mas em termos externos, em termos mesmo económicos, em termos militares, estes países vão continuar no fundo a aceitar a liderança de Londres. Pois isso, obviamente, rapidamente deixou de ser assim, sobretudo com as colónias que não eram governadas por colónios de origem britânica, como era o Canadá ou a Austrália, portanto, obviamente, a Índia afirma -se logo como uma potência não alinhada, etc. Mas, portanto, os britânicos continuam a alimentar um bocadinho essa ideia. E mesmo em termos económicos, só que a verdade é, mesmo no período, digamos, do pico do imperialismo europeu, a Europa sempre foi economicamente mais importante, mesmo para um país como Portugal. As colónias portuguesas nunca pesaram tanto na economia portuguesa como pesou as relações económicas com a Europa. Por um lado, a proximidade geográfica, por outro lado, porque é um mercado enorme, extremamente rico. Continua hoje a ser um mercado mais interessante, um mercado de exportação, é um mercado mais dinâmico, mais próspero. Não sei se isso era verdade no tempo do Brasil. Bem, as estatísticas vão piorando ou vão se tornando mais questionáveis, mas sim, mas mesmo no período do Brasil. Porquê é que o Brasil nos interessava tanto para exportarmos, para exportarmos para a Europa, não é? Ah, claro, claro. Ou seja, obviamente nós consumíamos... E o Brasil tinha um peso muito grande nas contas públicas, não necessariamente na economia geral, claro. Exatamente, exatamente. Isso é outra, é também uma questão, não é? Portanto, rapidamente a Grã -Bretanha percebe nós economicamente cometemos um erro terrível. Eles tentam, no fundo, criar uma alternativa, não é? Portanto, em 60, criam a Organização de Comércio Livre Europeia, EFTA, que aliás... Que nós fizemos parte, exatamente. É a nossa estreia, digamos, em organizações europeias. Portanto, o nosso processo de integração europeu começa por essa via, menos supranacional, mas já é uma integração real e muito importante para explicar os anos 60 como a grande década do crescimento económico português, também por força do nosso enorme atraso, não é? É muito mais fácil crescer taxas de 10 % ou 12 % quando o país parte de uma base extremamente baixa, não é? Mas, obviamente, é também porque estamos integrados nesse primeiro mercado europeu de que fazemos parte, do EFTA. Mas isso, de facto, não é suficiente. Quer dizer, a Suíça, Portugal, a Dinamarca, a Noruega, são países muito interessantes e muito pró -britânicos, mas não substituem o mercado francês ao mercado alemão, ao mercado italiano. E, portanto, logo em 61, a Grã -Bretanha vai pedir, vai fazer o seu primeiro pedido de adesão às comunidades europeias. Ou seja, aqui uma das ironias da história é que, na verdade, a Grã -Bretanha fartou -se de insistir para fazer parte do processo de integração. Depois? Depois. Em 62, em 67, nos dois casos, vetada pulo de golo, que, entretanto, tinha recuperado o poder, tinha -se tornado o fundador da 5ª República Francesa, em 1958, e que acha que os britânicos não estão comprometidos com o projeto. E tinha razão, provavelmente. Tinha razão, provavelmente. Pelo menos, certamente, não da mesma maneira. Tinha razão nessa premissa, não necessariamente nessa decisão. De facto, no caso britânico, o compromisso com a Europa é basicamente pragmático e económico, sempre. Não há aqui mais nada, não é? Não há aqui um projeto de construção da paz, de... A Grã -Bretanha não tira as mesmas lições da 2ª Guerra do que o resto da Europa, não é? O nacionalismo britânico não foi responsável pela 2ª Guerra Mundial. Teve um papel heroico na 2ª Guerra Mundial. Esse é o ponto interessante.
José Maria Pimentel
Eles não tinham pecados que espiar, digamos assim.
Bruno Cardoso Reis
Exatamente. As instituições britânicas não saem avaladas ou destruídas, quer dizer, não há um regime que resista praticamente na Europa continental à 2ª Guerra Mundial. A própria França tem uma nova república, pós -1945. Tem duas, na verdade. 46, a 4ª República, e 58, esta 5ª República que temos até hoje. Mas, portanto, a Grã -Bretanha, de facto, vê as suas instituições, pelo contrário, prestigiadas, não é? Com a 2ª Guerra Mundial. E, portanto, tem muita mais dificuldade em ceder poder. Tem uma cultura política também muito centrada no Parlamento, não é? Soberania do Parlamento. E, portanto, como é que o Parlamento britânico vai ceder soberania, ainda por cima a uma instituição que, nessa altura, nem tem um Parlamento, não é? Mas, portanto, por razões económicas, eles vão procurar fazer isso em 62, 67 e depois em 73, obviamente, vão acabar por conseguir aderir. O de Gaulle, entretanto, tinha saído politicamente e depois morreu também. E, portanto, a França acaba por aceitar em 73, mas não sem o Presidente Pompidou, no fundo, obrigar o então Primeiro -Ministro britânico a fazer uma espécie de prova, fazer um exame oral, não é? Vai a Paris, por um lado, simbolicamente, mostrar que a França é que lidera, não é? Exato. E, por outro, no fundo, satisfazer a França de que, de facto, a Grã -Bretanha está agora alinhada com os ideais europeus. No caso do Primeiro -Ministro, Edward Ithurst, talvez foi o único exemplo entre os líderes britânicos do pós -guerra em que isso talvez até fosse, em parte, verdade. Portanto, foi a pessoa ideal para fazer aqui esta aproximação. A verdade é que isso rapidamente acabou e, pronto, e, por exemplo, com a Senhora Thatcher, não é? Vem aquele famoso slogan, devolvam -nos o nosso dinheiro, não é? Portanto, é muito claro que o que interessa é apenas a questão económica, embora a Senhora Thatcher, em conjunto com o Delors, vai conseguir avançar para o passo seguinte da integração económica, que era a única área em que realmente os britânicos
José Maria Pimentel
estavam interessados. Sim, sim, pois ela tinha essa ambivalência, enfim, não é exclusivo delas, mas tinha essa ambivalência de ter um interesse pragmático na questão económica e ter uma grande... Uma reserva às implicações políticas de algumas dessas coisas, não é?
Bruno Cardoso Reis
Exatamente, sim, sim. Porque lá está, aquilo que eu tentava explicar aos meus amigos britânicos quando eu vim na Grã -Bastanha, mas aquilo que vocês queixam... Bem, por um lado, esta coisa do red tape, não é? Portanto, os regulamentos europeus. Vocês são muito pior do que Portugal. Portugal tem os regulamentos europeus, vocês são muito mais regulados. Qualquer coisinha. Sim, sim, sim. Limpa -se uma escada tem de ter uma placa a dizer que está a escada molhada, não é? Portanto, vocês acham que têm regulamentos por causa da Europa? Vocês são obcecados com regulamentos. Portanto, isso é uma coisa que vocês não vão perder ou vão deixar de ter porque saíssem da União Europeia. Depois, a outra questão é, bem, sem regulamentos, sem um tribunal europeu, como é que funciona um mercado integrado? É porque aquilo que se percebeu é que acabar com os impostos alfandegários é relativamente fácil. Mas os Estados e as empresas são um bocadinho mais inteligentes do que isso e, portanto, os grandes obstáculos, muitas vezes, ao comércio não são as taxas alfandegárias, são os chamados obstáculos não alfandegários, ou seja, regulatórios. Sim, sim, barreiras administrativas. Exatamente, barreiras administrativas. Portanto, a legislação nacional, muitas vezes, abertamente, dizia, nós só compramos nacional, por exemplo. Isso achou de ser possível. Só é possível isso acontecer se houver leis europeias que se apliquem igualmente a todos, portanto, um Estado não possa criar as leis que lhe apetece para impedir a competição do exterior e que haja também um tribunal que garanta que essa aplicação das leis é, também, uniforme por toda a Europa e que não haja um tribunal britânico que decide de forma enviesada a favor de interesses económicos britânicos e um português que faça a mesma coisa para os portugueses.
José Maria Pimentel
Sim, sim. E muitas vezes essas barreiras administrativas até são mais insidiosas, que não é dizer nós não compramos estrangeiro, é para nós comprarmos tem que ter estas características. Claro, exatamente. Cumprir estas características. Só é possível para empresas nacionais com quem, entretanto, se falou antes. Exatamente. Mas o caso britânico é interessante porque lá está, nós há bocado até nem falámos disso, mas a questão económica foi fundamental para eles não terem entrado inicialmente porque, ou pelo menos, lá está, tinham a percepção de que sobretudo as finanças públicas estavam muito melhores do que na realidade estavam e tinham uma indústria mais desenvolvida, enquanto, por exemplo, a França era muito agrária, portanto, não tinham aquela lógica económica do carvão e do aço porque para a França o carvão e o aço tinham uma lógica de segurança ligada à questão, mas também tinham uma lógica económica ligada ao desenvolvimento da indústria. O Reino Unido, à partida, não tinha essa necessidade. Depois percebeu mais tarde que tinha cometido alguns erros. E, portanto, no fundo, em parte não aderiu ao projeto por não sentir necessidade económica e depois quando aderiu era só pela necessidade económica.
Bruno Cardoso Reis
E sempre teve a frustração de que, mas de que eles são culpados, não é? Que não era bem um projeto deles, ou seja, isso de facto é muito custoso para a Grã -Bretanha, que se habituou a lidar a projetos, mesmo quando faz parte de uma aliança mais ampla, mesmo na questão da NATO, obviamente em coordenação com os Estados Unidos, eles tiveram um papel lidante. Aqui não tiveram porque desde o início não estiveram.
José Maria Pimentel
Mas era isso que eu ia perguntar, ou seja, porque é que é certo que eles tinham uma posição diferente dos Estados Unidos e os Estados Unidos incentivou, mas não intervaiu propriamente, ou seja, como não podia, porque não fazia parte da Europa. Mas o que é que podia ter sido diferente para o Reino Unido ter tomado a iniciativa? Porque eles podiam ter tomado uma iniciativa, não é? Nós agora olhamos, lá está, olhando para o passado, vemos a União Europeia como uma consequência de uma coisa que cresce a partir do plano Schuman, como se aquilo fosse as fundações e a União Europeia cresce a partir dali, mas podia ter sido uma coisa diferente. O Reino Unido podia ter patrocinado uma uma OCD, como é que era? O SCE mais, que não tivesse... Este lado tivesse uma alta autoridade, mas tivesse uma lógica de integração. Podia ter feito isso a partir do Conselho Europeu. Podia ter criado a EFTA, tentado criar a EFTA.
Bruno Cardoso Reis
Qual é que foi aí o problema? Foi que, de facto, se os britânicos estivessem envolvidos desde o início... Porque realmente, por exemplo, a França valorizava imenso a relação com a Grã -Bretanha, até para conter a Alemanha, porque nós lá está... Hoje em dia não temos essa... Damos o eixo Paris -Borne, como se dizia na altura, ou Paris -Berlin como uma coisa adquirida, mas não era necessariamente. Exatamente, é isso. Os franceses fizeram inicialmente muita pressão para os britânicos estarem envolvidos e, portanto, se a Grã -Bretanha estivesse estado envolvida, eu acho que uma coisa que não seria a EFTA, seria uma espécie de híbrida entre a EFTA e as comunidades económicas europeias. Provavelmente seria aquilo que teria sido criado. Mas, portanto, uma coisa menos, talvez supranacional, talvez um pouco mais livre -comércio. Agora, a Grã -Bretanha cediu bem a iniciativa. Depois, quando tentou fazer isso, portanto, estava sempre a tentar recuperar o prejuízo. Ora, uma coisa é teres a EFTA com a Alemanha e com a França. Outra coisa é teres, lá está, com Portugal, com a Suíça, com a Dinamarca e com a Noruega. Quer dizer, não dá. É que nem giganticamente estão próximos. A dimensão do mercado, a possibilidade de integração, que vem também dessa ligação, dessa proximidade, simplesmente não existe. E, portanto, a Grã -Bretanha, hoje em dia, enfim, muitos analistas britânicos conhecem isso, cometeu, de facto, esse erro de partida. Uma postura de um certo paternalismo, certa arrogância. Pode -se perceber, lá está, com base naquela ideia que é isto, de facto, nunca tinha sido possível na história europeia antes. Portanto, de facto, a história europeia, no fundo, caracteriza -se basicamente pela resistência a qualquer ideia da construção de um grande império europeu. Nunca aconteceu, como na China ou como na Índia, que também se fragmentaram muitas vezes, que houvesse, no fundo, este ciclo de fragmentação e depois de reconstrução de grandes impérios. Desde a queda do Império Romano, de facto, houve várias tentativas de reconstrução hegemónica de um Estado, um grande Estado europeu, mas elas falharam sempre todas. E a ideia de que as tentativas voluntárias de fazer isso seriam ainda mais difíceis, mais votadas ao falhanço, ao fracasso. E, portanto, de facto, os britânicos tiveram esse problema, que é, no fundo, aprenderam, se quisermos, demasiado bem as lições da história. Uma das coisas que a história também nos ensina é que as coisas mudam. Não é porque sempre foi assim que sempre vai continuar a ser assim. Às vezes as circunstâncias levam, de facto, a grandes mudanças. E, portanto, eu acho que, a partir do momento em que, a partir de 58, de facto, não há boas alternativas para os britânicos. E depois temos essa outra questão, que é, de facto, e isso eu posso dizer com base em algum testemunho pessoal, de ter vivido lá vários anos, e de ser um país que eu gosto bastante, aliás, a Grã -Bretanha, mas, de facto, em relação às questões europeias, os britânicos não eram pragmáticos. Diziam que eram. Eram pragmáticos na parte económica. Eram pragmáticos na parte económica, mas tinham esta visão da União Europeia como uma ameaça. À soberania, não é? À sua identidade, em algum sentido. O que, para mim, era um grande paradoxo. Dizias, mas como é que vocês sentem? Quer dizer, Portugal é um país pequeno e pobre. Ninguém em Portugal acha que vai desaparecer por causa da União Europeia, que Portugal vai deixar de existir por causa da União Europeia. Como é que vocês, que são um país muito maior, com uma cultura muito mais, digamos, com muito mais impacto até a nível global, como é que vocês acham isso? Eu acho que há aí um lado, talvez, de... Nós às vezes esquecemos disto. A Grã -Bretanha também é uma União. É um Reino Unido, não é? Ou seja, é uma monarquia compósita. Tem várias nacionalidades lá dentro. O inglês é uma enorme vantagem, mas tem este problema que é que toda a gente fala inglês. Portanto, não é assim tão diferenciador, não é? E, sobretudo, eu acho que também é esta questão, que é talvez o lado menos virtuoso, é esta ideia de uma certa... de que a Grã -Bretanha não precisa disto. No fundo, os britânicos continuam a pensar -se, de facto, uma grande potência global. E, obviamente, são um país muito importante. Continuam a ser a sexta ou a sétima economia. Estão no Conselho de Segurança, mas não são o Império Britânico. Hoje em dia são, eventualmente, uma potência média, não é? Com algum peso global. E, depois, há este lado também na cultura política britânica, realmente, que eu já referi, que é uma espécie de quase culto do Parlamento, não é? O Parlamento britânico é realmente o centro da vida política britânica. Tem um prestígio histórico que, de facto, a maior parte dos outros parlamentos que há não têm. Quer dizer, por exemplo, para vermos isto, não é a parte dos países europeus, mas, por exemplo, em Portugal, é possível um ministro não ser parlamentar, não é? Temos os independentes e, sem serem independentes, na Grã -Bretanha, isso é absolutamente impensável. Quer dizer, qualquer ministro tem de ser parlamentar. Eventualmente há sempre esta escapatória que pode ser um membro da Câmara dos Lordes. Portanto, no fundo, o equivalente dos nossos independentes seriam, mas nenhum ministro de primeiro plano, não é? Portanto, os secretários de Estado podem estar na Câmara dos Lordes, mas nenhum ministro pode deixar de estar na Câmara dos Comuns. Todos os ministérios têm uma espécie de secretário de Estado dos assuntos parlamentares. Há um secretário de Estado, só para lidar em cada ministério, não é? Não é um para o governo todo, não é? Porque, quer dizer, esta ideia de todos os dias há perguntas de um parlamentar para um ministério, não é? E, portanto, esta questão torna muito difícil esta ideia do supranacional, da Comissão, mesmo do Parlamento Europeu. E, portanto, acho que tudo isso ajuda a explicar porquê que os britânicos, geralmente, nunca foram membros completamente comprometidos, identificados com o projeto europeu no seu sentido mais amplo, e não podem alegar que isto foi uma conspiração. Quer dizer, está lá no Tratado de Roma, não é? Foi uma das razões porque eles não aderiram. O objetivo deste tratado é criar, em inglês, a expressão é Ever Closure Union. Portanto, uma união cada vez maior. Agora, a União Europeia também obviamente tem os seus problemas, que é consegue gerir -se a 27 ou 28, consegue continuar a largar -se. É o Delort que tem essa expressão, que é um objeto político não identificado, não é? Um ovni. Um ovni é um ovni. Na verdade, hoje em dia, a União Europeia é uma espécie de um misto, um híbrido entre uma confederação e uma federação. Tem elementos confederais e tem elementos federais. É uma boa maneira de pôr a coisa. Os elementos federais mais importantes é o Tribunal Europeu, que tem supremacia sobre os outros, pelo menos enquanto isso continuar a ser aceito. Está a ser cada vez mais questionado, inclusive pela própria Alemanha e pelo próprio concessionário alemão, mas tem federalização, por exemplo, na moeda, o Banco Central Europeu. Em muitos outros aspectos, de facto, continua a ser confederal. Aquilo que a história nos mostra é as confederações ou se federalizam ou desaparecem.
José Maria Pimentel
Sim, sim. Este ponto intermédio é difícil de sustentar.
Bruno Cardoso Reis
Porque uma confederação, ou seja, uma associação puramente voluntária de estados, que os estados podem abandonar, se assim quiserem, é, digamos, um refém permanente da sorte, não é? Qualquer crise pode ser a sua derradeira crise. A Confederação Americana, por exemplo, federalizou -se nos Estados Unidos da América em 1789, porque percebeu que realmente aquilo... A Confederação Helvética, que formalmente continua a existir, na verdade, transformou -se na Suíça Federal, em meados do século XIX. A Confederação Polaco -Lituana, por exemplo, que controlava grande parte da atual Ucrânia, também, e da Bielorrússia, era o maior estado da Europa no século XVII, colapsou, não é? Desapareceu. Agora, eu também acho, queria só asseminhar esse aspecto, que é, nós aqui temos uma questão que é, naturalmente, a grande federação de referência para nós é os Estados Unidos. E é assim, pelo menos desde o século XIX, ou certamente no século XX. Estados Unidos, Estados Unidos da Europa, não é? Ora, esse não é o único modelo federalismo, não é? Com isto não estou a dizer que nós temos de seguir o modelo americano. Quer dizer, na própria Europa há outros modelos federais, lá está, por exemplo, a Suíça. A Suíça não tem, por exemplo, um presidente, tem uma presidência coletiva, não é? Portanto, eu acho que há outros modelos. Os elementos federalizados que já existem são importantes e ajudam a explicar muito a resiliência da União Europeia. Por exemplo, a questão do euro, não é? Não é, por acaso, o único estado que deixa a União Europeia, a Grã -Bretanha, um estado com uma dimensão e com uma história também particular e, por outro lado, não tinha o euro. Realmente, de repente, percebeu -se que desfazer o euro pode -se fazer, porque tudo se faz, não é? Já desapareceram muitas moedas, mas vai ter um custo brutal para todos, não é? Estes elementos federalizados já nos dão algum lastro, alguma resiliência ao projeto. E depois há esta questão também da defesa, não é? Ou seja, nós estamos num mundo cada vez mais perigoso, cada vez mais propenso a crises militarizadas, em que os Estados Unidos, de repente, deixaram de ser um parceiro tão seguro. O Trump e o trumpismo são uma ameaça, digamos, de neo -isolacionismo, como não se via há muitas décadas. E, de facto, a Europa não está preparada para isso. A Europa não tem capacidade militar mínima para se poder defender a si própria, sem a Nato, sem os Estados Unidos, claro. E, portanto, no fundo, eu diria que aqui é um pouco uma corrida contra o tempo, enquanto houver a Nato, e uma Nato funcional, que não esteja num impasse neotrampiano, está tudo bem, vamos, tão bem quanto é possível, mas de facto há esse... E as crises, normalmente, fazem as coisas mudar para o bem ou para o mal, não é? Sim, sim. Há uns anos entrevistei um grande teórico das relações tradicionais, o Emanuel Adler, que é uruguai, mas, enfim, está há muito tempo nos Estados Unidos, e que tem este conceito das comunidades de segurança, que é um bom conceito para se perceber quer a União Europeia, quer a própria Nato, no fundo é a ideia que a interdependência pode -se formalizar de tal maneira, podem -se criar redes institucionais e de socialização tão intensas, que no fundo se cria uma nova identidade. Quando as pessoas dizem, líderes americanos ou europeus, dizem, eu sou atlantista, não estão a dizer eu gosto muito do oceano atlântico e só passo férias na costa atlântica, estão a dizer eu identifico -me com a Nato, com a aliança atlântica. Para mim não é só uma coisa pragmática, é uma comunidade de valores, de princípios, de defesa da liberdade, e o que caracteriza uma comunidade de segurança, de acordo com o Emanuel Adler, é esta ideia que é a ideia de base do declaração Schuman, de 50, é tornar a guerra impensável entre os Estados -membros. Não quer dizer que não haja conflitos, obviamente está a continuar a haver conflitos entre a França e a Alemanha, ou entre Portugal e Espanha, mas há problemas entre Portugal e Espanha, mas ninguém, quer dizer, não passa pela cabeça de ninguém a cuidar que amanhã os tanques, os leopardos espanhóis podem vir a ocupar Lisboa. Portanto, a guerra realmente tornou -se uma coisa impensável. Agora, nessa entrevista o Emanuel Adler a certa altura sugeriu essa questão e ele dizia que não está muito claro, até nos trabalhos dele, mas uma comunidade de segurança consolidada é uma coisa bastante resiliente. É por isso que a NATO não desapareceu com o fim da Guerra Fria. É uma coisa bastante resiliente e que não é puramente pragmático ou funcional, mas pode ser desconstruída, nomeadamente por crises. Quer dizer, nós assistimos na Europa ao desaparecimento dos Estados, tal como os Estados desaparecem, também estas comunidades podem desaparecer. Portanto, as crises têm sido, geralmente, uma certa oportunidade de relançamento, embora, num caso ou outro, tenha levado a períodos de impasse mais longos, por exemplo, nos anos 60 houve um período do chamado veto, do golo, a cadeira vazia, etc. Mas, de um modo geral, o projeto tem continuado a manter -se e até a avançar. A crise do Covid, se calhar, é mais um exemplo recente disso, mas, de facto, não se pode afastar a possibilidade de que haja uma crise que seja fatal. Sim, sim, sim.
José Maria Pimentel
Eu sou tanto tempo assim, mas a pessoa quase se esquece do que foi a crise do euro. A coisa esteve bastante tremida. E agora, com o Covid, foram feitas coisas que, nessa altura, eram impensáveis. Portanto, as crises, de facto, têm acelado. Eu não resisto a voltar à questão do Reino Unido, que eu acho que há um aspecto que nós não conhecemos há um bocado, que é interessante, que é até cultural. Porque nós, lá está, nós, europeus, tendemos a olhar para a... É quase inevitável, não é? Olhamos para a atitude que o Reino Unido teve, tanto na altura do plano Schuman, como antes, por não ter assumido essa liderança, e depois, por nunca ter aderido a sério, ou quando aderiu, ter sido sempre com cautela, e parece -nos uma coisa um bocado esdrúxula, não é? Parece estranho. E tem acelado ali um certo atavismo. Mas há o outro lado, que eu pergunto se não tem a ver com eles terem também uma sociedade civil, e isto também se aplica aos Estados Unidos, muito mais dinâmica do que acontece na Europa, não é? Nós, na Europa, as coisas são... É muito mais natural as iniciativas virem de cima, não é? O próprio processo de integração europeia é uma coisa que vem de cima. É a França que decide, junta -se à Alemanha e a coisa vem de cima para baixo, não é? Esse papel do Parlamento não surge do nada, não é? Não é por acaso que o Parlamento tem esse papel historicamente e ainda hoje na política do Reino Unido, é que a sociedade civil participa muito mais, não é? Aqueles parlamentares são parlamentares a sério, estão a representar pessoas, não é? Não é como os nossos, não é? Que são escolhidos por estruturas partidárias e as pessoas não estão a votar especificamente naquela pessoa, não é? E essa autodeterminação, não é? Esse enfoque na soberania, que também existe muito nos Estados Unidos, por isso é que eles... Também é muito difícil para nós compreender porque é que eles têm aquela mania dos Estados rejeitarem a ingerência federal, não é? A ingerência do Governo Central, não é? Parece -me uma bizarria, não é? Ainda por cima não tem... Falam todos a mesma língua e culturalmente são os mesmos. Mas há essa liberty, não é? Esse enfoque na autodeterminação, que eu acho que é uma coisa boa e que nós não temos bem na Europa continental, não é? Sim, não há sociedades perfeitas, quer dizer.
Bruno Cardoso Reis
As coisas muitas vezes vêm associadas a coisas más ou têm as suas desvantagens. Eu acho que... Às vezes exagera -se também este lado elitista do projeto de construção europeu. Muitas vezes citando o Jean Monnet, que lá está um alto funcionário, um tecnocrata. O tal braço de direito Roberto Schumann, que depois veio ser o primeiro... A alta autoridade da SECA, não é? E que tem, de facto, citações engraçadas desse ponto de vista, que é quem ganha uma reunião é quem vai com um papel preparado para a reunião. Muitas vezes é verdade, quer dizer, toda a gente tem muitas ideias, mas depois se alguém tem um projeto já preparado, mesmo com alguns ajustamentos, passa a dominar a agenda, não é? Traz uma solução para o problema, não é? Em vez de ideias vagas. Esta ideia de que a construção europeia vai -se fazer sem que os europeus deem conta disso, pela via económica, não é? Vai -se criar uma tal interdependência, a ideia da SECA, não é? Que está na declaração, que a guerra se torne impensável e materialmente impossível, não é? Portanto, através desta... De uma boa gestão tecnocrática. Agora, desde o início, por exemplo, isso até era uma das questões que também colocava problemas aos britânicos, que é, eles não queriam um parlamento rival, não é? Mas, por exemplo, a União Europeia, vamos ser claros, sim tem uma dimensão burocrática poderosa, a Comissão, toda a burocracia de Bruxelas, mas a Comissão propõe coisas, lá está, traz o papel. Isso é muito importante, mas e isso até tem sido reforçado, são os Estados que decidem no Conselho. Claramente o órgão dominante na União Europeia é o Conselho Europeu, ou seja, o órgão onde estão os chefes de governo democraticamente eleitos dos países membros e o Parlamento Europeu é uma coisa que surge desde o início, portanto, desde o início se põe essa questão que tem de haver algum tipo de Assembleia Parlamentar para fiscalizar este poder supranacional e, portanto, ela é criada logo nos anos 50, mas indiretamente, mas desde o início se prevê a possibilidade de eleições diretas para o Parlamento Europeu, que surgem a partir de 1969 e se nós compararmos com qualquer outra organização internacional ou regional semelhante, de facto, a União Europeia é de longe a mais democrática. Não há um Parlamento no ASEN ou no Mercosul. Ah, sim, sim, absolutamente. Há o Parlatino, mas enfim, mas que não tem poder na América Latina e é uma cultura política, digamos, vamos dizer assim, menos estatista, portanto, na França a ideia de que o Estado deve ter um papel importante em todas as áreas é uma coisa que é vista como natural. É natural. Mesmo na Alemanha, ok, tem de ser o Estado direito porque não podemos voltar ao nazismo mas até a própria concepção de direito, no fundo, o direito anglo -saxónico é um direito que se vai construindo Exatamente, é isso. A partir de baixos, a partir de presidentes, a partir de júris, portanto, esta ideia de haver um direito que vem de tribunais de cima, que não é expressão da vontade popular, neste sentido, são os júris que vão decidindo, em muitos casos. Portanto, de facto, é uma cultura mais avessa a aspectos que eu diria que são indispensáveis para o sucesso de um projeto deste tipo. Portanto, não tenho dúvidas que sim, ou seja, que há essa dimensão de maior accountability, de um Parlamento que está muito mais próximo. Quer dizer, nós aqui em Portugal queixamos -nos da dimensão do Parlamento. Os britânicos têm quase 700 deputados e se calhar achavam que iam ter mais porque toda a gente conhece o seu deputado. Os deputados têm o que eles chamam de surgery, que é uma espécie de consultório. Portanto, todas as semanas o deputado abre um consultório no seu distrito, no seu círculo eleitoral para as pessoas virem falar com ele. Não é só mandar cartas ou ter... Isso é muito difícil de reproduzir à escala europeia. E é uma questão que se coloca, não é? Mas que tem estas tensões que é, cada vez mais é evidente que há muitos problemas que não se resolvem a nível nacional, dos estados nacionais. Tem de se resolver pelo menos a nível regional e se calhar a nível global. Então precisamos ter instituições que tratem disso, que promovam essa cooperação e que depois implementem essas decisões. Mas com que grau de escrutínio, com que grau de legitimidade? Lá está, as Nações Unidas mesmo não são eleitas, não é? A Organização Mundial de Comércio não é eleita, não é? Portanto, é este problema, não é? Como é que se criam organizações tão grandes que se cria uma distância também tal em relação ao cidadão comum, depois como é que se garante que há aqui algum escrutínio democrático? Sim, sim. É um puzzle quase irresolúvel. Exato. É um problema difícil. Enfim, acho que se pode e devemos fazer um esforço para ir para ali respondendo. É verdade que se pode dizer que as Nações Unidas estão os representantes eleitos dos estados. Pelo menos nos estados onde há eleições democráticas livres, etc. Mas estão os representantes dos estados, não é? No caso da União Europeia, lá está, a tentativa tem sido ir reforçando o peso do Parlamento, não é? E do Conselho também. De garantir que a Comissão realmente é controlada, quer pelo Conselho, ou seja, pelos chefes de Estado e do Governo dos países membros, quer pelo Parlamento Europeu, não é? No fundo, no Tratado de Lisboa, essa questão de, nomeadamente, a codecisão, não é? Basicamente, hoje em dia, qualquer decisão na União Europeia tem de ser importante, sobretudo legislativa, tem de ser resultado da aprovação do Conselho dos Estados Membros e tem de ser também aprovado pelo Parlamento Europeu. Portanto, o Parlamento passou a ter, por exemplo, a nomeação da Comissão, não é? Não só a Presidente da Comissão, mas os Comissários têm de ser aprovados pelo Parlamento. Uma coisa que nós não temos cá. Em Portugal não temos, exatamente. Ou seja, agora, quando se fala toda esta questão do escrutínio dos ministros, quer dizer, Portugal não se pode queixar muito não há escrutínio a nível europeu, porque há mais do que cá. Nós cá não temos nenhuma tradição a esse nível. No caso britânico ou americano, isso é quase um outro extremo, todos os embaixadores são sujeitos, por exemplo, nos Estados Unidos, não é? Eles têm de ser aprovados pelo Senado. Os principais cargos da direcção de, digamos no que nós diríamos, a função pública no Estado passam por escrutínio parlamentar, para não falar nos próprios ministros, não é? Dos membros do governo. Mas, portanto, de facto, esse escrutínio cá não existe.
José Maria Pimentel
Exatamente. Muito. Sim, sim.
Bruno Cardoso Reis
Há mais? Não, eu fazia só uma nota mais brevíssima para dizer que a minha formação de base é como historiador, embora eu, entretanto, tenha um pé um pouco em duas áreas, nas relações tradicionais ou nos estudos de segurança e na história. Mas eu sei que há muitos colegas historiadores que resistem muito a alguns dos exercícios que nós estamos a fazer aqui, nomeadamente a esta ideia de que haja o mínimo risco que as pessoas achem que há lições na história, não é? E eu percebo essas reservas, ou seja, é preciso deixar claro que não há, de facto, lições simplistas prontas a usar na história. Nada é exatamente igual a outra coisa no passado. Agora, eu sou muito favorável a este tipo de exercícios. Eles são, nomeadamente, inevitáveis. E se, de facto, nomeadamente os historiadores não se imprimarem mais neste tipo de exercícios, o resultado é eles serem feitos, talvez com menos rigor. Ou seja, no fundo, todos nós usamos a nossa história desde logo, a nossa história pessoal, desejavelmente um pouco mais do que isso. Aprendemos também com outros e não só com os nossos próprios erros, não é? Mas, portanto, esse exercício é inevitável. A memória é aqui o nosso grande instrumento de orientação e, portanto, eu acho que desse ponto de vista, deixando claro que, de facto, não há aqui lições simples, não há lições prontas a aplicar, que é preciso, de facto, cuidar com analogias simplistas, mas eu acho que este exercício é bastante interessante e válido. E, portanto, obrigado pelo convite, também, para o desafio para o fazer.
José Maria Pimentel
Foi um gosto e enfim é sempre bom falar com quem sabe destas coisas. Bom, para terminar, sei que há dois livros não é?.
Bruno Cardoso Reis
Tive algumas dúvidas, mas acho que vou recomendar dois livros de colegas historiadores que estão publicados em português, também, têm essa vantagem de serem mais acessíveis. O do Brendan Simms, Europa à luta pela supremacia, portanto, que é uma grande história da Europa desde a queda de Constantinopla, desde meados do século XV até atualidade. O do Brendan Simms tem outros livros interessantes, por exemplo, um também sobre a relação entre a Grã -Bretanha e a Europa, mas esses não existem em tradução. E o segundo livro, de um outro colega que eu também considero bastante, o Marco Marzala, O Continente Estrevo do século XXI, não só, não é? Mas é, grandemente, para nos orientar porque é uma visão, não é uma história desplicitiva de ser exaustiva do que aconteceu na Europa durante o século XX, mas é realmente uma interpretação muito interessante que tem muito a ver com vários dos temas que nós fomos discutindo aqui, no fundo, da história europeia, das várias opções políticas na Europa e, obviamente, também situando aí o processo de construção europeia, mas no contexto de uma análise mais ampla. Exatamente. Há sempre que fazer opções e, no caso de algo tão ambicioso como fazer a história da Europa, mesmo só para um século, há que fazer muitas opções. Bruno, muito obrigado. Obrigado eu, mais uma vez.