#136 Steven Gouveia - Humor, ética da abstenção, epistocracia e altruísmo eficaz

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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45 Graus. Um excelente 2023 a todos e, em especial, obrigado aos novos mecenas do 45 Graus, à Cristina Loureiro, Paulo Ferreira, João Gama e ao Davi de Sousa. E agora, ao episódio de hoje. O que é a filosofia? O que é que distingue a filosofia contemporânea das outras áreas do saber? Na verdade, se pensarmos um bocado sobre o assunto, percebemos que não é nada fácil dizer exatamente de que é que trata a filosofia, sem deixarmos nessa definição algumas coisas de fora ou então, pelo contrário, sermos tão latos que acabamos por ser demasiado abrangentes. A minha definição preferida, aquela que, na minha opinião, vai mais ao amado daquilo que distingue a filosofia, é talvez aquela que diz que a filosofia é a busca por entender verdades fundamentais sobre nós próprios, o mundo em que vivemos e as nossas relações sejam com o mundo, sejam uns com os outros. Por outras palavras, a filosofia distingue -se das outras áreas do conhecimento não só por ter um foco incrivelmente amplo, basicamente não há tema que não seja passível de ser analisado filosoficamente, mas também, talvez até sobretudo, por tocar as bases do conhecimento, ou seja, por descer e questionar os fundamentos do nosso saber e das nossas convicções. É por isso que os filósofos são peritos em fazer -nos perceber que há pressupostos errados nos nossos raciocínios e convicções, de que nunca nos tínhamos apercebido, ou então que estamos a agir de uma maneira que, se formos pensar a fundo sobre o assunto, é errada ou pelo menos não é a maneira mais correta. Um dos campos da filosofia em que este tipo de reflexão pode gerar mais consequências práticas para a maneira como nós agimos e nos comportamos em sociedade é o campo da ética, também chamado filosofia moral. E esse é precisamente o tema do livro de Stephen Gouveia, que serviu de mote para este episódio, chamado Homo Ignarus – Ética Racional para um Mundo Irracional. O convidado Stephen Gouveia é doutorado em Filosofia e é atualmente investigador na Universidade Católica Portuguesa. A investigação do convidado abarca um leque muito amplo de temas, mesmo para um filósofo, desde a neurofilosofia da mente e a inteligência artificial, à ética aplicada ou à epistocracia. Tem publicado já mais de uma dezena de livros sobre estes temas e tem vindo também a organizar cursos online, que recomendo, sobre vários temas filosóficos e que contam com a participação de pensadores bastante conhecidos como Noam Chomsky, Roger Penrose ou Peter Singer, só para dar alguns exemplos. Neste livro, Homo Ignarus, o Stephen foca sobretudo em refletir sobre várias questões da ética aplicada a diversas áreas da nossa vida em sociedade. Como o subtítulo do livro indica, Ética Racional para um Mundo Irracional, o livro parte da noção das várias falhas da mente humana, desde a nossa cognição limitada aos nossos vieses cognitivos e, claro, às emoções que tendem sempre a meter -se no caminho da razão. Mas o livro é também, como vão perceber quando virem a capa, uma provocação em relação ao mundo em que vivemos hoje e que é um mundo que pode ser descrito a vários títulos como cada vez mais irracional, seja pela preponderância de fake news, dos apelos crescentes à emoção de vários tipos e pela ascensão de políticos populistas, só para dar alguns exemplos. Durante a nossa conversa, focámos -nos em três assuntos que o Stephen aborda no livro e nos quais aplica esta tal ética racional para nos levar a reanalisar os nossos pressupostos e as nossas ações e olhar de maneira diferente para estes temas. Os três assuntos que discutimos foram todos, já, de uma forma ou de outra, tema aqui no 45°. O primeiro foi abordado ainda muito recentemente no debate com o Recreador Lujo Pereira e Daniela Oliveira sobre humor e liberdade de expressão. O segundo, que podemos chamar a ética do voto e, de uma maneira mais cínica, os limites da democracia tal como a entendemos, lembram -me logo, e a vocês provavelmente também, a segunda parte do episódio conduzido a Hério Mouros. E o terceiro tema nunca teve, que me lembro, um episódio dedicado, mas de certeza que já foi referido no podcast, e é a questão do altruísmo eficaz, que é um movimento que partiu da filosofia mas que tem tido uma série de impactos no mundo de hoje, com cada vez mais pessoas a defender esta perspectiva. Espero que gostem, é uma conversa com um filósofo, portanto não é para todos, é para quem gosta, como eu, de filosofar, mas tenham a certeza de que, se estiverem a se pendor, vão gostar muito deste episódio. Até à próxima. Steven Gouveia, bem -vindo ao 45°. Obrigado, obrigado por me teres aqui. Vamos começar a falar de humor e liberdade de expressão, que é um tema que já tem sido várias vezes assunto no 45°, e que tu abordas no teu livro e tu começas exatamente pela posição que grande parte dos humoristas têm em relação a este tema, de dizer que não existe, basicamente, limites, e por limites aqui são, no fundo, limites morais ao humor, mas que acabam por dizer que eles não existem porque é como se fossem dois conjuntos que nunca se interceptam, não é? Sendo uma piada, uma piada, uma piada, uma piada, uma piada, uma piada, uma piada, uma pode ter qualquer julgamento moral, não é? E tu, embora depois o teu ponto de chegada não seja tão diferente assim desta posição, mas tu começas por discordar desta visão, explica lá porquê.
Steven Gouveia
Sim, basicamente é interessante porque grande parte dos humoristas, mas também o senso comum, tem muito esta ideia, a que eu chamo de tese amoralista do humor, que é basicamente dizer aquilo que tu disseste, que é que qualquer tipo de discurso humorístico não deve ser lido ou visto por uma lupa normativa ou ética. E por isso, é como uma consequência imediata disso, é que podemos fazer piadas, sobretudo porque o discurso humorístico teria esta proteção de qualquer tipo de humor. Quase um livre passe. Exato. Aquilo que eu defendo é que essa tese parece óbvia, mas que de facto há nuances que nós devemos pensar para perceber se ela de facto faz sentido ou não. E o que eu defendo é que, de facto, para já, que o humor, como qualquer outra coisa no mundo, sendo parte de um discurso, também deve ter uma espécie de bússola ética que o mede e que o ajuda a orientar. Ou seja, pelo menos na minha perspectiva, não há nenhum objeto no mundo que não possa ser avaliado eticamente e por isso o humor também deve ter essa propriedade. Só que essa propriedade vai depender de fatores como, falando agora especificamente do humor, por exemplo como quem conta determinada piada, em que contexto e claro com que intenção. Estes vão ser três fatores essenciais para percebermos.
José Maria Pimentel
Certo. Ou seja, não é a piada em si, pode ser moralmente correta ou incorreta, dependendo dessas variáveis.
Steven Gouveia
Exato, exato. E há uma distinção, então, que a maior parte das pessoas não faz, mas que eu acho que é absolutamente importante fazer, que é entre humor specimen e humor tipo. Humor tipo é, imaginem o script de uma piada, uma piada que está escrita num determinado guião, por exemplo. Muitas vezes as pessoas acham que nós já podemos fazer uma leitura moral de uma mera piada neste sentido de tipo, de ser só um script. Mas eu acho que há uma distinção entre este tipo de humor tipo e depois humor specimens que são indistanciações do humor tipo. O humor specimen já seria, então, o tal script da piada dito por alguém num determinado contexto com uma determinada intenção. Então aquilo que eu digo é que, de facto, os humoristas têm alguma razão quando dizem que o humor é neutro moralmente, no sentido de ser humor tipo, mas eu acho que, de facto, eles estão errados quando dizem que isso também poderia ser aplicado a humor specimens. Eu defendo ao contrário, que alguns humor specimens podem ser avaliados como moralmente problemáticos.
José Maria Pimentel
Tu defendes que todos podem ser avaliados moralmente e alguns serão moralmente problemáticos.
Steven Gouveia
Certo. Para percebermos bem, eu dou o exemplo no livro de... Imaginem que há um sujeito A, que é humorista profissional e que diz uma determinada piada sobre os judeus num espetáculo cego com a intenção de fazer rir o público. Agora imagina que esse mesmo humorista, por acaso, é um neonazi brutal e que no dia a seguir vai para um comício de neonazis dizer exatamente a mesma piada, mas com a intenção de ser maldoso moralmente. Eu defendo, então, que na primeira situação ele não está a agir imoralmente, mas que na segunda, embora seja também humor, ele está a agir imoralmente.
José Maria Pimentel
É engraçado tu teres dado esse exemplo, porque eu estava... Quando estava a ler o livro e me cruzei com esse exemplo, tive duas reações em sequência. A primeira foi pensar, bom exemplo, porque de facto é um excelente exemplo para fazer essa distinção, mas por outro lado, não sei se tu partilhas esta visão, e isto tem que ver até com a posição de alguns humoristas a esta visão a que estavas a dar hoje. Tu não achas que há algo de inverosímil nessa situação, na segunda? Ou seja, eu acho que a última coisa, posso estar a ser ingênuo, mas acho que a última coisa que eu imagino um congresso neonazis é estar a contar piadas, por outras palavras. O antissemitismo deles é demasiado sério para se compaginar com o humor, com uma graça. E isso tem que ver com muitas vezes uma defesa, eu lembro do Ricardo Araújo para ter dito isso no debate que gravámos em Óbidos, de uma defesa comum dos humoristas que é dizer, na verdade o humor não tem bem esse papel de exclusão. Nós podemos considerar que ele, e é verdade que ele muitas vezes serve para perpetuar determinados estereótipos, mas são estereótipos sobre quem está dentro do grupo, dentro da comunidade. Não são... Quando se trata de ódio, ninguém faz piadas. Certo. Não sei se tu partilhas esta visão, atenção, isto é discutível.
Steven Gouveia
Sim, eu acho que é discutível no sentido em que o humor, como qualquer outra prática humana, requer uma espécie de conhecimento tácito e implícito entre os seus proponentes, entre por exemplo o comediante e o público. Ou seja, há uma série de crenças que é preciso estarem ativas para que o riso aconteça, por exemplo. E por isso acho que não é muito forçado dizer que, de facto, o humor também pode ter um papel político da exclusão, embora, na sua maior parte, não o tenha, não é? Eu acho que podemos fazer essa distinção. Agora, eu acho que um assunto diferente, que muitas vezes acho que as pessoas podem interpretar mal é o facto de eu defender que, em alguns momentos, há de facto humores péssimas que são imorais, isso para mim não implica que, por exemplo, o humorista deva ser censurado ou deva ser privado da sua liberdade de expressão. Eu defendo que qualquer tipo de discurso pode ser dito e pode ser usado, agora, pode acontecer que, de facto, o humorista esteja a usar o seu direito de liberdade de expressão e, mesmo assim, ao mesmo tempo, possa estar a ser maligno moralmente, quando poderia não ser, não é? Eu acho que é uma conjugação que é possível de...
José Maria Pimentel
Essa distinção é importante e está presente, tem vários aspectos ao longo do livro e eu simpatizo bastante com ela, até porque eu próprio muitas vezes uso essa distinção. Uma coisa é a opinião que nós temos sobre esta questão e nós podemos considerar que existe ou não um humor moralmente incorreto, outra coisa depois é o que nós consideramos que se deve fazer em relação a isso e nós consideramos, como tu dizias, podemos considerar que não deve haver censura, mas isso não implica que deixemos de considerar que há humor censurável, no sentido mais lá do termo. Sim. E aqui eu também...
Steven Gouveia
Deixa -me atacar mais um bocado os humoristas porque, muitas vezes, os humoristas, eu acho que também usam muito este apelo da censura quando, de facto, o que eu acho que está a acontecer não é censura nenhuma, não é? Uma marca, por exemplo, imagina um festival que convida um humorista para falar e depois, por causa de uma piada, já não o quer como orador. Eu acho que, nesse caso, não há nenhum tipo de censura, o que há é apenas uma organização ou conjunto de pessoas que decidiu que aquele orador já não seria adequado para as pretensões que teriam. Ah, sim. O mesmo com as marcas ou com as televisões, o Facebook, por exemplo, tem todo o direito de não querer associar a sua imagem a um humorista que, por diversas razões, sejam elas qual for, considera que não são próprias para a influência da própria marca, seja um jornal, seja... Ou seja, a censura normalmente é estetal, não é? Tem que ser um governo que, por algum motivo, quer silenciar o determinado indivíduo por razões políticas ou sociais. Eu acho que, muito raramente, aconteceu isso em relação aos humoristas. Eu aí discordo -te.
José Maria Pimentel
Ou, por outro, percebo perfeitamente o que tu queres dizer, mas eu não acho que a censura... Ou, por outro, não acho que possamos chamar censura apenas à censura na lei, ou seja, acho que há um contínuo de censura. É difícil entender, quer dizer, não vamos chamar censura à crítica, não é? Ou seja, tu ou eu, somos humoristas, mandamos uma piada, somos criticados, não podemos chamar a censura a isso, como é lógico. Mas há aqui um contínuo em que, e nós hoje em dia vemos isso em muitos casos, começa a surgir uma pressão que, quando é de um número suficientemente de pessoas, suficientemente vocais ou com um suficiente poder, já pode ficar muito próxima desse tipo de censura. Porque se tu consegues fazer um barulho tal e uma pressão tal, que essa pessoa vê cancelada uma série de programas que tinha feito e deixa de poder trabalhar, quer dizer, estou aqui a dar um caso extremo, não é? Tu dizes, sim, não será a censura, não é? Mas as consequências estão próximas, não é?
Steven Gouveia
Certo, mas isso faz parte do jogo democrático, não é? Da liberdade de expressão e de escolha das empresas, também.
José Maria Pimentel
Claro, claro. Ou pronto, eu também não sei qual é a solução para isso, não é? Certo, certo. Ou pronto, eu acho que a solução para isso é uma espécie de movimento no sentido contrário de dar espaço às pessoas, não é? Mas acho que é verdade que muita gente, e os humoristas em particular, muitas vezes são, se calhar, extra sensíveis em relação a isso, quando na verdade faz parte, não é? E hoje em dia há mais gente que tem acesso a meios de comunicação e, portanto, faz parte que isso aconteça. Mas é verdade que há situações hoje em dia em que tu não tens uma censura, tu curas, mas tens aquilo que é na prática uma censura, não é? Em que a pessoa está... Embora nem ache que os humoristas sejam aqueles que se podem queixar mais disso. Mas eu acho que o papel do humorista é muito importante.
Steven Gouveia
Eu acho que podemos, por exemplo, avaliar a qualidade de um país através do valor que eles dão ou da liberdade de expressão que dão aos humoristas. E nós sabemos, historicamente, até que as ditaduras, as duas primeiras coisas que fazem normalmente é banir o filósofo e banir o humorista. E isso mostra também o caráter disruptivo. É, é isso. É o que eu tinha pensado nisso, sim. Sim, sim. Porque a filosofia e o humor são muito parecidos com aquilo que fazem, se repararem. Desconstrução. Eles são muito disruptivos das crenças comuns, tentam sempre apanhar um ângulo que escapa à maior parte das pessoas e, nesse sentido, claro, eu não estou a defender que os humoristas devam ser silenciados ou de outra coisa. Agora, estou a dizer que uma população pode, de facto, não gostar da piada por determinadas razões e essas razões podem ser legítimas, mas isso faz parte da liberdade de viver em democracia, no fundo, não é? Sim, e a liberdade de expressão.
José Maria Pimentel
Voltando ao modelo que tu propunhas, tu dizes que para avaliar a qualidade moral, se quisermos, a piada é essencial, não apenas ela está a olhar para o humor tipo, ou seja, para uma piada escrita, vamos supor, isolada, não é? Porque, no fundo, essa distinção conceptual, aquilo que está a destacar é que uma piada apenas escrita e isolada, não mostrada a ninguém, se quisermos, no limite, não é boa nem mais moralmente. É neutra porque ainda não pode ser julgada dessa forma. E para a julgar depende de quem é que a diz, em que contexto e com que intenção. E eu concordo com esse modelo, na verdade, quando estava a ler esse capítulo do livro estava a pensar exatamente nesse tipo de variáveis. Há outra que tu não falas, eu tenho curiosidade de saber o que é que tu achas em relação a isso, porque está, de certa forma, relacionada com isto, mas é um pouco diferente e tem que ver com muito daquilo que se diz hoje em dia em relação ao humor, que tem que ver com o poder do humor, se quiseres, ou seja, as consequências que pode criar. Porque, no limite, se nós assumíssemos que o humor era inócuo, e, por exemplo, a tese do Ricardo é um bocadinho nessa linha, é dizer, o humor não pode agredir, se ele não pode agredir, tudo o resto é irrelevante, não é? Estás a perceber? Sim, sim, sim. Se o humor é inócuo, de pouco serve, se foi dito por um neonazi num congresso ou se foi dito por mim à minha avó, é absolutamente irrelevante. Se nós considerarmos que o humor pode agredir, isso já passa a ser irrelevante e é tão mais relevante quanto nós mais considerarmos que o humor é agressão, ou é uma possível forma de agressão, não é?
Steven Gouveia
Certo. Sim, eu percebo o ponto do Ricardo Arouso Pereira, mas se nós olharmos para a história do humor, por exemplo, o humor foi muito usado como crítica social, crítica política, lembrem -se de Chaplin, não é? O ditador. Ou seja, dizer que o humor é inócuo é como dizer que as palavras são inócuas, no sentido de que, de facto, as palavras pelas palavras, se calhar, não têm nenhuma força normativa. Agora, as pessoas com as palavras já podem ter alguma força normativa, mas eu acho que o ponto central é que, nesse caso, eu acho que muitas das pessoas que ficam afetadas por humor é porque não compreendem a natureza da prática humorística, ou seja, eles têm um pensamento falacioso acerca daquilo que é a ontologia do humor, porque de facto o humor é um discurso sobre a realidade, como muitas pessoas, por exemplo, defendem. As pessoas ficam ofendidas porquê? Com uma piada sobre uma doença, porque ou a própria pessoa tem essa doença e por isso acha que o humorista está a falar dela, o que seria um absurdo, não é? E também, ou porque a pessoa conhece familiares que sofrem com essa doença, mas, seja como for, o estado cognitivo daquela pessoa é acreditar que o humorista está a falar da doença, pessoalizada n 'alguém, mas, de facto, o humorista não está a fazer isso, está apenas a usar abstrações, está a usar criatividade e está a apelar a ficções, e isto é que é importante, para fazer o seu humor. E muitas das pessoas, às vezes, ficam afetadas com o humor e aquilo que eu defendo é que ficam afetadas porque, de facto, não sabem qual é a verdadeira natureza do humor. O humor é uma prática artística como o cinema, como a pintura, como a poesia, como a música e, como a prática artística que é, é baseada em ficções ou em caricaturas da realidade, mas que não são reais, não é?
José Maria Pimentel
Mas tem... Eu percebo e até simpatizo bastante com essa visão, mas fazer um bocado de Advogado do Diabo tem alguma ligação à realidade, ou seja, a primeira parte do humor que é... tem um lado de intervenção, não é, que nós podemos considerar que é mais ou menos eficaz, mas que tem esse objetivo, por exemplo, o ditador do Chaplin, não é? Era claramente uma crítica política, não é, que ele estava a fazer troça de alguém sobre quem, presumivelmente, ele não tinha grande visão e estava a enfatizar o ridículo para fazer humor, em primeiro lugar, obviamente, aí convém não trocar a ordem das duas coisas, mas também para fazer esse tipo de crítica. E muitas vezes quem critica determinadas piadas está a criticá -las porque considera que há alguma intencionalidade por trás delas, ou seja, que não é só uma piada,
Steven Gouveia
não é? Pois. Sim, ou seja, o que as pessoas normalmente fazem...
José Maria Pimentel
Se alguém fizer uma piada machista, por exemplo, ou seja, acusar com as mulheres, considera que aquilo está a perpetuar aquele estereótipo. Sim, o que as pessoas normalmente fazem são duas coisas.
Steven Gouveia
Primeiro, atribuem as crenças que o humorista está a dizer como se fossem dele, não é? Como se fossem crenças reais que ele acredita. E depois também fazem outra coisa que é, se uma pessoa se ri dessa piada, acreditam que a pessoa partilha dessa crença. E, de facto, eu acho que isto só, lá está, é um tal erro falacioso de achar que o discurso humorístico é um discurso ultra -realista sobre as crenças do humorista ou de outro tipo.
José Maria Pimentel
Mas tu achas, não fazendo aquilo de advogado do diabo, tu achas que ele... Claro que não é ultra -realista, não há aqui um contínuo, mas tu achas que ele não tem nada a ver com as crenças do... Se formos honestos, não é? Achas que a grande parte do humor não reflete as crenças da própria pessoa? Eu acho que é irrelevante.
Steven Gouveia
Eu acho que tanto pode como não, porque o papel do humorista é fazer rir. E fazer rir o maior número de pessoas possível. Ou seja, para mim, as crenças do humorista são irrelevantes.
José Maria Pimentel
O teu modelo não pode ser irrelevante, não é? Porque imagina, tu tens um... Não, as crenças da pessoa são irrelevantes. Então, mas repara nisto. O teu modelo implica precisamente que elas não sejam irrelevantes porque elas são fundamentais para perceber a intenção. A intenção. Percebes o que eu quero dizer, não é? Tens um humorista que é reconhecido. Alguém que sabe que é um... Sim, sim. ...pisógeno do pior, por exemplo. E depois há outro que é um ativista feminista, por exemplo. E ambos dizem uma piada machista, tu do segundo percebes que ele está a gozar, não é? O primeiro provavelmente teria mais críticas. Não sei se corretamente ou não, não é?
Steven Gouveia
Sim. Mas nesse caso, imagina, a intenção não tem a ver com a crença que a pessoa tem. A intenção não tem a ver com se ele quer fazer rir ou se ele quer ser malicioso.
José Maria Pimentel
Percebes? Mas é possível separar mesmo as duas coisas? Eu acho que sim. Se calhar é mais difícil de perceber com o humor.
Steven Gouveia
Mas imagina um ator que tem que interpretar um filme, um papel de sociopata, machista, e que isso não representa nada dele, não é? Claro. Nós podemos distinguir entre a intenção dele querer fazer um bom papel ou então a intenção dele, por exemplo, numa cena estar a violentar realmente a sua colega atriz para ser malicioso, percebes?
José Maria Pimentel
E há quem não faça essa distinção, não é? Depois na rua alguns atores têm esses problemas.
Steven Gouveia
Sim, sim. Que é mais uma vez uma falácia das pessoas de confundirem os níveis entre ficção e realidade.
José Maria Pimentel
Claro, eu percebo. Estou um pouco a fazer advogado do diabo, mas eu acho que é incontornável que essa distinção no humor é bastante mais vazia, não é? Bastante menos clara, menos cristalina, porque o humor é tu próprio, não é? E depende, até no episódio com o Salvador Martinha falávamos disso, é uma parte importante da graça que tu achas a determinado humorista, o carisma daquela pessoa e de conhecê -los o traço, ou pelo menos teres a percepção de que conhece. E portanto a pessoa e a piada são inseparáveis, não é? Convém, não a sobrepor completamente, não é? Porque senão lá está, deixava de ser piada. Mas há ali um grau de sobreposição, não é? E é esse grau de sobreposição que implica que a mesma piada feita por duas pessoas diferentes não seja lida da mesma forma, não é?
Steven Gouveia
Eu acho que o que o humorista faz é fingir, não é? Que se dá pessoalmente à sua audiência. Eu acho que é isso que ele faz. Eu acho que há sempre uma distinção entre quem conhece o humorista pessoalmente e quem conhece através dos espetáculos, não é? Ninguém é a mesma pessoa.
José Maria Pimentel
Sim, claro. É uma percepção que a pessoa tem. E este é um tema que tem... Eu aqui divido -me um pouco porque, embora eu até conceptualmente acho que, claro que há uma carga, uma avaliação moral que nós podemos fazer do humor, parece -me que este tema ganha um peso maior porque muitas vezes as piadas são descontextualizadas, não é? Sim, claro. Perde -se a noção de qual foi a intenção com que aquela piada foi dita e quem é que estava ali a ouvi -la. E muitas vezes pressupõe -se... E eu acho que uma variável que teria grande poder explicativo da reação das pessoas ao humor hoje em dia é quem é que tu pressupões que está na audiência, não é? Quem é que tu pressupões que está a ouvir aquilo, não é? E se tu, sei lá, se ouvires uma piada que reforça um estereótipo qualquer e consideras que as pessoas que estão na audiência são razoáveis, aquilo é mais ou menos inócuo, não é? Mas muitas vezes as pessoas pressupõem que quem está na audiência são pessoas... Era aquilo que tu dizia há bocadinho, não é? São pessoas elas próprias maliciosas e que aquilo depois vai produzir um mal que é de perpetuação daquele estereótipo na sociedade, não é?
Steven Gouveia
Certo, mas eu não acho que isso seja um problema do humor em si mas que é um problema de algumas pessoas terem crianças maliciosas em geral, percebes?
José Maria Pimentel
Sim, exato. E depois não sei qual é a tua opinião sobre isto mas depende se nós achamos que o humor reforça ou pelo contrário atenua esse tipo de crianças maliciosas e eu até acho que o humor tende no global a atenuar ou seja, a jogar contra elas e não a favor delas.
Steven Gouveia
Eu acho que se as pessoas perceberem a natureza do humor nem pode reforçar, nem pode... Achas que é neutro? Acho que seria neutro porque ninguém pode... Lá está, ninguém pode ser influenciado. As crenças ficcionais de uma piada não podem influenciar as crenças reais de uma pessoa. Não, mas espera, espera. Tu estás a dizer que não devem fazê -lo, não é?
José Maria Pimentel
Mas eu estava a perguntar... A minha pergunta era descritiva, é se tu achas que na realidade isso acontece
Steven Gouveia
ou não. Isso é uma pergunta perfeitamente empírica que até se pode... É empírica? Sim, sim, claro. Que até se pode estudar empiricamente. Desculpa, não queria insultar -te com uma pergunta empírica.
José Maria Pimentel
Os filósofos ficam muito chateados. Mas acho que também faz sentido irmos lá. Claro, claro. E há um último tema sobre o humor que tu abordas que eu achei interessante que está relacionado com isso, mas não é bem a mesma coisa que é a relação entre o elemento moral e o valor estético da piada. Ou seja, por outras palavras, tocar um tema moralmente sensível tende a dar graça à piada e até a poder ser essencial ou pelo contrário, jogar contra ela. E esta é uma questão interessante. Eu acho que varia, basicamente, consoante o tipo de piada, não é? Porque pode haver piadas que sem estarem a tocar nesse tema difícil nesse tema, muitas vezes, em relação ao qual existe um tabu não teriam graça. Mas há outras que podem fazê -lo de uma forma que afasta as pessoas, não é? E isso existe, não é? Claro que existe mesmo... Acho que não há ninguém que se ria de todo o tipo de piadas. Há sempre alguma piada que te causa repulsa e que basicamente quebra aquele efeito do humor e tu deixas -te rir porque tocou num tema que já não
Steven Gouveia
tem graça. Exato. Sim, basicamente, muito explicitamente, a ética do humor pode ser dividida em três sub -áreas. A primeira foi a que falámos que é a ética do humor em si, não é? Das piadas. A segunda seria será que é imoral rirmos de piadas com conteúdo imoral? Essa seria uma segunda pergunta. E a terceira seria exatamente essa. Será que o conteúdo imoral numa piada influenciou -se ao valor estético? E de facto há várias teorias que procuram tentar dar uma resposta a esta pergunta que é normativa, não é? E tentam, por exemplo, uma teoria tenta dizer que enquanto mais conteúdo imoral problemático, mais piada, basicamente. Mais piada em termos qualitativos. Há outra teoria que nega esta teoria e diz que enquanto mais conteúdo imoral pior para a piada e aqui o pior é sempre para alcançar o objetivo do humor que é o riso, não é? Fazer riso. Sim, menos graça. Mas há outras que dizem que é mais ou menos neutro. Agora, eu acho que nós podemos usar, por exemplo, as teorias do humor, que nós não falámos sobre isso, mas há várias teorias que tentam explicar o que é o humor. E aquela que eu tendo a achar muito interessante é a teoria da incongruência. A teoria da incongruência diz que nós fazemos piada com coisas que são incongruentes entre si. Por exemplo, o Mr. Bean, não é? O Mr. Bean é uma pessoa que se comporta de uma forma tão diferente de todos nós, que nós achamos aquilo tão diferente que aquilo causa -nos riso. As variadas peripécias do Mr. Bean causam -nos risos, não é? E nós podemos também dizer, então, usando a teoria da incongruência, podemos dizer que por exemplo, um tema imoral profundamente agressivo tem este elemento de incongruência imoral que então leva a uma possível piada. E pronto, isso precisa de uma explicação em que, de facto, o valor qualitativo da piada aumenta, consequente, o valor imoral da piada. E é uma incongruência.
José Maria Pimentel
Eu acho que aí também no caso destes temas tabus, entra aquela outra tese, que eu já não me lembro de quem aqui era, mas tu referes também no livro do humor enquanto meio de aliviar tensões sociais subjacentes. Ah, certo. Sim, sim. É a teoria freudiana da libertação. Freudiana. Exatamente. Mas, também tem um elemento dessa incongruência no sentido em que muitas vezes tocam em temas que tu é como se o teu cérebro tivesse uma barreira para ir lá, tu sabes, neste tema não devo tocar, não devo dizer este tipo de coisa. Portanto, a incongruência está aí, de repente ali podes dizê -lo. É fazer o salto.
Steven Gouveia
O salto, exatamente. Por temas tabus, normalmente. Se calhar em Portugal, não sei se a religião é ainda um tema tabu, mas piadas sobre Deus, sobre o sexo, normalmente, sobre, sei lá, assassinos, canibalismo, pronto.
José Maria Pimentel
E tudo o que é, por exemplo, há aqui um paradoxo grande, eu lembro de falar disso com o Ricardo no primeiro episódio, que é quanto mais tu enfatizas que não se deve fazer humor com, por exemplo, minorias, mais isso se torna um tema tabu e mais graça vai ter quando alguém fizer. Certo, certo. Porque tornaste ainda mais apetecível aquele tema, porque é um tema em que normalmente não se toca, que é uma espécie de paradoxo, de ricochete dessa
Steven Gouveia
tentativa. Sim, o humor negro acho que é um exemplo perfeito disso. O humor negro não está tão preocupado com fazer piadas. O objetivo é mesmo o que é que eu posso dizer que a pessoa mais puritana possa ficar completamente ofendida. É este o objetivo. E isso causa risco, claro. Porquê? Porque ninguém que faz uma piada de humor negro acredita naquilo que está a dizer, não é? É o melhor instrumento para alcançar o objetivo. Sim, presumivelmente. Há quem não partilhe dessa tua opinião.
José Maria Pimentel
Mas eu também acho que não. Depois há quem apanha a parte do negro à frente do humor o que resulta em coisas que são de mau gosto sem ter piada, não é? Que é o desafio de fazer esse tipo de humor. Claro, claro. Olha, passando ao outro tema que eu queria abordar do teu livro, a que tu chamas a ética do voto. É um tema interessante porque no fundo tem que ver com a questão de análise é como é que nós devemos olhar para o nosso dever de votar se existe ou não dever de votar e como é que nós devemos fazer as nossas escolhas à luz desse dever. E é interessante porque é um tema que ressoa com a segunda parte do episódio com o Zidério Mouros, que eu depois coloquei no livro e também abordo um pouco na segunda parte do livro e tu tens uma visão que é ter alguns pontos em paralelo, embora tu disseste quando estávamos em Day Of que tem algumas diferenças. Vai ser interessante discutir isso. Resumidamente, o que tu dizes é que defendes que, e é interessante esta tua posição, tu defendes que as pessoas se não estiverem devidamente informadas têm o dever de não votar. O que é interessante porque vai contra aquele discurso normal, meio beatífico, sobre a abstenção, de que as pessoas iam no fundo todas votar e quanto menos abstenção melhor. E tu dizes, não, a abstenção não é necessariamente má até é boa se as pessoas não souberem. As pessoas têm o dever moral, não sabendo de não votar. E isto é muito... Eu acho que tu não citas o Clifford, mas isto lembra muito a ética da crença do Clifford. No fundo é parecido, embora aqui não seja em relação à crença, mas em relação aos comportamentos que tu tens, não é? Mas no fundo é parecido porque é que tu dizes que a pessoa tem a obrigação moral de se abster em vez de ir votar mal, ou seja, de maneira desinformada. Sim, pronto.
Steven Gouveia
Esta minha posição vem de um problema que eu acho muito importante na democracia atual, que é o problema da desinformação política, não é? Ou da ignorância política. E, de facto, aquilo que eu defendo é... São duas coisas. Primeiro que, ao contrário daquilo que a maior parte das pessoas acha, eu não acho que haja nenhum dever ou obrigação moral de votarmos numa eleição. Agora, o caso muda se nós quisermos, de facto, participar ativamente nessa eleição. Eu aí já acho que nós temos uma obrigação moral de nos informar antes de fazermos esse acto. Para dar mais, assim, um contexto para as pessoas também perceberem porque é que isso faz mais sentido do que parece, nós, de facto, sabemos que a democracia atual tem um grave problema, que é o problema do incentivo ao conhecimento. A democracia, normalmente, é definida por rule of the people, não é? A ideia de que todas as pessoas na sociedade têm o mesmo poder. Mas, ao contrário daquilo que, por exemplo, o John Stuart Mill defendia, o Mill tinha esta ideia, que eu acho muito engraçada, ou ingénua, que se as pessoas falassem entre si, debatessem politicamente entre si, isso ia fazer com que o todo da sociedade pudesse melhorar os seus níveis epistémicos e, por isso, também tornar -se uma melhor sociedade em geral, em termos de direitos humanos e de justiça. Mas, de facto, eu acho que aquilo que as evidências empíricas nos mostram é que o Mill estava completamente errado em relação a este pressuposto empírico sobre os cidadãos e há outro pensador que eu acho que acertou muito mais, que é o Joseph Schumpeter, eu não sei dizer o nome, ele é austríaco, não é? Economista e filósofo, cientista político. E ele, basicamente, defendia esta ideia de que, a partir do momento em que uma pessoa entra na arena política, torna -se logo infantilizada, torna -se, de certa forma, ignorante e irracional. E porquê? Porque nós podemos dizer que a democracia, de facto, obriga -nos a restringir, não é? O nosso pensamento. Quando nós vamos votar numa eleição, nós geralmente temos que votar ou num partido ou no outro, ou temos mais duas outras opções, mas, de facto, aquilo que a democracia faz é restringir muito da forma como nós podemos pensar, não é? E isso é um problema porquê? Porque a maior parte das pessoas não tem capacidades cognitivas para saber sequer aquilo que é bom escolher para si mesmo. E por isso é que a democracia pode ser um problema.
José Maria Pimentel
Quando dizes capacidades cognitivas, desculpa, estás a referir a quê? A conhecimento? Sim. Ou a capacidade do cur? A capacidade da epistémica, basicamente.
Steven Gouveia
Ou seja, conhecimento. Sim. A maior parte das pessoas desconhece fatores absolutamente relevantes para votar e conhece fatores absolutamente irrelevantes para votar. Por exemplo, o nome do cão dos candidatos ou com quem é que ele é casado ou coisa assim. Mas não conhecem, por exemplo, qual foi a posição que aquele candidato teve em relação a problemas reais como a eutanasia ou sobre os impostos ou sobre os imigrantes, etc. E, de facto, isto não é só uma tese negativa da minha parte, mas nós temos muitos estudos empíricos que mostram que a maior parte das pessoas, quando vota, está absolutamente desinformada e, além de estar desinformada, está mal informada. Que são dois níveis epistémicos diferentes, não é? Porque uma coisa é, por exemplo, sermos um cidadão ignorante que simplesmente não conhece. Outra coisa é ser um cidadão que conhece informação enviesada e que, por isso, ainda toma decisões piores do que a pessoa que não conhece. E nós podemos até explicar porque é que isto acontece. Porque é que a democracia obriga, de certa forma, a que os seus cidadãos não tenham capacidade epistémica para fazer um voto informado. Isso tem a ver exatamente com a natureza da democracia. A democracia veio substituir um regime ditatorial que punha em poucas mãos o poder político todo e a democracia veio, e bem, expandir o poder por toda a gente. Alargar, sim. Só que, quando alargamos o poder político por tanta gente, aquilo que acontece é um paradoxo. Que é, cada pessoa, cada voto individual, deixa de ter qualquer impacto numa eleição. E é interessante porque as pessoas reconhecem isto. Elas reconhecem racionalmente que, talvez, fazendo uma análise custo -benefício, mais vale ser indurante ou irracional em relação à política do que ser racional. Porquê? Porque imagina que eu quero votar e quero ser informado. Eu vou me informar, vou ler os programas todos, vou saber da lei eleitoral, vou passar horas e horas a analisar vários documentos para poder fazer um voto informado, mas eu sei que, ao meu lado, o meu irmão, por exemplo, não quer saber disso para nada, só vai ficar a ver a seleção a jogar e não vai ter qualquer tipo de informação relevante. Agora, o interessante é que nós todos vamos votar e temos exatamente o mesmo poder entre nós. Eu tenho um voto, o meu irmão, que é desinformado, tem outro voto e, de facto, a maior parte das pessoas fazem aquilo que os economistas chamam de... entram neste processo de ignorância racional, que é, basicamente, racionalmente concluírem que não vale a pena tornarem -se votantes informados porque o poder que elas vão ter vai ser quase zero.
José Maria Pimentel
Mas, calhar, elas racionalmente concluem também, e isto vai ao encontro da tua tese, que não vale a pena sequer votar. Sim, sim, sim. Mas lá está.
Steven Gouveia
E por isso é que o apelo ao voto indiscriminado, não é? Porque é o que acontece muito é, vamos votar pelo voto, não é? Só porque é um ato coletivo que nós devemos fazer. Eu acho que isso é perigoso, porquê? Porque não chama a atenção ao facto de que o voto só é interessante moralmente se for um voto informado, não é? Até porque, se nós tivermos pessoas informadas a votar, a probabilidade de elas fazerem um voto informado, obviamente que vai ser baixa, não é? E isso, claro, impacta depois na qualidade dos governos e nas qualidades das leis e nas qualidades depois da justiça em geral e até de com quanto dinheiro cada pessoa vai acabar o seu mês, não é?
José Maria Pimentel
Este é bem interessante porque esta discussão sobre, no fundo, quem deve votar e, paralelamente, uma certa desconfiança depois, uma vez alargado o direito de voto a toda a gente, uma certa desconfiança em relação aos eleitores é uma coisa que vem desde sempre desde o início da democracia moderna, desde o início até da ciência política e agora ressurgiu por motivos evidentes, e tu já referiste há bocadinho porque vivemos numa altura em que deixou de haver barreiras à circulação da informação tens muita informação falsa a circular opiniões patetas a serem passadas, vejo candidatos populistas e ignorantes a terem imenso sucesso e, portanto, de repente as pessoas voltaram, no fundo, esta desconfiança voltou à tona. E é engraçado porque se tu fores olhar para o trabalho empírico que tem sido feito em relação a isto, isto é uma discussão que existe desde sempre e persiste, por exemplo, na ciência política, sobre tu tinhas trabalhos mais céticos do John Zeller, por exemplo, em relação à qualidade do eleitor médio, se quiseres ao grau de informação do eleitor médio, depois tiveste outros trabalhos a seguir a esses que iam no sentido contrário do Robert Page e do Ben Shapiro por exemplo, é que no fundo diziam que eu lembro até do Pedro Magalhães ter falado disso aqui no podcast que, já não sei se era dos trabalhos dele especificamente mas que quase por magia é um bocadinho como aquele sistema de tribunais nos Estados Unidos, se a pessoa concordar com isto é quase por magia as pessoas acabavam por, mesmo não especialmente informadas tomar decisões racionais racionais no sentido de serem consistentes ao longo do tempo de usar a informação adequada e de reagirem, no fundo, adequadamente a mudanças sei lá, na economia, ou de escândalos do governo mas isto são duas visões completamente diferentes empíricas, do ponto de vista estritamente filosófico, é quase impossível a pessoa não concordar, pelo menos em parte, com a tua tesne porque, de facto, as pessoas é evidente que primeiro, e eu digo isto, acho que até com Salvador até começa o livro, a primeira parte do livro diz exatamente isto, a política é incrivelmente complexa, porque toca todo tipo de áreas, todo tipo de de facto, desde o mundo social a economia, o mundo natural é uma matéria tão complexa que nenhum de nós consegue absorvê -la completamente e ter uma opinião rigorosa em relação a todos os temas quanto mais pessoas que não estejam atentas regularmente à política qualquer um de nós é persuadido por esse argumento de que a pessoa devia ter um limiar mínimo de conhecimento seja ele imposto externamente ou imposto pelo próprio enquanto um imperativo ético para ir votar.
Steven Gouveia
De facto aquilo que tu dizes de que esta discussão da ignorância política já vir desde o nascimento das democracias é de facto real, mas é interessante porque muitos desses pensadores acreditavam numa coisa que podemos chamar do milagre da teoria da agregação que é basicamente uma espécie de teorema que mostraria supostamente, matematicamente que o facto de haver muitas pessoas desinformadas não seria um problema para o resultado final porquê? Porque esses votos iriam anular -se um ao outro por serem aleatórios e por isso apenas os votos informados iriam ser relevantes para a escolha do governo mas de facto este teorema está errado, matematicamente e também empiricamente porquê? Porque nós sabemos através de muitos estudos empíricos, sólidos que as pessoas ignorantes não fazem escolhas aleatórias mas por serem influenciadas por diversos vieses as suas escolhas são não aleatórias e isso destrói logo a partir da estrutura matemática do teorema os democratas hardcore eles também aceitam a tese de que a ignorância política é um problema mas eles achavam que ela não tinha impacto que poderia acontecer mas de facto nós sabemos que o teorema da agregação é falso e por isso o impacto da ignorância política nos resultados democráticos é real eu acho que nós temos que pensar pelo menos alternativas para justificar moralmente a democracia porque a democracia eu acho que tem um problema de justificação moral neste momento o desafio da moral
José Maria Pimentel
é que a moral engloba várias coisas e aqui, por exemplo, se nós olharmos para isto de um ângulo diferente, primeiro como nós falávamos agora, esta é uma questão que existe desde sempre e se nós pensarmos é argumentável dizer que a história dá razão aos universalistas no sentido em que se tu vires, por exemplo, um mil, por exemplo, já falaste do John Stuart Mill há bocadinho, que era um tipo altamente à frente do seu tempo e era bastante desconfiado em relação ao voto universal com uma tese muito parecida com esta não era do epistémico, ou seja, não era ao nível da aquisição de conhecimento mas ao nível das capacidades, da competência do grau de educação até se alvo erro e que lá está, conceptualmente é defensável na verdade tu depois tiveste a extensão do sufrágio de forma universal e a coisa aparentemente correu bem ou achas que não? se olharmos para os últimos anos pode parecer que não mas se olharmos para os últimos 100 ou 150 eu acho que é preciso terminar com a pergunta
Steven Gouveia
que tu fazes, ou seja, eu concordo obviamente que se nós olharmos para diferentes outcomes das democracias atuais elas funcionam relativamente bem, agora o ponto que eu quero pôr a debate é se nós podemos pensar algum modelo que funcione melhor em termos de justiça do que aquilo que nós temos atualmente.
José Maria Pimentel
Ok, boa, então deixem -me dizer uma coisa que eu agora não disse mas era por isso que eu dizia que a moral tem várias interpretações é que há outra lente moral pela qual tu podes olhar para isto, atenção é preciso fazer uma nuance para quem nos está a ouvir tu não propões que as pessoas estejam proibidas de votar tu instas as pessoas a terem o imperativo moral de não ir votar que é diferente, eu entendo essa diferença mas se calhar aqui para efeitos da discussão podemos estramar um bocadinho a coisa e alguém que nos está a ouvir pode dizer, bom, mas o problema é que as pessoas menos informadas tendem a ser também as pessoas de estratos socioeconómicos mais baixos, por exemplo, com menos escolarização, e portanto ao excluir essas pessoas do voto tu estás a excluir os interesses delas as necessidades delas de serem representadas no voto.
Steven Gouveia
Certo e só aconteceria se as próprias pessoas e as próprias minorias pudessem representar os seus interesses através do voto mas nós sabemos primeiro que essas pessoas não conseguem identificar quais são os seus interesses, aquilo que é melhor para eles, depois também sabemos que o voto não é um instrumento útil para representar os interesses individuais lá está, porque o voto em si, quando estamos a falar de democracia estamos a falar de milhões de pessoas a votar em vários partidos, ou seja, o teu voto só poderia ter algum impacto numa eleição onde não houvesse muito poucas pessoas e apenas algumas pessoas bom, mas enfim, essa é uma limitação de partida sim, mas por causa disso e aplica -se a tudo, isso também se aplica aos que votam sem dúvida, mas e essa objeção que nós conhecemos chamada da objeção demográfica que é exatamente dizer que as pessoas normalmente em classes mais fragilizadas têm de facto menos conhecimento isso é uma objeção também ao próprio sistema democrático, não é? Porque essas pessoas atualmente também não têm tanto acesso, nem tanta voz política por causa disso mas teriam menos ainda. Eu não vejo porquê que, imagina, se houver um grupo mais informado de pessoas a votar elas próprias vão incluir os interesses dessas minorias nas decisões democráticas que eles tomaram. Acho que sim, isso não é o tópico Não, eu não acho que seja o tópico, porquê? Porque é baseado, nós sabemos, por exemplo há uma correlação entre conhecimento e bem moral, digamos assim, ou justiça nós sabemos que as sociedades mais evoluídas têm maior nível de educação o conhecimento por capita é muito maior em média, e isso leva a regimes com mais direitos humanos para homossexuais, por exemplo com mais abertura,
José Maria Pimentel
com menos racismo Mas é tendencial uma coisa é haver essa tendência, outra coisa é tu dizeres que, vamos simplificar há uma camada da população que tem um determinado tipo de necessidade, sei lá, pensionistas pessoas que recebem o RSI, whatever e imagino, para simplificar, que elas são totalmente escolhidas portanto há aqui uma coisa simples em que elas não votam, seja porque são proibidas, seja porque absorvem o teu mandamento moral que tu propões o teu imperativo moral que tu propões será que essas necessidades seriam totalmente refletidas no voto das outras pessoas mais informadas que fossem? É difícil, não é? É difícil, mas... Eu estou aqui a fazer um bocado de advogado de diabo
Steven Gouveia
Sim, sim, eu acho que nós muitas vezes nestas discussões temos de tentar evitar sempre este apelo, que é quase intuitivo de cometermos uma espécie de falácia do Nirvana, não é? A falácia do Nirvana é esta ideia de que nós pomos os padrões tão elevados que deixamos de... aquilo que eu defendo é claro que a epistocracia vai ter problemas porque é feita de humanos e os seus humanos são altamente homoignoros, como eu defendo no título. Agora, a questão que deve ficar no ouvido do ouvinte é se alguma forma de epistocracia pode ser melhor do que alguma forma de democracia inclusive nesse problema, porque se tu reparares, hoje em dia a ideia de que as minorias estão absolutamente representadas e os seus interesses é absolutamente falsa. Nós temos quase 2 milhões de pobres em Portugal e isso é uma coisa que não sei se podemos já falar nas alternativas à democracia porque há vários modelos e têm várias nuances, mas muita gente se calhar não sabe isso e vai ser uma novidade mas o sufragio universal foi criado para retirar de facto o poder do povo e muita gente não sabe isso porque a democracia direta inicialmente era feita de cidadãos que eram escolhidos ao acaso por uma lotaria. Porquê? Mas onde? Na democracia antiga? Na antiga Grécia, por exemplo. Ah, em Atenas? Sim, sim. Porquê? Porque é quase óbvio, não é? Porque uma lotaria não permite que haja corrupção, que haja uma elite que esteja sempre à tona, não é? A dividir o poder entre si que é o que acontece na democracia atual ou seja, o que aconteceu na democracia antiga foi que uma elite percebeu o poder que seria fazer eleições e depois usar de facto a incompetência ou a ignorância política para fazer com que a população mantivesse sempre um conjunto muito restrito de pessoas nas governações ligadas ao poder político. Se tu pensares, quantas pessoas estão ligadas ao poder político ativamente na sociedade portuguesa? É uma percentagem muito mínima em relação a todos os restantes, não é? Ou seja, esta ideia de que a democracia representa de igual forma o poder político por toda a gente é só uma história um bocado falaciosa.
José Maria Pimentel
Sim, mas tu tens lá, a democracia atenuense era uma democracia direta, de certa forma, não é? Sim, sim. E podia existir porque... para além de ter outras diferenças, mas podia existir porque existia numa escala muito mais pequena, não é? Tu não consegues ter uma... Eu até sou defensor da ideia de complementar não acho de todo que se deve substituir, mas de complementar a nossa democracia representativa ou seja, em que tu votas nos teus representantes políticos, com uma democracia mais direta com base precisamente numa seleção aleatória da população, não é? Tens uma espécie de assembleia composta por pessoas escolhidas representativas da população em geral mas cujo pressuposto não é se saberem mais do que tu, não é? Não estás a escolher os teus representantes porque a profissão deles é ser político e, portanto, sabem mais do que tu, é só simplesmente... podias ser tu, não é? Ou seja, a ideia é aquilo ser uma amostra da população cujas preferências correspondam às preferências da população, não é?
Steven Gouveia
Um dos modelos epistocráticos que nós podemos pensar chama -se lotocracia e a lotocracia é basicamente isso, é dizer não vai haver mais eleições tiramos o surfage universal. Porquê? Porque o surfage universal tende a corromper, não é? Os atores políticos. Também a democracia tem um problema do incentivo a curto prazo não é? Se repararem a maior parte das pessoas, dos políticos, só têm um incentivo a curto prazo para serem eleitos novamente e não há incentivos para lidarem com problemas a longo prazo como o climate change, por exemplo. E de facto a lotocracia, por exemplo, podia ser uma espécie de toda a gente está disponível para ser eleita política não há restrição de acesso faz -se uma lotaria, duzentas pessoas, por exemplo, em Portugal são eleitas e depois essas pessoas têm um trabalho provavelmente, não têm qualquer corte em termos de laborais, não é? Apenas vão ficar um ano a exercer o trabalho político, têm uma remuneração elevada para evitar, lá está, a corrupção e depois o que acontece é que essa pessoa vai ter o papel político de informar -se perante experts, científicos, falar com a população, falar com setores sociais, setores laborais, setores económicos, tentar perceber e tentar usar, então, o conhecimento para tomar decisões políticas mais informadas mas isto é só um tipo de epistocracia que podemos pensar. Mas deixa -me perceber essa melhor, como é que se chama? Lotocracia. É defendida, por exemplo, por um autor chamado Alex Guerrero.
José Maria Pimentel
E nesse modelo as pessoas são os próprios governantes que são escolhidos aleatoriamente da
Steven Gouveia
população, é isso? Neste caso os políticos representantes, os deputados, os deputados da Assembleia seriam aleatoriamente, independentemente Mas depois quem acompanha o governo, por exemplo? O Poder Executivo? Lá está, o governo não seria, seriam eles. Seriam eles, pronto, por isso é que eu estava a perguntar, ou seja, vamos
José Maria Pimentel
assumir que não há distinção entre Executivo e Legislativo, são os políticos que são eleitos, mas aí é um pouco diferente do modelo que eu estava a falar há bocadinho, porque aí são mesmo essas pessoas que vão estar a governar e a decidir e a legislar, mas elas podem não ter... Primeiro elas podem não ter vontade.
Steven Gouveia
Ah, claro, não seria obrigatório, seria um regime voluntário, no sentido em que se a pessoa está decidida e não quer exercer essa função não tem que fazê -lo. Mas aqui, a ideia é que esta pessoa seria só um representante literal da população, não é? Algo que não acontece na democracia, se não usarmos para a democracia atual, não há uma representação da população na Assembleia da República, nem do todo, não é? Ou seja, a ideia seria representar e depois o papel dela é, não é ser ela o especialista, mas ela ser a representação das vários tipos de conhecimento que é preciso para formular uma determinada lei, por exemplo. Mas isso não é um pouco contrário?
José Maria Pimentel
Eu sei que tu não estás a dizer que defendes essa tese, mas presumo que tenhas alguma simpatia por ela, por esse modelo. Isso é um bocadinho contrário à epistocracia que tu estás a sugerir, porque o que aconteceria aí é que tu terias o nosso modelo, na versão utópica dele, presume, em parte, não é só isto, mas presume em parte que os teus representantes, os políticos, são pessoas que sabem o que estão a fazer, que estudaram, conhecem os temas, dedicam a vida àquilo e têm vontade de o fazer naturalmente. Lá está, na versão utópica, na versão em que a coisa funciona bem, não é? Nesse modelo que tu estás a colocar lá fora, não é? Sim, estás a pôr lá pessoas que são possivelmente, tendo sido escolhidas aleatoriamente, são melhores representantes da população, no sentido das características, das várias características da população, mas tenderão a ser, a não ser que nós achemos que o sistema atual funciona mesmo muito mal, tenderão a ser piores representantes. Vais baixar o nível educacional médio, por exemplo, vais baixar o conhecimento política.
Steven Gouveia
Aquilo que não deves assumir é que serão as próprias pessoas a tomar as decisões, ou seja, cada pessoa vai ter um conjunto de comissões a trabalhar para elas, percebes? Comissões científicas. E quem é que escolhe os membros das comissões? Seriam critérios puramente, imagina, como escolhemos uma comissão científica. Mas quem é que os define? Porque, imagina, nós sabemos que há alguns problemas. Claro que a política não é toda objetiva, mas sabemos que grande parte das questões políticas têm uma objetividade perfeitamente legítima e alcançável, perante a racionalidade humana, não é? Claro, claro. Ou seja, mais impostos, menos impostos. Mais racismo, menos racismo. Mais impostos, menos impostos é mais difícil. Sim, é mais difícil, ou seja, mas por isso é que a representação iria criar um sistema híbrido de ideias em relação a isso, por exemplo.
José Maria Pimentel
É engraçado. E o que é que tu achas do modelo mais do tipo do que o Desiderio Mouros sugeria? Ele não lhe dava nome. Curiosamente, no livro, eu o chamei de epistocracista, mas foi um termo demasiado generalista, como é que se deu a perceber. E aquilo que ele sugeria era, enfim, bastante provocador, o que ele dizia, resumidamente, e acho que estou a transmitir bem, ele pegava no exemplo dos médicos, por exemplo. E tu pensas, existem médicos incompetentes, certamente, não é? Existem médicos que agem mal, claro, mas são uma minoria, não é? Genericamente o sistema funciona bem, não é? O sistema funciona bem ao garantir duas coisas. Garantir que as pessoas que são a 7 e 4 médicos sabem o que estão a fazer, têm conhecimento adequado, porque passam não sei quantos anos na faculdade e, enfim, na profissional medicina é particularmente exigente nesse aspecto ao nível do número de anos que tu tens que passar até seres um médico completo. E, por outro lado, tens regras que asseguram, asseguram não é a palavra certa, mas que criam condições para que, na maioria das vezes, as pessoas ajam eticamente, não é? E ele dizia, se nós fizemos isto para a medicina, e se virmos o que acontece na profissão política, há aqui um contraste grande, não é? Porque muitas vezes tu tens pessoas que não são competentes para o que estão a fazer, eu não sou especialmente pessimista em relação à qualidade dos nossos políticos, atenção, mas é evidente que muitas vezes não têm qualidade e têm uma latitude muito grande para, até, apelando às emoções e aos viesos, como tu dizias há bocadinho da população, conseguir ir por caminhos, enfim, menos idóneos e menos bons para a governação. E ele dizia, na verdade, o que nós devíamos fazer era criar regras, criar instituições para que os políticos fossem, lá está a lógica da epistocracia, ou seja, fossem selecionados por aqueles epistemicamente mais bem preparados, ou seja, aqueles que sabiam mais, e criar regras para que eles se comportassem da maneira correta, não é? Isto é um pouco diferente desse modelo, não é? Porque esse modelo até, ele em certo sentido até é menos democrático, não é? Porque o voto aqui tem menos peso, não é? Porque tu não estás a votar nos teus médicos, não é? Estás a criar condições para assegurar que eles sejam os melhores possíveis, não é? Eu não sei se este modelo tem um nome específico, mas o que é que tu achas dele?
Steven Gouveia
Então, eu diria que aquilo que os ideais estariam a apelar seria uma espécie de uma epistocracia focada no político, não é? Em vez de focada no cidadão, seria focada no político. E, de facto, é uma é plausível.
José Maria Pimentel
Ou uma espécie de tecnocracia avançada, se quiseres.
Steven Gouveia
Pois. Eu chamaria, sim, chamaria mais de tecnocracia, de facto. Mas a epistocracia, eu acho que é diferente, porque ela quer manter a intuição democrática da ideia de que, de facto, toda a gente deve participar do poder político. Agora, há várias formas de pensar a epistocracia, essa dos ideais certamente será uma. Neste debate, a minha posição é sempre, venham as ideias que vierem, o importante é também arranjarmos modelos que possam ser testáveis empiricamente. E, através disso, sabemos que, de facto, se comportam melhor que a democracia que nós temos atual e se as evidências forem suficientes, então, eu acho que, como sociedade, teríamos até uma obrigação moral de escolher esses temas em vez do que temos atualmente. E, por isso, aquilo que eu sugiro ao TIDER seria fazer uma equipa com alguns cientistas sociais e economistas e cientistas políticos para testar a hipótese na prática, em regiões mais pequenas, não é? E ver o que é que acontece.
José Maria Pimentel
Claro, claro. E, atenção, aquela falácia do Nirvana que tu chamavas há bocadinho é especialmente apropriada aqui, não é? Porque nenhum destes modelos, obviamente, funcionaria bem isoladamente, não é? É uma alteração tão grande face àquilo que tu tens que todos eles teriam problemas. Mas, se calhar, na margem, tu podias fazer algumas alterações, neste sentido, que podiam ser benéficas, não é? A introdução de um elemento de representantes dos cidadãos selecionados aleatoriamente, por exemplo, eu acho que é uma ideia com um potencial bastante interessante. Embora a aplicação prática tenha sido difícil, lá está, mas tem inegavelmente um potencial interessante, da mesma forma que este modelo do desidério tem.
Steven Gouveia
Se, por exemplo, o governo francês, em relação aos coletes amarelos, decidiu criar, por exemplo, o Citizens Convention for Climate e é, basicamente, uma espécie de autocracia, onde os melhores cidadãos são escolhidos aleatoriamente para pertencer a essa... pronto, mas, de facto, a parte prática também é importante e eu acho que o modelo também deve apontar para algumas direções, neste sentido. E, por isso, é que, se calhar, se eu, no instante, fizer, assim, uma breve síntese de vários modelos que pode haver aí, que pudéssemos pensar, por já, deixa -me começar por dizer que, de facto, a maior parte das pessoas se calhar é crítica desta ideia da epistocracia mas nós todos, de certa forma, já acreditamos nela. E isto foi muito interessante quando, por exemplo, o Partido dos Animais e da Natureza acho que é o nome, eles bolaram um nome interessante no PAN, não é? O PAN sugeriu diminuir a idade do voto para uns 16 anos e foi muito interessante o debate que aconteceu na Assembleia onde os argumentos que eram usados para não baixarmos a idade eram perfeitamente epistocráticos, no sentido em que, não porque uma pessoa com 17 anos não tem competência suficiente, não tem conhecimento suficiente, etc. Ou seja, o ponto do epistocrato é que esta intuição está perfeitamente certa, mas nós queremos alargar isso a qualquer idade, independente de... porque, para nós, pode haver pessoas com 12 anos que já estejam preparadas talvez para essa responsabilidade e algumas de 90 que se calhar não, não é?
José Maria Pimentel
Sim, sim. Eu achei muito a graça essa passagem do livro porque tu toques mesmo no ponto nevralgico da coisa, que as pessoas entraram numa contradição sem perceber por como se criou uma espécie de tabu contra a restrição de votos e quer dizer, e bem, lá está, porque tem que ver precisamente com tu perceberes, olhando para a história, que muitas vezes negaste o voto com argumentos desse tipo mas na verdade estavas a negar o voto seja a minorias étnicas, seja a mulheres, por exemplo, ou até pessoas menos escolarizadas. Estavas a negar às pessoas a possibilidade de dar voz às suas necessidades e como percebeste isso, é como se isso estivesse um tabu, só que depois as pessoas vão por elas a usar esse mesmo argumento para a restrição do voto pela idade, quando na verdade é a mesma coisa, não é? Ou seja, ou pondo a coisa de outra forma, se tu não podes ter, como parece ser o consenso implícito, restrições epistémicas ao voto, então não devias ter restrições de idade. Exato, exato.
Steven Gouveia
Porque elas são baseadas em intuições epistémicas. Exatamente, isso mesmo. Mas acho que o teu ponto é fundamental e acho que é muito bom tocar nele que é, o problema de haver restrição de voto não é um problema por si, ou seja vai haver restrições de voto que estão moralmente justificadas e outras que estão imoralmente justificadas. O caso de restringir, por exemplo, uma minoria de participar no processo político é uma exclusão, obviamente imoral e que não deve ser permitida. Agora, de facto, há exclusões que por razões perfeitamente plausíveis podem justificar moralmente uma exclusão, não é? Pensem, por exemplo, numa pessoa ou num adulto que tem uma doença psicológica profunda, que não consegue sequer criar qualquer tipo de conhecimento sobre o mundo. Obviamente que seria muito estranho as pessoas defenderem que essa pessoa também deve ter um poder de voto, não é? Então, eu acho que esta distinção entre restrições legítimas e ilegítimas é importante de frisar. Mas agora, focando então nas alternativas que eu acho que podem ser interessantes considerar, uma vem intuída por Stuart Mill, curiosamente, que é o do voto plural. É esta ideia de que se determinadas pessoas souberem mais, devem, por exemplo, ter direito a mais votos numa determinada eleição. Outra seria o teste de competência que é muito famoso quando se fala nisto, que é criar uma espécie de teste e, por exemplo, depois há várias formas de pensá -lo. Podemos, por exemplo, fazer com que toda a gente faça um teste e só conta o voto da pessoa cujo o resultado do teste é positivo. Se for negativo, o voto não irá contar para a contagem final. Mas também podemos fazer o oposto que é, a pessoa tem que fazer um teste primeiro e depois se não passar, então já não pode votar. Há várias formas de pensar. Eu acho que o teste de competência é uma forma interessante de pensar uma melhoria na democracia. Também acho. Mas eu acho que é problemático porque vai depender muito de cada... Ou seja, eu acho que inicialmente iremos criar um teste cognitivo bastante acessível e, se calhar, ao longo do tempo aumentá -lo substancialmente e seria um processo bastante demorado, digamos assim. Ou seja, numa perspectiva de 50 anos eu acho que não seria muito prático aplicá -lo. Um outro modelo que eu acho mais interessante, por causa de lá está desta vantagem prática, seria um modelo que eu chamo de instituição epistocrática, que seria uma espécie de nós como sociedade criamos uma instituição feita de especialistas que tem mais ou menos o papel daquilo que o Tribunal Constitucional por exemplo tem em relação à lei portuguesa, não é? Ou seja, o governo por exemplo quer criar um projeto de lei sobre determinado assunto o Tribunal Constitucional tenta perceber se essa lei vai de acordo com a Constituição ou não e muitas vezes tem o poder político de restringir esse projeto de lei de haver a sua aplicação ou a sua confirmação na Assembleia da República. Ou seja, neste caso seria matemos tudo, matemos a democracia por sufragio universal, toda a gente pode votar só que se esse processo por sufragio decidir, por exemplo, restringir as minorias ou as mulheres nos seus direitos e nos seus deveres então esta instituição epistocrática teria o poder político de intervir nessa ação.
José Maria Pimentel
Mas a questão é, quem é que seleciona os membros dessa instituição epistocrática?
Steven Gouveia
Claro, nós nunca iríamos perfeitamente selecionar pessoas porque temos sempre este problema mas eu acho que nós fazemos isso muito bem por exemplo quando queremos decidir uma comissão científica para avaliar a Covid -19, por exemplo, não é? Ou seja, não é perfeito e nós temos de ter sempre este pensamento que nós somos seres humanos e como seres humanos somos homoignoros, somos muito falíveis mas nós já como sociedade já pensámos formas de tentar minimizar essa condição do meio.
José Maria Pimentel
Eu ia dizer isso, nós já temos o Tribunal Constitucional, os próprios bancos centrais, por exemplo, independentes, são em grande medida instituições epistocráticas e são muitas vezes criticados precisamente por essa falta de accountability, não é? Dessa falta de resposta.
Steven Gouveia
E também transparência, eu acho que deve haver total transparência neste tribunal.
José Maria Pimentel
Se bem que podes assegurar transparência e tens um problema de accountability, não é? Mesmo no sentido de resposta perante os cidadãos através do voto, não é? Como o governo tem. Essa é uma crítica que é feita muitas vezes a esses órgãos e moro simpatizo com esse modelo. Eu acho que é um dos aspectos que nós temos de melhorar nas democracias liberais, está aí mas, por outro lado, parte dos motivos para a exceção do populismo tem a ver com o descontentamento das pessoas, muitas vezes é esse afastamento das instituições da resposta ao voto, não é? Que é uma espécie de paradoxo mas tem que se lidar com esse aspecto
Steven Gouveia
também. Certo, certo. Nesse caso, eu não sei bem como é que vai ser o tribunal constitucional, mas há alguns lugares que são por limitação política, não é?
José Maria Pimentel
O constitucional é meio -meio, mas eles acabam, de alguma forma, sempre por ser todos sancionados pelo parlamento ou pelo poder executivo. Quer dizer, é que dizias há bocado, alguém tem que escolher, não é? Sim, sim. Mas uma vez escolhidos, o ponto é uma vez escolhidos, têm grande independência, não é? E, portanto, se tomarem uma decisão que não agrada à população, a população não tem grande maneira de manifestar a sua vontade, não é? Porque o voto já não vai fazer nada.
Steven Gouveia
Pois. Mas, muitas vezes, podemos dizer num cenário desses que de facto, a própria população pode estar equivocada em relação à utilidade daquela lei, não é? Aliás, a história da democracia e a história dos direitos humanos é muito isso, não é? Quando vemos, por exemplo, eu não sei mas quando a escravidão foi eliminada em muitos países, provavelmente o consenso não era que as minorias deveriam... Sim, sim. Pronto. A lotocracia nós já falámos, mais ou menos, que é um modelo que eu aprecio no sentido em que, eu acho que a ideia do sorteio e a ideia de que a eleição, que parece um ato justo, vem de facto de uma ideia de corromper o próprio poder político e, por isso, substituí -lo por um sorteio aleatório, eu acho interessante, mas eu também não sou 100 % a favor. Agora, a ideia que eu ando mais a pensar e que vou publicar no próximo livro, é uma ideia que eu acho interessante, mas que pode ser muito problemática e, por isso, vai ser bom acho que vai ser o primeiro a ouvi -la publicamente Sim. Por isso vai ser bom sentir a tua intuição sobre o tema, mas pronto aquilo que eu acho é que a democracia, então, tem um problema de incentivo ao conhecimento e se nós melhorarmos os níveis de conhecimento, melhoramos os governos, melhoramos os governos, melhoramos os níveis de justiça e os direitos humanos e etc. Então, o que é que nós temos que fazer? Temos que pensar como melhorar o conhecimento médio -político. Uma forma muito básica é dizer vamos melhorar a educação. Por exemplo, eu tive este debate com o Noam Chomsky, que é um pensador famoso e importante sobre estes temas e ele, por exemplo, defende isto. Defende que há duas coisas que têm que acontecer. Temos que melhorar a educação e também temos que fazer com que os mídia não possam transmitir tanta falsa informação. Eu acho que estas duas opções podem ser interessantes, mas são problemáticas porque demoram bastante tempo e também implicam uma restrição de conhecimento que tu se calhar não sabes. E isto vem muito da ideia do Stuart Mill. Imagina, o Stuart Mill defendia, por exemplo, o argumento epistémico em relação à liberdade de expressão do Stuart Mill era que nós não devemos restringir a liberdade de expressão porque aquela pessoa está a dizer uma coisa obviamente falsa, mas pode dar -se uma probabilidade dela até poder estar a ser verdadeira. Ou seja, a liberdade permitiria primeiro debater ideias e corrigir, ou seja, confirmar a verdade que nós achávamos que já tínhamos ou então encontrar uma nova verdade que nós não sabíamos que tínhamos. E nesse sentido, então, eu acho que a restrição dos mídia também seria um bocado forte. O processo, a ideia de que podemos melhorar a educação, isto seria muito útil, primeiro, se de facto pudéssemos criar uma educação que é eficaz a ensinar e a tornar os cidadãos mais competentes e nós temos muitos estudos também em psicologia cognitiva que mostram que a educação atual não é nada eficiente a informar ou a tornar as pessoas com mais conhecimento em geral. E a pensar criticamente, não é? Sim, pensar criticamente. Sim, de facto, a educação não ensina a pensar criticamente ninguém. Aquilo que a educação é boa é a literacia básica e matemática também mais simples. Mas, de resto, a maior parte daquilo que nós pudemos estudarmos numa licenciatura, a maior parte dos estudantes esquece grande parte daquilo que aprendeu passado seis meses e esquece quase tudo passado alguns anos. Ou seja, claro que não há uma educação exclusiva. Nós podemos também melhorar a educação e também fazer outros modelos.
José Maria Pimentel
E eu lembro -me de ouvir, talvez há meia hora, dizer que o grau de educação médio dos cidadãos dos países estava correlacionado com a sua, enfim, sofisticação moral. Portanto, tu próprio achas que há aí alguma ligação, não é?
Steven Gouveia
Sim, mas nós não podemos também fazer esta falácia da composição, não é? Que é achar que porque o nível geral de educação é bom, então o nível individual de cada parte desse conjunto também vai ser bom. Ah, naturalmente, claro. Mas a média, pelo menos. A média, sim. Mas de facto, por isso é que eu digo que, claro, melhorar a educação seria absolutamente...
José Maria Pimentel
Já percebi. Tu não pôs os dois argumentos completamente de lado, mas achas que há outras soluções melhores, não é?
Steven Gouveia
Melhores porque são mais pragmáticas em tempos temporais. Ou seja, podem -nos causar já melhorias no dia de hoje. E então, a instituição epistocrática eu acho que seria uma forma interessante de pensar. A minha opção neste momento é o tal apelo à informação, ou seja, ao voto informado. Se queres votar na eleição, informa -te, por favor. É mais ou menos o meu apelo. E se não te queres informar, não te preocupes. Não votares vai ser melhor para todos nós. Seria mais ou menos este o seu slogan. Mas eu acho que uma forma de compor o problema do incentivo ao conhecimento seria pagar aos cidadãos para elas se tornarem votantes informados. Como? Imagina este cenário. Vamos ter uma eleição para o governo, mas uma legislativa. Alguns meses antes o governo tem a obrigação de preparar, por exemplo, um workshop, ou até se não quisermos ser tão radicais, um pavilho ou uma comissão de pessoas que vão falar com as pessoas, que vão apresentar os programas políticos das pessoas, que vão apresentar a lei eleitoral às pessoas. E depois, imagina, podemos fazer isto de várias formas. Ou podemos fazer isto como opção ou obrigatório. Podemos fazer, por exemplo, imagina, criamos uma espécie de seminário de 4 horas sobre os temas da próxima eleição. Ou seja, alguém teria que criar uma espécie de workshop neutro, politicamente, para apresentar aos vários partidos a lei eleitoral, os direitos e os deveres de cada cidadão, etc. E depois as pessoas poderiam ser remuneradas diretamente, ou seja, no fim dessa formação, fazendo um teste só para perceber se a pessoa assimilou estes conhecimentos, receberia 125 euros, por exemplo, por estar muito na moda. Esse valor. Ou então poderia haver outro mecanismo que seria, por exemplo, de uma taxa negativa, de um imposto. Ou seja, se a pessoa confirmar que participou nessa formação, teria pagava menos IRS sobre o imposto. Ou seja, porquê que eu acho que ela está? É uma intuição que tem que ser testada. Mas eu acho que é interessante. Porquê? Porque ela tenta corrigir o problema central da democracia, que é o problema do desincentivo ao conhecimento. E eu acho que isso faria com que pessoas que até nem querem se informar, por causa deste incentivo económico, talvez pudéssemos, desta forma, elevar o conhecimento médio do sufragio no seu jornal. Agora, estou pronto para ouvir esta ideia destruída por ti.
José Maria Pimentel
Pronto. Eu até, por acaso, acho uma ideia interessante. Acho que ela tem um obstáculo de implementação, porque tinhas que garantir pluralidade, mas não me parece que seja impossível. É uma questão que posam lá os partidos todos e, enfim, no limite com debates. E depois talvez tenha alguma limitação de escala. Não sei se é possível fazer isto com muita gente. Tens um país de 10 milhões de pessoas. Não sei se é possível. Essas pessoas teriam tempo, mas não me parece necessariamente uma má ideia. Ou seja, no fundo o que estás a dizer é há aqui um bem público, que é informação. Ou seja, a informação individual tem uma externalidade positiva, porque as pessoas depois vão votar e tem benefício para toda a gente. E, portanto, tu uma maneira é, de certa forma, subsidiar e, portanto, dar um incentivo extra para as pessoas se informarem. Não me parece... Eu acho que o problema que teria era, sobretudo, de escala, não é? Tu fazes isto numa escala suficientemente grande. Mas não me parece uma ideia má.
Steven Gouveia
Sim, eu acho que são problemas práticos, mas que são facilmente solúveis. Aquilo que eu penso mais seria, claro, o impacto económico desta medida, digamos assim. Mas eu acho que isso seria um investimento e que os governos teriam um interesse a legitimar também o seu lugar, não é? Claro, eu nem estava a pensar no impacto económico.
José Maria Pimentel
Claro que custa dinheiro, mas para mim até é uma preocupação de saúde na ordem neste caso. Mas eu acho que simpatizo mais, embora também tenha limitações, com a ideia do teste de competências. Certo. Embora a versão com que eu simpatizo mais seja uma versão de um teste muito simples, ou seja, não acho que seja expectável e talvez nem seja bom, porque podia ter outros efeitos negativos, de tu teres um eleitor médio muito, muito informado. Até porque tu não sabes desta correlação interessante que há entre o grau de informação e o grau de enviasamento ideológico. É uma correlação engraçada. As pessoas que estão mais informadas sobre política são, normalmente, muito ideológicas. Certo. Muito enviasadas. Muito enviasadas. São coerentemente de esquerda ou de direita, ou seja, tendem a ser de esquerda ou direita ou whatever, em vários aspectos. Até não acho mau tu teres uma camada grande da população que é medianamente informada. O suficiente para não lhes falhar as coisas mais básicas. E, portanto, este teste de competências até o via de uma maneira muito básica. Mas podia ser interessante. Ser interessante porque garantes esse nível mínimo de informação, porque colocas algo sobre o voto de uma espécie de privilégio, ou seja, um voto não é simplesmente uma... Uma garantia. Porque acho que numa primeira fase da democracia tu querias garantir que as pessoas iam votar, não é? E, portanto, podiam todas ir votar e instá -las até a ir votar nessa lógica do voto é um dever e tal. Mas também é um privilégio, não é? Também é algo que tu deves merecer, não é? E é uma responsabilidade. Uma responsabilidade, exatamente. Até era a palavra que eu estava a procurar. É uma palavra melhor. E depois tem um efeito de segunda ordem. Ou pode ter um efeito de segunda ordem interessante de aumentar a própria literacia política nas pessoas. Porque tu, ao estares a criar esta barreira, estás a retirar as pessoas que não estão suficientemente informadas, mas também estás, a prazo, a fazer com que as pessoas tenham um incentivo para se informar mais, não é? Seja através da proposta que tu fazias, seja de maneira mais autodidata, não é? Quer dizer, aqui para ver isto tu tens que dar mecanismos às pessoas se informarem, não é? Mas eu vejo isto como uma coisa básica, não é? Até porque também há outra razão para ser básica, é que é relativamente fácil tu encontrares um consenso em relação aos básicos da política. Mas se começas a pôr mais coisas, já é muito difícil ter uma coisa neutra que toda a gente acha que é igualmente importante e que se baseia apenas em factos verdadeiros e que não são passíveis de discussão, não é? Portanto, até começa a ser mais complicado, não é? Sem dúvida, sim, sim, sim. Mas acho que as duas coisas até podiam coexistir, por acaso.
Steven Gouveia
Sim, sim, acho que há aqui modelos que se podem sobrepor um ao outro, não é? O teste de competência mais remuneração, por exemplo, é plausível, sim.
José Maria Pimentel
Exato, exato. Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no site 45grauspodcast .com Selecione a opção apoiar para ver como contribuir diretamente ou através do Patreon, bem como os benefícios associados a cada modalidade. Uma última coisa só antes de passarmos ao tema seguinte. Eu não sei o que é que tu achas em relação a isto, mas eu, apesar de tudo, divido a minha posição em relação à abstenção e a minha posição em relação à evolução da abstenção. Ou seja, eu partilho a tua visão, e aliás, já disse isto algumas vezes e é engraçado que as pessoas lá estão habituadas a ver a abstenção como uma coisa má, eu partilho a tua visão de que a abstenção não é necessariamente má. Eu até acho, e por isso é que sou determinantemente contra o voto obrigatório, acho normal e bom até que num país haja abstenção, exatamente pelo motivo que tu dizes. Mas isso não implica que eu não ache mau ou um mau sinal a abstenção estar a aumentar, percebes o que quero dizer? Percebo a diferença, sim. Porque claramente não acho que seja porque as pessoas estão mais a andar a ler Steven Goveia, não é? Não é por isso, e portanto isso sim pode essa evolução provavelmente tem na base outros fatores que existem que são negativos, de desinteresse das pessoas ou desapontamento
Steven Gouveia
com a política. Mas eu acho que tu ainda estás um bocado apegado à ideia moralista da abstenção, se calhar aceitas perceberes. Porque para mim isso não representa assim um problema moral muito grande. O facto de haver mais pessoas se calhar a não votarem, o que interessa, pelo menos para mim Mas a questão é porque é que as pessoas deixaram
José Maria Pimentel
de votar? Certo. Se tiver sido porque elas perceberam que estavam pouco informadas é bom. Exato, exato. Mas terá sido isso?
Steven Gouveia
O valor da abstenção pela abstenção é preciso tentar procurar qual é a razão. Porque há uma evolução, por exemplo, negativa no número da abstenção. Ou seja, dizes -me só a abstenção está a aumentar, eu não consigo dizer se isso é bom ou mau neste momento. Claro, mas qual é a tua intuição? A minha intuição é que se de facto for porque as pessoas, por exemplo, perceberam que se calhar não têm competência suficiente para fazer um voto informado então muito fixe. Que aumenta ainda mais, percebes?
José Maria Pimentel
Sim. Vamos passar ao último tema que nós tínhamos aqui para discutir, que é um tema pelo qual já me interessa há muito tempo. Nunca foi tema principal de nenhum episódio mas de certeza que já aprendei aqui no 45 Horóscopos. Confesso que não me lembro com quem. Que é a do altruísmo eficaz. Do movimento do effective altruísmo. Normalmente até se usa a sigla. Que vai beber muito àquilo que o Peter Singer escreveu, e que de resto até escreve o prefácio do teu livro. Mas claro, começo por, o mais fácil é pedir -te para explicar, para quem não conhece o que é que propõe este movimento do altruísmo eficaz.
Steven Gouveia
Bem, o altruísmo eficaz é uma ideia interessante, porque normalmente as ideias da filosofia são sempre julgadas como insignificantes, impraticáveis. Pouco práticas. Pouco práticas, não é? E sempre, por exemplo, eu tenho sempre este constrangimento quando alguém me pergunta o que é que eu faço e eu digo que pronto, que investigo filosofia, as pessoas acham que pronto, eu olho para as nuvens e não faço mais nada. É interessante então que Peter Singer pegou numa ideia filosófica e tentou mostrar como é que a filosofia também pode ser aplicável na prática e pode até melhorar o mundo significativamente. O altruísmo eficaz é exatamente um conjunto de ideias que nascem de Peter Singer e que depois se desenvolveram com outros autores também, que defendem basicamente uma coisa muito que parece quase cristã, não é? Que tem muita influência religiosa, se calhar. Que nós, pessoas que têm condições e um privilégio social e económico favorecido, se calhar faz sentido usar parte desse privilégio para ajudar outros seres humanos que não têm esse privilégio e que se encontram em situações desesperantes, seja em relação à falta de alimentação, à falta de housing... Mas essa não é novidade, porque como tu dizes isso já existia, enfim, seja
José Maria Pimentel
na caridade cristã, seja até no Estado Social.
Steven Gouveia
Ou seja, a primeira parte do altruísmo eficaz seria que nós, como pessoas privilegiadas, temos uma espécie de obrigação de ajudar quem não tem. Mas depois, e esta é a parte mais interessante, acho eu, do altruísmo eficaz, seria dizer que nós podemos fazer isto de muitas maneiras, não é? Nós podemos ajudar de muitas maneiras. Mas, de facto, há uma forma baseada na racionalidade e nos factos que faz com que a nossa ajuda e isso pode ser em dinheiro ou em tempo ou outra coisa, possa ser mais eficaz do que outras. E o altruísmo eficaz, então, é uma espécie de instituição ou de ideia que tenta perceber de que forma que com determinado dinheiro ou tempo, como é que a pessoa pode fazer o mais bem possível. E isso passa por várias ideias, por exemplo, passa pela ideia de viver uma vida mais modesta que poderíamos ter porque queremos ajudar quem precisa. Também passa por analisar e discutir os dados, por exemplo, relacionados com a eficácia que determinadas instituições de caridade têm, que tipo de programa usam, como é que usam o dinheiro, etc. Passa também, por exemplo, por escolher uma carreira lucrativa, não porque queremos andar de Ferrari ou queremos ter uma casa no bairro alto, mas porque queremos doar mais, ou seja, esta é a intuição. E também pode passar, por exemplo, por doar partes do nosso corpo. O altruístificado pode também perceber que se calhar não precisa de dois rios para viver de forma saudável e que pode doar a quem precisa de um rio para sobreviver, como algumas pessoas tenham feito.
José Maria Pimentel
Há um americano que tu dás de exemplo no livro.
Steven Gouveia
Sim, um milionário, que além de ter doado milhões de euros. A história é curiosa porque essa história nasce de uma objeção que supostamente um filósofo escreveu sobre o Peter Singer. A objeção diria, se o Peter Singer tem razão, então nós também teríamos a obrigação moral de doar partes do nosso órgão. E isso é absurdo. E o Peter Singer, passado algum tempo, escreve um artigo a dizer que sim, que nós também em algumas circunstâncias também temos a obrigação moral de doar partes do nosso corpo, que é interessante.
José Maria Pimentel
Esta visão tem vários aspectos interessantes. Eu acho que tem um, é relevante, é bastante importante, mas não especialmente novo intelectualmente, é ênfase na eficácia. Portanto, é dizer, nós devemos dar a instituições de caridade, por exemplo, que tenham métricas que asseguram que aquela ajuda está de facto a chegar a quem precisa e, portanto, é um bocadinho descolar daquele modelo antigo em que tu doavas a doar e depois não te preocupavas muito com o assunto e percebeu -se que havia ali um problema. Depois tem outro aspecto interessante, mas também mais discutível, que é a questão, e é o que lá é mais polémica, que é a questão de tu deveres dar para um lado sem limites, no limite sem limites, para a sua redundância, mas também independentemente da localização geográfica da pessoa. E isto abre logo aqui um campo muito grande que é quando tu tiras a variável geográfica da equação, torna -se muito difícil que tu estares a ajudar quem está perto de ti porque provavelmente aquelas pessoas estão bastante menos necessitadas do que quem vive, sei lá, em países pobres africanos. Ou seja, não só estão muito menos necessitados, como os problemas dessas pessoas que vivem em África, sob nutrição, malária, são resolúveis muitas vezes, com muito menos dinheiro do que as pessoas que estão cá, não é? Portanto entra aí rapidamente uma lógica de que tu deves ajudar independentemente de onde as pessoas estiverem, portanto deves dirigir o grosso da tua ajuda para quem está longe. Certo? Estou a retratar bem, não estou? Sim, sim, exatamente isso.
Steven Gouveia
Ou seja, a questão que o Autorista Eficaz quer responder é de que forma é que tu podes ajudar o mais ou o melhor possível. Claro que tu podes decidir como pessoa ajudar, mas não fazê -lo da forma mais eficaz que poderias fazê -lo. Agora a questão aqui é uma questão novamente de moralidade. O que é que para ti, se o teu, digamos assim, se a tua crença é tentar ajudar à partida, tu queres ajudar da forma mais eficaz possível, não é? Mas eu percebo, por exemplo, essa objeção da localização é interessante. O Peter Singer, para defender esta ideia que nós temos a obrigação de doar parte do nosso rendimento, ele fala numa experiência mental, que é a experiência mental da criança a afogar -se, não é? Ele explica que vocês estão a caminhar por Lisboa, por exemplo, e de repente vem uma criança que está a afogar -se. Vocês estão lá sozinhos, ninguém pode ajudar, só vocês é que podem ajudar a criança. E o Peter Singer pergunta o que é que vocês fariam? Vocês tomariam a iniciativa de tirar a roupa ou não tirar e lançarem -se para salvar a criança, chegarem atrasadas ao emprego etc, etc, estragarem a sua roupa, as suas botas preferidas? Vocês tomariam essa decisão? E a maior parte das pessoas diz imediatamente sim. E além disso, também acham que normativamente é aquilo que é o correto fazer. Toda a gente naquela situação deve salvar a criança. Agora, aquilo que o Peter Singer nos põe a pensar é que, de facto, há milhares e milhares de crianças que se encontram neste momento naquela situação hipotética e que nós temos a capacidade de molhar a nossa roupa ou de chegar atrasada ao emprego e escolhemos não fazê -lo. Seria como passar pelaquela criança e ignorá -la, deixá -la falecer só porque queremos chegar a horas no emprego e não queremos estragar a nossa roupa. O ponto do Peter Singer é que isto não faz... é irracional, primeiro. É irracional então dizer que vou salvar a criança, mas depois não vou salvar crianças em África. E depois é imoral porque se baseia num princípio de discriminação, digamos assim, geográfica.
José Maria Pimentel
Ou seja, se nós estivéssemos a ver aquela criança, faríamos aquilo. Eu simpatizo muito com esta visão do altruísmo eficaz. Eu acho que o grande mérito que esta visão tem é, por paradoxal que isto possa parecer, o grande mérito que tem é trazer irracionalidade ao altruísmo. Porque o nosso altruísmo é bom, é um bom impulso, mas muitas vezes vai por caminhos que não são interessantes precisamente por não ser racional. Ou estamos a dar baseada que já não precisa mais, ou não damos o suficiente, ou não... precisamente este tipo de coisa. Portanto, aqui, o que se enfatiza é que por exemplo, nós por vários vieses não tomamos ações que poderíamos tomar se não tivéssemos estes vieses. Neste caso, toda a gente conhece este exemplo. Quando há um desastre que é muito longínquo, a pessoa não reage da mesma forma do que um desastre que acontece ao lado da nossa casa ou no nosso país. Portanto, o que este movimento chama a atenção é para expandirmos o nosso altruísmo, porque é racional fazê -los. Racional aqui no sentido de ser coerente. É coerente, é consistente. Eu não tenho a certeza de estar a usar a palavra certa, porque estes termos às vezes são ambíguos, mas é aquilo que é coerente fazer é nós agirmos nas mesmas situações da mesma forma, independentemente de onde elas se passam.
Steven Gouveia
E também há uma crítica bastante forte a esta ideia da moralidade do senso comum, ou de uma moralidade intuitiva. O que basicamente nós podemos dizer é que a nossa história evolutiva não nos fez para sermos altruistas e ficados. Pelo contrário. Fez -nos para termos viés de valorizar a proximidade e as pessoas que estão ao pé de nós e que parecem como nós e tentar afastar ou ter reações negativas perante pessoas que são diferentes de nós, por exemplo. Ou seja, o que o altruismo eficaz pede -nos é que muitas vezes as nossas intuições morais perante algum problema não é a melhor decisão moral que nós podemos fazer e depois pede -nos que se nós queremos de facto ajudar a melhor, muitas vezes é preciso dar um passo atrás, ou seja, usar esse impulso intuitivo e emocional de eu quero ajudar, mas não fazê -lo de imediato dar um passo atrás e tentar perceber como é que eu de facto posso ajudar melhor a pessoa em questão que eu quero ajudar, ou então a causa geral que eu quero ajudar.
José Maria Pimentel
Como eu te disse, eu simpatizo bastante com esta ideia, mas há dois contra -argumentos que se podem dar que eu acho que têm alguma validade, não em demolí -la, mas em de certa forma mitigar aquilo que esta ideia propõe. Um tem que ver com a validade dessa moralidade do senso comum ou ao contrário, até que ponto é que ela não faz sentido, ou até que ponto é que ela não traduz algumas verdades que nós podemos estar a desvalorizar, e o outro é o argumento que tu citas no livro de um filósofo que é o Bob Cobert, não sei se lê assim, que ele diz que pela nossa natureza humana é mais doloroso dar, ou que custa muito ir contra esta nossa tendência de dar a quem está perto, e portanto nós não podemos exigir às pessoas, sabe, no limite para transformar isto numa questão concreta quer dizer, nós não podemos realisticamente exigir às pessoas que doem tudo a pessoas cuja cara nunca vão ver e portanto isso não é vizinho. Se calhar podemos começar pelo primeiro, e eu acho que o argumento aqui na primeira é dizer há uma validade moral em nós ajudarmos mais quem nos está mais próximo e eu identifico -me em parte com isto ou seja, eu acho que nós exageramos nesta obrigação moral, neste nosso viés para quem está mais próximo mas não acho que ele seja completamente um viés e podemos pensar, tu achas que eu tenho maior obrigação moral para com as minhas filhas do que para com os filhos de outras pessoas com os teus filhos, por exemplo, eu diria que concordas que sim mas se calhar não.
Steven Gouveia
Aquilo que eu diria é que há nuances, não é, ou seja, tu primariamente podes ter uma obrigação moral perante os teus filhos mas a partir do momento em que eles já têm uma vida estável tu tens uma vida estável e tu podes ajudar outras pessoas mas quase não fazê -lo por exemplo, queres ter dois carros, queres ter um carro de fim de semana, enquanto que...
José Maria Pimentel
Não, não, claro, claro eu entendo, eu acho que o altruísmo eficaz está grandemente certo o que eu digo é, eu não acho que esteja completamente certo, em parte porque a nossa moral do senso comum também não está completamente errada, não é, e tu dizes ok, claro que se as minhas filhas tiverem tudo, eu não lhes vou dar o 15º carro quando posso comprar 100 redes para miúdos que estão em África e vão morrer isto é lógico, qualquer pessoa concorda com isto, não é mas há aqui uma gradação, não é, ou seja se calhar isso é verdade nesse caso mas se for para poderem fazer um curso ou whatever, não é, aí já não é tão claro, não é e por outro lado, se tu estenderes esta gradação de dever moral, também se calhar percebes que eu tenho um dever moral maior para com as minhas filhas do que tenho para com os meus amigos, mas tenho maior em relação aos meus amigos, se não a amizade não servir para nada, não é, do que em relação às outras pessoas, e se calhar tenho maior em relação a quem partilha a mesma comunidade que eu, ou seja com quem eu sinto uma identificação comunitária neste caso em relação aos outros portugueses, do que tenho em relação a quem está em outros países do mundo, não é isto é discutível, atenção, mas eu acho que há aqui alguma validade, não é.
Steven Gouveia
Sim, ou seja eu acho que tu apontas um bocado para a perspectiva que eu defendo que é, imagina, eu por exemplo acredito mesmo que o princípio do Singer, este princípio que nós devemos doar o máximo possível para ajudar o máximo de pessoas possíveis, eu acho que é verdadeiro filosoficamente, mas de facto na prática há alguns obstáculos, quer psicológicos, quer culturais que, ou até sociais não é, que o tornam se calhar demasiado forte mas isso não é uma invalidade aos autores unificados porque nós podemos fazer uso de uma espécie de princípio mais moderado do princípio de Singer, podemos usar esta ideia de que, ok, eu não tenho que doar o todo, a totalidade dos meus rendimentos para aliviar a pobreza alheia, mas posso doar partes, percebes? Por exemplo, isto é a visão até mais comum ou mais uniforme da maior parte dos autores unificados, eles defendem normalmente, por exemplo, o 10 % pledge que é a ideia de que tu deves doar 10 % do teu rendimento, eles explicam até matematicamente como é que isso não é uma coisa muito difícil de fazer que é interessante, ou seja é aplicável para qualquer família, para qualquer tipo de rendimento, até com o salário mínimo de Portugal, é uma coisa plausível embora isso pode ser discutível, claro, mas ou seja, nós não precisamos defender o princípio, a força máxima do princípio de Singer, mas podemos optar por uma um princípio mais moderado e isso vai permitir já essas nuances, por exemplo de, claro, garantir primeiro as nossas filhas e depois pensar no resto mas eu não acredito que
José Maria Pimentel
sou eu que estou a dizer isto parece que estamos em posições contrárias, mas tu estás a pegar na praticalidade da coisa na capacidade de implementar isto na prática, no fundo tem a ver com o segundo argumento tendo em conta a natureza humana e as condições sociais e portanto tu dizes ok, na verdade é difícil realisticamente acharmos que isto vai acontecer porque para as pessoas seria muito contra a natura e portanto vamos ficar pelos 10 % que é uma coisa realística, certo, e eu concordo absolutamente contigo claro que sim, eu não acho que ninguém é santo e não podemos querer que as pessoas sejam mas o ponto que eu estava a puxar é mais filosófico e eu acho que é uma questão interessante que é qual é a taxa de conversão, se quiseres dos nossos vários deveres morais, ou seja como é que eu converto os deveres morais que eu tenho com as minhas filhas faço aos meus amigos, dos meus amigos faço à minha comunidade, vamos dizer Portugal por simplificação e da minha comunidade cultural para o país inteiro, por exemplo das filhas para os amigos é de 2 para 1 é de 10 para 1, é de 100 para 1, é de 1 .000 para 1 e depois os outros, e dando o exemplo que é mais que engloba, quase toda a gente porque também tenho ouvido fora de Portugal mas quase toda a gente que nos está a ouvir qual é a taxa de conversão que deve haver entre os nossos deveres para com portugueses e para com pessoas fora de Portugal ou seja, se eu tiver esse 10 % quando é que eu devo deixar de os dar para a Caritas, sei lá, vou corromper agora a Caritas uma associação qualquer e dar à Unicef, por exemplo, quando, não é? Qual é a taxa de conversão? E essa é uma questão interessante moralmente, eticamente O outro significado pode ter este
Steven Gouveia
lado mais negativo, que é mesmo, e temos que admitir isto, que é por exemplo aquilo que eu digo no livro que é, por exemplo, dizer que uma instituição como a Make -A -Wish em Portugal que usa milhares de euros para fazer os últimos desejos de crianças que estão prestes para falecer custa dizer isto, mas é até, por exemplo, dizer que é quase imoral, não é? É quase perverso uma pessoa gastar, sei lá mil euros para realizar o desejo de uma criança quando com esses mil euros nós podemos salvar a vida literalmente a uma série quase uma dezena de crianças e então é este tipo, claro que nós vemos a criança à nossa frente e não vemos as dez crianças que podemos salvar nem há porque Mas onde eu, desculpa interromper -te, mas o
José Maria Pimentel
que eu acho que é interessante aí é tu pensar, tu dizes, esse exemplo que tu dás da Make -A -Wish é interessante embora isso seja um projeto muito interessante, mas a tua crítica é bastante válida, quer dizer, pá, quer dizer, se tu podes salvar a vida de miúdos, vais estar a gastar milhares de euros para aqueles miúdos fazerem uma viagem que certo é a viagem dos sonhos deles, mas não é essencial para a vida deles, esse é um argumento bastante válido, mas e se de repente tu tens o trade -off entre um miúdo que está em Portugal cuja vida já está assegurada, mas quer dizer, uma vida miserável, tu podes -lhe dar qualquer coisa, podes -lhe dar acesso à educação ou podes -lhe dar uma alimentação melhor, enfim, qualquer coisa que está acima do lumiar mínimo de vida, ou alternativamente não vais dar, porque para todos os efeitos, ele está vivo e ele vai ficar vivo, embora tenha uma vida nada boa, e com aquele dinheiro tu podes salvar outro miúdo em África e este é o tipo de discussão que os filósofos adoram, e eu acho que a maioria da população não acha grande graça, mas eu acho interessante filosoficamente perceber qual é a decisão certa, e eu não sei qual é, na verdade, eu acho que é bastante pensável dizer que é a primeira.
Steven Gouveia
Sim, ou seja não podemos dizer que as duas estão erradas, mas também é difícil dizer qual é a certa, não é? Aquilo que nós podemos dizer é falar gradualmente, podemos dizer que uma pode ser mais certa que outra por exemplo, e imagina mas isto é muito complexo e não há resposta certa, porque imagina isto eu então sou ultra auto -justificante e decido doar para a criança em África, mas eu não tenho qualquer relação psicológica com a criança, eu não vejo a criança. Agora, tu doas para a criança em Portugal e tens uma relação psicológica com ela, não é? Mental pá, recebes uma carta ou até conheces a pessoa e isso vai fazer o quê, por exemplo? Com que tu doas mais ao longo do tempo e não deixes de doar, mas por exemplo, no meu caso, por não ter tido essa recompensa, digamos assim, psicológica deixo de doar porque não vejo a prática ou a eficácia daquilo que eu estou a fazer.
José Maria Pimentel
Exato, exato, exato. É engraçado porque era uma das coisas que eu ia falar,
Steven Gouveia
exatamente. Ou seja, não é simples de julgar moralmente qual é a ação certa e isto é um problema podemos dizer que é do auto -justificágio mas é de qualquer ação ou de qualquer teoria ética em geral, que é para nós justificarmos uma ação, também teríamos de ter primeiro uma espécie de uma teoria da natureza da ação. O quê que isso significa? Significa que nós teríamos de dizer quando é que uma ação começa e quando é que acaba no espaço e no tempo. E de facto isto é muito difícil porque imaginando, nós podemos dizer por exemplo que matar o bebê Hitler ou matar uma criança que pode ser o Hitler é justificado moralmente, mas pode acontecer até que aquele bebê Hitler, afinal não era o Hitler, era uma pessoa que ia descobrir uma cura qualquer e de facto daí já seria moral. Ou seja, a própria metafísica da ação é relevante para pensarmos a ética da ação. E aqui o auto -justificágio é bastante neutro assume a humildade, digamos assim epistémica de que é muito difícil nós definirmos o que é que é uma ação o que é que não é e que dentro desta dificuldade vamos tentar fazer aquilo que podemos fazer melhor dentro desta dificuldade, digamos assim.
José Maria Pimentel
Boa. Olha, tu usaste a palavra metafísica, que é o alerta que eu tenho aqui quando falo com filósofos para que está na altura de terminarmos que já perdemos a audiência, não estou brincando não é tão brincado estou -me a meter contigo. Já vamos como sempre acontece nestes temas, já vamos com uma conversa longa, mas foi bem interessante e conseguimos cobrir os temas a que nos tínhamos proposto, o que é ótimo. Achas que eu posso só adicionar uma coisa?
Steven Gouveia
Claro, à vontade. Porque basicamente, isto é muito recente, mas curiosamente uma pessoa leu o meu livro, eu depois conheci a pessoa pessoalmente, e ela inspirou -se de certa forma a criar uma empresa ela já tinha uma empresa, Recursos Humanos, cujo trabalho era basicamente procurar candidatos específicos muito especializados para empresas que precisavam destes candidatos, e ela decidiu com a fundadora decidiu transformar de certa forma a empresa dela numa empresa de altruísmo eficaz como? A ideia será e eu vou ser consultor ético dessa empresa, que é Altruistic Careers vocês podem pesquisar no Google já, www .altruisticcareers .com e basicamente o papel vai ser um bocado igual que é, imagina que tu trabalhas numa empresa, mas que queres ter um trabalho eticamente mais interessante, que tenha mais impacto com o teu tempo, por exemplo então a ideia é que tu tens esta vontade, então podes mandar uma candidatura para esta nossa empresa, e nós depois vamos procurar uma empresa que na sua natureza é altruística eficaz, ou seja por exemplo, doa parte dos seus lucros para instituições de altruismo eficaz e farias o mesmo emprego mas estarias indiretamente usando o teu tempo a ajudar a casa de altruismo eficaz, claro que depois também poderias pegar em parte do teu salário e também doar, a outra característica interessante é que todos os lucros desta empresa depois de salários e depois dos gastos vão ser todos doados para instituições também de caridade ligadas a altruismo eficaz então é interessante perceber como é que uma ideia filosófica pode ter
José Maria Pimentel
impacto também no mundo real desta forma e sobretudo é um caso concreto, portanto as pessoas podem pesquisar olha, vamos terminar com a tua recomendação ou recomendações eu
Steven Gouveia
tenho uma série de cursos que contam com a participação de professores de renome também, tenho por exemplo um curso da democracia só com o Noam Chomsky onde falamos sobre alguns destes temas e eles estão todos disponíveis no meu site e depois basta mandar um e -mail, o meu site é stevensgouveia .weebly .com Ah, e eu ponho na descrição do episódio também. Tenho também um curso sobre o altruismo eficaz com o Peter Singer, tenho um curso sobre inteligência artificial tenho bastantes cursos interessantes depois, um podcast que eu acho interessante porque tenta tirar -nos do homo ignoramus, aquilo que eu defendo é que nós estamos muito presos, a nossa natureza evolutiva faz -nos ser bastante irracionais e incompreensíveis uns com os outros, e há um podcast português que é o Despolariza, que eu acho que tenta fazer um bocado esta ideia de tentar... Tomás Magalhães Sim, do Tomás Magalhães. Também fui lá. E depois, claro, autores que eu acho muito relevantes de lerem, Peter Singer sem dúvida, ele está sempre ativo em princípio, vamos lá ver se eu consigo trazê -lo para o ano também eu já o trouxe ao Porto em 2019 Jason Brennan que é o Epistocratic Moral é a pessoa que defende a epistocracia mais ativamente hoje em dia, em tempos internacionais ele tem um livro muito interessante Against Democracy onde grande parte dos meus elementos são baseados nele Um título provocador. Sim, sim Primeiro eu queria chamar aquilo Against Politics, mas a editora não gostou mas a tese é que a política faz nos mesmos pessoas menos irracionais e mais vis e pronto, eu acho que é isso Peter Singer Paul Bloom que é outro autor outro psicólogo moral muito interessante que investiga as instituições morais eu tive o prazer de estar num debate com ele no Fórum do Chipre há uns meses e foi muito interessante trocar é uma pessoa que também é quase podemos chamar um filósofo moral além do psicólogo porque tem um conhecimento
José Maria Pimentel
muito brutal Exatamente, olha Steven, grande conversa muito interessante como eu já suspeitava inicialmente. Obrigado por teres vindo. Obrigado eu Este episódio foi editado por Hugo Oliveira Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no site 45grauspodcast .com Seleciona a opção apoiar para ver como contribuir diretamente ou através do Patreon bem como os benefícios associados a cada modalidade