#131 Edalina Rodrigues Sanches - Porque tarda a democracia em África?

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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45 Graus. O 45 Graus tem um novo site, mais intuitivo, é ele, 45grauspodcast.com. De resto, em tudo igual, encontro lá exatamente o mesmo que encontravam no site anterior. Como de costume agradeço aos novos mecenas do podcast. São eles Ricardo Andrade Guimarães, Manuel Brandão, Filipe Portela, Bernardo Pimentel, Paulo Rafael e Paloma Nunes. Muito obrigado a todos e com isto vamos ao episódio de hoje. África é um continente gigante com 54 países, é muito diverso, seja étnica, seja culturalmente, e tem um enorme potencial, mas é também vítima de uma história Complicada, para usar um eufemismo, com séculos de exploração europeia, primeiro e depois de colonialismo, o mundo do pós-segunda guerra mundial trouxe na altura uma nova esperança ao continente, com mais de metade, 30 destes países, a tornarem-se independentes entre 1945 e 1960. Porém, as promessas de democracia e liberdade saíram rapidamente esfumadas, com muitos países acabarem dominados por regimes autoritários, na grande maioria dos casos encabeçados pelos mesmos líderes que tinham estado por trás do processo de independência. No final dos anos 80 começou uma nova era de otimismo, com a chamada terceira onda da democratização mundial, cujo início os cientistas políticos convencionaram ser o nosso 25 de Abril, a ganhar em África um ímpeto especialmente grande, resultado da combinação entre uma conjuntura internacional favorável com a queda da União Soviética e movimentações da sociedade civil a nível doméstico. Diversos países conseguiram neste período iniciar processos de liberalização política no sentido de sistemas mais democráticos. No entanto, a verdade é que, de lá para cá, nestas décadas que passaram, tem havido poucos ou nenhumes progressos ao nível da democracia em África, sobretudo se excluirmos a primavera árabe, no caso dos países acima do Sara, cujo sucesso, de resto, acabou por ser reduzido. Hoje, menos de 10 dentre os 54 países que compõem o continente são considerados democracias liberais e se destes excluirmos as ilhas e os países mais pequenos, estamos a falar essencialmente do Gana e dos três países mais a sul, África do Sul, Botsuana e Namíbia. Ao analisarmos o estado atual da democracia em África, há por isso várias perguntas a que é preciso responder. O que correu mal no processo de independência do pós-segundo da Guerra Mundial? No sentido inverso, o que é que permitiu a vaga da democratização nos anos 90 e o que é que explica os parques de progresso desde então? Por outro lado, que fatores comuns, políticos, económicos, demográficos, culturais, podemos identificar num continente tão grande e tão diverso? E finalmente, o que é que podemos esperar do futuro da democracia em África nas próximas décadas? Para responder estas questões, dificilmente poderia pedir melhor pessoa do que a convidada deste episódio. Edelina Rodrigues Sanches é doutorada em Ciência política pela Universidade de Lisboa, onde é atualmente investigador auxiliar no Instituto de Ciências Sociais. A área de especialização da convidada é, precisamente, a política africana, incluindo processo de democratização, representação política, ligações partidos-cidadão, comportamento político e dedicação dos eleitos ao seu círculo eleitoral. Além disso, a tese de doutoramento da Edelina, sobre sistemas políticos nos países que fizeram a transição para a democracia em África nas últimas décadas, ganhou em 2016 o Prémio da Associação Portuguesa de Ciência Política e deu origem a um livro publicado pela Rutledge. Esta foi uma conversa muito elucidativa, sobre um continente muito diverso e muito complexo e ao qual muitas vezes não damos a devida atenção. Espero que gostem, deixo-vos com Edalina Rodrigues Sanchos. Edalina Sanches, muito bem-vinda ao 45°.
Edalina Rodrigues Sanches
Obrigada José e bom dia ou boa tarde a todos os nossos ouvintes.
José Maria Pimentel
Nós vamos falar de África e de política africana e, sobretudo, democratização da África, como é que tem evoluído e ao fazer isto confrontamos logo com uma dificuldade que é o facto de a África ser um continente gigante, é maior ainda do que provavelmente as pessoas têm impressão porque aquele mapa que nós estamos habituados a ver, o Mercator, que no fundo é uma metodologia basicamente de converter o planeta, aquela esfera num plano, acaba por fazer os continentes que estão perto do extremo para serem maiores, que estão perto do meio para serem mais pequenos. Portanto, a África sendo grande parece mais pequena do que é na realidade, é mesmo um continente gigante. E para além de ser um continente gigante, nem é particularmente populoso comparado com a Ásia, por exemplo, mas é incrivelmente diverso, porque tens o Sar a separar o Norte do Sul e depois tens, geneticamente, é mais diverso o mundo, etnicamente, se considerarmos culturas, religiões, quer dizer, tem uma diversidade brutal e, portanto, olhar para a África como algo só é difícil, não é? E, no entanto, vamos ter que o fazer aqui, não é? Mas começo por-te perguntar, faz sentido chamar a África, Por exemplo, quando nós temos ali uma divisão como o Sara, que cria logo ali realidades muito diferentes, quer dizer, quase cria dois continentes diferentes, a parte norte, a muçulmana, mas com uma ligação à Europa maior, e a parte sul já numa realidade completamente diferente. Se falarmos da costa leste, por exemplo, já muito mais próxima da Ásia. Enfim,
Edalina Rodrigues Sanches
é uma pergunta muito interessante e ela tem sido colocada muitas vezes, dependendo do objeto de estudo, por exemplo, no estudo dos protestos, para muitos investigadores não faz sentido separar o Norte de África da África Subsaariana, por exemplo, para outras questões políticas, normalmente essa divisão pode ser operativa, mas como tu bem disseste, a diversidade que existe no continente é de tal ordem que estes agrupamentos regionais muitas vezes pecam pela simplificação da variação que existe, inclusivamente dentro desses clusters regionais que aí estão. E, portanto, há efetivamente bastante variação, diferenças que de facto acabam por caracterizar este conjunto de mais de 50 países, com trajetórias políticas bastante diferenciadas, com também uma trajetória do ponto de vista de legados coloniais também diferenciados e, portanto, precisamente por isso, quando olhamos para este continente, olhamos para uma diversidade de paisagens sociais, políticas e económicas. E geografia,
José Maria Pimentel
desculpa, também eu não falei, porque a questão geográfica também é importante, como é um continente que está de norte para sul, tem climas muito mais diferentes do que acontece, por exemplo, na Europa e a mesma entre a Europa e a Ásia.
Edalina Rodrigues Sanches
Exatamente, exatamente. Portanto, as diferenças são de tal ordem e, como tu dizes, estamos a falar de uma população de aproximadamente 1.4 milhões, países que são não sei quantas vezes maiores que Portugal, tem uma densidade populacional, enfim, muito mais baixa, o que significa que, apesar de, enfim, as estimativas que existem de um aumento populacional, crescente urbanização, mas do ponto de vista da situação que temos hoje, de facto, um continente pouco populoso, tendo em conta a sua extensão e a quantidade de países, com grande variedade, com diferentes velocidades do ponto de vista económico, com diferentes avanços do ponto de vista da democracia e se olharmos, por exemplo, para a região do norte de África, que era uma região quase de exceção quando se deram as transições para a democracia no continente, de facto ali ficou como uma zona quase de exceção onde apesar de tudo os líderes autoritários conseguiram se manter sem abrir à terceira vaga inicialmente daí que a Primavera Árabe tenha surgido como esse momento de transformação nessa região. Já
José Maria Pimentel
agora acho que se justifica até ir um bocadinho atrás à descolonização, para perceber como é que isso se influenciou, porque na prática o que tu tens é um movimento de descolonização, Portugalia é uma exceção, mas sobretudo pós-segunda guerra mundial, e depois o que acaba por acontecer em muitos países é o poder ser tomado por líderes autocratas. O que eu acho que é particularmente interessante aí, para além destas variáveis externas, que obviamente são relevantes, é perceber internamente o que é que aconteceu nesse período, ou seja, como é que se foi formando uma sociedade civil ali por cima dos combros do colonialismo, de um poder que tinha saído e tinha deixado espaço para depois esses líderes autocratas, mas onde não havia, basicamente, uma sociedade civil, como nós estamos habituados a pensar, como é que ela se foi formando? Ou seja, como é que as pessoas foram organizando e depois se conseguiram, mais ou menos, sublevar, pelo menos em alguns países, para conduzir essa vaga democrática? Isso está, de alguma forma, relacionado com a evolução da própria economia, com a evolução da educação? Ou seja, alguma coisa que nós possamos dizer em relação a isso?
Edalina Rodrigues Sanches
Alguns autores, colegas, que têm trabalhado mais a questão dos efeitos do colonialismo no processo de democratização ou no processo de formação das sociedades civis, portanto, quer dizer, África sempre teve a sua riqueza de sociedades civis e isso, de certa maneira, acabou por ser um pouco espartilhado com a experiência da colonização. A experiência da colonização trouxe uma sociedade civil mais funcional, ou seja, orientada para o tipo de atividades econômicas prevalecentes e isso também foi variando consoante o país colonizador. Aquilo que alguns colegas meus têm estudado esta questão demonstram é que os países que tiveram uma experiência colonial britânica acabaram por ter coabitações entre o Estado e a sociedade civil um pouco mais flexíveis, porque nesses países o tipo de sociedade civil acabou por ser um pouco mais funcional, orientado seja para a atividade mineira ou outro tipo de atividade industrial, mas que foi importante para criar sociedades civis um pouco mais robustas quando comparadas, no fundo, com as outras realidades. Esse efeito foi desigual, em alguns casos podemos falar de quase uma sociedade civil muito incipiente, mas nos casos de Nigéria, da Zâmbia, que eu conheço bem, onde no fundo a zona do copper belt, do cobre, no fundo tinha sindicatos muito fortes e estes sindicatos foram pontos focais para a formação de partidos políticos e não só aí, mas também no Zimbábue, ou seja, há uma série de países nos quais os sindicatos foram forças para a democracia importantes, mesmo se alguns destes sindicatos hoje são menos relevantes, mas os sindicatos foram importantes e talvez na sociedade civil os partidos que depois chegaram ao poder procuraram naturalmente organizar a sociedade civil e no fundo a sociedade civil em alguns casos passou a ser uma extensão das organizações dos próprios partidos, portanto, se os partidos tinham organizações de juventude, tinham organizações de trabalho, no fundo acabaram por organizar uma parte da sociedade civil debaixo do braço organizacional dos partidos, mas ainda assim, mesmo no contexto de regime de partido único, houve uma coabitação com alguns destes sindicatos porque, no fundo, o partido não podia chegar a todo lado, o Estado também não penetrava em todas as parcelas do território e isto significava que existiam estas zonas onde era possível, e sobretudo estas zonas de cinturas industriais, onde de facto era preciso estabelecer outro tipo de negociação ou de coabitação com estes sindicatos. E o lado positivo é que onde essa coabitação foi um pouco mais pacífica, por assim dizer, entre a elite autoritária e esta sociedade civil, de facto, criou um espaço para, no fundo, uma força organizacional, mas também para a formação do tipo de consciência que é preciso para depois fazer uma mudança política. Indo um bocadinho mais atrás ainda, eu imagino que já tenham feito esta
José Maria Pimentel
pergunta centenas de vezes, mas o que é que correu mal para que tantos líderes promissores que existiam a certo ponto em África, sobretudo ali nos anos 70, depois tenham tornado todos ditadores, ou quase todos, não é? Claro, o exemplo do Mugabe é dos exemplos mais conhecidos, mas não é caso único. Era demasiado tentador.
Edalina Rodrigues Sanches
Eu acho que é preciso sempre enquadrar estas experiências naquilo que era o projeto de democratização que, no fundo, alguns destes movimentos também preconizavam e os desafios que enfrentaram no processo após as independências e, portanto, no fundo, de herdar um país por construir e eu, quando falei com algumas elites políticas que viveram esse processo da transição da independência para o governo de um novo Estado, então muitas vezes referiam a essa questão de que herdaram um país e onde muitas vezes faltavam quadros, faltavam vários recursos.
José Maria Pimentel
Quadros no sentido de pessoas conformadas, não quadros na parede. Exatamente, bem visto. Talvez também faltassem.
Edalina Rodrigues Sanches
Mas eram mesmo quadros de pessoas concretas, portanto, eles precisavam de pessoas concretas para ocupar posições no Estado. Daí que também tenha dito que essa coabitação com aquilo que existia antes, com essa sociedade civil ou com os quadros que vinham do período autoritário, em muitos casos não houve um saneamento total, em alguns casos houve mesmo uma coabitação porque era preciso também que existisse esta cooperação, mas de facto vários destes partidos acharam que a única solução possível para garantir a governabilidade, no fundo, era haver um único partido a governar e claro que os graus de autoritarismo são diferenciados, há aqui experiências diferenciadas, há países que viveram aqui períodos de algumas experiências de multipartidarismo, Gana com períodos de regime militares, há países que organizaram eleições mais ou menos competitivas e depois há casos de países que, de facto, fecharam completamente o jogo eleitoral e onde podemos mesmo falar de presença de líderes ditadores autocráticos e que não respeitaram, no fundo, o mandato.
José Maria Pimentel
E que se eternizaram.
Edalina Rodrigues Sanches
Exatamente. E não cumpriram esse mandato democrático de emancipação que tinham prometido, mas outros líderes que caminharam nesse sentido. Já
José Maria Pimentel
agora explicou o que é a terceira vaga. O que é que nós falamos quando falamos da terceira vaga de democratização?
Edalina Rodrigues Sanches
Então este conceito é um conceito que foi introduzido por Samuel Huntington, alguns dos ouvintes eventualmente conhecerão este termo, mas basicamente ao longo do tempo foram sendo feitas, por períodos históricos concretos, números de anos concretos, foram sendo feitas contagens do número de democracia por relação ao número de autocracias nesse período concreto. E, portanto, a partir desse exercício foram sendo demarcadas várias vagas de democracia e identificava-se uma vaga sempre que num determinado período o número de países que transitavam para um regime democrático era superior exponencialmente ao número de países que ou permaneciam autocracias ou retrocediam. E, portanto, com base nessas contagens foram feitas, no fundo, foi feito este exercício de periodização de vagas e a terceira vaga começa...
José Maria Pimentel
Espera, mas desculpa, qual foi a primeira e a segunda?
Edalina Rodrigues Sanches
Portanto, a primeira vaga ocorre de acordo com o Samuel Antiton, entre 28 e até 1926, a segunda entre 1943 e 1962. É o pós-guerra. Exatamente, apanha o pós-guerra. A descolonização. A descolonização, o início da formação de estados independentes em África e noutras regiões do mundo e depois a terceira vaga, sim, começa em 1974 com a transição portuguesa à democracia.
José Maria Pimentel
Mas espera, desculpa interromper-te, o que é que causou, para nos fingirmos esta terceira, que é mais contemporânea, o que é que causou a terceira vaga? Portugal não sabemos, mas teve condições muito específicas. Mas, por exemplo, em África, o que é que causou essa terceira vaga, essa vaga de democratização ali nos anos 80?
Edalina Rodrigues Sanches
Exatamente. Portanto, há uma conjunção de fatores domésticos e de fatores internacionais. De um lado, no fundo, há todo um processo de crescente deslegitimação e de crescente enfraquecimento dos regimes de partido único que tinham sido adotados no pós-independência na grande maioria dos estados africanos. Portanto, estes eram Estados que identificavam-se do ponto de vista ideológico com a ideologia socialista, que tinham apoio também do bloco comunista e que, de certa maneira, foram desenvolvendo modelos de economia centralmente planeados, que eram regimes de partido único em que a oposição estava impedida de poder competir nas eleições e onde muitas vezes também as eleições não eram mais do que, digamos assim, atos…
José Maria Pimentel
Eram para a forma.
Edalina Rodrigues Sanches
Exatamente, atos para a forma. Portanto, a partir dos anos 80 alguns destes estados começam a enfrentar desafios económicos, isto também na sequência da primeira crise do petróleo nos
José Maria Pimentel
anos 80. Exatamente, aí tem algumas coisas a ver com Portugal,
Edalina Rodrigues Sanches
nesse caso. Exatamente, portanto, há aqui alguns fatores que não são específicos ao contexto africano, mas que depois têm efeito e exerce pressão internacional sob, digamos assim, os regimes incumbentes.
José Maria Pimentel
Portanto, começa antes da queda da União Soviética, mas depois deve ser acelerado pela queda
Edalina Rodrigues Sanches
da União Soviética. Exatamente, precisamente isso. Ou seja, o que nós começamos, se olharmos para a realidade dos regimes, os regimes autoritários não são idênticos ao longo do tempo e não têm defesas idênticas ao longo do tempo. Então isto significa que em alguns Estados foi possível observar ao longo do tempo um enfraquecimento de determinados mecanismos que garantiam a sustentabilidade e a estabilidade do regime. E portanto, nesses regimes autoritários, o facto de terem existido muitas formas internas e externas de contestação ao regime alimentou uma oposição que conseguiu exercer pressão política para a mudança poder acontecer. Portanto, isto é uma dimensão, digamos assim, interna do processo de transição, de mudança de regime. Para além disso, em muitos países, em razão desta má performance económica nos anos 80 e depois a entrada dos planos de ajustamento estrutural no continente, isso levou a uma vaga de protestos também muito grande, que ficou conhecida como as IMF riots, os protestos contra o IMF e o Banco Mundial, mas que foram importantes também para exercer pressão doméstica face aos regimes autoritários. Do ponto de vista internacional, como tu bem disseste, no fundo o colapso da União Soviética e, no fundo, Entre aspas, o fim da história que se antecipava e o advento da democracia como norma acabou por criar, no fundo, também não só uma deslegitimação do ponto de vista ideológico, mas também do ponto de vista do apoio material também que vinha desse lado do globo e que apoiava grande parte dos regimes de partido único. Portanto, na conjunção destes fatores, tanto domésticos como internacionais, acabámos por assistir então a uma enorme pressão em que os líderes da anterelite política que estava no governo foi forçada a iniciar movimentos em relação a uma abertura dos regimes. Portanto, com diferentes graus de vontade de o fazer. Portanto, em alguns casos a elite incumbente conseguiu mais ou menos controlar as regras do jogo e decidir o calendário das mudanças, o alcance das mudanças e, em outros casos, esta oposição que se foi formando e que operava de forma clandestina, muitas vezes fora do território nacional, foi capaz de, enfim, nivelar um pouco a agenda. O rede de jogo, sim. Exatamente, nivelar o jogo e a agenda de negociação que uma transição política envolve. Ou seja, No fundo, uma conjunção de dimensões domésticas e de dimensões internacionais. Em alguns países foram mais as forças domésticas que importaram mais, em outros a dimensão internacional. Sobretudo os países que experimentaram a transição de cenários de conflito para cenários de paz e, eventualmente, democratização. Nesses casos, houve sempre intervenção externa da ONU com mandatos muito específicos de democratização e construção de paz, mas, regra geral, este é um cenário que, com as devidas adaptações para cada contexto, acabou por informar o início da vaga de democratizações ou de experiência de democratização no continente.
José Maria Pimentel
Então, vamos voltar à vaga, à terceira vaga, que estávamos a falar há bocadinho. É engraçado porque eu estava a ouvir falar há bocado e a lembrar-me que esta terceira vaga da democratização em África especificamente também contribuiu para aquela, como tu o dizes, há bocadinho para a célebre tese do Fukuyama do fim da história e que basicamente a democracia liberal se estava a estender a todo mundo. Eu acho que é menos falado, porque a pessoa pensa mais no efeito da queda da União Soviética, da Europa de Leste, mas África também contribuiu para essa tese, o que é interessante, sobretudo se nós pensarmos que essa tese tem sido bastante contestada por razões óbvias nos últimos tempos, pela maneira como têm evoluído as democracias ocidentais, enfim, e alguns países ali na ordem do Ocidente, como a Turquia, como a Rússia, como é óbvio, como a própriandia, para não falar de Xine país do género, mas também a África, esta terceira vaga, no fundo, não cumpriu a promessa, ou seja, não tem havido uma evolução recente que tenha deixado um bocado a desejar e a verdade é que se nós olharmos para a África, e agora vou usar palavras tuas, mas confirma-me, de 54 países, só 7 ou 8 países é que nós podemos considerar democracias a sério, não é? E vários desses países são países pequenos. O que é que correu mal? O que é que correu mal para que a vaga tenha perdido tração, digamos assim, e não tenha chegado tão longe?
Edalina Rodrigues Sanches
De facto, quando olhamos para esta experiência da democratização, que é bastante recente, é dos anos 90, então eu acho que aqui o nosso olhar é, por vezes, eu penso que é muito, as nossas apreciações, por vezes, podem olhar sobretudo para os resultados, mas 90 para cá é mesmo muito pouco tempo de início de processos de democratização e nós sabemos que a democracia é um processo aberto, não é o fim da história, é um processo aberto, sujeito aqui a mudanças e sujeito a retrocessos e, portanto, enfim, precisa de tempo e, neste caso, ainda não temos tempo suficiente para fazer um veredito sobre esta experiência, mas podemos tirar aqui algumas eleições sobre o que está a acontecer.
José Maria Pimentel
Mas deixa-me, desculpa, só para perguntar só para que até ouvi perceber eu próprio. Se tivesse que traçar um gráfico, o que nós temos desde os anos 90 é Houve ali uma subida e depois tem havido um retrocesso ou houve uma estagnação? Ou um crescimento muito, muito, muito lento?
Edalina Rodrigues Sanches
O que houve foi uma estagnação, ou seja, muitos autores têm questionado se na verdade com estes retrocessos ou não avanços significa que estamos agora a viver uma, eventualmente uma quarta vaga. Mas os estudos têm reconhecido que ainda não há retorcé suficiente, não há avanço também suficiente, portanto ainda estamos na terceira vaga e aquilo que nós temos de facto é uma estagnação, ou seja, quando olhamos para o conjunto de países que, no fundo, atingiram alguns dos requisitos que nós associamos à democracia liberal em África. Quando olhamos para alguns destes países, a verdade é que verificamos que o mesmo conjunto de países que de certa maneira nos anos 90 conseguiu fazer avanços significativos em relação a uma liberalização política mais ampla, esse mesmo conjunto de países conseguiu mais ou menos manter esse desempenho ao longo do tempo, manter essas arenas mais ou menos democráticas ao longo do tempo, com exceção talvez do Senegal e do Benin, mas o restante conjunto de países conseguiu manter-se. Estamos a falar de Cabo Verde, do Gana, de São Tomé, da Namíbia, da África do Sul, das Maurícias, do Botsuana, portanto, estamos a falar deste conjunto de países que ao longo do tempo conseguiu-se manter nesta família, se nós assim quisermos, de democracias liberais, que também é um conceito que por vezes também é criticado. Mas, entre alguns países que também estavam neste lote, como o caso do Mali, que desde 2012 tem enfrentado questões de secessionismo e também conflito armado. Depois também temos aqui Bonin e Senegal, que também retrocederam recentemente, mas a grande maioria dos países está então nesta chamada zona cinzenta dos regimes chamados híbridos. Os regimes híbridos, enfim, combinam características autoritárias com características democráticas. Normalmente têm eleições regularmente e garantem a competição dos partidos da oposição, mas todo o ambiente, no fundo, digamos assim, eleitoral, tem várias irregularidades, seja ao nível da integridade eleitoral, ao nível do acesso aos mídia, portanto há aqui um conjunto de outras dimensões que, no fundo, não cumprem os requisitos ainda democráticos. O que significa que os incumbentes, em certa medida, abrem um pouco o espaço, mas tentam controlar o máximo que conseguem. De uma forma geral, no fundo, temos aqui um grande conjunto de países que estão nesta zona cinzenta, que fizeram esta transição, mas também mantiveram-se nesta zona de regimes híbridos, grande parte deles. E depois temos aqueles que são autoritários e que de facto ainda não saíram da família autoritária, têm eleições multipartidárias, mas no fundo estas eleições fazem parte deste grande menu cosmético de no fundo cumprir um requisito mínimo de competição multipartidária, mas no fundo não abrir verdadeiramente o regime político. Agora, indo a este lado do porquê que nós encontramos estes resultados tão diversos e as respostas vão em vários sentidos e depois podem ser olhados caso a caso, porque temos aqui um continente no fundo com mais 50 países e, portanto, vamos encontrar aqui coisas caso a caso. Por um lado, temos que olhar aqui para as estratégias de sobrevivência desta elite autoritária, destes líderes autoritários que estiveram no poder, vamos arredondar, por cerca de duas a três décadas, dependendo do timing da independência. E, portanto, Isto significa que muita desta elite teve acesso aos recursos do Estado, teve a oportunidade de se apoiar nestes recursos para construir capital material, mas também capital simbólico. E esse capital simbólico depois também ajuda a manter alguma desta elite ativa, seja dentro dos partidos, seja fora dos partidos, portanto com redes que esta elite acaba por ter também. Portanto, um dos aspectos importantes a considerar é, por um lado, as estratégias de sobrevivência desta elite autoritária, que ainda se pauta por esta cultura política um pouco de cariza autoritária e, portanto, no fundo, estas estratégias de sobrevivência visam manter esta elite dominante e controlar o máximo possível as regras do jogo e, mesmo quando abraçam a mudanças institucionais, tentam adotar as mais conservadoras ou então aminar um pouco as regras do jogo para além das regras formais que são adotadas. E, portanto, isso é uma forma, digamos assim, de controlar o jogo democrático, ou seja, é mesmo que
José Maria Pimentel
se adote... Viciar o jogo. Exatamente.
Edalina Rodrigues Sanches
Uma das explicações que tem muito a ver com isto e vários autores e mesmo em alguns estudos, vamos no tanto para o conjunto de técnicas utilizadas para, no fundo, abrir o jogo e ao mesmo tempo minar o jogo democrático. E, portanto, esse é um dos aspectos. Não é exclusivo ao continente africano, só para dizer que não é exclusivo. Um velho técnico. Exatamente, mas como aqui nós estamos a exigir esta análise também para as nossas e nossos ouvintes, também queria dizer que algumas das coisas que aqui estou a dizer não são específicas apenas ao continente, mas como esta conversa é sobre democracia em África, não quero que ela sirva para essencializar determinados estereotipos sobre a forma como funciona a política em África. Longe disso, mas algumas destas dimensões, na verdade, viajam para outras geografias.
José Maria Pimentel
Mas esse é que é o ponto interessante, porque como tu dizes, isso acontece em todo lado. Ou seja, em qualquer sítio, salvo raríssimas exceções, mas que são mesmo muito raras, quem está no poder tenta mantê-lo. Isso faz parte da natureza humana. Por isso é que é particularmente interessante perceber, e de novo, também é uma questão universal, perceber que condições é que permitem que se faça uma evolução no sentido da democracia, por exemplo. Isso é uma questão histórica desde a Inglaterra. Mas, por exemplo, no caso específico de África, o que é que permitiu os casos de sucesso que existem? Porque se nós olharmos para o mapa, eu diria que há ali dois clusters. Um é do sul de África, portanto há a África do Sul e depois há ali o Botsuana e o Namíbia, e aí pode ter a ver com um certo efeito de gravidade da África do Sul, ou seja, de puxar os outros naquele sentido, pode ter a ver com diferentes tipos de colonização. E depois temos as ilhas, também temos Cabo Verde, que tem sido um caso de sucesso. São Tomé, Seixelas. As próprias Seixelas, exatamente. Maurícias. Exatamente. Portanto, temos aqui estes dois coletivos. O que é que eles têm de diferente? O que é que nós podemos dizer que eles têm de diferente para ter corrido bem?
Edalina Rodrigues Sanches
Estes países têm diferenças entre si e têm aqui também algumas características. De um lado, a considerar há aqui algumas questões relacionadas com as formas de transição à democracia, o compromisso das elites políticas com as normas democráticas e o facto de a determinada altura estes países também terem assumido essa vertente. É muito comum, por exemplo, ouvir nos líderes caboverdianos esta noção de que somos campeões em democracia na África. Ou seja, e mesmo no contexto da União Africana, uma das agendas que foi abraçada também pela África do Sul, Mandela, mas depois mais tarde Mbeki, também foi muito nessa linha de avançar esta agenda. Portanto, há países que assumem um pouco esse papel de
José Maria Pimentel
comprometimento. Como fator diferenciador, não é?
Edalina Rodrigues Sanches
Exatamente, como fator diferenciador e depois há países que foram fazendo esta transição. As ilhas têm aqui uma característica que é o facto de terem populações menos diversas
José Maria Pimentel
do ponto de vista ecolinguístico,
Edalina Rodrigues Sanches
têm menos diversidade, também estiveram insolados de grandes conflitos e, no fundo, também têm populações mais pequenas e, de facto, um tipo de conexão entre a elite política e a população local que, segundo vários atores, acaba por alimentar, digamos assim, uma cultura política um pouco mais coesa
José Maria Pimentel
e participativa
Edalina Rodrigues Sanches
e que acaba por alimentar um modelo de política mais favorável à democracia.
José Maria Pimentel
Esse ponto da diversidade étnica, quer dizer, não é originalidade nenhuma, é muitas vezes falado em relação à África, até porque muitos conflitos que existem são conflitos étnicos.
Edalina Rodrigues Sanches
Inclusive é na Europa, nem se nós... Não, era isso
José Maria Pimentel
que eu ia dizer. Tem sido falado muito nos últimos anos porque, precisamente, as democracias europeias, não tanto Portugal, mas mais no centro da Europa, tem-se, centro e leste, tem-se defrontado com, no fundo, as dificuldades da diversidade étnica e até há quem diga mais, enfim, cruamente, que se calhar não é possível ter uma democracia tal como nós estamos habituados com diversidade étnica, ou seja, no fundo que para uma democracia funcionar tu precisas ter essa coesão, não é, porque se tens esse tipo de diversidade rapidamente atrasa em conflitos e a lógica maioritária que está na base da democracia começa a sair pela colatra, ou seja, deixa de funcionar bem, porque passa a ser uma etnia a dominar as outras. E portanto essa explicação faz sentido, de facto.
Edalina Rodrigues Sanches
Isso que tu dizes faz todo o sentido e tem a ver com uma das razões pela qual se critica o modelo liberal da democracia e alguns autores sugerem que um modelo de democracia mais consensual, mais descentralizado, mais apoiado na relação entre cidadãos e político, claro que isto tem que ser concretizado em instituições concretas e num modelo institucional concreto, mas a discussão que se tem muito é que, de facto, este modelo do vencedor ganha tudo, é um modelo maioritário e os outros são excluídos do poder. No fundo este modelo não faz sentido em sociedades que são muito divididas, é preciso criar aqui instituições que permitam a tal partilha de poder e alguns Estados têm sido hábeis a fazê-lo. Por exemplo, a Botswana tem uma maioria étnica que são os Tsanas e o partido que está no poder desde a independência, de facto, é um partido que representa muito essa maioria, Mas eles depois têm aqui alguns mecanismos, têm um conselho consultivo onde os líderes tradicionais têm assento, são consultados. Este conselho tem aumentado em termos de proporcionalidade.
José Maria Pimentel
Engraçado. Pois, o voto é muitas vezes referido como caso de sucesso.
Edalina Rodrigues Sanches
Exatamente, mas, enfim, ao mesmo tempo tem este paradoxo de ter este partido para sempre, desde 60 anos, 60 no poder, mas em eleições, em eleições competitivas e relativamente transparentes. Pois,
José Maria Pimentel
não é caso único, há vários países, o Japão, por exemplo, há países onde
Edalina Rodrigues Sanches
isso também aconteceu durante largas porções do tempo. Portanto, isto para dizer que… Mas como
José Maria Pimentel
é que é? Desculpa, explica lá melhor como é que é o esquema deles, porque isso é interessante. Eles têm esse partido, um poder que no fundo representa a maioria,
Edalina Rodrigues Sanches
não é? A etnia, e eles depois, no fundo, têm este conselho consultivo, que é consultado, quase como um mecanismo de coordenação. Representar
José Maria Pimentel
várias etnias. Exatamente,
Edalina Rodrigues Sanches
onde os vários grupos étnicos têm assento e, portanto, e são ouvidos em determinadas políticas, consultados. Então, em alguns estados existem este tipo de mecanismos para, no fundo, gerir estas tensões. Outra maneira através do qual isso é feito é quando também se procura incluir esta diversidade. Alguns partidos fazem isso diretamente, ou seja, quando constroem as suas listas procuram cooptar membros de diferentes grupos étnicos. Portanto, há aqui várias formas de engenharia institucional para conseguir garantir esta representatividade. Portanto, ao mesmo tempo que esta diversidade pode ser um desafio para qualquer democracia, tem que haver uma resposta e essa resposta é possível, ou seja, o que não se pode dizer é que são incompatíveis, que não há democracia com esta diversidade ou que é a diversidade que causa o falhanço da democracia. Também não... O que eu acho que é mais útil pensarmos é de como é que a democracia pode se aparelhar ou eventualmente transformar-se para, de facto, poder garantir mais do que a representação da maioria. É certo que tem que haver isso, mas é importante que existam outros canais através das quais grupos minoritários conseguem também canalizar os seus apelos e encontrar uma via de comunicação, porque de outra forma também há aqui parcelas da população que são excluídos e isso não é incompatível com a democracia.
José Maria Pimentel
Sim, e tem a ver até com outra questão que tu agora aludias, é essa crítica que às vezes é feita de que o modelo da democracia tal como nós tendemos a entendê-lo enquanto produto da Europa, não faz tanto sentido em África. E um lado tem que ver com essa questão étnica, mas o outro vai além dela e tem que ver com o próprio tecido social, ou seja, como em muitos casos estávamos a falar de sociedades onde a lógica tribal ainda tem um peso grande e, portanto, onde a organização da sociedade não tem a lógica mais individualista é que nós estamos habituados. As povoações são governadas basicamente muitas vezes por um conselho de... Não sei como é que se traduz para português, os elders, como é que se diz?
Edalina Rodrigues Sanches
Sábios? Não sei. Dos sábios, dos mais velhos.
José Maria Pimentel
Dos mais velhos, normalmente. E, portanto, aquilo, Aliás, eu tenho um amigo que teve recentemente uma experiência no terreno na Guiné e ele contava-me isso porque aquilo... Ele levava para lá um esquema que tinha essa lógica individual, ou seja, que as pessoas tinham que votar, tinham que expressar a opinião individualmente, mas depois tudo aquilo estava organizado nessa lógica grupal em que havia... O processo de decisão era bastante mais orgânico e havia quem representasse o grupo, não é? Que no fundo era sempre um homem, sempre um mais velho, ou dos mais velhos pelo menos. Enfim, essa lógica nós podemos achá-la boa ou má à luz do nosso olhar mais individualista ocidental, mas a verdade é que é aquilo que existe no terreno, e por exemplo, aí existem algumas experiências interessantes que tentam fazer essa descentralização porque isso também implica, pois provavelmente o custo disso é que será difícil nesse esquema, num esquema muito descentralizado, a povoação a povoação de ter um Estado moderno, digamos assim, ou seja, com o arcaboiço de um Estado moderno e que consiga, sei lá, ter serviços públicos espalhados pelo país, cobrar impostos e tudo mais. Mas vamos deixar de lado essa limitação. Existe, para além do Botsuana, existem experiências mais descentralizadas que tenham funcionado bem?
Edalina Rodrigues Sanches
Ok, então deixa-me só recuperar aqui um ponto daquilo que tu estavas a dizer anteriormente e que eu acho que também é muito importante e que mostra muito como é que este processo também de democratização ou como as normas europeias, enfim, ou globais, muitas vezes, encontram também desafios na sua aplicação a nível regional ou mesmo local. Esse debate sobre a educação da democracia também é um debate que anteriormente podemos encontrar ecos disso na Carta dos direitos humanos e dos povos, na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, que procura justamente trazer esse cunho, um conjunto de direitos mais coletivos.
José Maria Pimentel
Mais comunitário. Exatamente,
Edalina Rodrigues Sanches
à própria carta. Portanto, no fundo, dizendo nós, ou seja, essa reflexão é uma reflexão que vem já enquadrada dentro de um debate mais amplo que tem tido lugar no continente, no sentido de que, no fundo, esta apropriação muitas vezes dos esquemas, das normas, por vezes globais, outras vezes ocidentais, muitas vezes acabam por deixar para trás algumas das dimensões que são importantes ao nível continental. Portanto, isso tem a ver com a questão da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. Ao nível da democracia também, cada vez mais um avanço em relação a discussões nesse sentido, ou seja, vamos africanizar a democracia, como dizia o Carlos Lopes, um economista da Guiné-Bissau, muito conhecido.
José Maria Pimentel
E não maratonista.
Edalina Rodrigues Sanches
Exato, e não maratonista. Portanto, vamos africanizar a democracia e vários autores têm apontado nesse sentido que isso é preciso. No entanto, a experiência de descentralização tem sido uma experiência muito difícil no continente. A verdade é que continuamos a encontrar de uma forma geral fortes resistências a descentralizar, a devolver o poder.
José Maria Pimentel
Ah, pois, uma vez capturado, não é? Ou
Edalina Rodrigues Sanches
seja, é importante recordar que os países africanos têm uma herança do colonialismo de estados centrais, monoprodutivos, extrativos, muito centralizados nas capitais, perdão a mensa simplificação, mas dizer muito centralizados e com pouca penetração territorial. E onde muitas vezes nós, como dizia Mandami, temos uma lógica em que temos cidadãos que são cidadãos mesmo dentro da paisagem africana, portanto cidadãos de primeira e cidadãos que são sujeitos, não é? E, portanto, essas lógicas que muitas vezes também se sobrepunham à divisão entre rural e urbano e ao tipo de democracia que cada um tem acesso, ao tipo de liberdade que cada um tem acesso.
José Maria Pimentel
E ao tipo de Estado, muitas vezes o Estado não chega sequer a essas áreas rurais. Precisamente, ou seja,
Edalina Rodrigues Sanches
muitas vezes ao tipo de Estado, enquanto que nas zonas onde no fundo as elites estavam mais presentes, nas capitais, nos grandes centros, vamos encontrar um tipo de serviço, um tipo de relação entre Estado e cidadão, nas zonas rurais muitas vezes o tipo de relação era muito mais coerciva, era uma relação muito mais coerciva e da ausência do Estado. Portanto, isto significa que o processo de centralização tem começado a decorrer e temos países com iniciativas interessantes, não só ao nível da descentralização, mas ao nível do apoio a projetos ao nível local. Isso tem sido conseguido, por um lado, também por parte do Estado, por parte de organizações da sociedade civil e também por parte de intervenção internacional que vai alimentando iniciativas a nível local, mas muitas vezes com equipas dos próprios países muito dominados pelas visões das equipas dos próprios países que financiam esses projetos, do que propriamente alimentando o caudal de ideias e de iniciativas a nível local. Mas ainda assim, para dizer que estas experiências acabam também por ser as experiências que estão em curso, muitas delas começaram nos finais dos anos 90, com intenções anteriores, mas com uma legislação a definir os contornos, as instituições de uma forma, as instituições ao nível local e as suas competências económicas e políticas, sobretudo a partir dos anos 2000, com uma forte pressão internacional, com documentos do Banco Mundial, ou seja, há uma forte pressão internacional nesse sentido, mas para dizer que todo este processo é ainda um processo muito recente e, portanto, ainda se encontram aqui algumas resistências, claro, por parte das elites que, no fundo, Olham para este processo de descentralização como uma, pode ser, a ameaça para o partido que está no poder, no fundo a ameaça de autonomizar áreas do território e com isso autonomizar centros de poder alternativos. Sim. E
José Maria Pimentel
de certa forma seria quase voltar atrás no tempo, Porque o que se fez em África largamente foi instaurar Estados, na lógica do modelo europeu, numa realidade que é bastante diferente, que é muito mais próxima dessa lógica, nós chamamos de descentralizada, mas no fundo é mais granular, ou seja, é comunidade a comunidade. É uma lógica que existia na Europa também há uns séculos, É uma lógica que não é compatível sequer com o Estado, como nós o entendemos, um Estado grande que tem... É que não é só a questão da democracia, é também o próprio Estado, um Estado com serviços públicos que cobra imposto para prestar esses serviços públicos, redistributivo, quer dizer, tudo isso provavelmente nem é do interesse dessas comunidades que preferem, digamos assim, governar-se a uma escala mais pequena, não é? Onde tem essa identidade cultural. Só que uma vez tendo criado esse Estado, é difícil que alguém aceite demolí-lo, digamos assim.
Edalina Rodrigues Sanches
Eu creio que, de certa maneira, essa noção de Estado, a descentralização, no fundo, ela acaba por ser um processo de adaptação do Estado, ou seja, um processo em que, no fundo, o Estado, enquanto nós o pensamos, é uma rede, digamos assim, de instituições e uma rede de pessoas e de normas e de práticas e, portanto, eu penso que, no fundo, o processo de centralização é um processo de transformação de algumas estruturas que formam o Estado, de adaptação, da forma como nós olhamos para o Estado enquanto um organismo vivo. No caso de vários países no continente africano, o que há no fundo é este legado de Estados tremendamente centralizados, com fraca penetração territorial, que depois ainda não foi, digamos assim, transformado e que vai prevalecendo, quer do ponto de vista institucional, mas quer do ponto de vista da escalação dos cidadãos com a política.
José Maria Pimentel
Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no site 45grauspodcast.com. Selecione a opção apoiar para ver como contribuir, diretamente ou através do Patreon, bem como os benefícios associados a cada modalidade. Nós, entretanto, entramos pela questão étnica e das comunidades e vale a pena voltar atrás porque isso é uma das explicações possíveis para esta diversidade de grau de sucesso nas democracias, para termos países que podemos considerar democráticos e já agora vale a pena dizer em relação a alguns daqueles que referimos estão ao nível de várias democracias europeias, por exemplo Portugal, Cabo Verde-Salvoer tem uma classificação muito parecida até naqueles ranquinhos mais conhecidos, Mas há outros fatores que costumam ser referidos, por exemplo, vale a pena referir o mais óbvio de todos, que é o efeito da colonização. E aí podes ter, pelo menos dois, eu diria, um efeito institucional, ou seja, diferentes países terem deixado instituições melhores do que outras e o célebre efeito do traçar das fronteiras, que em muitos países criou divisões que foram completamente horripil das divisões étnico-linguísticas e, portanto, que depois dificultou. Que peso é que tu achas que isto tem? Tu falavas há bocadinho a propósito do Botsuana e dos países ali de colonização inglesa e se calhar também alemã, no caso da Namíbia, que esses países colonizadores podiam ter deixado instituições melhores. Isso é verdade? Faz sentido?
Edalina Rodrigues Sanches
Sim, alguns estudos tendem a demonstrar isso, que estes diferentes legados institucionais ou mesmo as mudanças que aconteceram nas fases finais do colonialismo, em que alguns países, de facto, neste caso no contexto britânico, assistimos, no fundo, à realização de eleições locais, à instalação de alguns parlamentos, portanto, assistimos aqui a alguma mudança institucional na fase final do colonialismo, com alguns direitos políticos a ser reconhecidos. Portanto, existem estas diferenças que alguns estudos vão mapeando, vão mostrando.
José Maria Pimentel
E quais são os casos bons aí? São estes que eu referi?
Edalina Rodrigues Sanches
Tu falaste do Botsuana, da Namíbia, da África do Sul, são alguns dos casos que são referidos e claro que o efeito colonialismo não tem só a ver com esse legado que foi deixado em termos de património institucional um pouco mais participativo, digamos assim, que foi criado com alguma legislação, mas num contexto amplo de coerção e desigualdade e, portanto, no fundo é preciso também contextualizar estas medidas num amplo contexto em que elas acontecem, de dominação, de limitação de direitos e com as consequências que isso tem, porque no fundo sabemos que não é só criar as instituições, mas quando não se tem as bases, ou seja, não se tem acesso à educação, não se tem acesso a um conjunto de bens que são importantes e que permitem a socialização, que permitem a aquisição de várias componentes que nos ajudam depois a ser cidadãos, no fundo não é só criar instituições e depois esperar que elas façam o efeito. Mas o legado também do colonialismo não tem só a ver com essa parte, com esta dimensão institucional e com o facto de terem sido introduzidas ou eleições ou possibilidades de eleições multipartidárias ou algumas instituições como parlamentos garantindo a representação de alguma elite, digamos assim, a elite mais assimilada, também importante reconhecer, é também o facto de o colonialismo ter, digamos assim, desimplantado algumas das experiências democráticas que alguns autores também têm reconhecido que existiam, ou seja, modelos... Se calhar pode ser abusivo pensar em democracia antes, mas também a democracia começou, enfim, na Grécia Antiga, com as experiências na cidade-estado gregas e foi aí que nasceu, portanto, e num modelo de democracia que hoje nós diríamos, bem, isto não era democracia, mas para dizer que no fundo estas
José Maria Pimentel
são... Espécies mais inclusivas. Exatamente,
Edalina Rodrigues Sanches
mais inclusivas, ou seja, mas para dizer que existia no fundo um modelo que muitos autores consideram que tinham aqui elementos muito próximos àquilo que estavas a descrever há pouco, de consultas, de fóruns, de decisão em coletivos e que muitos consideram que a democracia não é completamente
José Maria Pimentel
aliada
Edalina Rodrigues Sanches
e que não é desconhecida da experiência política e da vivência em comunidade em África, mas que existiam no fundo estes modelos no Ghana, na Nigéria, em determinados grupos etnolinguísticos e que, portanto, isso também foi perdido com a colonização. E, portanto, por um lado, importa notar que, no fundo, há um património de experiência política participativa, de contato direto que existia em alguns países africanos e que isso foi, de certa maneira, também perdido neste processo, assim como depois, no fundo, mesmo a instalação destes modelos de instituições que nós vemos também que têm um cunho ocidental e no qual também só era garantida a participação de alguns de uma elite específica e era a elite que, digamos assim,
José Maria Pimentel
assimilada. Grande
Edalina Rodrigues Sanches
parte da população continuava afastada, mas ainda assim se nota que... Mas
José Maria Pimentel
depois serve de molde para tu expandires, não é? Exatamente. Pois essa explicação é interessante, a que estás a dar. Porque no fundo os casos de maior sucesso são aqueles em que houve uma maior instalação dessas instituições ao modelo ocidental, se quiseres, muito restritivas mas que depois se viriam de molde, ao mesmo tempo que a terraplanagem dessas instituições mais orgânicas, mais comunitárias que existiam, foi menor e, portanto, permitiu que elas depois pudessem ter sido reabilitadas, recuperadas, depois nos países já independentes.
Edalina Rodrigues Sanches
Exato, sim, do ponto de vista desses legados, essas são algumas das discussões que são levantadas e depois, claro, essa discussão depois também é matizada com outros fatores, ou seja, vão mostrando isto tem peso porque não tem só a ver, as pessoas podem achar, ah, mas isto já foi há não sei quantos anos atrás, como é que ainda é possível? Mas não é isso, é que no fundo o tipo de relações que se estabeleceu nesse período construiu sistemas mundo, construiu economias, formas de circulação de pessoas, forma de relação entre os Estados e formas de acumulação de riqueza que continuam a persistir atualmente, ou seja, que foram possíveis porque isso aconteceu. E, portanto, nesse sentido, o tipo de sociedades que nós, ou de relação que nós temos no fundo entre o Norte Atlântico e o Sul global, ou neste caso entre as expotências e a África, no fundo nós pensamos que é possível fazer um corte temporal, como quem corta uma tesoura, uma linha de inauguração e inaugura uma nova época, mas não é isso. É importante reconhecer que o tipo de mundo que se criou com circulação de determinados bens, com circulação de pessoas e formas de dominação específicas, esse mundo foi possível porque isso aconteceu e continua a determinar relações hoje. Muitas vezes também se diz que no fundo o poder negocial muitas vezes de alguns Estados africanos no âmbito deste cenário é baixo, acaba por ser recipiente de muitas coisas, mais do que iniciador, muitas coisas apesar das suas grandes riquezas, mas, mais uma vez, atendendo aqui às especificidades de cada país, não querendo também simplificar, porque há alguns países que não são ricos do ponto de vista dos seus recursos. Por exemplo, Cabo Verde, não é um dos casos. Pois,
José Maria Pimentel
exatamente, ainda bem que tu falaste disso, porque era outra pergunta que eu tinha para ti, porque muitas vezes é referida à chamada… Maldição dos recursos. Isso, exatamente. Ou seja, paradoxalmente, países que têm mais recursos acabam por criar condições para serem usurpados, se quisermos, para serem explorados por uma elite restrita e, portanto, acaba por gerar o paradoxo de, em vez de gerar bem-estar para a população, gerar recursos que conseguem ser apropriados por essa elite. Portanto, aqui o paradoxo é que será em países com menos recursos que se vão desenvolver instituições mais inclusivas e, portanto, a prazo, até maior rendimento e, sobretudo, a democracia. Tu achas que isto tem aqui algum poder explicativo, não é?
Edalina Rodrigues Sanches
Aquilo que alguns estudos têm demonstrado é que é difícil de facto compatibilizar as duas coisas porque, no fundo, o acesso aos recursos naturais permite que a elite autoritária se eternize. No fundo, isto alimenta a elite autoritária, mas alimenta a rede de apoio que esta elite tem internacionalmente. Basta olhar para alguns casos em
José Maria Pimentel
África. Todos nós nos lembramos de alguns.
Edalina Rodrigues Sanches
Exatamente. Portanto, isto não alimenta só a oligarquia nacional, alimenta uma rede internacional que no fundo também é conivente com isso. Por isso é que eu dizia que, no fundo, o sistema que se criou e que alimenta continua a ser esse que, no fundo, acaba por estar aqui hoje também e essa continuidade existe. Então, no fundo, por um lado há isto, mas há casos que mostram que, no fundo, é possível ter recursos. O caso do Botswana, mais uma vez, rico em recursos, mas que se conseguiu democratizar e é também um fenómeno que começa a acontecer, mas com algum grau de, digamos assim, populismo pelo meio, mas com... Qual? Que É um caso em que, no fundo, alguns países começam a discutir sobre, por exemplo, na Zâmbia, que é um país que eu acompanhei e que acompanho mais, onde se começa a discutir no fundo esta ideia de defender os nossos interesses, os nossos recursos, fazer contratos um pouco mais justos para a nossa economia. Nem sempre é fácil porque depois estes países precisam do apoio do Banco Mundial ou do FMI. Quando não tem este apoio, muitas vezes a China é o apoio, digamos assim, mais descomprometido, sem grandes condicionalismos, mas com
José Maria Pimentel
grande... À partida, pelo menos, não é? À partida do
Edalina Rodrigues Sanches
ponto de vista político, mas com grandes contrapartidas do ponto de vista da exploração, no fundo, de alguns destes recursos. Mas isto para dizer que alguns países começam a fazer este tipo de discurso, temos que um pouco mais protetor, mas isso ainda não está vertido em medidas concretas e com ganhos significativos para a população que vê no fundo estas promessas de o nosso país é muito rico mas depois no seu dia a dia não encontram uma correspondência disto em mudanças concretas e é disso que se trata, no fim de contas.
José Maria Pimentel
E há, o que vamos agora, é possível explicar esta diversidade democrática e institucional com fatores ainda mais antigos, ou seja, mesmo pré-coloniais que tivessem que ver com o tipo de, enfim, sociedade é um anacronismo, mas com o tipo de estruturas que existiam antes, porque mesmo na época pré-colonial havia, bem, havia uma variedade gigante, não é? E ocorre-me de repente que havia estados, já na altura, havia reinos, com o bom e o mau que isso pudesse ter. Por um lado, mais extrativos, não é? Com reis ou com monarcas com esse peso, mas por outro lado, eventualmente, com uma infraestrutura, enfim, proto-institucional que depois pudesse ser favorável. Existem alguns estudos sobre isto?
Edalina Rodrigues Sanches
Se calhar existem, eu não os conheço, não fiz esta genealogia e, de facto, nos estudos que eu conheço, Olham para estas dimensões, ou seja, para o período pré-colonial fazendo, no fundo, este mapeamento, esta cartografia do tipo de regimes, para ser mais específica dos sistemas políticos que existiam e das suas características mais ou menos democráticas, um pouco para fazer esta história política dos sistemas políticos tradicionais, mas muito anterior a isso eu não conheço, ou seja, tirando estes estudos, não conheço assim muito mais outras investigações que tenham ido mais longe e estabelecido a relação com a democracia.
José Maria Pimentel
Com o estado atual, pois,
Edalina Rodrigues Sanches
pois. Mas com certeza existem e é apenas um desconhecimento da minha parte. Mas esses sim, ou seja, há alguns estudos que olham para o período pré-colonial e que fazem este mapeamento do tipo de sistema político e da forma como isto podia ser um, digamos assim, um proto-modelo também para pensarmos nas mudanças que são precisas hoje para fazer hoje em democracia.
José Maria Pimentel
Ah, porque como já dissemos não sei quantas vezes é muito diverso, não podemos falar de todos os países, mas calhar é interessante fazer duas perguntas em versão contrária uma da outra. Começando pelo melhor, olhando para este século, ou seja, já depois desta... Século 21, portanto. Olhando para o século 21, portanto, Já depois da vaga propriamente dita, ou seja, do crescimento do número de democracias, se tivesse que identificar um caso de sucesso, qual é que dirias? Um país que tenha sido, deste século já, portanto, dos últimos 20 anos, 22 anos, um caso de sucesso, no sentido da democratização e não só, portanto também não tem que ser estritamente democratização, mas também de prosperidade, se quiseres, mas está material, ou seja, em que as coisas tenham corrido bem, qual é que dirias?
Edalina Rodrigues Sanches
Do século XXI eu diria as Seixeles, apesar de as Seixeles estavam no grupo de regimes híbridos durante muito tempo, mas as últimas rondas de eleições permitiram a alternância no poder, porque tinham o mesmo partido desde os anos 70 no poder, o Partido Le Pepe, e então esse partido depois, no fundo, saiu do poder e, portanto, uma saída graciosa do poder, pacífica, e as seis células também no Mo Ebrahim Foundation Index, no índice do Mo Ebrahim Foundation, se não me engano, está em primeiro ou em segundo lugar. Portanto, não só faz acompanhar… E em
José Maria Pimentel
termos de PIB, desculpe interromper, em termos de PIB per capita acho que é dos maiores.
Edalina Rodrigues Sanches
É dos maiores também, portanto consegue combinar uma fórmula de boa governança com governança, digamos assim, democrática, ou seja, houve alternância no governo, há eleições mais ou menos
José Maria Pimentel
livres e justas,
Edalina Rodrigues Sanches
transparentes, e portanto é um país que no século 21 foi a mais recente aquisição dentro da família das democracias ditas liberais e depois pronto há aqui outros que se vão mantendo apesar dos desafios e outros que estão a melhorar também pouco a pouco.
José Maria Pimentel
Então mas diz-me lá, é que as Seixelos, desculpa lá chatear-te, mas as Seixelos é um bocadinho como eu perguntar-te qual é o teu clube dos heróis bolonenses, porque é um país que nem 100 mil habitantes tem. Sim, é pequeniníssimo. Diz-me lá um país de
Edalina Rodrigues Sanches
dimensão razoável. Ou seja, então outro país que também que se pode considerar um caso, também que pode ser de um sucesso, embora ainda não seja uma democracia liberal, mas que tem conhecido avanços, dois países, têm conhecido avanços interessantes. A Zâmbia, por um lado, e o Malawi. Portanto, estamos a falar de dois países que nas eleições mais recentes, no caso da Zâmbia, conseguiu, apesar de desde 2015 que o partido que estava no poder, no fundo, de certa maneira estava associado com o retrocesso democrático, desde leis aprovadas que desfavoreciam a liberdade de imprensa, a liberdade de associação, desde intimidação, de desnivelar as regras do jogo e, portanto, aquilo que se pensava por haver esta perfumatividade, mas a atuação do governo bastante mais coerciva, aquilo que se pensava era que no fundo estas eleições de 2021 iriam ser completamente manipuladas e que não iria haver alternância, mas houve alternância governativa e houve uma aceitação, digamos assim, natural também dos resultados, quando se pensava também que pudesse haver conflito, porque as eleições Tiveram aqui algumas confrontações entre apoiantes dos diferentes partidos e, portanto, havia aqui uma ideia de que talvez pudesse haver conflito e não houve. E, portanto, este é um caso de sucesso que, de certa maneira, nos mostrou que, de facto, as instituições por vezes são mais fortes do que, no fundo, o líder que os representa. Por outro lado, no Malawi, nós temos o caso, acompanhar o caso também do Quênia, de tribunais que anularam eleições.
José Maria Pimentel
Exato. Que é muito interessante. Isso
Edalina Rodrigues Sanches
é muito interessante porque, enfim, não é muito conhecido e no caso do Malawi, não só nesta decisão, mas noutras decisões, os tribunais têm assumido aqui um papel de ativismo muito interessante. No caso do Quênia também.
José Maria Pimentel
Com a testificação independente.
Edalina Rodrigues Sanches
Exatamente. No caso do Quênia também. A anulação das eleições presenciais e a repetição de eleições e muitas vezes indo contra os relatórios que tinham sido feitos pelos observadores eleitorais internacionais. Portanto, depois, despoletando esta grande conversa, então afinal o que é que as missões da observação internacional vão fazer? Então afinal não estão a… que condições é que têm? Que tipo de relatórios é que este, já que as instituições nacionais quase que disseram, desculpem, estas eleições não são justas, as vossas relatórias não estão a representar, digamos assim, de facto aquilo que aqui está a passar. Então foi interessante. Eu citaria estes dois casos por razões diferentes. Num dos casos porque o país vinha seguindo uma tendência de autocratização desde 2015 na Zâmbia e depois com estas eleições de 2021, de facto, mostra-se que foi um grande teste, mas que a Zâmbia, no fundo, continua nesta trajetória. Embora, no fundo, claro, o novo presidente é sempre agora a herda de tudo e também tem os seus desafios e também está sob escrutínio. Escrutínio, enfim, habitual, não é? Mas para dizer que no fundo há este lado, o lado de transições em eleições que poderiam ser algo pericilitantes e depois, no caso do Malawi e do Quênia, apesar dos desafios, porque são sistemas muito mais fragmentados, verificar aqui o papel de ativismo que os tribunais têm tido de independência e de tomar decisões que, enfim, eu diria que são… não me recordo de outros exemplos. Assim, à cabeça, se calhar, aconteceram, mas não me recordo de outros exemplos.
José Maria Pimentel
Sim, sim, é muito interessante isso. A independência dos tribunais é dos indicadores
Edalina Rodrigues Sanches
mais… Mais importantes da democracia. Exatamente. De qualidade institucional. Exatamente, de qualidade institucional. Nesse sentido, diria que são dois exemplos assim, não é o Seychelles, não é o Bunenses, não é o Académica. Não,
José Maria Pimentel
estou satisfeito. Obrigado, Edu. Com este já fiquei satisfeito. Ok. E o exemplo que eu apanhei, que acho que é interessante para nós discutirmos outro aspecto deste problema, é o exemplo do Ruanda, que conheci toda a gente pelo conflito étnico que teve, pelo genocídio que teve, sem conflito é um bocadinho eufemístico, e que no entanto nos últimos anos gera aqui um certo paradoxo porque em termos de democracia não tem grande evolução aliás nas eleições o presidente teve 99% dos votos, o resultado absurdo e no entanto tem tido um crescimento económico assinalável e portanto gera aqui um debate que não é novo mas ganha se calhar algum ímpeto olhando para países como a China e não só, e a própria Cingapura, a própria Coreia do Sul há umas décadas.
Edalina Rodrigues Sanches
As economias asiáticas em geral. Exato, as economias
José Maria Pimentel
asiáticas em geral, em que tu podes dizer, bom, se calhar não é completamente absurdo, quer dizer, podes dizer cínicamente não é completamente absurdo o país abdicar de democracia se com isso conseguir ter uma melhoria do bem-estar material. Isto faz sentido?
Edalina Rodrigues Sanches
No meu entender, não. Ou seja, o que é que eu acho? Eu acho que essa pergunta cria uma falsa dicotomia entre democracia e desenvolvimento. Ou seja, entre uma forma de governo que garante liberdades, que garante liberdades sejam individuais ou coletivas, que garante condições de participação, que garante capacidade de permitir outras vozes, capacidade de representação, responsividade, ou seja, eu não creio que é preciso parar a democracia para conseguir avançar objetivos democráticos. Eu acho que a democracia deve ter os meios através dos quais possa responder às necessidades dos cidadãos e isso é verdade para muitos países do mundo. É certo que as economias emergentes eram, São economias que estão a vir de um modelo, digamos assim, mais autoritário. Mas também é certo que os chamados BRICS também lá têm a África do Sul e o Brasil e andia. Eu sei que andia agora está num processo de retrocesso, mas, digamos assim, que também… Sim, continua a ser uma democracia. Exatamente. E multietnica. E multietnica também. E, portanto, no fundo, isto para dizer que esta ideia de dizer, oh, democracia é o desenvolvimento, para mim é uma falsa dicotomia. No fundo, uma das grandes promessas da democracia é que, de facto, também pode trazer isso, pode trazer as liberdades políticas e os direitos cívicos, mas também os direitos económicos. A justiça social é igual redistribuição ou, eu sei que isto é ideal, mas uma boa distribuição dos benefícios económicos. E de facto, vários estudos vão mostrando isto, que cada vez mais os cidadãos acham que a democracia é também isso. Alguns políticos dizem mas com a pobreza, com isto, com aquilo, queremos lá saber da democracia, o importante é avançar, é resolver estes problemas, como se a democracia fosse um problema para a resolução destes.
José Maria Pimentel
Sim, mas enfim, deixa-me cá fazer um bocado de diabo, não é? Tu podes dizer, eles podem dizer, ok, nós devemos nos concentrar no desenvolvimento, que na verdade é a nossa prioridade e depois aqui pode fazer o argumento ou não, mas essa é uma questão que está por resolver se esse desenvolvimento pode redundar em democracia, não é? Mas isso está por resolver, porque claramente se nós, no caso da Coreia do Sul, foi de facto o que aconteceu, mas se olharmos para a China,
Edalina Rodrigues Sanches
nada indica que esteja nesse sentido. Nada indica que esteja nesse sentido. Sim, eu acho que mesmo quando esse papel é feito, eu continuo a...
José Maria Pimentel
Eu concordo contigo. Exatamente, eu
Edalina Rodrigues Sanches
continuo a manter essa visão de que não são objetivos excludentes e que essa separação muitas vezes esconde essa função que a democracia deve estar e que nós devemos estar a pensar nisso, nessa função e como executá-la da melhor maneira.
José Maria Pimentel
E agora, eu perguntei primeiro casos de sucesso e agora casos de insucesso, ou seja, que países acoberam especialmente mal este século? Eu acho que há um caso… Se calhar é mais fácil.
Edalina Rodrigues Sanches
Não, é difícil. Eu vou pegar num caso que estudei com uma colega minha, que é o caso da Guiné Equatorial, que tem no poder o líder que está há mais tempo no poder, o Teodoro Albianco, e que mostra que é só exemplificativo de uma série de outros casos, mas é um dos casos mais extremos e é só por isso que pego nele, porque é um dos casos onde, no fundo, o partido continua com mais de 90% dos assentos no parlamento, o líder está no poder, enfim, há muito tempo e as estratégias para se manter no poder, no fundo há eleições multipartidárias, mas estratégias para se manter no poder são estratégias que envolvem um pouco de tudo, desde a dimensão internacional, do apoio internacional, até a engenharia das instituições políticas mais limitativas, sistemas de cooperação, enfim, tudo funciona para garantir, no fundo, a sobrevivência do regime e do líder. Portanto, essa sobrevivência conjunta, porque muitas vezes há regimes que não mudam, continuam autocracias, mas o líder muda. Mas, no caso da Guiné Equatorial, tanto o líder como o regime têm-se mantido intactos e o país, apesar de ser uma das promessas em termos de potência petrolífera, acaba por não sofrer, graças à habilidade do regime, mas sofrer grandes ameaças internas ou externas. Pelo contrário, o facto de ser uma potência persolífera acaba por conseguir que tenham muito mais opções. Que o falavas há bocadinho. Exatamente, do ponto de vista internacional.
José Maria Pimentel
E em termos de nível? Eu agora estava-te a perguntar qual é que evoluiu pior. Nós há bocadinho, começámos por falar nos casos de sucesso, em termos de nível, ou seja, não de evolução, que são aqueles países que falamos há bocadinho, Cabo Verde, São Tomé, Bóttona, África do Sul. Na outra ponta, quais são os piores casos, ou seja, quais são os regimes mais atrativos de todos, menos democráticos de todos, mais autoritários.
Edalina Rodrigues Sanches
Exato, portanto, no fundo, para além da Guiné
José Maria Pimentel
Equatorial,
Edalina Rodrigues Sanches
encontramos aqui um conjunto de países também que têm enfrentado aqui alguns desafios. Nós temos também o caso do Eswatini, que é antiga Suazilândia, Temos o caso também do Chá, dos Camarões, Djibouti também. Temos aqui alguns países que vão dando sinais de progresso, como no caso de Angola nos últimos anos. Alguns indícios vão reconhecendo isso, vão reconhecendo uma melhoria.
José Maria Pimentel
Tem melhorado, é, Angola?
Edalina Rodrigues Sanches
Exatamente, ao nível de alguns indícios. Ainda não saiu da família autoritária, mas está próximo, ou seja, está com um desempenho muito melhor, porque dentro de cada família há pontuações diferentes.
José Maria Pimentel
É um contínuo, não é? É um
Edalina Rodrigues Sanches
contínuo, mas nota-se que melhorou o desempenho dentro desse contínuo, apesar de ainda estar dentro dessa família e os indícios da Freedom House, mas também do Economy, vão mostrando, no fundo, um pouco a progressão do país em relação a isso, mas continuam ainda a haver problemas de várias ordens, mas enfim, temos aqui alguns casos de autocracias ainda que se vão mantendo e depois casos onde isso também se combina com questões de ordem de instabilidade política ou de outro
José Maria Pimentel
tipo. Sim, eu por acaso, ainda bem que falaste de Angola porque eu ia te perguntar, precisamente, que é dentro de tantos países, nós andamos aqui a falar de tantos países e faz sentido falar do mundo lusófono, não é? E, sobretudo, Angola e Moçambique em particular. Tu, Angola, achas que tem havido, com o João Lourenço, alguma melhoria?
Edalina Rodrigues Sanches
Sim, algumas pessoas notam alguns avanços do ponto de vista da concertação com a sociedade civil, do ponto de vista de um certo discurso do presidente em relação ao combate à corrupção, do compromisso também com alguns valores, mas digamos assim que, depois também, claro, com a pandemia, de uma forma geral, quase todos os países acabaram por ter aqui processos de retrocesso nos estados de emergência, digamos assim, um pouco perturbados. Um bom pretexto para... E outras medidas, mesmo nos casos em que não foi pelo estado de emergência, mas por outras medidas mais restritivas, mas de uma forma geral foi uma presidência que se iniciou com promessas de comprometimento com uma higienização do Estado, da elite política, com um combate sem tréguas à corrupção, com uma tentativa de... Enfim, com um reforço do Estado de Direito, enfim, uma série de promessas e também com uma nova forma de relacionar-se com a oposição e também com a sociedade civil. Portanto, isso foram algumas promessas e isso está captado depois também por alguns destes índices que medem a democracia no mundo e que, portanto, onde a Angola, apesar de ainda estar na família das autocracias, está, enfim, um pouco melhor do que muitas outras. E Moçambique? A Moçambique desde sensivelmente 2013, se não me engano, na data com o reiniciar dos conflitos localizados no centro-norte de Moçambique e agora mais recentemente com o Norte de Moçambique, tem levantado, obviamente, preocupações, porque Moçambique nos anos 90 foi um pouco representado como um caso de sucesso internacional, sobretudo quando comparado com Angola, porque ambos os países tiveram a experiência de primeiras eleições pós-guerra nos anos 90, Moçambique em 94 e Angola em 92 e efetivamente no caso de Angola, as eleições logo a seguir bloquearam o processo de transição para a democracia com a não aceitação dos resultados por parte da UNITA e portanto houve um reiniciar do conflito pelos anos seguintes, depois com tentativas de resolução, mas que só terminou em 2002. No caso de Moçambique, não, pelo contrário, enfim, as eleições de 94 marcaram um processo de transição para a democracia, houve um processo de perdoar e esquecer com amnistia de tudo o que aconteceu durante a guerra, desse processo. Isto sou eu a simplificar uma história bem mais complexa, mas não dá aqui para explicar tudo. Mas no caso de Moçambique, no fundo, houve este processo de transição para um período de paz, para um período de início de democratização, com os acordos de paz, com muita desconfiança por parte dos dois partidos, mas com algum comprometimento e isso levou a que, de facto, até cerca de 2012 tivéssemos, digamos assim, 20 anos mais ou menos em que não existiam conflitos armados, mas depois de 2012, ainda com o de La Cama, quando ele vai para a mata da Gorongosa e depois disso os desenvolvimentos subsequentes com o início da ação armada localizada, houve um reiniciar do conflito e acho que no fundo as razões do conflito acabam por ser aquelas que tu falavas da maldição dos recursos, a partir de 2012, no fundo a descoberta de reservas de gás, as promessas de desenvolvimento e tudo isto a acontecer, digamos assim, nos territórios onde a Renanmo tinha mais, digamos assim, apoiantes. Exatamente. E, portanto, e a Renanmo a sentir-se que estando fora do governo não tinha acesso no fundo aos benefícios que estavam associados, no fundo, à exploração desses mesmos recursos. Portanto, há aqui vários fatores que agora nos levam a olhar para Moçambique e, claro, que os conflitos mais recentes no norte de Moçambique também, com outra expressão, acabam por também nos preocupar em relação às populações que lá estão, naturalmente, em relação às consequências do ponto de vista, não só agora, mas também para as gerações futuras.
José Maria Pimentel
Sim, o Moçambique é um caso interessante nesse aspecto. Aliás, é interessante teres falado disso porque eu estava a falar com uma amiga que tem estado muito em afro-comissões humanitárias e ela falava, por exemplo, de Moçambique e da questão de Cabo Delgado. Pronto, é uma alisação dos recursos, de repente aqueles recursos são extraídos e tornam riquíssimas determinadas pessoas e empresas multinacionais também, mas as populações que lá vivem ao pé ficam completamente à margem disso. Olha, Idalina, para terminar, vamos voltar ao início, tu estavas a dizer, e fico com algum otimismo, que se percebe de quem estuda estes temas que de facto a vaga não foi aquilo que parecia prometer, mas também é relativamente recente e portanto não podemos já vaticinar o seu fim. Mas a verdade é que se eu olhar para o gráfico de evolução, de democratização da África, há ali uma aceleração nos anos 90 e depois ele basicamente está estagnado. É verdade que não recua, mas está estagnado. E isso parece-me até explicar, enfim, essas coisas são sempre difíceis de medir, mas há alguma desatenção que eu acho que é ter havido em relação à África no ocidente, ou seja, eu acho que havia uma promessa que não cumpriu e a maior parte das pessoas acaba por ter um olhar, quer dizer, eu incluído, estou aqui a dizer isto, não é uma crítica em relação a outra, a pessoa acaba por ter menos esperança, portanto, ligar menos, ou seja, acaba por já estar mais ou menos anestesiada e não esperar que venha dali uma nova onda. Mas vamos admitir que vem, era isso que eu queria dizer. Ou seja, vamos admitir que eu te dizia, olha, Adelina, eu venho do futuro, venho de, sei lá, 2035 ou 2040, e houve uma nova vaga, portanto, houve vários países em que a situação melhorou, mas não te vou dizer porquê. E tu tinhas que dar um palpite. O que é que tu dirias que, admitindo que as coisas vão correr bem, o que é que irá contribuir para isso? Ou seja, que aspectos de fundo é que têm melhorado e que podem criar aqui uma nova onda de democratização, enfim, genericamente, no continente? Pergunta fácil, não
Edalina Rodrigues Sanches
é? Não, é uma pergunta muito difícil e depois isto vai ficar gravado, que é péssimo, porque eu vou avançar aqui uma ideia que depois está gravada. Enfim...
José Maria Pimentel
Assim, O Upside é que não vais ser seguramente a primeira pessoa a enganar-se em relação à África. Exatamente, era isso
Edalina Rodrigues Sanches
que eu ia dizer. Eu acho que a primeira coisa que eu também queria desafiar as ouvintes e os ouvintes era no fundo também a pensar não apenas na questão da desatenção à África, mas na forma ou naquilo que também se passa sobre a África, porque eu julgo que há algumas ideias que se tornam o pensamento único e é generalizado a partir de experiência de alguns países, ou seja, a ideia do conflito, a ideia da criança subnutrida, a ideia da democracia falhada, a ideia da corrupção, ou seja, algumas ideias que são muito facilmente associadas ao continente em geral, é uma parte da verdade e é associada às experiências certamente de alguns países, mas cria um pensamento único e uma ideia,
José Maria Pimentel
digamos assim, um
Edalina Rodrigues Sanches
estereótipo e, portanto, o continente é bem mais do que isso, mas a série bem mais do que isso a nível humano, a nível infraestrutural, a nível social, enfim, em todas as camadas que nós possamos pensar. E, então, neste sentido, a atenção para a África e no que diz respeito à democracia, eu acho que, por um lado, a questão do tempo é extremamente importante para nós. É muito difícil incluirmos o tempo nas nossas análises, mas o tempo é realmente fundamental se nós olharmos para os anos que foram precisos e as revoluções que foram precisas para que o modelo de democracia representativa vingasse revoluções. Exatamente, que foram precisas, retorcessos e avanços foram precisos para que este modelo estivesse aqui hoje e ainda assim, hoje em alguns contextos, inclusivamente aqui na Europa, Polónia e Hungria, verificamos ainda a forma como isto é ainda um projeto com ameaças. Quais é que são as forças, o que é que pode alimentar esta vaga da democratização? Eu acho que tal como a primeira vaga da democratização que ficou conhecida pelo seu forte embalo de protestos populares, eu julgo que os protestos populares em África vão continuar a alimentar esta demanda por melhoria da democracia, no caso em que estamos em regimes híbridos, ou seja, regimes que têm tanto componentes democráticas como autoritários, portanto, vão continuar a alimentar, no fundo, esta vontade de auditoria e de melhorar a saúde das suas democracias e depois teremos casos autocráticos onde aí sim, no fundo, aqueles que fazem os protestos estão a enfrentar cenários bastante inóspitos, arriscando as próprias vidas para fazerem protestos, mas Nós vemos que em muitos destes países isso acontece e embora no Primavera Árabe, que muitos agora dizem que foi um termo infeliz, porque na verdade os desenvolvimentos subsequentes não foram os esperados. Tirado da Tunísia. Tirado da Tunísia, mas no fundo foram os protestos populares que foram fundamentais para iniciar esse movimento e claro que aos protestos, porque eles precisam de aliados e no fundo onde os protestos conseguem encontrar aliados políticos, eles conseguem ter resultados um pouco mais promissores e nós conseguimos ver isso em alguns países nos quais, no fundo, aqueles que fazem os protestos muitas vezes se aliam alguns partidos políticos ou alguns grupos dentro do Estado e isso ajuda a tornar a causa mais durável e mais execuível também. Sim, sim.
José Maria Pimentel
E nós não falámos disso, mas eu suspeitava que tu fosses referir isso agora nesta resposta. Mas tu tens feito alguma investigação precisamente sobre os protestos que mostram dados que eu não tinha noção que os protestos populares aumentaram bastante a partir de 2010 basicamente e depois no final da década, ou seja, até à pandemia aumentaram imenso, o que é interessante, ou seja, houve ali mesmo um aumento muito pronunciado dos protestos. Achas que isso tem a ver com o quê?
Edalina Rodrigues Sanches
Alguns dos protestos têm justamente a ver com isto, ou seja, de, por um lado, os cidadãos quererem bloquear tentativas de alguns presidentes de mudarem a Constituição para concorrerem a mais uma eleição presidencial, outros protestos que têm a ver com a má governação, corrupção das elites, portanto, no fundo, se a um nível nós estamos a dizer bem não há, a democracia parece não estar a funcionar, está a falhar, é importante ver que do lado dos cidadãos está a haver uma mobilização muito grande, muitos protestos para a democracia mesmo, o Eçatini, desde 2019, uma monarquia fechada, autocrática.
José Maria Pimentel
Porque é absoluta.
Edalina Rodrigues Sanches
Exatamente, portanto, desde 2019 com protestos onde os sindicatos são extremamente importantes, mas com protestos na rua fundamentais. Portanto, isto para dizer que é certo que a democracia não avança só com os protestos, é claro, avança também com instituições e com decisões também por parte da elite política. Portanto, é interessante também ver que em muitos destes países os partidos da oposição muitas vezes também se aliam aos protestos ou muitas vezes há partidos de oposição que são formados por pessoas com fortes ligações aos protestos e isso é uma via através da qual os regimes vão sofrendo aqui uma infusão de democracia pouco a pouco e, Portanto, eu acho que podemos fazer uma fotografia daqui outra vez a 30 anos para verificar como é que está. Vamos estar mais ou menos... Voltas cá em 2035 ou 40. Exato, voltamos aqui ao fluido. Exato, em 2040 e fazemos um balanço. Eu acredito que com mais países a fazerem as suas democracias, Temos aqui alguns casos que estão numa trajetória inesperada mas positiva e, portanto, isso pelo menos sugere que existem condições para que a democracia vá se tornando, digamos assim, a regra do jogo, mas também que vá sendo reinventada porque, no fundo, este modelo também tem que ser reinventado.
José Maria Pimentel
Olha, e para terminar, que livro é que nos trazes?
Edalina Rodrigues Sanches
Bom, o livro que vos trago junta duas palavras-chave que eu adoro, filosofia e andar. É o livro chama-se A Filosofia Walking, é do Frédéric Gros. O Frédéric Gros é um filósofo francês e ele é também curador da obra do Michel Foucault e ele, portanto, tem este livro que em francês é Marché une philosophie, mas que eu li em inglês, foi um grande amigo meu que me ofereceu e que eu recomendo muito porque fala sobre a filosofia como ato de andar e mostra também o vínculo que existe no fundo entre estes dois processos e também sobre a forma como dando exemplos de vários nomes que nós conhecemos como Nietzsche, Rousseau, da forma como as caminhadas…
José Maria Pimentel
Sim, e o Aristóteles, a coisa do peripatético não era de andar, não era?
Edalina Rodrigues Sanches
Mas que dá estes exemplos de… portanto que vai, faltam aqui mulheres, naturalmente, testemunho do andar da mulher, mas ainda assim traz aqui alguns exemplos da forma como o andar servia para essa conexão mais profunda com as nossas ideias, com o nosso pensamento e eu julgo que nós vivemos num tempo de eficácia, de verdades muito rápidas e que o tempo e o caminhar obriga-nos aqui a entrar em contacto, se calhar, com um outro tempo, uma outra forma de pensar e não só ter respostas muito imediatas, verdades e o tempo da eficácia muitas vezes limita-nos este tempo de pensar que estes pensadores, enfim, tinham esse tempo. O tempo era o mesmo mas o mesmo tempo era diferente porque naquele tempo... Havia tempo. Havia tempo, exatamente. Naquele tempo parecia que havia tempo e porquê que hoje nós achamos que não há tempo para nada? Porquê? Na verdade. E então eu acho que este livro é muito giro e do mesmo autor também temos outras obras traduzidas em português que também são interessantes e desafiantes e portanto gostei muito e recomendo vivamente.
José Maria Pimentel
Boa. E liga, a questão do tempo liga bem também à questão da democracia em África. Exatamente. Está aqui uma ligação inesperada. Boa! Olha, Adelina, muito obrigado.
Edalina Rodrigues Sanches
Obrigada a eu, Zé. Foi uma ótima conversa. Gostei muito e espero que os nossos ouvintes e nossas ouvintes também vão gostar.