#130 Eunice Goes - O que se passa com a política do Reino Unido?
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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maní Pimentel e este é o
45°. Muito obrigado aos novos mecenas do podcast, Pedro Gouveia, Mariana Portela,
João Jesus, Diego Goulart e, espero pronunciar bem, Andrei Stuart Thompson. Aproveito
também para vos convidar a estar presentes no próximo dia 12, quarta-feira,
no Festival Fólio em Óbidos. Vai haver às 19h30 uma sessão a
propósito do livro Política a 45° com dois convidados de peso que
aparecem no livro, Daniel Oliveira e Ricardo Araújo Pereira. O tema será
o chamado politicamente correto. Será ele alimentar justiça social ou apenas um
ataque encapotado à liberdade de expressão? Esta é uma das clivagens da
política atual que eu abordo no livro e talvez aquela em que
a discussão tem sido mais confusa. Nesta sessão a ideia é ter
uma conversa à três sobre este tema, com esta dupla de peso,
sendo que o Daniel e o Ricardo já discutiram este tema várias
vezes, a última das quais, ou pelo menos a última de que
me lembro, no podcast do Daniel, uma discussão muito interessante, mas que
deixou alguns temas por terminar e outros por abordar. A conversa, por
isso, promete, gostava muito de vos ver lá. E com isto vamos
ao episódio de hoje. Há já alguns anos que a política do
Reino Unido está quase constantemente nas notícias. Isto acontece sobretudo desde o
referendo do Brexit, em 2016. De lá para cá, a instabilidade instalou-se
na política britânica. O Partido Conservador, que tem governado nos últimos 12
anos, já vai, desde 2016, no quarto líder e, consequentemente, o país
já vai no quarto primeiro-ministro. A última mudança de pasta aconteceu ainda
há menos de um mês, com a saída de Boris Johnson e
a vitória de Lee Strasse nas eleições internas de um partido conservador
muito dividido. Mal tomou posse, a nova primeiro-ministra anunciou um conjunto de
medidas arrojadas, incluindo uma texida de impostos sobre os maiores rendimentos, que
tem gerado enormes críticas e mesmo uma reação negativa nos mercados financeiros.
Para compreender as origens mais profundas desta instabilidade política, o papel dos
dois maiores partidos e as particularidades do sistema político britânico dificilmente poderia
encontrar melhor pessoa do que Eunice Goyes, a convidada deste episódio. Eunice
Goyes é doutorada em Ciência Política pela London School of Economics e
é, há quase 15 anos, professora na Richmond University em Londres. As
suas principais áreas de investigação são a política britânica e o papel
das ideias e das ideologias na política e nas decisões políticas. Na
nossa conversa começámos por examinar as causas desta instabilidade na política britânica,
que vão desde o Brexit, à luta entre diferentes fações dentro do
Partido Conservador e mesmo à própria arquitetura do sistema eleitoral britânico, que
torna muito difícil a eleição pelos restantes partidos e, portanto, a expressão
de diferentes sensibilidades no Parlamento. Mas existe ao mesmo tempo em tudo
isto um mistério grande. Com esta instabilidade e com 12 anos de
governo que o Partido Conservador já leva, como é que o outro
grande partido, o Partido Trabalhista, não tem conseguido afirmar-se como alternativa? Isto
levou-nos a discutir o alegado viés de direita na imprensa britânica, que
é muitas vezes referido pela esquerda naquele país. Seja como for, com
ou sem uma imprensa difícil, A verdade é que o Partido Trabalhista
vive hoje uma crise de identidade. Essa crise pode ser enquadrada na
crise mais geral da social-democracia europeia que, como se recordam, abordei recentemente
num episódio com o Pedro Magalhães. Mesmo no final da conversa, tivemos
ainda tempo para falar de uma iniciativa inovadora que a convidada tem
aplicado nas suas aulas, de forma a melhorar a aprendizagem e a
estimular o pensamento crítico entre os alunos. Uma nota rápida, antes de
passarmos à conversa, este episódio foi gravado dia 29 de setembro e
com o ritmo que a política britânica tem tido nas últimas semanas,
É natural que um ou outro pormenor que a convidada refere esteja
desatualizado, mas o essencial mantém-se mais do que pertinente. Espero que gostem.
Eu nisso gosto. Muito bem-vindo ao 45 Grós.
José Maria Pimentel
um privilégio também para mim, para quem nos está a ouvir, porque
muitas vezes nós falamos sobre a política de um determinado sítio, de
uma determinada geografia, com pessoas que não vivem lá, faz parte, que
estudam aquela realidade, mas não vivem. Ora, tu és cientista política, estudas
a política britânica e vives em Inglaterra, em Londres, há imensos anos,
o que é, se eu apresento que não faz toda a diferença,
não é? Porque tens o conhecimento diário da realidade. E se calhar
começamos exatamente por aí, pela política, quer dizer, pelo estado atual da
política, no 45°, tento evitar falar de coxa mais vezes, espumas os
dias, não é? Portanto, não queria que também perdéssemos aqui muito tempo
na atualidade, mas a verdade é que estamos a gravar numa altura
em que a Reina morreu, portanto temos o Rei Novo e sobretudo
temos um governo novo depois já de um período de grande instabilidade
ao longo dos últimos, é possível dizer, 12 anos. O curioso disto
é que isto contrasta muito com o que se passava até aqui,
quer dizer, eu tenho a ideia que a política britânica era vista
até como uma espécie de farol de estabilidade comparada muitas vezes com
a política da Europa continental. Nós tínhamos o governo do Partido Conservador
durante imenso tempo, só para começar aí, sei lá, com a Thatcher,
depois com o John Major, depois tivemos o Blair durante não sei
quantos anos, tivemos o Gordon Brown menos tempo, E depois a partir
daí, embora tenhamos tido o mesmo partido, tem havido aqui uma alternância
grande, quer dizer, depois tivemos mais recentemente o Boris Johnson, que era
uma figura tudo menos cinzenta, digamos assim, para ser generosos, e agora
com o novo governo da Lease Trust também temos uma, quer dizer,
a figura em si não é especialmente colorida, mas em termos de
políticas tem nada muito que falar. Portanto, há aqui esta instabilidade que
parece contrastar com o que havia antes. Ou então é a impressão
minha.
Eunice Goes
Isso é inteiramente verdade. Nos últimos 12 anos têm sido anos de
grande turbulência política e económica. Por um lado essa turbulência tanto é
o resultado de reação a circunstâncias diversas, a crise financeira 2007-2008, mas
há outras coisas de fundo que têm a ver com a política
partidária, com a vida dos partidos políticos e em particular do Partido
Conservador, que nas últimas décadas se obcecou com uma questão, que foi
a questão europeia, e de certa maneira eu acho que nós podemos
responsabilizar em parte esta turbulência com essa obsessão com a União Europeia
e que levou, portanto, desde o referendo 2016, que levou à saída
do Reino Unido da União Europeia e essa questão continua a dominar
a política britânica. Portanto, o Brexit continua a ser visto como um
projeto que não foi conseguido, que ainda está no processo de ser
concluído. O Partido Conservador continua a declarar uma certa guerra à União
Europeia, às ideias que a União Europeia promete e o que a
União Europeia discute. Portanto, é um pretexto. Mas, ao mesmo tempo, o
Partido Conservador transformou-se de um Partido Conservador que era um partido que
defendia o status quo, que defendia a Constituição, que defendia uma certa
maneira de ver o mundo e que se tornou, e estou a
usar palavras de alguns observadores, desde John Gray ao Steve Richards, se
tornou-se num partido revolucionário, num partido profundamente ideológico, que até a senhora
Thatcher chegar ao poder era um partido muito mais pragmático, que no
fundo queria, portanto, o objetivo do Partido Conservador era ficar no poder,
governar, manter uma certa estabilidade, manter uma certa ordem social. Era conservar.
Queria conservar, precisamente. E que desde 79, tanto desde que a senhora
Thatcher ganhou as eleições e que revolucionou a política britânica, essa revolução
continuou e tem sido muito visível nos últimos 12 anos. Tem sido
um partido que está em plena guerra civil constantemente. E essa guerra
civil, e essa é a parte que eu acho que é fascinante,
mesmo quando está no poder. Portanto, os conservadores têm estado a governar
o Reino Unido desde 2010, primeiro em coligação com os liberais democratas
até 2015, e depois sozinhos, às vezes em governos minoritários, agora com
governos de maioria, mas já tivemos, acho que desde 2015, quatro primeiros
ministros, que é qualquer coisa de extraordinário. Acho que este é o
género de cenário que nós associávamos à Itália, do pós-guerra, tanto é
essa instabilidade. Ora, essa instabilidade governativa está agora presente no governo do
conservador e o que parece estar interessante é que o partido parece
estar agora a lançar o país num laboratório de ideias, de taxaristas,
monetaristas, é quase como se fosse um seminário da sociedade de Montpérez-Rhin,
que agrupava todos os monetaristas e a famosa escola neoliberal, com a
diferença é de que, em vez de estarem a discutir ideias de
uma maneira abstrata, o partido está de facto a implementar algumas das
ideias, não como foram destiladas por Hayek e Friedman e o Lionel
Robbins e outros, mas como estão destiladas e simplificadas por muitos dos
think tanks que dominam e que têm sido extremamente influentes na política
conservadora. Mas tu aí, desculpa, Roberto, tu aí estás a falar especificamente
do caso da Lee's Trust porque
Eunice Goes
Muito próximo, mas quer dizer, não de uma maneira muito consistente, porque
na verdade o Boris Johnson não era muito ideológico. Essencialmente o que
ele queria era ficar no poder e ser primeiro-ministro. Mas o partido
conservador, desde 2010, muito antes disso, é um partido completamente status gerista,
praticamente dominado pelos status geristas. Aliás, Uma das primeiras coisas que o
Boris Johnson fez quando se tornou Primeiro-Ministro foi, tanto ele libertou-se, despediu
literalmente, uma série de deputados conservadores que tinham uma outra perspectiva das
coisas. Tanto que todos os conservadores que tinham uma visão da União
Europeia um bocadinho mais positiva, muitos deles eram aliás eurocéticos, mas não
queriam o Brexit brutal que acabou por ser acordado. Eles foram todos
convidados a ir-se embora do partido. Portanto, no fundo, O partido conservador
que o Boris Johnson criou e que está no Parlamento nesta altura
é um partido que é 90% taxaristas. Portanto, pessoas que acreditam na
força dos mercados, que querem um Estado pequeno, que querem reduzir o
Estado por evidência e que querem lançar, começar esta experiência de deixar
Eunice Goes
Cruzam-se. A senhora Thatcher foi uma das defensoras do projeto europeu nos
anos 60, foi uma das impulsionadoras do mercado único também, mas em
finais dos anos 80 e início dos anos 90 ela mudou de
opinião sobre o projeto europeu e tornou-se uma das críticas mais ferozes
da União Europeia e quando ela já estava, portanto, não como líder,
mas como líder espiritual do partido conservador, ela foi uma das críticas
mais ferozes. Entretanto, Os deputados conservadores que seguiam Thatcher e que a
adoravam, que a viam como um ídolo, perseguiram essa tendência e levaram
muito mais longe. Portanto, o partido transformou-se de um partido eurocético para
um partido eurofóbico. E, de certa maneira, o que os conservadores que
defendiam a retirada do Reino Unido da União Europeia, o que eles
queriam era viver num sistema internacional onde o Reino Unido não estava
sujeito às regras da União Europeia. Queriam, no fundo, transformar o Reino
Unido numa Singapura no Tamiza. Aliás, essa foi uma das expressões que
muitos dos defensores do Brexit referiram e que utilizaram nas suas campanhas.
A ideia era pôr em prática uma visão do mercado e uma
visão de sociedade onde os mercados funcionam sem quaisquer regras. E aliás,
o governo de Lease Trust já anunciou que vão libertar-se de uma
série de legislação europeia, nomeadamente legislação laboral, a lei dos 40 horas
semanais, por exemplo, essa é uma das leis que vai ser eliminada,
acho que no próximo ano legislativo, e muitas outras, portanto é no
fundo a eliminação da proteção social, a redução do poder dos sindicatos,
etc, e desenfriar a liberdade do mercado. Portanto, os Estados Chiristas sempre
viram a União Europeia e o projeto europeu como uma versão do
que é o chamado capitalismo europeu, o capitalismo da Renlândia, como muitos
dos economistas descrevem, e querem defender o que é hoje chamado o
capitalismo anglo-saxónico, que na verdade nem sequer os Estados Unidos defendem esse
tipo de capitalismo hoje em dia, mas é precisamente esse tipo de
capitalismo, esse tipo de economia de mercado que o Partido Conservador defende
e que desde as primeiras semanas do governo de Lee Strass tem
estado a ser em prática. Portanto, a redução do imposto sobre os
rendimentos para os contribuintes que ganham mais, portanto, para os milionários, banqueiros,
etc. Portanto, uma grande mudança nas leis fiscais do país e que
no fundo é essa fiscalidade que eles veem como e será o
motor do crescimento económico do Reino Unido. Portanto, todas essas regras, toda
essa maneira de gerir uma economia, o Partido Conservador quer essencialmente criar
uma coisa completamente nova. É profundamente revolucionário o que está a tentar
ser posto em prática neste país, nesta altura.
José Maria Pimentel
Então, mas quer dizer, agora estou com algum receio de entrarmos aqui
num rabbit hole do Partido Conservador e entramos aqui em questões menores,
mas ainda assim tentando desatar o nó daquilo que tu explicaste. Eu
acho que é mais ou menos consensual que a Liz Truss, ou
seja, a atual Primeira Ministra é mais tachariana dos últimos primeiros ministros
do Partido Conservador, ou mais tachariana desde a tacha em ser sentido,
ou seja, as medidas dela têm sido criticadas até dentro do próprio
Partido Conservador. Mas há aqui dois factos que eu estou a ter
alguma dificuldade em encaixar aqui. Um deles é que se este tachoarismo
vem da elite do Partido Conservador, como compatibilizar isso com o facto
dela ter sido, na verdade, não ter sido a mais votada entre
a elite do partido, não é? Portanto, ela foi votada pelo partido
mais ao largo. Por outro lado, se não estou em erro, ela
própria era Remainer, não era? Portanto, ela antes, embora depois, como muitos
políticos conservadores, por pragmatismo tenha abraçado o Brexit, no inicial era Remainer.
E finalmente o Brexit também, claro que isto pode não se aplicar
necessariamente ao Partido Conservador, mas mais à população mais abrangente, ou a
eleitorado mais abrangente. Mas aquilo que os estudos mostram é que a
grande força do Brexit, mais do que estas ideias, foi o receio
da anti-imigração, ou seja, mais do que este tipo de questões, enfim,
mais de gabinete e de seminários, era o receio que grande parte
da população tinha relação à imigração. Como é que tu olhas para
estes fatores à luz dessa narrativa da tacharização do Partido Conservador? É
Eunice Goes
uma grande surpresa e eu acho que está muita gente perplexa. Muitos
deputados conservadores estão perplexos com as medidas que foram anunciadas nos últimos
dias e estão perplexos porque muitos desses deputados conservadores, aqueles que deram
a maioria ao partido, portanto a primeira maioria desde 1992, sabem que
estão em risco de perder os seus lugares, se as medidas vão
avante. Porque o que está a acontecer, portanto com o que foi
anunciado, é que em breve toda a gente estará a pagar prestações
de crédito à habitação muito mais elevadas do que pagavam há um
mês. Tem uma crise energética também para combater e para além do
mais ela também anunciou e isso é que é extremamente surpreendente, uma
liberalização das leis da imigração. Portanto, ela quer abrir as portas à
imigração. Exato. Portanto, parece que a Liz Truss está, no fundo, a
tentar implementar um programa de governo que ela considera que é o
que o país precisa, sem quaisquer consideração para, portanto, umas eleições que
vão ter lugar nos próximos 18 meses a dois anos. Portanto, sem
pensar nas consequências eleitorais do seu próprio programa político. De certa maneira,
Isto é o que os revolucionários fazem, como pensam que estão corretos,
como acham que têm a razão. As consequências eleitorais não é uma
coisa que os preocupa, mas não é o que muitos deputados pensam.
Muitos dos deputados conservadores. Claro,
Eunice Goes
Era muito menos status-shearista, aliás, Ela disse coisas que eram heresias completas.
Ela defendeu os impostos, que impostos eram o símbolo de uma sociedade
civilizada. Ela defendeu também o tentar controlar e regulamentar o mercado. Ela
defendeu o papel do Estado na economia. Ela defendeu tomar medidas para
proteger os trabalhadores e falou do mal, todas as desigualdades que existem,
raciais, económicas, sociais, educacionais, etc. Esse é que são os verdadeiros problemas
da sociedade britânica. Ora, essa visão do conservadorismo foi completamente rejeitada pelo
seu próprio partido.
Eunice Goes
Theresa May foi rejeitada tanto pela cúpula, e a cúpula acaba por
ser extremamente dominante, porque é a cúpula que decide qual é que
é a política que o governo e que o partido vai adotar
em programas eleitorais etc. E depois evidentemente temos o partido, que são
os membros, os ativistas, os militantes, que votam na liderança do partido.
Mas no Partido Conservador, os ativistas, os militantes, no fundo só têm
o poder de votar na segunda volta das eleições do líder. Não
decidem a política do partido. Portanto, a Theresa May acabou por ser
derrotada pela cúpula do partido, portanto, a bancada parlamentar, o governo e
evidentemente, quer dizer, todo o seu programa de Brexit foi rejeitado três
vezes no parlamento. E depois a seguir tivemos o Boris Johnson, que
era apoiado pelas duas partes do partido, os militantes e de uma
certa maneira toda a bancada, porque viram que ele era... Portanto ele
ganhava eleições e isso é uma coisa fantástica para qualquer partido. Um
líder que é capaz de ganhar maiorias, é um líder fantástico. Mas
houve uma altura em que ele se tornou num problema e foi
por isso que se libertaram dele este verão e Alistair Ross assumiu
as rédeas. E o que aconteceu neste verão foi, portanto, não havia
candidatos com imenso talento ou com imensa experiência e acabou por ser
metadeua a batalha entre o Rishi Sunak, que era o chanceler do
Tesouro, que também é um taxarista, mas é alguém que tem um
conhecimento de como é que os mercados funcionam, de alguém que trabalhou
na indústria financeira, muito diferente de Liz Trusk, cujo conhecimento da economia,
no fundo, se resume aos panfletos que ela leu, que foram publicados
pelo Institute of Economic Affairs e outros, que são, no fundo, destilações
muito simplistas de como é que os mercados funcionam. Por exemplo, há
uns dias tivemos o chanceler do Tesouro a anunciar todo um programa
de... Mini-budget. Exatamente, o mini-orçamento E não publicaram quaisquer dados económicos que
serviriam de base às propostas e normalmente esses dados são todos publicados
por um órgão independente do governo. E o programa também foi anunciado
com um mínimo de detalhes. E o espanto foi como é que
eles ficaram propriamente espantados com a reação dos mercados. Portanto, a Libra
caiu, todo o caos que tem acontecido nos mercados financeiros nos últimos
dias, como é que pessoas que alegadamente são defensores do mercado e
que conhecem como é que as economias de mercado funcionam, como é
que não previram que estas iam ser as reações? Portanto, tem sido
um período absolutamente extraordinário, absolutamente extraordinário na política britânica. A Lee
José Maria Pimentel
Stratham, o governo atual e mesmo o Boris Johnson, em termos de
sentido, são outliers, são exemplos que não representam para todos os efeitos
a visão e a prática mais geral do Partido Conservador. Mas sei
lá, o David Cameron, por exemplo, que recebe mais tempo, se calhar
está mais próximo daquilo que é o Partido Conservador em situação normal.
Se calhar não concordas com isto, Mas estou a tentar pegar num
ponto de referência para fazer a comparação com a política, com os
partidos da direita da Europa continental. Como é que tu compararias a
ideologia, claro que tem várias, mas a ideologia do Partido Conservador com
aquilo que é a norma, claro está, também varia e varia bastante
mais porque varia entre os países, mas para todos os efeitos aquilo
que é a norma dos partidos da direita na Europa continental?
Eunice Goes
É uma excelente pergunta porque o Partido Conservador neste momento parece uma
híbrida ideológica, portanto combina de um lado toda a defesa do liberalismo
económico, que de certa maneira era a matriz do Partido Conservador e
tem sido a matriz do Partido Conservador desde os anos 80. Por
outro lado, o Partido Conservador assumiu muitas das características da direita radical
e de muitos dos partidos da direita radical europeia. Portanto, as posições
em relação desde imigração, políticas de asilo, nacionalidade, etc. As questões todas
da política identitária. Em muitas áreas o Partido Conservador é muito parecido
com os partidos da direita radical. Aliás, foi muito interessante ver esta
semana a reação da Liz Truss às eleições italianas. Ela saudou a
Meloni, que é, portanto, alguém que vem da direita radical. Alguns analistas
falam mesmo do neofascismo. Eu não sou especialista do fascismo, portanto não
vou enverdar nesse debate, mas a Melónia não é uma...
Eunice Goes
é uma direita radical, não é uma direita tradicional, não é uma
direita da democracia cristã. E é extremamente interessante que a Liz Truss
decidiu que era muito boa a ideia de felicitar a Melonia pelos
resultados eleitorais e ao mesmo tempo a Liz Truss diz que não
sabe muito bem se a França de Macron é um aliado ou
um inimigo do Reino Unido. E o Macron, quer dizer, é uma
pequenininha direita liberal francesa. Ele não se situa na esquerda, portanto ele
está no centro, mas o centro-direita principalmente em termos de política económica
francesa. Portanto, acho que isso nos diz qualquer coisa sobre onde é
que está o Partido Conservador no panorama partidário europeu. E é também
interessante ver o que é que os conservadores britânicos fizeram na altura
do David Cameron, que foi sair do bloco centrista, do centro-direita europeu
para criar um novo bloco, portanto, pelas razões deles. Mas quem é
que faz parte desse bloco europeu? Portanto, é essa direita liberal, radical,
essencialmente da Europa de leste e central, e não aquela direita tradicional
a que o Partido Conservador normalmente se aliava.
José Maria Pimentel
E isso tem alguma coisa a ver também com a própria arquitetura
do sistema político, porque o que é normal em outros sistemas políticos
é tu teres uma direita, por exemplo, com mais do que um
partido. O Itália é o exemplo óbvio disso, e se lá é
mesmo Portugal e outros países. No caso do Reino Unido, aquilo não
é um sistema de dois partidos, mas não está muito longe. Temos
os Lib Dems, que têm sempre dificuldade em eleger, até por causa
do sistema eleitoral. Depois temos o Scottish National Party, mas é um
partido regional, não é? E depois acho que os Greens praticamente nem
elegem, não é? E depois temos o antigo UQIP, mas são tudo
coisas muito mais pequenas. Portanto, na prática o sistema sempre esteve e
continua a estar, para todos os efeitos, na prática dividido entre os
dois partidos.
Eunice Goes
Eu acho que tens razão. O facto do Partido Conservador ser esta
grande tenda ideológica, que agregava uma direita moderada, uma direita paternalista, quase
da democracia cristã e estes elementos mais extremos, Sempre foi essa a
realidade. A teoria que se dizia sobre o sistema eleitoral britânico, portanto
o sistema maioritário, era de que este era o melhor sistema eleitoral
para evitar, portanto, a aparicião de partidos extremistas. E é verdade que
o sistema eleitoral britânico não tem um partido comunista, não tem um
partido da extrema esquerda, não tem também um partido fascista ou neofascista
representado no Parlamento.
Eunice Goes
muitas das posições do Partido Conservador, especialmente em questões de política de
imigração, são posições que são partilhadas pela direita radical europeia. Portanto, é
um daqueles problemas que o sistema eleitoral britânico não resolve. Se antigamente
eram dois partidos, portanto, tínhamos um bloco de esquerda social-democrata e o
partido conservador que era dessa direita respeitável, isso tem vindo a mudar
desde o quê? Desde os anos 70, porque o que nós temos
assistido é um comportamento eleitoral que é o comportamento eleitoral de um
eleitorado que é diverso e que quer votar noutros partidos, mas temos
um sistema eleitoral que é um espartilho completo e que não deixa
essas forças políticas expressarem-se na Câmara dos Comuns. E isso depois dá
lugar a excreções como o UCEP, que em 2015 obteve um resultado
extraordinário. 3 milhões de pessoas, quase 4 milhões de pessoas votaram no
partido do Nigel Farage, mas no entretanto o Yoquieb desapareceu, portanto agora
temos um outro partido que é o Brexit Party, mas de certa
maneira o Partido Conservador absorveu todo esse eleitorado nesta tenda desde 2019.
Portanto, um partido que era moderado de direita agora absorve também todo
este eleitorado que não é tão moderado. É de direita, mas não
é tão moderado.
Eunice Goes
Exatamente. É preciso ter uma grande representação, muito apoio numa zona geográfica
forte, aliás é por isso que o Partido Nacionalista Escocês se sai
tão bem, porque beneficia precisamente do sistema. Para partidos mais pequeninos, Os
verdes são um exemplo. Tem um único deputado, o que é extraordinário
no panorama europeu. Os partidos verdes têm uma representação muito, muito mais
forte. E até mesmo os liberais democratas têm vindo a perder alguma
expressão no Reino Unido porque, entretanto, os dois partidos continuam a absorver
imensos eleitores ou conseguem eleger bastantes lugares mas há um desequilíbrio muito
grande porque o sistema eleitoral já não está a produzir de uma
maneira sistemática as maiorias e os governos-estavas que supostamente deverá produzir. Uma
das defesas do sistema eleitoral britânico era de que este é um
sistema eleitoral que, bom, não é perfeito, mas vai nos dar a
estabilidade governativa, vai nos dar governos estáveis, não vamos ter nada desses
compromissos, esses governos de coligação, onde o que os governos no fundo
acabam de decidir é tudo acordado em salas fechadas, não é minimamente
democrático. Ora, isso já não é verdade desde 2010, porque tivemos um
governo de coligação em 2010 e 2015, depois uns governos minoritários e
entretanto mesmo em 2019 o Partido Conservador ganha uma maioria incrível e
estamos no segundo Primeiro-Ministro desde 2019. Portanto, há aqui uma turbulência no
sistema político que nos diz qualquer coisa sobre o que é que
está a acontecer, a turbulência no Partido Conservador e esta turbulência ideológica,
mas ao mesmo tempo temos também uma situação económica e social de
grande instabilidade. Há uma grande insegurança popular, é a sensação de que
o sistema político não está a dar às pessoas aquilo que era
normalmente esperado e essa imprevisibilidade, no fundo, vai gerando ainda mais turbulência.
E, entretanto, o sistema eleitoral está paralisado porque continuamos a eleger deputados
da mesma maneira de sempre. Portanto, é uma crise que não se
sabe muito bem como é que vai ser resolvida. Talvez com a
eleição de um partido trabalhista para o governo, que não está de
maneira nenhuma garantida, mas eu digo isto porque os trabalhistas decidiram esta
semana que são a favor da reforma do sistema eleitoral. E essa
é uma reforma que costumava ser defendida por tanto grupos, pelos pequeníssimos,
eram essencialmente os liberais democratas a defender a…
Eunice Goes
aparecer como um partido mais centrista, mas um partido mais centrista mas
que está a tentar resolver os problemas do século XXI em vez
de estar a falar como se estivesse a governar nos anos 90,
que era o caso do New Labour de Tony Blair. Portanto, demorou
algum tempo para o Keir Stamass afirmar como líder. Ele passou os
últimos anos, sem dizer muito, sobre o que é que ele deicionava
fazer. Portanto, essa indefinição não ajudou. O partido estava também, não diga
em guerra civil, mas não estava propriamente confortável consigo próprio. Portanto, houve
ali um esforço muito grande para tornar o partido muito mais consensual.
Cantar aliar as alas esquerdas e do centro e da direita, mas
de certa maneira a ala esquerda do partido perdeu completamente a sua
voz ou o poder, portanto tem muito pouca influência no que o
partido tenta obter. Mas os trabalhistas também confrontam-se com uma grande dificuldade
nos debates britânicos. Eles têm uma imprensa que é profundamente hostil ao
Partido Trabalhista. Portanto, essa tem sido um bocadinho a história do Partido
Trabalhista, desde a sua fundação. Temos uma imprensa conservadora que é extremamente
poderosa e que controla títulos muito importantes, desde o Daily Mail, o
Daily Express, o Sun, o Time, de certa maneira. E essa imprensa
continua a ser, portanto, já não é tão líder como era, mas
continua a ser extremamente influente porque, no fundo, controla, portanto, o vento
do debate político. E como é que eles controlam isso? Mas tu
tens,
Eunice Goes
Tem, existem. Muito menos, não é? Mas são muito menos influentes, porque
como é que Depois o debate se faz na política britânica. Temos
depois organizações como a BBC e outros canais de televisão e de
rádio que acabam por seguir as vozes mais fortes e as vozes
mais fortes são, portanto, a imprensa conservadora que é numericamente muito mais
influente e poderosa do que a imprensa do centro-esquerda, que é o
Guardian, o Independent. O Financial Times não é do centro-esquerda, mas tem
sido um contraponto à imprensa conservadora e é muito difícil, muito, muito,
muito difícil combater certas narrativas. Qualquer proposta feita por um líder trabalhista
é imediatamente destruída. Portanto, eles são comparados ao Stalin, aos Chávez da
Venezuela. Qualquer proposta do mais moderado, do mais social-democrata que poderá ser
feita, é retratada como se fosse a proposta de uma revolução proletária.
Portanto, é extremamente difícil vingar porque depois todo o debate é controlado
e tem que se desenvolver seguindo determinados parâmetros. Por exemplo, quando foram
as políticas de austeridade que tornaram a crise muito mais longa, que
aumentaram o déficit orçamental do país. Durante esse período de 2010-2015, o
Partido Trabalhista, que na altura era liderado pelo Ed Miliband, tentou propor
uma outra leitura da crise, uma leitura mais keynesiana da crise e
soluções mais keynesianas, ele não teve quaisquer oportunidade de ser ouvido e
de apresentar o seu caso porque não havia espaço. A ideia de
que a austeridade era a solução para a crise e era a
solução também para o crescimento económico era apresentado como se fosse um
facto científico completamente acrítico. Então,
José Maria Pimentel
mas espera, eu aqui no podcast gosto de fazer da advogada do
diabo e aqui neste caso eu não conheço obviamente a realidade britânica
mas conheço a realidade portuguesa e o viés dos média é um
destes temas engraçados que, no caso português, não aprende-mos para todos os
lados. Eu ouço frequentemente pessoas dizerem-me, a nossa imprensa é toda de
esquerda, queixarem-se e outras dizerem-me, a nossa imprensa é toda de direita,
o que são, obviamente, factos incompatíveis entre si. No caso do Reino
Unido é mais ou menos consensual que há mais jornais de direita
e sobretudo em termos de número de leitores do que de esquerda.
Mas por outro lado, nós temos por um lado, existe a BBC,
não é que na preparação da conversa até apanhei aqui um inquérito
do Pew Research Center, e que a BBC continua a ser para
metade, basicamente, da população seja à direita ou à esquerda a principal
fonte. E a BBC, à partida, não só tem um compromisso de
imparcialidade, como tem poder de fogo para ser imparcial. E por outro
lado, quer dizer, no mercado em que existem jornais de direita, mas
também existem os jornais de esquerda, existe o Guardian, que é um
enorme jornal, até mais em termos de circulação mundial do que se
calhar no Reino Unido, mas quer dizer, é obviamente uma referência, o
Mirror Independent, há aqui uma concorrência entre mercados, quer dizer, isto não
tem também a ver com... Não sei se percebes o que eu
quero dizer, uma coisa era, se nós tivéssemos, não, naquele país é
silenciada a imprensa de esquerda, ou é silenciada a imprensa de direita,
Não é o caso, não é? Não. Ela existe, não é? Só
que não consegue...
Eunice Goes
Não tem a mesma projeção. Não tem a mesma projeção, não tem
o mesmo poder. E, por outro lado, a BBC, portanto, tem esse
compromisso de neutralidade, de imparcialidade, portanto, é um public service broadcaster, como
há poucos. Eu sou uma grande defensora da BBC. Agora, também é
verdade que, em particular, na produção nacional, portanto o que são as
rádios nacionais e as televisões nacionais, A cobertura política da BBC acaba,
no fundo, por seguir a direção do debate nacional. Ora, se o
debate nacional é liderado e conduzido pela imprensa direita, é essa direção
do vento que a BBC vai seguir. E vimos isso, por exemplo,
na cobertura do Brexit, como é que o referendo, toda a campanha
do referendo foi coberta pela BBC e houve um estudo muito interessante
da Reuters, do centro de jornalismo da Reuters em Oxford, que mostrou
que, por exemplo, a BBC tinha muito poucos especialistas a falar, havia
muito mais proponentes do Leave do que do Remain, as questões que
eram colocadas tendiam a enquadrar-se muito mais na agenda do Leave do
que do Remain e o mesmo aconteceu, por exemplo, com a crise
financeira. Quais é que eram os economistas que eram ouvidos pela BBC?
Essencialmente os economistas da indústria financeira, muito poucos economistas académicos ou universitários,
muito poucas vozes da sociedade civil, de cidadãos. Portanto, na seleção das
vozes que se faz, portanto, quando se está a contar uma história,
o debate acaba por ser, e a questão acaba por ser enviesada,
acaba por haver só uma outra leitura. É inevitável. Quer dizer, uma
cobertura jornalística verdadeiramente justa teria que enquadrar uma grande diversidade de pontos
de vista. Ora, isso não aconteceu. Quando só se houve um certo
ponto de vista. E depois a BBC faz uma outra coisa. Eles
também têm uma série ou uma série de programas, que são programas
de discussão e de debate, onde eles encontram e convidam pessoas dos
vários quadrantes políticos, mas quando esses debates são conduzidos para, no fundo,
gerar o maior número de ratings de audiências, o debate vai ser
polarizado, vão ser posições que estão em contraste consigo mesmas, em vez
de ser um debate talvez mais racional, talvez menos chitante, mas provavelmente
mais realista de como é que devemos pensar ou como é que
determinados assuntos deverão ser pensados. Por exemplo, a emergência climática. Esse é
um debate extremamente importante para a nossa geração. Ou
Eunice Goes
Exatamente, e eu acho que isto se observa não só em Inglaterra
e nos mídias britânicos, mas eu acho que é, e sensacionalmente, observa-se
em quaisquer ecossistema mediático, pelo menos na Europa e nos Estados Unidos,
vê-se muito essa tendência, portanto essa ideia de que têm que se
trazer posições que estão em completo contraste umas com as outras e
que no fundo, quer dizer, não há quaisquer diálogo possível. É uma
gritaria. O que o público tem é uma gritaria que acaba por
delegitimar quaisquer ponto de vista. Eu vejo isso em conversas com os
meus alunos. Factos transformam-se em opiniões e depois todas as opiniões são
legítimas. Portanto, acaba por ser uma questão de preferência pessoal em vez
de estar a ponderar factos, estar a ponderar evidências, circunstâncias, etc. Portanto,
não há quaisquer nuances nestes debates e dessa maneira estamos a enviesar
o debate numa direção e estamos a defender no fundo a defesa
do status quo porque ninguém avança, a discussão não avança em nenhuma
direção, são tudo opiniões, toda a gente está a defender opiniões diferentes,
portanto não leve nada deste debate para além de aprender um argumento
ou outro que poderei utilizar noutras discussões, mas não se aprende nada
nestas discussões. Acho que chegamos a um ponto que não é muito
saudável para as nossas democracias, não é muito saudável para a nossa
política, porque chegamos a empates e impasses governativos muito difíceis e onde
problemas complicados, que têm factos complicados e que exigem um esforço intelectual
cognitivo de perceber, ninguém está disposto a fazer esse esforço
e
perdemos todos.
José Maria Pimentel
Sim, esse é um ponto interessante. Tu achas que isso tem sido
uma das dificuldades do Labour? Eu pergunto isto porque é bastante discutível
dizer que as ideias de esquerda são mais complexas do que as
de direita. Não me parece que seja necessariamente o caso. Mas no
caso, se olharmos para os últimos anos da política britânica, houve a
tentativa da parte do Ed Miliband, por exemplo, sobre quem tu escreveste
um paper, mas também no caso do Corbyn, embora mais ou menos
no mesmo ponto ideológico, mas de uma natureza um pouco diferente, eram
ideias com caráter um bocado inovador. Inovador aqui sem querer dizer que
eram boas, mas eram ideias que convidavam olhar para o mundo de
maneira diferente, se quisermos. Que se calhar esse clima tornou independentemente do
mérito que elas tinham mais difíceis de passar. Foi
Eunice Goes
do partido. O partido estava um bocadinho perdido, sem saber muito bem
o que era. Mas, por outro lado, o partido também estar a
concorrer a eleições e tentar ganhar eleições num sistema eleitoral maioritário torna
extremamente difícil a tarefa de criar uma coligação eleitoral que tente lhes
dar uma maioria. E o que aconteceu ao Partido Trabalhista é que
o Partido é atualmente o Partido Popular nos Centros Urbanos, que é
apoiado pelos jovens, de uma maneira geral, mas que perdeu o apoio
das áreas tradicionais, industriais, pós-industriais, e que elegiam o Partido Conservador. Portanto,
trabalhistas.
Eunice Goes
E que começou no Reino Unido, começou a ser visível em 2015,
quando o Partido Trabalhista perdeu a Escócia. O Partido Trabalhista costumava ser
um muito poderoso, muito influente na Escócia, portanto começou por perder aí
eleitorado e nas últimas eleições, 2019, perderam o que é chamado à
Red Wall, portanto todos os lugares que nos últimos 100 anos, muitos
deles nos últimos 100 anos, tinham elegido deputados trabalhistas eleição após eleição
após eleição. Portanto, 2019 foi o culminar, portanto, da perda de popularidade
dos trabalhistas. Ora, o que é que aconteceu? Evidentemente é um eleitorado
que está envelhecido, é um eleitorado talvez menos bem educado, portanto menos
formação académica do que o eleitorado das cidades,
é um
eleitorado que votou para o Brexit, portanto que queriam sair da União
Europeia, um eleitorado que estava preocupado com a questão da imigração e
a dificuldade para o Partido Trabalhista é, no fundo, criar um programa
que reconcilie… Que agrave os dois, não é? Exato.
O que é
extremamente difícil, porque os jovens dos centros urbanos que têm formação universitária,
estão habituados, portanto, são a favor da imigração, têm valores cosmopolitas, liberais,
etc. Vão querer um tipo de política muito diferente do eleitor de
Red Wall, que é hostil à imigração, mas mesmo as superioridades económicas
são diferentes. Uma das coisas que se descobriu nas eleições de 2019
é que grande parte desse eleitorado de Redwall são proprietários, portanto têm
as suas próprias casas. O eleitorado jovem britânico está a ser afetado
por uma das maiores crises da habitação do país. Mesmo com salários
elevados não conseguem viver
Eunice Goes
cidades caras como Londres. É difícil criar esse programa eleitoral que vá
reconciliar e que atraia estes dois tipos de eleitorados. Eu acho que
o que a Stauma vai beneficiar, portanto, da impopularidade que o Partido
Conservador está a atravessar nesta altura e então se a crise económica
continuar os conservadores vão perder um bocadinho a reputação de boa gestão
económica e é sempre nestas circunstâncias que os trabalhistas ganham eleições. Foi
assim em 97, foi assim na altura do período do Harold Wilson,
nos anos 60 e no início dos anos 70, nos anos 30
também. Foi assim que o Partido Trabalhista conseguiu ganhar eleições, portanto foi
beneficiar da incompetência ou percepção de incompetência dos conservadores no governo. Mas
no fundo, se for esse o caminho, acaba por não resolver, portanto,
a crise identitária do Partido Trabalhista e que é talvez um dos
sintomas da crise da socialdemocracia europeia mas que se manifesta de maneiras
diferentes noutros países.
Eunice Goes
Nem sei mesmo se será bom para o Labour, porque cria incompatibilidades,
cria problemas em termos de criar um programa coerente, um programa de
governo que é coerente. E essa tem sido a dificuldade da última
década, criar esse programa eleitoral coerente, que de certa maneira responde ao
que as populações urbanas e jovens desejam e aspiram e um eleitorado
suburbano mais velho e que tem preocupações muito diferentes do que os
homens e isso era muito notório nas questões de cultura, questões de
identidade, questões de imigração, que se tornaram nos últimos anos polos de
grande contenção na política britânica e no debate nacional. Aliás, como em
Portugal. São questões que cada vez se falam mais, cada vez ocupam
mais espaço mediático.
José Maria Pimentel
Portugal, apesar de tudo, quer dizer, do ponto de vista do debate
público, claro que sim, mas do ponto de vista eleitoral, somos apesar
de tudo ainda uma exceção. É esta tendência, não é? Porque nós,
essa crise da social-democracia europeia, e quando falamos, é preciso sempre dizer
isto, no caso português, estamos a falar do PS, não é? Na
verdade estamos a falar da esquerda, a coligação antiga ainda se mantém,
não é? Ao contrário dos outros partidos da área da social-democracia nos
outros países europeus, em Portugal ela está, pelo menos até ver, que
essa coligação continua forte, ou seja, não se sente esse espartilhar do
eleitorado.
Eunice Goes
Não, aliás, o que nós observamos em países como em Portugal, tanto
com o Partido Socialista, os Sociais Democratas Alemães também, o que nós
observamos é que estes são partidos que tendem a atrair um eleitorado
muito mais velho do que
os partidos
da esquerda radical. Eu diria que na Europa e na Europa da
União Europeia o grande problema de socialdemocracia tem sido, no fundo, o
espartilho de políticas económicas que são, portanto, impostas que fazem parte da
União Europeia e em particular da moeda única. Eu acho que o
António Costa foi dos poucos primeiros ministros socialistas que disse que havia
uma certa incompatibilidade entre a socialdemocracia e as políticas da moeda única.
Portanto, não é possível ter políticas sociais democratas na atual conjuntura da
moeda única por causa do espartilho governativo, as políticas de déficit, a
grande preocupação com a inflação e em particular com manter a inflação
a 2%. Portanto, a moeda única, a arquitetura europeia, não permita governos
sociais-democratas a serem muito ambiciosos com as suas políticas. E o eleitorado
de esquerda, o eleitorado social-democrata, espera um certo investimento em serviços públicos,
espera uma certa defesa do Estado de Previdência, de políticas sociais, desde
apoio à infância, à educação, etc. Ora, isto não tem sido possível
conduzir este tipo de políticas nos últimos, o quê? 20 anos. Aliás,
quando olhamos para a Europa do Sul, Portugal, Espanha, Itália, Grécia, a
moeda única tem sido um grande problema porque os governos estão sempre
naquela lufa-lufa de tentar cumprir as metas do déficit, da dívida pública
e tudo mais e é essencialmente impossível a investir na infraestrutura que
poderá tornar estas economias muito mais competitivas do que são na atualidade.
Aliás, e temos visto como o Costa tem tentado alterar o debate
na União Europeia. Eu acho que temos agora uma certa janela de
oportunidade para algumas mudanças nas políticas da União Europeia, em particular da
moeda única, portanto o Pacto de Estabilidade e Crescimento. O governo alemão
parece muito mais aberto, no fundo a libertar a União Europeia do
ordo ao liberalismo, que no fundo acaba por ser a estrutura governativa
da moeda única. E se assim for, a socialdemocracia europeia terá uma
maior chance de triunfar nas eleições. Se vermos, por exemplo, o que
aconteceu aos socialistas franceses, desde o François Hollande, que ainda me lembro,
parece que foi há 20 anos, mas não foi. Quando ele foi
eleito ele tinha prometido virar a página da austeridade e essencialmente ele
não pôde fazer isso. Não foi possível. Não era essa a ortodoxia
macroeconómica na União Europeia. Ele não pôde virar a página austeridade. Ninguém
pôde virar a página austeridade. E os partidos do centro-esquerda, os sociais-democrata
e europeus, têm sido castigados pelos eleitorados precisamente por isso, porque têm
governado com partidos do centro-direita. E no fundo, em democracia nós precisamos
de escolha, não é? Os eleitorados precisam de ter alguma escolha. Ou
votam para partidos da direita ou de esquerda. Quando Os partidos de
centro-esquerda governam da mesma maneira que os partidos de centro-direita, mas vale
votar para a centro-direita, não é? Ou para a direita, porque acaba
por ser o produto mais genuíno e que mais garantias oferece ao
eleitorado. Portanto, a socialdemocracia europeia acaba por ter desafios diferentes da socialdemocracia
britânica. O eleitorado tem determinadas expectativas de como um governo de centro-esquerda
deverá governar. Os trabalhistas não têm um Banco Central Europeu a impor-lhes
regras ou uma comissão europeia a dizer-lhes que não podem gastar, não
podem investir aqui ou acolá, ou reduzir impostos ou assim, mas têm
outros condicionantes. Eu acho que tem os mídia que não lhes permite
determinadas posições, portanto acabam por ser eleitos em programas muito mais conservadores.
E eu acho que a única possibilidade, portanto, de alguma mudança é
esta abertura que nós temos visto desde o início da pandemia, que
parece uma certa flexibilização das regras orçamentais em Bruxelas, portanto elas foram
pausadas. Agora temos este programa incrível de investimento que vai permitir aos
governos europeus no fundo serem ordo-liberais ao nível nacional, mas entretanto estão
a aproveitar todos os fundos que vêm da União Europeia para fazer
os investimentos que precisam em infraestrutura, energias renováveis, etc, etc. Portanto, será
um novo caminho, mas eu acho que também está a haver uma
certa, um certo repensar entre aqueles que são os grandes defensores do
tal ouro do liberalismo que tem governado a Europa nos últimos 20
anos. Acho que tem havido uma certa constialização de como é que
a Meloni, a Le Pen e outros fenómenos da direita radical chegaram
ao poder ou estão próximos do poder. Sim, concordo. Tem a ver
com o sentimento de insegurança muito grande, a precariedade, que é generável
em toda a Europa, o sentimento de que já não há empregos
que são para a vida ou que garantam certos direitos laborais e
civis, as certezas que existiam, as certezas mesmo em relação ao Estado
de Previdência, isso foi tudo perdido nos últimos 20, 30 anos, tem
vindo grandes políticas e uma orientação muito mais austeritária, muito mais monetarista
e que talvez um virar de página, uma nova reinterpretação de como
é que a governação econômica deve ser feita, criará um espaço para
talvez essa socialdemocracia mais tradicional reemergir. Mas isto são tudo, estamos nos
tempos iniciais onde, quer dizer, tudo poderá
José Maria Pimentel
acontecer. No terreno da conjetura. Exatamente. Eu partilho a tua intuição de
que várias destas medidas são uma tentativa de resposta do sistema à
ascensão do populismo pela via mais fácil que é a via económica,
porque outra via é muito mais complicada. Enfim, não tem de todos
soluções fáceis e a via económica, ou seja, no fundo, permitir que
as pessoas não sintam que estão a ser deixadas para trás ou
que estão a viver pior do que a geração dos pais, impedir
que isso aconteça. A minha intuição quando esses problemas foram anunciados foi
exatamente essa. Em relação àquilo que tu dizias da socialdemocracia, eu a
isso sou um bocado mais cético, ou seja, inclino mais para achar
que a crise da socialdemocracia europeia tem a ver com o modo
como foi evoluindo o seu eleitorado ou como ele se foi partindo
entre uma população mais urbana, mais educada e uma população mais rural,
mais velha, do que propriamente com esse tipo de despartilhos por várias
razões. Primeiro, eles mudam de país para país. Por exemplo, o caso
do euro, o caso de um banco central que controla a inflação.
Isso é verdade em qualquer país que tenha um banco central independente.
É verdade na Alemanha também e é verdade no Reino Unido. No
caso do euro enquanto moeda, de facto é muito defensável, há muitos
economistas que defendem isso, que os países da chamada periferia foram prejudicados,
entre os quais Portugal, cujas economias se tornaram menos competitivas por causa
disso. No caso de Portugal, por exemplo, é justamente um país em
que a social democracia não está em crise. A social democracia até
está mais em crise nos países mais do centro da Europa, que
estão mais dentro desse sistema. Ou seja, o que eu quero dizer
é que o que me parece que é mais difícil é estes
partidos do centro-esquerda terem medidas como tu dizias que agradem a toda
a gente e depois muitas vezes para saírem de... Depois há outra
condicionante, essa sim que me parece relevante, que é, se quisermos, da
globalização, ou seja, dos mercados, do FMI, do sistema de comércio internacional,
quer dizer, tudo isso cria... As economias já não podem viver fechadas
sobre si mesmas, não é? Portanto, um governo de esquerda não pode
tomar medidas muito radicais sem querer sofrer as consequências. Mas também há
o problema de conseguir vender determinadas ideias junto do seu eleitorado. E
aí tu tens medidas que podem ser boas para esse eleitorado redbull
que tu odias, mas menos boas para o eleitorado urbano. Mas também
tens medidas, o que me parece ser um problema mais difícil de
resolver. Também tens ideias que pela sua natureza são mais facilmente aceitos
por um eleitorado mais escolarizado do que por um eleitorado menos escolarizado
e mais velho, por exemplo. Eu estou-me a lembrar do teu paper
sobre o Ed Miliband, que ele tinha aquela ideia de... Enfim, era
um conceito que era tirado do Académico Americano do pre-distribution, cuja ideia,
e corri-me se estiver a traduzir isto mal, era em vez de
nós termos medidas redistributivas, como existem com impostos redistributivos, devemos impedir que
as desigualdades existam desde o início. Ora, tudo isto e toda esta
conversa em torno das desigualdades, e depois temos o Piketty, por exemplo,
também, é o tipo de conversa que é muito interessante porém em
livros muito espessos, em livrarias, mas é muito difícil, é muito mais
difícil de vender num debate político, em que as ideias concretas vendem
muito melhor, não é? Parece-me que parte da dificuldade está aí, é
mais difícil do que simplesmente estas duas dimensões.
Eunice Goes
Muito mais difícil e, de certa maneira, quer dizer, a crise da
social democracia atual não é uma crise nova. Desde a emergência de
partidos sociais democratas no final do século XIX, que muito rapidamente esses
sociais democratas se aperceberam que não tinham apoiantes suficientes naturais para ganharem
maiorias. O Bernstein, aliás, quando foi ao Congresso de Air Food, onde
começou todo o debate revisionista na social-democracia alemã, ele dizia que nós
não vamos conseguir ganhar eleições só à conta dos votos dos operários.
Vamos precisar também dos votos de agricultores, vamos precisar dos votos daquela
classe média profissional e como o Bernstein, muitos outros, os georréis em
França, os italianos, etc. Os suecos, que foram o partido social-democrata mais
bem sucedido e que sofreu uma derrota bastante traumática há poucas semanas,
perceberam que tinham que fazer coligações com outras partes da sociedade. Teriam
que contar com o apoio não só da classe operária, que era
a base eleitoral da socialdemocracia europeia, mas tinham que começar a atrair
outras pessoas, outro tipo de eleitor. Portanto, esse foi um dilema que
os sociais-democratas confrontaram toda a sua vida. Portanto, os partidos sociais democráticos,
e já vamos em mais de 100 anos de socialdemocracia. Na verdade,
Eunice Goes
Evidentemente. Faz parte. O problema é criar essas coligações que acabam por
criar sínteses ou que tentem eliminar diferenças e contradições entre eleitorados diferentes.
Isso normalmente é o papel de líderes, que poderão ser líderes talentosos,
que são carismáticos, que têm uma visão que é capaz de, no
fundo, refletir as preocupações do eleitorado naquele período específico. Portanto, liderança é
importante, o saber responder às espumas dos dias, isso é extremamente importante,
mas ao mesmo tempo que é capaz de criar uma mensagem que,
ok, olha, pronto, discordamos sobre imigração, discordamos sobre estas questões de políticas
de género, etc, mas acho que toda a gente vai custar de
mais investimentos na saúde e mais investimentos na educação e temos de
lidar com a emergência climática. Por exemplo, criar um programa que é
abrangedor. E porquê
Eunice Goes
é difícil. Porque é extremamente difícil e eu acho que o talento
político acaba por se definir nisso, não é? O conseguir falar de
uma maneira que é ao mesmo tempo abrangedora, mas ao mesmo tempo
que é inspiradora, plausível também, porque um político também tem que falar
de
uma
maneira que é plausível. Porque as soluções que estão a propor são
soluções que fazem sentido e então em populações diversas, com eleitorados cada
vez mais diversos, é cada vez mais difícil encontrar essa linguagem comum,
o léxico comum que torne essa comunicação e a compreensão mais fácil.
Há um politólogo britânico, que aliás vive nos Estados Unidos, de quem
eu gosto muito, que é o Peter Hall, que escreve muito sobre
a economia política e sobre o poder das ideias e ele diz
que, portanto, as ideias políticas são coisas extremamente importantes, que as ideias
podem causar fenómenos políticos, portanto, são agentes da política, portanto, não são
coisas abstratas, são agentes, mas para essas ideias serem influentes elas precisam
de passar por determinados testes. Primeiro precisam de ser persuasivas, precisam de
convencer as pessoas que aquela ideia oferece uma solução para aquele problema
concreto. Mas para serem persuasivas precisam de ser compreendidas e a compreensão
é cada vez mais difícil porque a compreensão é fácil quando estamos
a lidar com populações homogéneas, onde concordamos mais ou menos sobre as
regras do jogo, de como
é
comum que funciona, etc. Agora, quando as populações e os eleitorados são
cada vez mais diversos, esses pontos comuns são muito mais difíceis. Portanto,
se as ideias não são compreendidas, não vão ser apoiadas por atores
relevantes que podem achar que esta é a solução para o problema
X, para o problema A. Esse é o grande problema dos partidos
políticos. As vezes as pessoas até têm as ideias certas, mas a
comunicá-las é a parte mais difícil. Por isso é que nós não
somos todos políticos. Só algumas pessoas é que o são e só
algumas pessoas é que chegam a posições de Primeiro Ministro, de Presidente,
porque têm essa capacidade de comunicar soluções plausíveis de uma maneira que
é plausível e persuasivo ao mesmo tempo.
José Maria Pimentel
Sim, e esse ponto sobre a diversificação do eleitorado acho que é
um ponto muito importante para os tempos atuais. Também em Portugal, mas
eu diria menos do que países como Estados Unidos ou Reino Unido
em que tu tens o eleitorado mais diverso e portanto não tem
esses pontos em comum que tu dizias e torna-se difícil expor uma
ideia de que maneira que seja entendível por toda a gente, que
seja compreensível por toda a gente. Compreensível no sentido que se está
a acreditar, não é? Compreensível ela pode ser sempre, não é? Mas
pode ser translida por muitas pessoas. E ainda bem que tu puxaste
o tema das ideias e das ideologias porque eu sei que é
uma... Aliás, acho que é a área de investigação do que tu
gostas mais e tu tens uma convicção que... Acho que não estou
a retratar isto mal... Que as ideologias são de facto importantes nos
partidos não só a única coisa que importa, mas por muito que
obviamente os partidos tenham todos que ser geridos com algum cinismo eleitoral
para ganhar eleições, eles têm essa base ideológica e essa base é
aquilo que lhes dá força mas também os pode restringir. E no
caso dos partidos da esquerda eu achei interessante esse pensamento porque já
me ocorreu várias vezes que, de novo, não É certo que a
esquerda seja mais ideológica do que a direita. Há muitos partidos da
direita mainstream, durante muito tempo até se podia dizer que eram mais
pragmáticos, mas temos uma direita muito ideológica e a direita tachariana, por
exemplo, é bastante ideológica. Mas é verdade que a esquerda tende a
ser mais reflexiva e tende a ter mais escolas de pensamento, se
nós quisermos. E o que me parece muitas vezes existir nos partidos
da esquerda é que, como eles obviamente tendem a ser mais dominados
por uma elite que vem mais desses meios urbanos e mais educados,
muitas vezes expõem determinadas ideias mais do que lhes seria útil do
ponto de vista cínico eleitoral. Sem dar conta disso, ou seja, as
pessoas acreditam na forma daquelas ideias que carregam a indemasia nela e
sofrem os custos eleitorais dessa decisão. Então falavas de, eu acho que
isso é muito verdade no caso de determinados temas desta nova agenda
de justiça social, que podíamos chamar política identitária, embora vá um pouco
para além disso, que muitas vezes está muito carregada na agenda desses
partidos, de uma maneira que do ponto de vista cínico não seria
necessária porque depois está a afastar parte desse eleitorado mais velho, menos
educado, que vive noutros meios, que não só não concorda como se
sente absolutamente repelido muitas vezes por esse tipo de ideias.
Eunice Goes
Eu acho que Os partidos de direita são tão ideológicos como os
partidos de esquerda, as ideologias de direita são tão fortes, apesar de,
por exemplo, o conservadorismo britânico, gostava de se dizer que era menos
ideológico, que era uma doutrina pragmática, etc. Mas se formos a ver,
Há dezenas de intelectuais conservadores que escreveram de maneira muito eloquente sobre
o conservadorismo, o que é que inspira, o que é que é
a sociedade ideal para um conservador, mesmo se os conservadores digam nós
não acreditamos em sociedades ideais. Mas isso é um ponto de vista
ideológico. O que os partidos conservadores têm, e acho que é a
grande vantagem, são muito mais disciplinados. Muito mais disciplinados. E porquê? Porque
provavelmente estão mais interessados em ganhar, tanto muito mais interessados na questão
do poder. A esquerda sente sempre um bocadinho embaraçada com o poder,
com a questão do poder e de ganhar o poder. E gosta
demasiado, talvez demasiado não seja a palavra correta, mas gosta muito de
discussão e de debate. E os debates são fantásticos, mas para Quem
vê de fora é uma cacafonia terrível e acaba por ser isso
a que o eleitorado é tratado. É ver as cacafonias da esquerda,
foi isso que nós assistimos durante a liderança do Jeremy Colbyn até
há pouco tempo, eram cacafonias absolutamente terríveis. O eleitorado não gosta de
ver, a imagem que transmitem é de desunião. Portanto, como é que
eles poderão governar o país se não conseguem concordar sobre as coisas
mais básicas? Portanto,
é
esta a conclusão do eleitorado. E de perigo, não é?
Eunice Goes
é muito mais difícil do que manter o status quo, não é?
Claro, sim.
É muito mais difícil. E esse tem sido, aliás, um dos grandes
dilemas da esquerda social-democrata. Estou a escrever agora um livro sobre a
história da social-democracia europeia e um dos grandes problemas que aconteceu na
década de 30 foi, tanto a uma certa altura os sociais-democratas estavam
no poder e não sabiam como gerir uma crise económica brutal, porque
tinham tratados económicos e ideológicos sobre o que fazer numa sociedade socialista,
agora não sabiam como gerir uma crise numa economia capitalista e como
gerir a crise numa economia capitalista de uma maneira social-democrata. E essa
é que era a grande dificuldade. E a partir daí também se
tornou, e agora o que é que fazemos? Porque o Marx e
o Engels também não ofereceram soluções detalhadas, não houve um programa detalhado.
Quando estivermos no poder e depois de termos instaurado a ditadura do
proletariado, que foi interpretada por muitos sociais democratas como a ditadura do
proletariado poderá ser um social-democrata ganhar umas eleições e estar no poder.
O que é que se faz? Quando estão no poder, agora o
que é que fazemos? Não ofereceram esse programa detalhado e o que
é que se faz? Improvisa-se. E no fundo acaba por ter sido
isso, uma crise de improvisação e como nós todos sabemos às vezes
as nossas improvisações funcionam, outras vezes foram da maneira mais desastrosa.
Eunice Goes
Fortes no sentido de estarem em controlo. O bons é uma questão
muito subjetiva. É mais a questão de estarem em controlo, conseguirem impor
a sua agenda. E no fundo uma teoria que há é oferecer
uma série de critérios para depois fazer essas avaliações. E eu acho
que é assim que eles aprendem não só a aplicar teorias e
a perceber que uma teoria na verdade pode ser aplicável a uma
situação concreta, mas conseguem também ver que podem utilizar critérios, não digo
objetivos, mas são critérios claros e transparentes para avaliar determinadas situações. E
assim também saímos das opiniões e mais argumentos. Portanto, argumentos que depois
são baseados em factos, em realidade. Portanto, como é que nós vamos
depois medir. Eu não sou uma politóloga quantitativa, mas acho que é
importante testar determinadas ideias, vendo depois a realidade. Como é que nós
sabemos se o partido, se é que o primeiro-ministro conseguiu impor a
sua visão? Esteve em controle da política governativa? Conseguiu implementar o programa
eleitoral que propôs? Conseguiu implementar? Sim, não, porquê? E então aí ver
a realidade. E acaba por ser uma maneira, sem os alunos se
aperceberem, que estão a aplicar a teoria, porque estão a aplicar aqueles
critérios que tentam explicar o fenómeno, a uma situação concreta. E acaba
por ser quase um exercício de matemática para eles. E acabam por
também produzir trabalho original, interessante, onde eles estão a exercitar os seus
próprios neurónios. Eles estão a analisar em vez de regurgitar o que
é que o manual ou o que é que o texto diz
sobre o fenómeno X ou Y. É assim que eu vejo eles
exercitarem tantas capacidades. Eles gostam. No início é engraçado porque ficam sempre
muito ansiosos, porque é muito diferente do ensaio normal ou do exame
normal, mas depois acabam por gostar do facto de estar em controle
do trabalho, Porque escolhem aquilo que querem fazer e acabam por estar
a ver que estão a pensar, que estão a refletir e que
são as suas reflexões, a seleção de factos e de dados, etc,
que o está a levar a determinadas conclusões. E no fundo, eles
estão a chegar às suas próprias conclusões em vez de serem levados
a concluir uma certa coisa.
José Maria Pimentel
Exato, como te dizia, essa sua iniciativa ficou-me na retina daquilo que
me tinha explicado, que era ainda muito curto, e eu acho que
por três razões. Primeiro, ao fazer isso, como tu dizias, estão a
desenvolver a capacidade de argumentar de uma maneira coerente, de uma maneira
coesa, e não simplesmente ao contrário, como nós fazemos intuitivamente, é que
partimos de uma conclusão que é mais ou menos intuitiva e assumimos
aquilo como verdade sem ir fazer essa desconstrução de tentar mostrar se
aquilo segue objetivamente da evidência ou não, ou seja, simplesmente uma opinião
nossa. Por exemplo, ao fazer esse exercício de construir uma tabela ou
qualquer coisa mais ou menos... E nem tem que ser quantitativa, quer
dizer, tem que ser simplesmente organizada, não é? Em que as premissas
dão lugar à conclusão, desenvolve-se a capacidade de argumentar. Depois tem outro
aspecto interessante que é contrariar a tendência que há muitas vezes no
ensino, sobretudo mais tradicional, que o professor está a passar matéria e
as pessoas estão passivamente a absorver a matéria. E aí ao fazer
esse exercício eles estão a tomar parte ativa, não é? Nós quando
tomamos parte ativa nas coisas... Quer dizer, isto é óbvio, não é?
Até estranho muitas vezes o ensino ser... Insistir tanto nesse lado passivo,
mas todos nós sabemos da nossa vida que quando nós fazemos alguma
coisa ativamente, quando vamos à procura de um determinado conhecimento absorvemos-lo muito
melhor do que quando estamos passivamente a assistir ao mal. Eu próprio,
ao fazer o podcast, noto isso pela maneira como é algo que
eu estou a fazer ativamente. Contacto aquele convidado, vou estudar aquele tema,
estou a ter aquela conversa, quer dizer, uma coisa que a pessoa
está a ter ativamente e ainda hoje me surpreendo muitas vezes com
as coisas que eu me lembro de episódios. Muitas vezes do início
do podcast e às vezes as pessoas falam-me e eu lembro perfeitamente
daquele ponto da conversa porque tive parte da TV e foi ela
que me marcou. E finalmente há um terceiro elemento que eu acho
particularmente interessante aqui, que é essa ponte do ir do concreto para
o abstrato. Porque eu tenho a tese, enfim, eu admito que pessoas
possam ter opinião diferente, mas eu não acho que a mente humana
esteja feita para ser capaz de absorver abstrações no abstrato para se
polimonar, ou seja, para absorver abstrações no vácuo. Aliás, até há investigação
que mostra que os matemáticos, por exemplo, que trabalham basicamente com abstrações
têm uma espécie de pirâmides de abstrações, mas que têm uma base
concreta, ou seja, nós temos que ir do concreto para o abstrato,
nós vamos da nossa experiência concreta, pode ser visual, por ser visual
ou auditiva não deixa de ser concreta, mas vamos dessa experiência concreta,
depois uma abstração que construímos para dar sentido a essa experiência concreta.
E muitas vezes o ensino ao partir das abstrações, ou seja, no
fundo estás a passar um modelo qualquer, muitas vezes, aquela é uma
maneira eficiente, não é? Porque aquilo resulta do debate académico durante décadas
entre pessoas que produziu quase por destilação aquela abstração, aquela teoria, mas
a verdade é que para quem está a ouvir aquilo, como não
passou por essa história, aquilo não entra, ou pelo menos não entra
da mesma maneira. E é engraçado porque eu ainda estas férias estava
a ler um livro que aliás recomendo, que já foi aqui recomendado
no podcast pelo Luís Silva, físico, que é o livro do Richard
Feynman, é uma espécie de livro de memórias do Richard Feynman, um
dos maiores físicos de sempre, que foi para a Minoba, e toda
uma personagem, e o livro chama-se Surely You're Joking, Mr. Feynman. Em
português, depois vejo a tradução, mas há de ser qualquer coisa do
género, deve estar a brincar, Sr. Fineman, ou alguma coisa do género.
E ele tem lá um ponto muito engraçado, que na verdade já
me tinham falado, numa altura em que ele esteve a dar aulas
no Brasil, eu nem sabia disso, e aquilo que ele diz sobre
o sistema de ensino brasileiro, por exemplo, lembrou-me muito aquilo que poderíamos
dizer sobre o sistema de ensino português e provavelmente sobre muitos sítios
do mundo, que aqueles, eles aprendiam, o que ele conta é que
eles aprendiam teorias de forma apenas abstrata e portanto eles conseguiam até
fazer exames e saber aquelas teorias, saber pormenores daquelas teorias, mas quando
ele lhes perguntava um aspecto que correspondia, se quisermos, ao substrato concreto
daquelas teorias, ou seja, aquilo para que elas serviam originalmente, uma pergunta
básica, eles não conseguiam responder, porque tinham absorvido as teorias sem absorver
a prática, sem absorver o concreto, que é aquilo para que servem
as teorias, é uma espécie de paradoxo, não é? Mas isto para
dizer, desculpa, foi um comentário muito longo, mas só para dizer que
acho que esse tipo de exercício é uma coisa que faz muita
falta no sistema de ensino, por estas três razões e até por
esta última de partir do concreto para o abstrato, não é? Que
eu acho que é a única maneira de nós absorvermos verdadeiramente uma
teoria.
Eunice Goes
se percebem disso, é fantástico, é o bingo académico completo, porque significa
que eles estão a exercer as suas capacidades críticas, estão a saber
analisar uma teoria, estão a saber desenvolver os argumentos que vão derrotar
aquela teoria, que vão demonstrar que aquela teoria não é demonstrável ou
que tem fraquezas fortes que questionam a própria validade da teoria e
que poderão vir com refinamentos, propostas, outras maneiras, outras perspetivas de ver.
E quando o estamos a fazer descomplexamos a teoria. Portanto, uma teoria
é só uma explicação para um fenómeno. E
às
vezes as explicações são válidas e aplicam-se a uma série de situações.
Em outras situações as teorias são ultrapassadas pela realidade. Numa altura onde
ter opiniões é coisa mais fácil e mais barata, onde muitas pessoas
não sabem distinguir entre factos e realidade, acho que é extremamente importante
ensinar, ou pelo menos equipar alunos com esta capacidade de criticar e
abordar os problemas destas maneiras. E
Eunice Goes
Sim, aliás, acho de uma maneira geral, os estudantes universitários, esta geração
dos 18, 19 anos, ainda há poucos dias falava com alunos e
eles, onde é que eles obtêm informação? Redes sociais, Instagram, TikTok, Depois
lêem algumas coisas, aqueles que estão no Twitter lêem algumas coisas, mas
não têm quase que a noção de como é que se produz
informação. São coisas que eles lêem aqui a colar, portanto não há
no fundo um filtro sobre o que é informação que foi produzida
por jornalistas profissionais que sabem como tratar dados e jornalistas profissionais ou
empresas mediáticas, quer dizer, há um controle de qualidade. A informação que
se produz não é perfeita, mas há um controle de qualidade que
não existe, por exemplo, alguém a dizer coisas no Twitter, não é?
Qualquer pessoa pode dizer coisas no Twitter.
Eunice Goes
Livros, olha, um livro que eu gostei muito, não é um livro
novo, mas que é um livro que eu acho que explica bastante
do mundo onde nós vivemos e os dilemas governativos atuais, é o
livro da Albina Asmanova, que é Capitalism on Edge e que oferece
uma série de leituras sobre o estado da nossa política. Gosto muito
e acho que oferece muitas ideias sobre como os partidos sociais democratas
poderão ou não responder à sua própria crise. Gostei muito também do
Anticestum Politics do Jonathan Hopkins, que oferece uma interpretação muito interessante sobre
o populismo e o fenómeno do crescimento dos fenómenos de extrema direita
e da direita radical e da esquerda radical também. E no fundo
o que o Jonathan Hopkins diz é que há uma falsa dicotomia
entre tentarmos perceber o fenómeno com uma lente ou identitária ou uma
lente económica. Eu disse que as duas estão mutualmente dependentes uma da
outra e é um livro muito, muito, muito, muito bom. Portanto, esses
são dois dos livros que recentemente eu li. Então, o outro livro
que eu recomendo é o da Katrina Forrester, In the Shadow of
Justice, que é um livro fascinante sobre a influência do pensamento de
John Rawls na política norte-americana. E eu gostei muito desse livro porque
ela acaba por, no fundo, estar a analisar a verdadeira influência que
as ideias de um filósofo tiveram sobre a política norte-americana, mas ela
também tenta explicar qual é que é a origem dessas ideias, quais
é que foram os fatores, o contexto que influenciaram o pensamento de
John Rawls. E o John Rawls foi um dos filósofos mais influentes
do mundo anglo-saxónico dos últimos 50 anos e, para algum mais, é
extremamente bem escrito. Eu estava
José Maria Pimentel
a me lembrar do Rawls há bocado, por acaso, quando estava a
falar do papel das ideias na política, porque é um exemplo interessante,
porque no caso dele é um dos exemplos que mostram que a
vanguarda ideológica tende a estar na academia. Ou seja, os partidos têm
um papel importante, mas normalmente não é no início, não é na
geração das ideias, é mais em dar-lhes corpo. E as ideias dele,
é interessante porque de facto tiveram uma influência grande, mas eu diria
que talvez ainda não tenham tido toda a influência que podem ter,
sendo que em alguns aspectos até talvez... Enfim, não diria que não
estão na moda, mas como não têm tanto enfoque... Embora se prestem
a isso, mas não têm tanto enfoque identitário, acabam por, se calhar,
no momento atual, não estar tão na moda como tiveram há uns
anos, mas parece-me, quer dizer, a minha intuição, mas posso ser parcial,
é que tem potencial para reemergir com mais força, porque acho que
numa sociedade pós-industrial e numa sociedade, quer dizer, e apesar de tudo
é difícil nós livrarmos dessa lógica baseada nos indivíduos, em que os
indivíduos sobrepõem ao grupo, aquilo que ele propõe é difícil de contrariar,
sobretudo quando tens que lidar com questões como, sei lá, justiça intergercional
e coisas desse tipo, não é? Portanto, eu acho que as ideias
dele... Enfim, agora estou aqui numa tangente, mas acho que as ideias
dele têm potencial para ainda vir a influenciar a política bastante no
futuro. Ah,
Eunice Goes
curioso. O livro é extremamente interessante porque quando ela o coloca no
contexto em que o livro foi produzido, a conclusão dela é de
que, pronto, o John Rawls fez uma contribuição muito importante para a
filosofia política, dominou toda a academia anglo-saxónica e todo o debate sobre
teoria política, mas as ideias estão um bocadinho ultrapassadas. Portanto, time to
move on. Temos de nos concentrar, temos de pensar noutros problemas e
noutras ideias. Portanto, a tese é também muito audaciosa, que eu acho
que ela defende bastante bem, mas evidentemente está a ser altamente contestada,
é um livro extremamente estimulante.