#130 Eunice Goes - O que se passa com a política do Reino Unido?

Click on a part of the transcription, to jump to its video, and get an anchor to it in the address bar

José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maní Pimentel e este é o 45°. Muito obrigado aos novos mecenas do podcast, Pedro Gouveia, Mariana Portela, João Jesus, Diego Goulart e, espero pronunciar bem, Andrei Stuart Thompson. Aproveito também para vos convidar a estar presentes no próximo dia 12, quarta-feira, no Festival Fólio em Óbidos. Vai haver às 19h30 uma sessão a propósito do livro Política a 45° com dois convidados de peso que aparecem no livro, Daniel Oliveira e Ricardo Araújo Pereira. O tema será o chamado politicamente correto. Será ele alimentar justiça social ou apenas um ataque encapotado à liberdade de expressão? Esta é uma das clivagens da política atual que eu abordo no livro e talvez aquela em que a discussão tem sido mais confusa. Nesta sessão a ideia é ter uma conversa à três sobre este tema, com esta dupla de peso, sendo que o Daniel e o Ricardo já discutiram este tema várias vezes, a última das quais, ou pelo menos a última de que me lembro, no podcast do Daniel, uma discussão muito interessante, mas que deixou alguns temas por terminar e outros por abordar. A conversa, por isso, promete, gostava muito de vos ver lá. E com isto vamos ao episódio de hoje. Há já alguns anos que a política do Reino Unido está quase constantemente nas notícias. Isto acontece sobretudo desde o referendo do Brexit, em 2016. De lá para cá, a instabilidade instalou-se na política britânica. O Partido Conservador, que tem governado nos últimos 12 anos, já vai, desde 2016, no quarto líder e, consequentemente, o país já vai no quarto primeiro-ministro. A última mudança de pasta aconteceu ainda há menos de um mês, com a saída de Boris Johnson e a vitória de Lee Strasse nas eleições internas de um partido conservador muito dividido. Mal tomou posse, a nova primeiro-ministra anunciou um conjunto de medidas arrojadas, incluindo uma texida de impostos sobre os maiores rendimentos, que tem gerado enormes críticas e mesmo uma reação negativa nos mercados financeiros. Para compreender as origens mais profundas desta instabilidade política, o papel dos dois maiores partidos e as particularidades do sistema político britânico dificilmente poderia encontrar melhor pessoa do que Eunice Goyes, a convidada deste episódio. Eunice Goyes é doutorada em Ciência Política pela London School of Economics e é, há quase 15 anos, professora na Richmond University em Londres. As suas principais áreas de investigação são a política britânica e o papel das ideias e das ideologias na política e nas decisões políticas. Na nossa conversa começámos por examinar as causas desta instabilidade na política britânica, que vão desde o Brexit, à luta entre diferentes fações dentro do Partido Conservador e mesmo à própria arquitetura do sistema eleitoral britânico, que torna muito difícil a eleição pelos restantes partidos e, portanto, a expressão de diferentes sensibilidades no Parlamento. Mas existe ao mesmo tempo em tudo isto um mistério grande. Com esta instabilidade e com 12 anos de governo que o Partido Conservador já leva, como é que o outro grande partido, o Partido Trabalhista, não tem conseguido afirmar-se como alternativa? Isto levou-nos a discutir o alegado viés de direita na imprensa britânica, que é muitas vezes referido pela esquerda naquele país. Seja como for, com ou sem uma imprensa difícil, A verdade é que o Partido Trabalhista vive hoje uma crise de identidade. Essa crise pode ser enquadrada na crise mais geral da social-democracia europeia que, como se recordam, abordei recentemente num episódio com o Pedro Magalhães. Mesmo no final da conversa, tivemos ainda tempo para falar de uma iniciativa inovadora que a convidada tem aplicado nas suas aulas, de forma a melhorar a aprendizagem e a estimular o pensamento crítico entre os alunos. Uma nota rápida, antes de passarmos à conversa, este episódio foi gravado dia 29 de setembro e com o ritmo que a política britânica tem tido nas últimas semanas, É natural que um ou outro pormenor que a convidada refere esteja desatualizado, mas o essencial mantém-se mais do que pertinente. Espero que gostem. Eu nisso gosto. Muito bem-vindo ao 45 Grós.
Eunice Goes
Prazer, muito obrigada pelo convite, muito honrada. É
José Maria Pimentel
um privilégio também para mim, para quem nos está a ouvir, porque muitas vezes nós falamos sobre a política de um determinado sítio, de uma determinada geografia, com pessoas que não vivem lá, faz parte, que estudam aquela realidade, mas não vivem. Ora, tu és cientista política, estudas a política britânica e vives em Inglaterra, em Londres, há imensos anos, o que é, se eu apresento que não faz toda a diferença, não é? Porque tens o conhecimento diário da realidade. E se calhar começamos exatamente por aí, pela política, quer dizer, pelo estado atual da política, no 45°, tento evitar falar de coxa mais vezes, espumas os dias, não é? Portanto, não queria que também perdéssemos aqui muito tempo na atualidade, mas a verdade é que estamos a gravar numa altura em que a Reina morreu, portanto temos o Rei Novo e sobretudo temos um governo novo depois já de um período de grande instabilidade ao longo dos últimos, é possível dizer, 12 anos. O curioso disto é que isto contrasta muito com o que se passava até aqui, quer dizer, eu tenho a ideia que a política britânica era vista até como uma espécie de farol de estabilidade comparada muitas vezes com a política da Europa continental. Nós tínhamos o governo do Partido Conservador durante imenso tempo, só para começar aí, sei lá, com a Thatcher, depois com o John Major, depois tivemos o Blair durante não sei quantos anos, tivemos o Gordon Brown menos tempo, E depois a partir daí, embora tenhamos tido o mesmo partido, tem havido aqui uma alternância grande, quer dizer, depois tivemos mais recentemente o Boris Johnson, que era uma figura tudo menos cinzenta, digamos assim, para ser generosos, e agora com o novo governo da Lease Trust também temos uma, quer dizer, a figura em si não é especialmente colorida, mas em termos de políticas tem nada muito que falar. Portanto, há aqui esta instabilidade que parece contrastar com o que havia antes. Ou então é a impressão minha.
Eunice Goes
Isso é inteiramente verdade. Nos últimos 12 anos têm sido anos de grande turbulência política e económica. Por um lado essa turbulência tanto é o resultado de reação a circunstâncias diversas, a crise financeira 2007-2008, mas há outras coisas de fundo que têm a ver com a política partidária, com a vida dos partidos políticos e em particular do Partido Conservador, que nas últimas décadas se obcecou com uma questão, que foi a questão europeia, e de certa maneira eu acho que nós podemos responsabilizar em parte esta turbulência com essa obsessão com a União Europeia e que levou, portanto, desde o referendo 2016, que levou à saída do Reino Unido da União Europeia e essa questão continua a dominar a política britânica. Portanto, o Brexit continua a ser visto como um projeto que não foi conseguido, que ainda está no processo de ser concluído. O Partido Conservador continua a declarar uma certa guerra à União Europeia, às ideias que a União Europeia promete e o que a União Europeia discute. Portanto, é um pretexto. Mas, ao mesmo tempo, o Partido Conservador transformou-se de um Partido Conservador que era um partido que defendia o status quo, que defendia a Constituição, que defendia uma certa maneira de ver o mundo e que se tornou, e estou a usar palavras de alguns observadores, desde John Gray ao Steve Richards, se tornou-se num partido revolucionário, num partido profundamente ideológico, que até a senhora Thatcher chegar ao poder era um partido muito mais pragmático, que no fundo queria, portanto, o objetivo do Partido Conservador era ficar no poder, governar, manter uma certa estabilidade, manter uma certa ordem social. Era conservar. Queria conservar, precisamente. E que desde 79, tanto desde que a senhora Thatcher ganhou as eleições e que revolucionou a política britânica, essa revolução continuou e tem sido muito visível nos últimos 12 anos. Tem sido um partido que está em plena guerra civil constantemente. E essa guerra civil, e essa é a parte que eu acho que é fascinante, mesmo quando está no poder. Portanto, os conservadores têm estado a governar o Reino Unido desde 2010, primeiro em coligação com os liberais democratas até 2015, e depois sozinhos, às vezes em governos minoritários, agora com governos de maioria, mas já tivemos, acho que desde 2015, quatro primeiros ministros, que é qualquer coisa de extraordinário. Acho que este é o género de cenário que nós associávamos à Itália, do pós-guerra, tanto é essa instabilidade. Ora, essa instabilidade governativa está agora presente no governo do conservador e o que parece estar interessante é que o partido parece estar agora a lançar o país num laboratório de ideias, de taxaristas, monetaristas, é quase como se fosse um seminário da sociedade de Montpérez-Rhin, que agrupava todos os monetaristas e a famosa escola neoliberal, com a diferença é de que, em vez de estarem a discutir ideias de uma maneira abstrata, o partido está de facto a implementar algumas das ideias, não como foram destiladas por Hayek e Friedman e o Lionel Robbins e outros, mas como estão destiladas e simplificadas por muitos dos think tanks que dominam e que têm sido extremamente influentes na política conservadora. Mas tu aí, desculpa, Roberto, tu aí estás a falar especificamente do caso da Lee's Trust porque
José Maria Pimentel
o Boris Johnson, com todas as peculiaridades que ele tinha, dá-me a ideia que não se encaixava tanto neste molde, não é? Não. Politicamente, não é?
Eunice Goes
Politicamente não, mas O partido que ele liderava estava muito dominando por essa corrente política e no fundo o governo do Boris Johnson foi o resultado de várias tensões ideológicas. De uma maneira geral ele representava o que era o chamado One Nation Conservatism, que era um conservadorismo um bocadinho mais paternalista. Havia algumas preocupações com desigualdades sociais e outras questões. Mais próximo,
José Maria Pimentel
se calhar, da democracia cristã da Europa continental, não é?
Eunice Goes
Muito próximo, mas quer dizer, não de uma maneira muito consistente, porque na verdade o Boris Johnson não era muito ideológico. Essencialmente o que ele queria era ficar no poder e ser primeiro-ministro. Mas o partido conservador, desde 2010, muito antes disso, é um partido completamente status gerista, praticamente dominado pelos status geristas. Aliás, Uma das primeiras coisas que o Boris Johnson fez quando se tornou Primeiro-Ministro foi, tanto ele libertou-se, despediu literalmente, uma série de deputados conservadores que tinham uma outra perspectiva das coisas. Tanto que todos os conservadores que tinham uma visão da União Europeia um bocadinho mais positiva, muitos deles eram aliás eurocéticos, mas não queriam o Brexit brutal que acabou por ser acordado. Eles foram todos convidados a ir-se embora do partido. Portanto, no fundo, O partido conservador que o Boris Johnson criou e que está no Parlamento nesta altura é um partido que é 90% taxaristas. Portanto, pessoas que acreditam na força dos mercados, que querem um Estado pequeno, que querem reduzir o Estado por evidência e que querem lançar, começar esta experiência de deixar
José Maria Pimentel
o país à mercê dos mercados. Mas tu estás a associar, se entendi bem, Brexiteers a Thatcheristas. Sim. As duas amostras, digamos assim, cruzou-se nessa dimensão? A minha ideia é que não.
Eunice Goes
Cruzam-se. A senhora Thatcher foi uma das defensoras do projeto europeu nos anos 60, foi uma das impulsionadoras do mercado único também, mas em finais dos anos 80 e início dos anos 90 ela mudou de opinião sobre o projeto europeu e tornou-se uma das críticas mais ferozes da União Europeia e quando ela já estava, portanto, não como líder, mas como líder espiritual do partido conservador, ela foi uma das críticas mais ferozes. Entretanto, Os deputados conservadores que seguiam Thatcher e que a adoravam, que a viam como um ídolo, perseguiram essa tendência e levaram muito mais longe. Portanto, o partido transformou-se de um partido eurocético para um partido eurofóbico. E, de certa maneira, o que os conservadores que defendiam a retirada do Reino Unido da União Europeia, o que eles queriam era viver num sistema internacional onde o Reino Unido não estava sujeito às regras da União Europeia. Queriam, no fundo, transformar o Reino Unido numa Singapura no Tamiza. Aliás, essa foi uma das expressões que muitos dos defensores do Brexit referiram e que utilizaram nas suas campanhas. A ideia era pôr em prática uma visão do mercado e uma visão de sociedade onde os mercados funcionam sem quaisquer regras. E aliás, o governo de Lease Trust já anunciou que vão libertar-se de uma série de legislação europeia, nomeadamente legislação laboral, a lei dos 40 horas semanais, por exemplo, essa é uma das leis que vai ser eliminada, acho que no próximo ano legislativo, e muitas outras, portanto é no fundo a eliminação da proteção social, a redução do poder dos sindicatos, etc, e desenfriar a liberdade do mercado. Portanto, os Estados Chiristas sempre viram a União Europeia e o projeto europeu como uma versão do que é o chamado capitalismo europeu, o capitalismo da Renlândia, como muitos dos economistas descrevem, e querem defender o que é hoje chamado o capitalismo anglo-saxónico, que na verdade nem sequer os Estados Unidos defendem esse tipo de capitalismo hoje em dia, mas é precisamente esse tipo de capitalismo, esse tipo de economia de mercado que o Partido Conservador defende e que desde as primeiras semanas do governo de Lee Strass tem estado a ser em prática. Portanto, a redução do imposto sobre os rendimentos para os contribuintes que ganham mais, portanto, para os milionários, banqueiros, etc. Portanto, uma grande mudança nas leis fiscais do país e que no fundo é essa fiscalidade que eles veem como e será o motor do crescimento económico do Reino Unido. Portanto, todas essas regras, toda essa maneira de gerir uma economia, o Partido Conservador quer essencialmente criar uma coisa completamente nova. É profundamente revolucionário o que está a tentar ser posto em prática neste país, nesta altura.
José Maria Pimentel
Então, mas quer dizer, agora estou com algum receio de entrarmos aqui num rabbit hole do Partido Conservador e entramos aqui em questões menores, mas ainda assim tentando desatar o nó daquilo que tu explicaste. Eu acho que é mais ou menos consensual que a Liz Truss, ou seja, a atual Primeira Ministra é mais tachariana dos últimos primeiros ministros do Partido Conservador, ou mais tachariana desde a tacha em ser sentido, ou seja, as medidas dela têm sido criticadas até dentro do próprio Partido Conservador. Mas há aqui dois factos que eu estou a ter alguma dificuldade em encaixar aqui. Um deles é que se este tachoarismo vem da elite do Partido Conservador, como compatibilizar isso com o facto dela ter sido, na verdade, não ter sido a mais votada entre a elite do partido, não é? Portanto, ela foi votada pelo partido mais ao largo. Por outro lado, se não estou em erro, ela própria era Remainer, não era? Portanto, ela antes, embora depois, como muitos políticos conservadores, por pragmatismo tenha abraçado o Brexit, no inicial era Remainer. E finalmente o Brexit também, claro que isto pode não se aplicar necessariamente ao Partido Conservador, mas mais à população mais abrangente, ou a eleitorado mais abrangente. Mas aquilo que os estudos mostram é que a grande força do Brexit, mais do que estas ideias, foi o receio da anti-imigração, ou seja, mais do que este tipo de questões, enfim, mais de gabinete e de seminários, era o receio que grande parte da população tinha relação à imigração. Como é que tu olhas para estes fatores à luz dessa narrativa da tacharização do Partido Conservador? É
Eunice Goes
uma grande surpresa e eu acho que está muita gente perplexa. Muitos deputados conservadores estão perplexos com as medidas que foram anunciadas nos últimos dias e estão perplexos porque muitos desses deputados conservadores, aqueles que deram a maioria ao partido, portanto a primeira maioria desde 1992, sabem que estão em risco de perder os seus lugares, se as medidas vão avante. Porque o que está a acontecer, portanto com o que foi anunciado, é que em breve toda a gente estará a pagar prestações de crédito à habitação muito mais elevadas do que pagavam há um mês. Tem uma crise energética também para combater e para além do mais ela também anunciou e isso é que é extremamente surpreendente, uma liberalização das leis da imigração. Portanto, ela quer abrir as portas à imigração. Exato. Portanto, parece que a Liz Truss está, no fundo, a tentar implementar um programa de governo que ela considera que é o que o país precisa, sem quaisquer consideração para, portanto, umas eleições que vão ter lugar nos próximos 18 meses a dois anos. Portanto, sem pensar nas consequências eleitorais do seu próprio programa político. De certa maneira, Isto é o que os revolucionários fazem, como pensam que estão corretos, como acham que têm a razão. As consequências eleitorais não é uma coisa que os preocupa, mas não é o que muitos deputados pensam. Muitos dos deputados conservadores. Claro,
José Maria Pimentel
querem manter o seu lugar.
Eunice Goes
Exato. E Vai ser muito interessante ver o Congresso Conservador para ver quem é que vai estar presente, porque muitos deputados já disseram que não vão estar presentes porque vão deixar que o governo justifique as suas próprias medidas. Estas conturbações têm sido um bocado o pão e o queijo e o dia-a-dia do Partido Conservador nos últimos 12 anos, que tem havido um projeto de redução do Estado. Vimos isso com David Cameron e o George Osmond, as políticas de austeridade. A seguir temos o Brexit. Depois de termos toda essa instabilidade gerada pelo Brexit, Houve uma tentativa de resolver os problemas, as causas do Brexit, foi o que Theresa May tentou fazer, mas ela não conseguiu porque o programa que ela tentou trazer para o país era um programa que não era apoiado pela grande parte do partido, inclusive pelo seu próprio governo. Portanto, aí está outra vez os status-shearistas a dominarem completamente a agenda do partido.
José Maria Pimentel
Mas o programa dela, desculpa, era menos status-shearista, não é?
Eunice Goes
Era muito menos status-shearista, aliás, Ela disse coisas que eram heresias completas. Ela defendeu os impostos, que impostos eram o símbolo de uma sociedade civilizada. Ela defendeu também o tentar controlar e regulamentar o mercado. Ela defendeu o papel do Estado na economia. Ela defendeu tomar medidas para proteger os trabalhadores e falou do mal, todas as desigualdades que existem, raciais, económicas, sociais, educacionais, etc. Esse é que são os verdadeiros problemas da sociedade britânica. Ora, essa visão do conservadorismo foi completamente rejeitada pelo seu próprio partido.
José Maria Pimentel
Mas a Liz Truss, desculpa, Liz Truss, quando diz o próprio partido estás a falar da cúpula ou do partido que vota na eleição do líder? A
Eunice Goes
Theresa May foi rejeitada tanto pela cúpula, e a cúpula acaba por ser extremamente dominante, porque é a cúpula que decide qual é que é a política que o governo e que o partido vai adotar em programas eleitorais etc. E depois evidentemente temos o partido, que são os membros, os ativistas, os militantes, que votam na liderança do partido. Mas no Partido Conservador, os ativistas, os militantes, no fundo só têm o poder de votar na segunda volta das eleições do líder. Não decidem a política do partido. Portanto, a Theresa May acabou por ser derrotada pela cúpula do partido, portanto, a bancada parlamentar, o governo e evidentemente, quer dizer, todo o seu programa de Brexit foi rejeitado três vezes no parlamento. E depois a seguir tivemos o Boris Johnson, que era apoiado pelas duas partes do partido, os militantes e de uma certa maneira toda a bancada, porque viram que ele era... Portanto ele ganhava eleições e isso é uma coisa fantástica para qualquer partido. Um líder que é capaz de ganhar maiorias, é um líder fantástico. Mas houve uma altura em que ele se tornou num problema e foi por isso que se libertaram dele este verão e Alistair Ross assumiu as rédeas. E o que aconteceu neste verão foi, portanto, não havia candidatos com imenso talento ou com imensa experiência e acabou por ser metadeua a batalha entre o Rishi Sunak, que era o chanceler do Tesouro, que também é um taxarista, mas é alguém que tem um conhecimento de como é que os mercados funcionam, de alguém que trabalhou na indústria financeira, muito diferente de Liz Trusk, cujo conhecimento da economia, no fundo, se resume aos panfletos que ela leu, que foram publicados pelo Institute of Economic Affairs e outros, que são, no fundo, destilações muito simplistas de como é que os mercados funcionam. Por exemplo, há uns dias tivemos o chanceler do Tesouro a anunciar todo um programa de... Mini-budget. Exatamente, o mini-orçamento E não publicaram quaisquer dados económicos que serviriam de base às propostas e normalmente esses dados são todos publicados por um órgão independente do governo. E o programa também foi anunciado com um mínimo de detalhes. E o espanto foi como é que eles ficaram propriamente espantados com a reação dos mercados. Portanto, a Libra caiu, todo o caos que tem acontecido nos mercados financeiros nos últimos dias, como é que pessoas que alegadamente são defensores do mercado e que conhecem como é que as economias de mercado funcionam, como é que não previram que estas iam ser as reações? Portanto, tem sido um período absolutamente extraordinário, absolutamente extraordinário na política britânica. A Lee
José Maria Pimentel
Stratham, o governo atual e mesmo o Boris Johnson, em termos de sentido, são outliers, são exemplos que não representam para todos os efeitos a visão e a prática mais geral do Partido Conservador. Mas sei lá, o David Cameron, por exemplo, que recebe mais tempo, se calhar está mais próximo daquilo que é o Partido Conservador em situação normal. Se calhar não concordas com isto, Mas estou a tentar pegar num ponto de referência para fazer a comparação com a política, com os partidos da direita da Europa continental. Como é que tu compararias a ideologia, claro que tem várias, mas a ideologia do Partido Conservador com aquilo que é a norma, claro está, também varia e varia bastante mais porque varia entre os países, mas para todos os efeitos aquilo que é a norma dos partidos da direita na Europa continental?
Eunice Goes
É uma excelente pergunta porque o Partido Conservador neste momento parece uma híbrida ideológica, portanto combina de um lado toda a defesa do liberalismo económico, que de certa maneira era a matriz do Partido Conservador e tem sido a matriz do Partido Conservador desde os anos 80. Por outro lado, o Partido Conservador assumiu muitas das características da direita radical e de muitos dos partidos da direita radical europeia. Portanto, as posições em relação desde imigração, políticas de asilo, nacionalidade, etc. As questões todas da política identitária. Em muitas áreas o Partido Conservador é muito parecido com os partidos da direita radical. Aliás, foi muito interessante ver esta semana a reação da Liz Truss às eleições italianas. Ela saudou a Meloni, que é, portanto, alguém que vem da direita radical. Alguns analistas falam mesmo do neofascismo. Eu não sou especialista do fascismo, portanto não vou enverdar nesse debate, mas a Melónia não é uma...
José Maria Pimentel
Ela está na direita radical, claramente. Ela
Eunice Goes
é uma direita radical, não é uma direita tradicional, não é uma direita da democracia cristã. E é extremamente interessante que a Liz Truss decidiu que era muito boa a ideia de felicitar a Melonia pelos resultados eleitorais e ao mesmo tempo a Liz Truss diz que não sabe muito bem se a França de Macron é um aliado ou um inimigo do Reino Unido. E o Macron, quer dizer, é uma pequenininha direita liberal francesa. Ele não se situa na esquerda, portanto ele está no centro, mas o centro-direita principalmente em termos de política económica francesa. Portanto, acho que isso nos diz qualquer coisa sobre onde é que está o Partido Conservador no panorama partidário europeu. E é também interessante ver o que é que os conservadores britânicos fizeram na altura do David Cameron, que foi sair do bloco centrista, do centro-direita europeu para criar um novo bloco, portanto, pelas razões deles. Mas quem é que faz parte desse bloco europeu? Portanto, é essa direita liberal, radical, essencialmente da Europa de leste e central, e não aquela direita tradicional a que o Partido Conservador normalmente se aliava.
José Maria Pimentel
E isso tem alguma coisa a ver também com a própria arquitetura do sistema político, porque o que é normal em outros sistemas políticos é tu teres uma direita, por exemplo, com mais do que um partido. O Itália é o exemplo óbvio disso, e se lá é mesmo Portugal e outros países. No caso do Reino Unido, aquilo não é um sistema de dois partidos, mas não está muito longe. Temos os Lib Dems, que têm sempre dificuldade em eleger, até por causa do sistema eleitoral. Depois temos o Scottish National Party, mas é um partido regional, não é? E depois acho que os Greens praticamente nem elegem, não é? E depois temos o antigo UQIP, mas são tudo coisas muito mais pequenas. Portanto, na prática o sistema sempre esteve e continua a estar, para todos os efeitos, na prática dividido entre os dois partidos.
Eunice Goes
Eu acho que tens razão. O facto do Partido Conservador ser esta grande tenda ideológica, que agregava uma direita moderada, uma direita paternalista, quase da democracia cristã e estes elementos mais extremos, Sempre foi essa a realidade. A teoria que se dizia sobre o sistema eleitoral britânico, portanto o sistema maioritário, era de que este era o melhor sistema eleitoral para evitar, portanto, a aparicião de partidos extremistas. E é verdade que o sistema eleitoral britânico não tem um partido comunista, não tem um partido da extrema esquerda, não tem também um partido fascista ou neofascista representado no Parlamento.
José Maria Pimentel
E o Keepe, que é assim um bocadinho... Não está muito longe, não é?
Eunice Goes
Conseguiram eleger uma vez um deputado, mas foram tudo defecções do Partido Conservador, mas o Partido Conservador acabou por esconder muitas destas visões mais extremas na sua tenda.
José Maria Pimentel
Para absorver, sim, sim. E
Eunice Goes
muitas das posições do Partido Conservador, especialmente em questões de política de imigração, são posições que são partilhadas pela direita radical europeia. Portanto, é um daqueles problemas que o sistema eleitoral britânico não resolve. Se antigamente eram dois partidos, portanto, tínhamos um bloco de esquerda social-democrata e o partido conservador que era dessa direita respeitável, isso tem vindo a mudar desde o quê? Desde os anos 70, porque o que nós temos assistido é um comportamento eleitoral que é o comportamento eleitoral de um eleitorado que é diverso e que quer votar noutros partidos, mas temos um sistema eleitoral que é um espartilho completo e que não deixa essas forças políticas expressarem-se na Câmara dos Comuns. E isso depois dá lugar a excreções como o UCEP, que em 2015 obteve um resultado extraordinário. 3 milhões de pessoas, quase 4 milhões de pessoas votaram no partido do Nigel Farage, mas no entretanto o Yoquieb desapareceu, portanto agora temos um outro partido que é o Brexit Party, mas de certa maneira o Partido Conservador absorveu todo esse eleitorado nesta tenda desde 2019. Portanto, um partido que era moderado de direita agora absorve também todo este eleitorado que não é tão moderado. É de direita, mas não é tão moderado.
José Maria Pimentel
Tu dizias que o sistema eleitoral os prejudica por causa dos círculos unionominais, não é? Por causa da... Exato. Não sei como é que se diz isso em português, porque se for espaço de aposto, fica à frente, ganha aquele assento parlamentar, não é? Exato. Os partidos portugueses têm uma dificuldade grande em... Com uma votação baixa, se não ficarem em primeiro lugar não conseguem ganhar nenhum assento, não é?
Eunice Goes
Exatamente. É preciso ter uma grande representação, muito apoio numa zona geográfica forte, aliás é por isso que o Partido Nacionalista Escocês se sai tão bem, porque beneficia precisamente do sistema. Para partidos mais pequeninos, Os verdes são um exemplo. Tem um único deputado, o que é extraordinário no panorama europeu. Os partidos verdes têm uma representação muito, muito mais forte. E até mesmo os liberais democratas têm vindo a perder alguma expressão no Reino Unido porque, entretanto, os dois partidos continuam a absorver imensos eleitores ou conseguem eleger bastantes lugares mas há um desequilíbrio muito grande porque o sistema eleitoral já não está a produzir de uma maneira sistemática as maiorias e os governos-estavas que supostamente deverá produzir. Uma das defesas do sistema eleitoral britânico era de que este é um sistema eleitoral que, bom, não é perfeito, mas vai nos dar a estabilidade governativa, vai nos dar governos estáveis, não vamos ter nada desses compromissos, esses governos de coligação, onde o que os governos no fundo acabam de decidir é tudo acordado em salas fechadas, não é minimamente democrático. Ora, isso já não é verdade desde 2010, porque tivemos um governo de coligação em 2010 e 2015, depois uns governos minoritários e entretanto mesmo em 2019 o Partido Conservador ganha uma maioria incrível e estamos no segundo Primeiro-Ministro desde 2019. Portanto, há aqui uma turbulência no sistema político que nos diz qualquer coisa sobre o que é que está a acontecer, a turbulência no Partido Conservador e esta turbulência ideológica, mas ao mesmo tempo temos também uma situação económica e social de grande instabilidade. Há uma grande insegurança popular, é a sensação de que o sistema político não está a dar às pessoas aquilo que era normalmente esperado e essa imprevisibilidade, no fundo, vai gerando ainda mais turbulência. E, entretanto, o sistema eleitoral está paralisado porque continuamos a eleger deputados da mesma maneira de sempre. Portanto, é uma crise que não se sabe muito bem como é que vai ser resolvida. Talvez com a eleição de um partido trabalhista para o governo, que não está de maneira nenhuma garantida, mas eu digo isto porque os trabalhistas decidiram esta semana que são a favor da reforma do sistema eleitoral. E essa é uma reforma que costumava ser defendida por tanto grupos, pelos pequeníssimos, eram essencialmente os liberais democratas a defender a…
José Maria Pimentel
As mil mais a ganhar.
Eunice Goes
Exatamente. E hoje em dia tornou-se uma questão de uma causa mainstream. Aliás, leem-se artigos na imprensa de uma maneira geral de vários colonistas que antigamente não diriam nada sobre o sistema eleitoral e que dizem que é preciso fazer qualquer coisa para tornar o sistema mais justo, porque no fundo o que está a acontecer é que o sistema eleitoral não está a traduzir o voto do eleitorado, não está a traduzi-lo nos lugares no Parlamento. Portanto, há uma dissonância muito grande entre a forma como as pessoas votam e os resultados que depois nós vimos a seguir às eleições. E isso acaba por ter depois efeitos muito perversos e um desses efeitos é o convite à abstenção eleitoral. Porque se uma pessoa pensa que eu vivo numa circunscrição conservadora e eu sou verde, não vale a pena eu ir votar. Porque é que
José Maria Pimentel
eu vou sair de casa, claro.
Eunice Goes
Exatamente. É um desincentivo muito, muito, muito grande.
José Maria Pimentel
É como nos Estados Unidos, os Estados Unidos têm um problema semelhante, aliás, falei disso aqui no podcast, no episódio com a Mafalda Pratas, exatamente sobre isso. Olha, e do lado do Labour, do lado do Partido Trabalhista, porquê é que eles não têm sido capazes de aproveitar esta instabilidade?
Eunice Goes
Tantas questões, tantas razões, são tantas as razões pelas quais eles não têm conseguido aproveitar essa instabilidade. Temos a própria crise do Partido Trabalhista, que tem estado em crise identitária desde 2010, que teve também tantos líderes que tentaram várias soluções, umas mais centristas, outras mais à esquerda. Temos agora o Kia Stoma, que a uma certa altura parecia que estava a tentar reeditar o New Labour do Tony Blair e que está agora a tentar criar uma síntese entre alguma das coisas que o New Labour propunha. New
José Maria Pimentel
Labour é a versão mais centrista. Exato,
Eunice Goes
aparecer como um partido mais centrista, mas um partido mais centrista mas que está a tentar resolver os problemas do século XXI em vez de estar a falar como se estivesse a governar nos anos 90, que era o caso do New Labour de Tony Blair. Portanto, demorou algum tempo para o Keir Stamass afirmar como líder. Ele passou os últimos anos, sem dizer muito, sobre o que é que ele deicionava fazer. Portanto, essa indefinição não ajudou. O partido estava também, não diga em guerra civil, mas não estava propriamente confortável consigo próprio. Portanto, houve ali um esforço muito grande para tornar o partido muito mais consensual. Cantar aliar as alas esquerdas e do centro e da direita, mas de certa maneira a ala esquerda do partido perdeu completamente a sua voz ou o poder, portanto tem muito pouca influência no que o partido tenta obter. Mas os trabalhistas também confrontam-se com uma grande dificuldade nos debates britânicos. Eles têm uma imprensa que é profundamente hostil ao Partido Trabalhista. Portanto, essa tem sido um bocadinho a história do Partido Trabalhista, desde a sua fundação. Temos uma imprensa conservadora que é extremamente poderosa e que controla títulos muito importantes, desde o Daily Mail, o Daily Express, o Sun, o Time, de certa maneira. E essa imprensa continua a ser, portanto, já não é tão líder como era, mas continua a ser extremamente influente porque, no fundo, controla, portanto, o vento do debate político. E como é que eles controlam isso? Mas tu tens,
José Maria Pimentel
desculpa, tu também tens jornais à esquerda, não é? O Guardian, o Mirror.
Eunice Goes
Tem, existem. Muito menos, não é? Mas são muito menos influentes, porque como é que Depois o debate se faz na política britânica. Temos depois organizações como a BBC e outros canais de televisão e de rádio que acabam por seguir as vozes mais fortes e as vozes mais fortes são, portanto, a imprensa conservadora que é numericamente muito mais influente e poderosa do que a imprensa do centro-esquerda, que é o Guardian, o Independent. O Financial Times não é do centro-esquerda, mas tem sido um contraponto à imprensa conservadora e é muito difícil, muito, muito, muito difícil combater certas narrativas. Qualquer proposta feita por um líder trabalhista é imediatamente destruída. Portanto, eles são comparados ao Stalin, aos Chávez da Venezuela. Qualquer proposta do mais moderado, do mais social-democrata que poderá ser feita, é retratada como se fosse a proposta de uma revolução proletária. Portanto, é extremamente difícil vingar porque depois todo o debate é controlado e tem que se desenvolver seguindo determinados parâmetros. Por exemplo, quando foram as políticas de austeridade que tornaram a crise muito mais longa, que aumentaram o déficit orçamental do país. Durante esse período de 2010-2015, o Partido Trabalhista, que na altura era liderado pelo Ed Miliband, tentou propor uma outra leitura da crise, uma leitura mais keynesiana da crise e soluções mais keynesianas, ele não teve quaisquer oportunidade de ser ouvido e de apresentar o seu caso porque não havia espaço. A ideia de que a austeridade era a solução para a crise e era a solução também para o crescimento económico era apresentado como se fosse um facto científico completamente acrítico. Então,
José Maria Pimentel
mas espera, eu aqui no podcast gosto de fazer da advogada do diabo e aqui neste caso eu não conheço obviamente a realidade britânica mas conheço a realidade portuguesa e o viés dos média é um destes temas engraçados que, no caso português, não aprende-mos para todos os lados. Eu ouço frequentemente pessoas dizerem-me, a nossa imprensa é toda de esquerda, queixarem-se e outras dizerem-me, a nossa imprensa é toda de direita, o que são, obviamente, factos incompatíveis entre si. No caso do Reino Unido é mais ou menos consensual que há mais jornais de direita e sobretudo em termos de número de leitores do que de esquerda. Mas por outro lado, nós temos por um lado, existe a BBC, não é que na preparação da conversa até apanhei aqui um inquérito do Pew Research Center, e que a BBC continua a ser para metade, basicamente, da população seja à direita ou à esquerda a principal fonte. E a BBC, à partida, não só tem um compromisso de imparcialidade, como tem poder de fogo para ser imparcial. E por outro lado, quer dizer, no mercado em que existem jornais de direita, mas também existem os jornais de esquerda, existe o Guardian, que é um enorme jornal, até mais em termos de circulação mundial do que se calhar no Reino Unido, mas quer dizer, é obviamente uma referência, o Mirror Independent, há aqui uma concorrência entre mercados, quer dizer, isto não tem também a ver com... Não sei se percebes o que eu quero dizer, uma coisa era, se nós tivéssemos, não, naquele país é silenciada a imprensa de esquerda, ou é silenciada a imprensa de direita, Não é o caso, não é? Não. Ela existe, não é? Só que não consegue...
Eunice Goes
Não tem a mesma projeção. Não tem a mesma projeção, não tem o mesmo poder. E, por outro lado, a BBC, portanto, tem esse compromisso de neutralidade, de imparcialidade, portanto, é um public service broadcaster, como há poucos. Eu sou uma grande defensora da BBC. Agora, também é verdade que, em particular, na produção nacional, portanto o que são as rádios nacionais e as televisões nacionais, A cobertura política da BBC acaba, no fundo, por seguir a direção do debate nacional. Ora, se o debate nacional é liderado e conduzido pela imprensa direita, é essa direção do vento que a BBC vai seguir. E vimos isso, por exemplo, na cobertura do Brexit, como é que o referendo, toda a campanha do referendo foi coberta pela BBC e houve um estudo muito interessante da Reuters, do centro de jornalismo da Reuters em Oxford, que mostrou que, por exemplo, a BBC tinha muito poucos especialistas a falar, havia muito mais proponentes do Leave do que do Remain, as questões que eram colocadas tendiam a enquadrar-se muito mais na agenda do Leave do que do Remain e o mesmo aconteceu, por exemplo, com a crise financeira. Quais é que eram os economistas que eram ouvidos pela BBC? Essencialmente os economistas da indústria financeira, muito poucos economistas académicos ou universitários, muito poucas vozes da sociedade civil, de cidadãos. Portanto, na seleção das vozes que se faz, portanto, quando se está a contar uma história, o debate acaba por ser, e a questão acaba por ser enviesada, acaba por haver só uma outra leitura. É inevitável. Quer dizer, uma cobertura jornalística verdadeiramente justa teria que enquadrar uma grande diversidade de pontos de vista. Ora, isso não aconteceu. Quando só se houve um certo ponto de vista. E depois a BBC faz uma outra coisa. Eles também têm uma série ou uma série de programas, que são programas de discussão e de debate, onde eles encontram e convidam pessoas dos vários quadrantes políticos, mas quando esses debates são conduzidos para, no fundo, gerar o maior número de ratings de audiências, o debate vai ser polarizado, vão ser posições que estão em contraste consigo mesmas, em vez de ser um debate talvez mais racional, talvez menos chitante, mas provavelmente mais realista de como é que devemos pensar ou como é que determinados assuntos deverão ser pensados. Por exemplo, a emergência climática. Esse é um debate extremamente importante para a nossa geração. Ou
José Maria Pimentel
seja, desculpa, achas que é uma abordagem conservadora em sério sentido? Não no sentido do Partido Conservador, mas no sentido do status quo, por extremar as posições, criares uma certa aversão à mudança.
Eunice Goes
Exatamente, e eu acho que isto se observa não só em Inglaterra e nos mídias britânicos, mas eu acho que é, e sensacionalmente, observa-se em quaisquer ecossistema mediático, pelo menos na Europa e nos Estados Unidos, vê-se muito essa tendência, portanto essa ideia de que têm que se trazer posições que estão em completo contraste umas com as outras e que no fundo, quer dizer, não há quaisquer diálogo possível. É uma gritaria. O que o público tem é uma gritaria que acaba por delegitimar quaisquer ponto de vista. Eu vejo isso em conversas com os meus alunos. Factos transformam-se em opiniões e depois todas as opiniões são legítimas. Portanto, acaba por ser uma questão de preferência pessoal em vez de estar a ponderar factos, estar a ponderar evidências, circunstâncias, etc. Portanto, não há quaisquer nuances nestes debates e dessa maneira estamos a enviesar o debate numa direção e estamos a defender no fundo a defesa do status quo porque ninguém avança, a discussão não avança em nenhuma direção, são tudo opiniões, toda a gente está a defender opiniões diferentes, portanto não leve nada deste debate para além de aprender um argumento ou outro que poderei utilizar noutras discussões, mas não se aprende nada nestas discussões. Acho que chegamos a um ponto que não é muito saudável para as nossas democracias, não é muito saudável para a nossa política, porque chegamos a empates e impasses governativos muito difíceis e onde problemas complicados, que têm factos complicados e que exigem um esforço intelectual cognitivo de perceber, ninguém está disposto a fazer esse esforço e perdemos todos.
José Maria Pimentel
Sim, esse é um ponto interessante. Tu achas que isso tem sido uma das dificuldades do Labour? Eu pergunto isto porque é bastante discutível dizer que as ideias de esquerda são mais complexas do que as de direita. Não me parece que seja necessariamente o caso. Mas no caso, se olharmos para os últimos anos da política britânica, houve a tentativa da parte do Ed Miliband, por exemplo, sobre quem tu escreveste um paper, mas também no caso do Corbyn, embora mais ou menos no mesmo ponto ideológico, mas de uma natureza um pouco diferente, eram ideias com caráter um bocado inovador. Inovador aqui sem querer dizer que eram boas, mas eram ideias que convidavam olhar para o mundo de maneira diferente, se quisermos. Que se calhar esse clima tornou independentemente do mérito que elas tinham mais difíceis de passar. Foi
Eunice Goes
exatamente isso o que aconteceu e aliás uma das coisas interessantes com o projeto do Hermeleben foi que anos depois os governos conservadores adotaram alguma das medidas e das propostas que na altura a imprensa conservadora comparou ao Stalin e ao Chávez e uma delas tinha sido o controle tanto dos preços da energia, em que as fornecedoras energéticas não poderiam cobrar mais do que X aos consumidores. Ora, isso foi uma política que foi adotada pelo governo conservador. Na altura foi apresentada como se fosse qualquer coisa vinda da Venezuela.
José Maria Pimentel
Isso é um bocado especial também porque, entretanto, os eventos forçaram muitos governos a tomar medidas a esse nível que não estavam à espera. Contribua Para a continuidade e crescimento deste projeto, no site 45graus.parafuso.net barra apoiar. Veja os benefícios associados a cada modalidade e como pode contribuir diretamente ou através do Patreon. Obrigado.
Eunice Goes
Mas voltando à questão do labor, os mídias são um grande problema, mas neste não é o único problema do Partido Trabalhista. Faz-se
José Maria Pimentel
a questão da identidade do partido. A identidade
Eunice Goes
do partido. O partido estava um bocadinho perdido, sem saber muito bem o que era. Mas, por outro lado, o partido também estar a concorrer a eleições e tentar ganhar eleições num sistema eleitoral maioritário torna extremamente difícil a tarefa de criar uma coligação eleitoral que tente lhes dar uma maioria. E o que aconteceu ao Partido Trabalhista é que o Partido é atualmente o Partido Popular nos Centros Urbanos, que é apoiado pelos jovens, de uma maneira geral, mas que perdeu o apoio das áreas tradicionais, industriais, pós-industriais, e que elegiam o Partido Conservador. Portanto, trabalhistas.
José Maria Pimentel
O que tu descreveste é a crise dos partidos da socialdemocracia europeia. Basicamente é isso. Exato.
Eunice Goes
E que começou no Reino Unido, começou a ser visível em 2015, quando o Partido Trabalhista perdeu a Escócia. O Partido Trabalhista costumava ser um muito poderoso, muito influente na Escócia, portanto começou por perder aí eleitorado e nas últimas eleições, 2019, perderam o que é chamado à Red Wall, portanto todos os lugares que nos últimos 100 anos, muitos deles nos últimos 100 anos, tinham elegido deputados trabalhistas eleição após eleição após eleição. Portanto, 2019 foi o culminar, portanto, da perda de popularidade dos trabalhistas. Ora, o que é que aconteceu? Evidentemente é um eleitorado que está envelhecido, é um eleitorado talvez menos bem educado, portanto menos formação académica do que o eleitorado das cidades, é um eleitorado que votou para o Brexit, portanto que queriam sair da União Europeia, um eleitorado que estava preocupado com a questão da imigração e a dificuldade para o Partido Trabalhista é, no fundo, criar um programa que reconcilie… Que agrave os dois, não é? Exato. O que é extremamente difícil, porque os jovens dos centros urbanos que têm formação universitária, estão habituados, portanto, são a favor da imigração, têm valores cosmopolitas, liberais, etc. Vão querer um tipo de política muito diferente do eleitor de Red Wall, que é hostil à imigração, mas mesmo as superioridades económicas são diferentes. Uma das coisas que se descobriu nas eleições de 2019 é que grande parte desse eleitorado de Redwall são proprietários, portanto têm as suas próprias casas. O eleitorado jovem britânico está a ser afetado por uma das maiores crises da habitação do país. Mesmo com salários elevados não conseguem viver
José Maria Pimentel
bem em
Eunice Goes
cidades caras como Londres. É difícil criar esse programa eleitoral que vá reconciliar e que atraia estes dois tipos de eleitorados. Eu acho que o que a Stauma vai beneficiar, portanto, da impopularidade que o Partido Conservador está a atravessar nesta altura e então se a crise económica continuar os conservadores vão perder um bocadinho a reputação de boa gestão económica e é sempre nestas circunstâncias que os trabalhistas ganham eleições. Foi assim em 97, foi assim na altura do período do Harold Wilson, nos anos 60 e no início dos anos 70, nos anos 30 também. Foi assim que o Partido Trabalhista conseguiu ganhar eleições, portanto foi beneficiar da incompetência ou percepção de incompetência dos conservadores no governo. Mas no fundo, se for esse o caminho, acaba por não resolver, portanto, a crise identitária do Partido Trabalhista e que é talvez um dos sintomas da crise da socialdemocracia europeia mas que se manifesta de maneiras diferentes noutros países.
José Maria Pimentel
Eu ia-te perguntar isso, o que é especial no caso do Reino Unido?
Eunice Goes
Eu Acho que o que é especial no caso do Reino Unido é esse sistema eleitoral que no fundo só dá espaço a um único partido do centro de esquerda.
José Maria Pimentel
Mas isso é bom para eles.
Eunice Goes
Isso é bom para eles, mas também lhes cria dificuldades porque significa que vão ter que criar um programa de compromisso. Ou seja,
José Maria Pimentel
é bom para o Labour, mas é mau para a esquerda.
Eunice Goes
Nem sei mesmo se será bom para o Labour, porque cria incompatibilidades, cria problemas em termos de criar um programa coerente, um programa de governo que é coerente. E essa tem sido a dificuldade da última década, criar esse programa eleitoral coerente, que de certa maneira responde ao que as populações urbanas e jovens desejam e aspiram e um eleitorado suburbano mais velho e que tem preocupações muito diferentes do que os homens e isso era muito notório nas questões de cultura, questões de identidade, questões de imigração, que se tornaram nos últimos anos polos de grande contenção na política britânica e no debate nacional. Aliás, como em Portugal. São questões que cada vez se falam mais, cada vez ocupam mais espaço mediático.
José Maria Pimentel
Portugal, apesar de tudo, quer dizer, do ponto de vista do debate público, claro que sim, mas do ponto de vista eleitoral, somos apesar de tudo ainda uma exceção. É esta tendência, não é? Porque nós, essa crise da social-democracia europeia, e quando falamos, é preciso sempre dizer isto, no caso português, estamos a falar do PS, não é? Na verdade estamos a falar da esquerda, a coligação antiga ainda se mantém, não é? Ao contrário dos outros partidos da área da social-democracia nos outros países europeus, em Portugal ela está, pelo menos até ver, que essa coligação continua forte, ou seja, não se sente esse espartilhar do eleitorado.
Eunice Goes
Não, aliás, o que nós observamos em países como em Portugal, tanto com o Partido Socialista, os Sociais Democratas Alemães também, o que nós observamos é que estes são partidos que tendem a atrair um eleitorado muito mais velho do que os partidos da esquerda radical. Eu diria que na Europa e na Europa da União Europeia o grande problema de socialdemocracia tem sido, no fundo, o espartilho de políticas económicas que são, portanto, impostas que fazem parte da União Europeia e em particular da moeda única. Eu acho que o António Costa foi dos poucos primeiros ministros socialistas que disse que havia uma certa incompatibilidade entre a socialdemocracia e as políticas da moeda única. Portanto, não é possível ter políticas sociais democratas na atual conjuntura da moeda única por causa do espartilho governativo, as políticas de déficit, a grande preocupação com a inflação e em particular com manter a inflação a 2%. Portanto, a moeda única, a arquitetura europeia, não permita governos sociais-democratas a serem muito ambiciosos com as suas políticas. E o eleitorado de esquerda, o eleitorado social-democrata, espera um certo investimento em serviços públicos, espera uma certa defesa do Estado de Previdência, de políticas sociais, desde apoio à infância, à educação, etc. Ora, isto não tem sido possível conduzir este tipo de políticas nos últimos, o quê? 20 anos. Aliás, quando olhamos para a Europa do Sul, Portugal, Espanha, Itália, Grécia, a moeda única tem sido um grande problema porque os governos estão sempre naquela lufa-lufa de tentar cumprir as metas do déficit, da dívida pública e tudo mais e é essencialmente impossível a investir na infraestrutura que poderá tornar estas economias muito mais competitivas do que são na atualidade. Aliás, e temos visto como o Costa tem tentado alterar o debate na União Europeia. Eu acho que temos agora uma certa janela de oportunidade para algumas mudanças nas políticas da União Europeia, em particular da moeda única, portanto o Pacto de Estabilidade e Crescimento. O governo alemão parece muito mais aberto, no fundo a libertar a União Europeia do ordo ao liberalismo, que no fundo acaba por ser a estrutura governativa da moeda única. E se assim for, a socialdemocracia europeia terá uma maior chance de triunfar nas eleições. Se vermos, por exemplo, o que aconteceu aos socialistas franceses, desde o François Hollande, que ainda me lembro, parece que foi há 20 anos, mas não foi. Quando ele foi eleito ele tinha prometido virar a página da austeridade e essencialmente ele não pôde fazer isso. Não foi possível. Não era essa a ortodoxia macroeconómica na União Europeia. Ele não pôde virar a página austeridade. Ninguém pôde virar a página austeridade. E os partidos do centro-esquerda, os sociais-democrata e europeus, têm sido castigados pelos eleitorados precisamente por isso, porque têm governado com partidos do centro-direita. E no fundo, em democracia nós precisamos de escolha, não é? Os eleitorados precisam de ter alguma escolha. Ou votam para partidos da direita ou de esquerda. Quando Os partidos de centro-esquerda governam da mesma maneira que os partidos de centro-direita, mas vale votar para a centro-direita, não é? Ou para a direita, porque acaba por ser o produto mais genuíno e que mais garantias oferece ao eleitorado. Portanto, a socialdemocracia europeia acaba por ter desafios diferentes da socialdemocracia britânica. O eleitorado tem determinadas expectativas de como um governo de centro-esquerda deverá governar. Os trabalhistas não têm um Banco Central Europeu a impor-lhes regras ou uma comissão europeia a dizer-lhes que não podem gastar, não podem investir aqui ou acolá, ou reduzir impostos ou assim, mas têm outros condicionantes. Eu acho que tem os mídia que não lhes permite determinadas posições, portanto acabam por ser eleitos em programas muito mais conservadores. E eu acho que a única possibilidade, portanto, de alguma mudança é esta abertura que nós temos visto desde o início da pandemia, que parece uma certa flexibilização das regras orçamentais em Bruxelas, portanto elas foram pausadas. Agora temos este programa incrível de investimento que vai permitir aos governos europeus no fundo serem ordo-liberais ao nível nacional, mas entretanto estão a aproveitar todos os fundos que vêm da União Europeia para fazer os investimentos que precisam em infraestrutura, energias renováveis, etc, etc. Portanto, será um novo caminho, mas eu acho que também está a haver uma certa, um certo repensar entre aqueles que são os grandes defensores do tal ouro do liberalismo que tem governado a Europa nos últimos 20 anos. Acho que tem havido uma certa constialização de como é que a Meloni, a Le Pen e outros fenómenos da direita radical chegaram ao poder ou estão próximos do poder. Sim, concordo. Tem a ver com o sentimento de insegurança muito grande, a precariedade, que é generável em toda a Europa, o sentimento de que já não há empregos que são para a vida ou que garantam certos direitos laborais e civis, as certezas que existiam, as certezas mesmo em relação ao Estado de Previdência, isso foi tudo perdido nos últimos 20, 30 anos, tem vindo grandes políticas e uma orientação muito mais austeritária, muito mais monetarista e que talvez um virar de página, uma nova reinterpretação de como é que a governação econômica deve ser feita, criará um espaço para talvez essa socialdemocracia mais tradicional reemergir. Mas isto são tudo, estamos nos tempos iniciais onde, quer dizer, tudo poderá
José Maria Pimentel
acontecer. No terreno da conjetura. Exatamente. Eu partilho a tua intuição de que várias destas medidas são uma tentativa de resposta do sistema à ascensão do populismo pela via mais fácil que é a via económica, porque outra via é muito mais complicada. Enfim, não tem de todos soluções fáceis e a via económica, ou seja, no fundo, permitir que as pessoas não sintam que estão a ser deixadas para trás ou que estão a viver pior do que a geração dos pais, impedir que isso aconteça. A minha intuição quando esses problemas foram anunciados foi exatamente essa. Em relação àquilo que tu dizias da socialdemocracia, eu a isso sou um bocado mais cético, ou seja, inclino mais para achar que a crise da socialdemocracia europeia tem a ver com o modo como foi evoluindo o seu eleitorado ou como ele se foi partindo entre uma população mais urbana, mais educada e uma população mais rural, mais velha, do que propriamente com esse tipo de despartilhos por várias razões. Primeiro, eles mudam de país para país. Por exemplo, o caso do euro, o caso de um banco central que controla a inflação. Isso é verdade em qualquer país que tenha um banco central independente. É verdade na Alemanha também e é verdade no Reino Unido. No caso do euro enquanto moeda, de facto é muito defensável, há muitos economistas que defendem isso, que os países da chamada periferia foram prejudicados, entre os quais Portugal, cujas economias se tornaram menos competitivas por causa disso. No caso de Portugal, por exemplo, é justamente um país em que a social democracia não está em crise. A social democracia até está mais em crise nos países mais do centro da Europa, que estão mais dentro desse sistema. Ou seja, o que eu quero dizer é que o que me parece que é mais difícil é estes partidos do centro-esquerda terem medidas como tu dizias que agradem a toda a gente e depois muitas vezes para saírem de... Depois há outra condicionante, essa sim que me parece relevante, que é, se quisermos, da globalização, ou seja, dos mercados, do FMI, do sistema de comércio internacional, quer dizer, tudo isso cria... As economias já não podem viver fechadas sobre si mesmas, não é? Portanto, um governo de esquerda não pode tomar medidas muito radicais sem querer sofrer as consequências. Mas também há o problema de conseguir vender determinadas ideias junto do seu eleitorado. E aí tu tens medidas que podem ser boas para esse eleitorado redbull que tu odias, mas menos boas para o eleitorado urbano. Mas também tens medidas, o que me parece ser um problema mais difícil de resolver. Também tens ideias que pela sua natureza são mais facilmente aceitos por um eleitorado mais escolarizado do que por um eleitorado menos escolarizado e mais velho, por exemplo. Eu estou-me a lembrar do teu paper sobre o Ed Miliband, que ele tinha aquela ideia de... Enfim, era um conceito que era tirado do Académico Americano do pre-distribution, cuja ideia, e corri-me se estiver a traduzir isto mal, era em vez de nós termos medidas redistributivas, como existem com impostos redistributivos, devemos impedir que as desigualdades existam desde o início. Ora, tudo isto e toda esta conversa em torno das desigualdades, e depois temos o Piketty, por exemplo, também, é o tipo de conversa que é muito interessante porém em livros muito espessos, em livrarias, mas é muito difícil, é muito mais difícil de vender num debate político, em que as ideias concretas vendem muito melhor, não é? Parece-me que parte da dificuldade está aí, é mais difícil do que simplesmente estas duas dimensões.
Eunice Goes
Muito mais difícil e, de certa maneira, quer dizer, a crise da social democracia atual não é uma crise nova. Desde a emergência de partidos sociais democratas no final do século XIX, que muito rapidamente esses sociais democratas se aperceberam que não tinham apoiantes suficientes naturais para ganharem maiorias. O Bernstein, aliás, quando foi ao Congresso de Air Food, onde começou todo o debate revisionista na social-democracia alemã, ele dizia que nós não vamos conseguir ganhar eleições só à conta dos votos dos operários. Vamos precisar também dos votos de agricultores, vamos precisar dos votos daquela classe média profissional e como o Bernstein, muitos outros, os georréis em França, os italianos, etc. Os suecos, que foram o partido social-democrata mais bem sucedido e que sofreu uma derrota bastante traumática há poucas semanas, perceberam que tinham que fazer coligações com outras partes da sociedade. Teriam que contar com o apoio não só da classe operária, que era a base eleitoral da socialdemocracia europeia, mas tinham que começar a atrair outras pessoas, outro tipo de eleitor. Portanto, esse foi um dilema que os sociais-democratas confrontaram toda a sua vida. Portanto, os partidos sociais democráticos, e já vamos em mais de 100 anos de socialdemocracia. Na verdade,
José Maria Pimentel
qualquer partido de esquerda ou de direita que queira ganhar eleições, não é?
Eunice Goes
Evidentemente. Faz parte. O problema é criar essas coligações que acabam por criar sínteses ou que tentem eliminar diferenças e contradições entre eleitorados diferentes. Isso normalmente é o papel de líderes, que poderão ser líderes talentosos, que são carismáticos, que têm uma visão que é capaz de, no fundo, refletir as preocupações do eleitorado naquele período específico. Portanto, liderança é importante, o saber responder às espumas dos dias, isso é extremamente importante, mas ao mesmo tempo que é capaz de criar uma mensagem que, ok, olha, pronto, discordamos sobre imigração, discordamos sobre estas questões de políticas de género, etc, mas acho que toda a gente vai custar de mais investimentos na saúde e mais investimentos na educação e temos de lidar com a emergência climática. Por exemplo, criar um programa que é abrangedor. E porquê
José Maria Pimentel
tu achas que isso não acontece? Porque
Eunice Goes
é difícil. Porque é extremamente difícil e eu acho que o talento político acaba por se definir nisso, não é? O conseguir falar de uma maneira que é ao mesmo tempo abrangedora, mas ao mesmo tempo que é inspiradora, plausível também, porque um político também tem que falar de uma maneira que é plausível. Porque as soluções que estão a propor são soluções que fazem sentido e então em populações diversas, com eleitorados cada vez mais diversos, é cada vez mais difícil encontrar essa linguagem comum, o léxico comum que torne essa comunicação e a compreensão mais fácil. Há um politólogo britânico, que aliás vive nos Estados Unidos, de quem eu gosto muito, que é o Peter Hall, que escreve muito sobre a economia política e sobre o poder das ideias e ele diz que, portanto, as ideias políticas são coisas extremamente importantes, que as ideias podem causar fenómenos políticos, portanto, são agentes da política, portanto, não são coisas abstratas, são agentes, mas para essas ideias serem influentes elas precisam de passar por determinados testes. Primeiro precisam de ser persuasivas, precisam de convencer as pessoas que aquela ideia oferece uma solução para aquele problema concreto. Mas para serem persuasivas precisam de ser compreendidas e a compreensão é cada vez mais difícil porque a compreensão é fácil quando estamos a lidar com populações homogéneas, onde concordamos mais ou menos sobre as regras do jogo, de como é comum que funciona, etc. Agora, quando as populações e os eleitorados são cada vez mais diversos, esses pontos comuns são muito mais difíceis. Portanto, se as ideias não são compreendidas, não vão ser apoiadas por atores relevantes que podem achar que esta é a solução para o problema X, para o problema A. Esse é o grande problema dos partidos políticos. As vezes as pessoas até têm as ideias certas, mas a comunicá-las é a parte mais difícil. Por isso é que nós não somos todos políticos. Só algumas pessoas é que o são e só algumas pessoas é que chegam a posições de Primeiro Ministro, de Presidente, porque têm essa capacidade de comunicar soluções plausíveis de uma maneira que é plausível e persuasivo ao mesmo tempo.
José Maria Pimentel
Sim, e esse ponto sobre a diversificação do eleitorado acho que é um ponto muito importante para os tempos atuais. Também em Portugal, mas eu diria menos do que países como Estados Unidos ou Reino Unido em que tu tens o eleitorado mais diverso e portanto não tem esses pontos em comum que tu dizias e torna-se difícil expor uma ideia de que maneira que seja entendível por toda a gente, que seja compreensível por toda a gente. Compreensível no sentido que se está a acreditar, não é? Compreensível ela pode ser sempre, não é? Mas pode ser translida por muitas pessoas. E ainda bem que tu puxaste o tema das ideias e das ideologias porque eu sei que é uma... Aliás, acho que é a área de investigação do que tu gostas mais e tu tens uma convicção que... Acho que não estou a retratar isto mal... Que as ideologias são de facto importantes nos partidos não só a única coisa que importa, mas por muito que obviamente os partidos tenham todos que ser geridos com algum cinismo eleitoral para ganhar eleições, eles têm essa base ideológica e essa base é aquilo que lhes dá força mas também os pode restringir. E no caso dos partidos da esquerda eu achei interessante esse pensamento porque já me ocorreu várias vezes que, de novo, não É certo que a esquerda seja mais ideológica do que a direita. Há muitos partidos da direita mainstream, durante muito tempo até se podia dizer que eram mais pragmáticos, mas temos uma direita muito ideológica e a direita tachariana, por exemplo, é bastante ideológica. Mas é verdade que a esquerda tende a ser mais reflexiva e tende a ter mais escolas de pensamento, se nós quisermos. E o que me parece muitas vezes existir nos partidos da esquerda é que, como eles obviamente tendem a ser mais dominados por uma elite que vem mais desses meios urbanos e mais educados, muitas vezes expõem determinadas ideias mais do que lhes seria útil do ponto de vista cínico eleitoral. Sem dar conta disso, ou seja, as pessoas acreditam na forma daquelas ideias que carregam a indemasia nela e sofrem os custos eleitorais dessa decisão. Então falavas de, eu acho que isso é muito verdade no caso de determinados temas desta nova agenda de justiça social, que podíamos chamar política identitária, embora vá um pouco para além disso, que muitas vezes está muito carregada na agenda desses partidos, de uma maneira que do ponto de vista cínico não seria necessária porque depois está a afastar parte desse eleitorado mais velho, menos educado, que vive noutros meios, que não só não concorda como se sente absolutamente repelido muitas vezes por esse tipo de ideias.
Eunice Goes
Eu acho que Os partidos de direita são tão ideológicos como os partidos de esquerda, as ideologias de direita são tão fortes, apesar de, por exemplo, o conservadorismo britânico, gostava de se dizer que era menos ideológico, que era uma doutrina pragmática, etc. Mas se formos a ver, Há dezenas de intelectuais conservadores que escreveram de maneira muito eloquente sobre o conservadorismo, o que é que inspira, o que é que é a sociedade ideal para um conservador, mesmo se os conservadores digam nós não acreditamos em sociedades ideais. Mas isso é um ponto de vista ideológico. O que os partidos conservadores têm, e acho que é a grande vantagem, são muito mais disciplinados. Muito mais disciplinados. E porquê? Porque provavelmente estão mais interessados em ganhar, tanto muito mais interessados na questão do poder. A esquerda sente sempre um bocadinho embaraçada com o poder, com a questão do poder e de ganhar o poder. E gosta demasiado, talvez demasiado não seja a palavra correta, mas gosta muito de discussão e de debate. E os debates são fantásticos, mas para Quem vê de fora é uma cacafonia terrível e acaba por ser isso a que o eleitorado é tratado. É ver as cacafonias da esquerda, foi isso que nós assistimos durante a liderança do Jeremy Colbyn até há pouco tempo, eram cacafonias absolutamente terríveis. O eleitorado não gosta de ver, a imagem que transmitem é de desunião. Portanto, como é que eles poderão governar o país se não conseguem concordar sobre as coisas mais básicas? Portanto, é esta a conclusão do eleitorado. E de perigo, não é?
José Maria Pimentel
Porque chegam lá e não sabem governar e depois querem mudar tudo, não é? E mudar
Eunice Goes
é muito mais difícil do que manter o status quo, não é? Claro, sim. É muito mais difícil. E esse tem sido, aliás, um dos grandes dilemas da esquerda social-democrata. Estou a escrever agora um livro sobre a história da social-democracia europeia e um dos grandes problemas que aconteceu na década de 30 foi, tanto a uma certa altura os sociais-democratas estavam no poder e não sabiam como gerir uma crise económica brutal, porque tinham tratados económicos e ideológicos sobre o que fazer numa sociedade socialista, agora não sabiam como gerir uma crise numa economia capitalista e como gerir a crise numa economia capitalista de uma maneira social-democrata. E essa é que era a grande dificuldade. E a partir daí também se tornou, e agora o que é que fazemos? Porque o Marx e o Engels também não ofereceram soluções detalhadas, não houve um programa detalhado. Quando estivermos no poder e depois de termos instaurado a ditadura do proletariado, que foi interpretada por muitos sociais democratas como a ditadura do proletariado poderá ser um social-democrata ganhar umas eleições e estar no poder. O que é que se faz? Quando estão no poder, agora o que é que fazemos? Não ofereceram esse programa detalhado e o que é que se faz? Improvisa-se. E no fundo acaba por ter sido isso, uma crise de improvisação e como nós todos sabemos às vezes as nossas improvisações funcionam, outras vezes foram da maneira mais desastrosa.
José Maria Pimentel
Exatamente, olha é um bom ponto para passarmos a um outro tema que eu queria abordar antes de deixar ir. Isto começou porque eu vi no teu perfil no site da universidade que tu nas tuas aulas tens um enfoque especial em desenvolver o pensamento crítico dos alunos e como eu estou a preparar precisamente nesta altura uma formação sobre este tema, fiquei com vontade de saber mais sobre isso. E, entre outras, já percebi que tu tens uma abordagem interessante a este tema, agora podia-te explicar, mas basicamente tudo isto parte na impressão que tu tens de que os alunos têm uma aversão grande às teorias, às abstrações.
Eunice Goes
Exato, há uma grande alergia a aprender teoria, eu noto isso quando estou a orientar alunos para as dissertações de licenciatura de alunos e eles acham que não sabem e que não percebem e na verdade sabem e percebem porque já lidaram com elas. O que eu tento fazer é... Mas o que
José Maria Pimentel
é que quer dizer, desculpa, só antes de continuar, o que é que quer dizer isto de eles não gostarem das teorias? Quer dizer, sentem que não serve a nada, sentem que é difícil, Qual é a dificuldade?
Eunice Goes
Eu acho que eles pensam que não têm quase sequer relação com a vida que eles vivem, com a realidade do mundo que eles estudam. Pensam que são, portanto, abstrações e são coisas chatas que nós insistimos que eles aprendam.
José Maria Pimentel
Dificuldades desnecessárias?
Eunice Goes
Completamente desnecessárias, quando na verdade a ideia é descomplexar e tentar explicar que uma teoria acaba por ser só uma explicação para um fenómeno, tenta ser uma explicação generalizável para um fenómeno e que as teorias têm que ser testadas também. Portanto, há teorias que se calhar não passam o escrotínio. O que eu faço com eles é organizar uma série de exercícios onde eles acabam por aplicar teorias ou a explicação de determinados fenómenos. Por exemplo, como é que nós sabemos se político há, se o David Cameron ou a Theresa May ou o Keir Starmer, se eles são líderes que são primeiros ministros fortes ou potenciais primeiros ministros fortes.
José Maria Pimentel
Fortes no sentido de bons?
Eunice Goes
Fortes no sentido de estarem em controlo. O bons é uma questão muito subjetiva. É mais a questão de estarem em controlo, conseguirem impor a sua agenda. E no fundo uma teoria que há é oferecer uma série de critérios para depois fazer essas avaliações. E eu acho que é assim que eles aprendem não só a aplicar teorias e a perceber que uma teoria na verdade pode ser aplicável a uma situação concreta, mas conseguem também ver que podem utilizar critérios, não digo objetivos, mas são critérios claros e transparentes para avaliar determinadas situações. E assim também saímos das opiniões e mais argumentos. Portanto, argumentos que depois são baseados em factos, em realidade. Portanto, como é que nós vamos depois medir. Eu não sou uma politóloga quantitativa, mas acho que é importante testar determinadas ideias, vendo depois a realidade. Como é que nós sabemos se o partido, se é que o primeiro-ministro conseguiu impor a sua visão? Esteve em controle da política governativa? Conseguiu implementar o programa eleitoral que propôs? Conseguiu implementar? Sim, não, porquê? E então aí ver a realidade. E acaba por ser uma maneira, sem os alunos se aperceberem, que estão a aplicar a teoria, porque estão a aplicar aqueles critérios que tentam explicar o fenómeno, a uma situação concreta. E acaba por ser quase um exercício de matemática para eles. E acabam por também produzir trabalho original, interessante, onde eles estão a exercitar os seus próprios neurónios. Eles estão a analisar em vez de regurgitar o que é que o manual ou o que é que o texto diz sobre o fenómeno X ou Y. É assim que eu vejo eles exercitarem tantas capacidades. Eles gostam. No início é engraçado porque ficam sempre muito ansiosos, porque é muito diferente do ensaio normal ou do exame normal, mas depois acabam por gostar do facto de estar em controle do trabalho, Porque escolhem aquilo que querem fazer e acabam por estar a ver que estão a pensar, que estão a refletir e que são as suas reflexões, a seleção de factos e de dados, etc, que o está a levar a determinadas conclusões. E no fundo, eles estão a chegar às suas próprias conclusões em vez de serem levados a concluir uma certa coisa.
José Maria Pimentel
Exato, como te dizia, essa sua iniciativa ficou-me na retina daquilo que me tinha explicado, que era ainda muito curto, e eu acho que por três razões. Primeiro, ao fazer isso, como tu dizias, estão a desenvolver a capacidade de argumentar de uma maneira coerente, de uma maneira coesa, e não simplesmente ao contrário, como nós fazemos intuitivamente, é que partimos de uma conclusão que é mais ou menos intuitiva e assumimos aquilo como verdade sem ir fazer essa desconstrução de tentar mostrar se aquilo segue objetivamente da evidência ou não, ou seja, simplesmente uma opinião nossa. Por exemplo, ao fazer esse exercício de construir uma tabela ou qualquer coisa mais ou menos... E nem tem que ser quantitativa, quer dizer, tem que ser simplesmente organizada, não é? Em que as premissas dão lugar à conclusão, desenvolve-se a capacidade de argumentar. Depois tem outro aspecto interessante que é contrariar a tendência que há muitas vezes no ensino, sobretudo mais tradicional, que o professor está a passar matéria e as pessoas estão passivamente a absorver a matéria. E aí ao fazer esse exercício eles estão a tomar parte ativa, não é? Nós quando tomamos parte ativa nas coisas... Quer dizer, isto é óbvio, não é? Até estranho muitas vezes o ensino ser... Insistir tanto nesse lado passivo, mas todos nós sabemos da nossa vida que quando nós fazemos alguma coisa ativamente, quando vamos à procura de um determinado conhecimento absorvemos-lo muito melhor do que quando estamos passivamente a assistir ao mal. Eu próprio, ao fazer o podcast, noto isso pela maneira como é algo que eu estou a fazer ativamente. Contacto aquele convidado, vou estudar aquele tema, estou a ter aquela conversa, quer dizer, uma coisa que a pessoa está a ter ativamente e ainda hoje me surpreendo muitas vezes com as coisas que eu me lembro de episódios. Muitas vezes do início do podcast e às vezes as pessoas falam-me e eu lembro perfeitamente daquele ponto da conversa porque tive parte da TV e foi ela que me marcou. E finalmente há um terceiro elemento que eu acho particularmente interessante aqui, que é essa ponte do ir do concreto para o abstrato. Porque eu tenho a tese, enfim, eu admito que pessoas possam ter opinião diferente, mas eu não acho que a mente humana esteja feita para ser capaz de absorver abstrações no abstrato para se polimonar, ou seja, para absorver abstrações no vácuo. Aliás, até há investigação que mostra que os matemáticos, por exemplo, que trabalham basicamente com abstrações têm uma espécie de pirâmides de abstrações, mas que têm uma base concreta, ou seja, nós temos que ir do concreto para o abstrato, nós vamos da nossa experiência concreta, pode ser visual, por ser visual ou auditiva não deixa de ser concreta, mas vamos dessa experiência concreta, depois uma abstração que construímos para dar sentido a essa experiência concreta. E muitas vezes o ensino ao partir das abstrações, ou seja, no fundo estás a passar um modelo qualquer, muitas vezes, aquela é uma maneira eficiente, não é? Porque aquilo resulta do debate académico durante décadas entre pessoas que produziu quase por destilação aquela abstração, aquela teoria, mas a verdade é que para quem está a ouvir aquilo, como não passou por essa história, aquilo não entra, ou pelo menos não entra da mesma maneira. E é engraçado porque eu ainda estas férias estava a ler um livro que aliás recomendo, que já foi aqui recomendado no podcast pelo Luís Silva, físico, que é o livro do Richard Feynman, é uma espécie de livro de memórias do Richard Feynman, um dos maiores físicos de sempre, que foi para a Minoba, e toda uma personagem, e o livro chama-se Surely You're Joking, Mr. Feynman. Em português, depois vejo a tradução, mas há de ser qualquer coisa do género, deve estar a brincar, Sr. Fineman, ou alguma coisa do género. E ele tem lá um ponto muito engraçado, que na verdade já me tinham falado, numa altura em que ele esteve a dar aulas no Brasil, eu nem sabia disso, e aquilo que ele diz sobre o sistema de ensino brasileiro, por exemplo, lembrou-me muito aquilo que poderíamos dizer sobre o sistema de ensino português e provavelmente sobre muitos sítios do mundo, que aqueles, eles aprendiam, o que ele conta é que eles aprendiam teorias de forma apenas abstrata e portanto eles conseguiam até fazer exames e saber aquelas teorias, saber pormenores daquelas teorias, mas quando ele lhes perguntava um aspecto que correspondia, se quisermos, ao substrato concreto daquelas teorias, ou seja, aquilo para que elas serviam originalmente, uma pergunta básica, eles não conseguiam responder, porque tinham absorvido as teorias sem absorver a prática, sem absorver o concreto, que é aquilo para que servem as teorias, é uma espécie de paradoxo, não é? Mas isto para dizer, desculpa, foi um comentário muito longo, mas só para dizer que acho que esse tipo de exercício é uma coisa que faz muita falta no sistema de ensino, por estas três razões e até por esta última de partir do concreto para o abstrato, não é? Que eu acho que é a única maneira de nós absorvermos verdadeiramente uma teoria.
Eunice Goes
É essencialmente isso o que eu tento fazer e eu notei, por exemplo, a orientar dissertações em relações internacionais, onde eu estou a tentar aplicar teorias realistas ou da escola inglesa ou construtivismo. E muitas vezes alunos finalistas não conseguem sumarizar quais é que são os principais axiomas dessas teorias, quando na verdade vão estar a testá-las, por exemplo, na política externa de um país, de um governo em particular. E no fundo estes exercícios forçam-os a operacionalizar as várias componentes da teoria e no fundo O que é que as teorias nos ajudam? São maneiras de explicar a realidade. São maneiras muitas vezes simplificadas e muitas teorias são muito simplistas. E eu acho que é quando eles estão a operacionalizar essas teorias que acabam por se perceber das próprias fraquezas das teorias que eles estão a estudar.
José Maria Pimentel
Exato, pois, exatamente isso também é importante. E quando eles
Eunice Goes
se percebem disso, é fantástico, é o bingo académico completo, porque significa que eles estão a exercer as suas capacidades críticas, estão a saber analisar uma teoria, estão a saber desenvolver os argumentos que vão derrotar aquela teoria, que vão demonstrar que aquela teoria não é demonstrável ou que tem fraquezas fortes que questionam a própria validade da teoria e que poderão vir com refinamentos, propostas, outras maneiras, outras perspetivas de ver. E quando o estamos a fazer descomplexamos a teoria. Portanto, uma teoria é só uma explicação para um fenómeno. E às vezes as explicações são válidas e aplicam-se a uma série de situações. Em outras situações as teorias são ultrapassadas pela realidade. Numa altura onde ter opiniões é coisa mais fácil e mais barata, onde muitas pessoas não sabem distinguir entre factos e realidade, acho que é extremamente importante ensinar, ou pelo menos equipar alunos com esta capacidade de criticar e abordar os problemas destas maneiras. E
José Maria Pimentel
tu disseste-me que notas entre os alunos muita falta de literacia mediática. Isso para caso não esperava que confessem gerações mais novas?
Eunice Goes
Sim, aliás, acho de uma maneira geral, os estudantes universitários, esta geração dos 18, 19 anos, ainda há poucos dias falava com alunos e eles, onde é que eles obtêm informação? Redes sociais, Instagram, TikTok, Depois lêem algumas coisas, aqueles que estão no Twitter lêem algumas coisas, mas não têm quase que a noção de como é que se produz informação. São coisas que eles lêem aqui a colar, portanto não há no fundo um filtro sobre o que é informação que foi produzida por jornalistas profissionais que sabem como tratar dados e jornalistas profissionais ou empresas mediáticas, quer dizer, há um controle de qualidade. A informação que se produz não é perfeita, mas há um controle de qualidade que não existe, por exemplo, alguém a dizer coisas no Twitter, não é? Qualquer pessoa pode dizer coisas no Twitter.
José Maria Pimentel
Sim, sim. Não, esse é o problema em si, está mais do que discutido, até aqui no podcast discuti várias vezes. O que me surpreendeu foi tu teres essa experiência com os teus alunos. Também estava a ser ingênuo, porque provavelmente isso foi sempre assim, até porque são novos, não é? Esse tipo de sofisticação também é algo que nós vamos ganhando com a idade. Aquilo que não existia antigamente era a oferta alternativa de outras fontes de informação. Isso é que não existia.
Eunice Goes
muito maior diversidade e há também agora uma expectativa de que a informação é gratuita, não é? Não custa nada. Portanto, a ideia que vamos pagar para sermos informados é uma ideia que as pessoas resistem. Apesar de pagámos por tudo e pagámos, por exemplo, cada vez mais por cafés miseráveis, mas pagar por um jornal onde devemos ser bem informados é uma ideia muito, muito, muito mais difícil.
José Maria Pimentel
Exatamente. Olha, foi uma ótima conversa, Eunice. Muito obrigado por teres alinhado. Antes de terminarmos, Não sei se tens um livro, se vários livros, se não é sequer um livro, mas tens alguma coisa para recomendar, não é?
Eunice Goes
Livros, olha, um livro que eu gostei muito, não é um livro novo, mas que é um livro que eu acho que explica bastante do mundo onde nós vivemos e os dilemas governativos atuais, é o livro da Albina Asmanova, que é Capitalism on Edge e que oferece uma série de leituras sobre o estado da nossa política. Gosto muito e acho que oferece muitas ideias sobre como os partidos sociais democratas poderão ou não responder à sua própria crise. Gostei muito também do Anticestum Politics do Jonathan Hopkins, que oferece uma interpretação muito interessante sobre o populismo e o fenómeno do crescimento dos fenómenos de extrema direita e da direita radical e da esquerda radical também. E no fundo o que o Jonathan Hopkins diz é que há uma falsa dicotomia entre tentarmos perceber o fenómeno com uma lente ou identitária ou uma lente económica. Eu disse que as duas estão mutualmente dependentes uma da outra e é um livro muito, muito, muito, muito bom. Portanto, esses são dois dos livros que recentemente eu li. Então, o outro livro que eu recomendo é o da Katrina Forrester, In the Shadow of Justice, que é um livro fascinante sobre a influência do pensamento de John Rawls na política norte-americana. E eu gostei muito desse livro porque ela acaba por, no fundo, estar a analisar a verdadeira influência que as ideias de um filósofo tiveram sobre a política norte-americana, mas ela também tenta explicar qual é que é a origem dessas ideias, quais é que foram os fatores, o contexto que influenciaram o pensamento de John Rawls. E o John Rawls foi um dos filósofos mais influentes do mundo anglo-saxónico dos últimos 50 anos e, para algum mais, é extremamente bem escrito. Eu estava
José Maria Pimentel
a me lembrar do Rawls há bocado, por acaso, quando estava a falar do papel das ideias na política, porque é um exemplo interessante, porque no caso dele é um dos exemplos que mostram que a vanguarda ideológica tende a estar na academia. Ou seja, os partidos têm um papel importante, mas normalmente não é no início, não é na geração das ideias, é mais em dar-lhes corpo. E as ideias dele, é interessante porque de facto tiveram uma influência grande, mas eu diria que talvez ainda não tenham tido toda a influência que podem ter, sendo que em alguns aspectos até talvez... Enfim, não diria que não estão na moda, mas como não têm tanto enfoque... Embora se prestem a isso, mas não têm tanto enfoque identitário, acabam por, se calhar, no momento atual, não estar tão na moda como tiveram há uns anos, mas parece-me, quer dizer, a minha intuição, mas posso ser parcial, é que tem potencial para reemergir com mais força, porque acho que numa sociedade pós-industrial e numa sociedade, quer dizer, e apesar de tudo é difícil nós livrarmos dessa lógica baseada nos indivíduos, em que os indivíduos sobrepõem ao grupo, aquilo que ele propõe é difícil de contrariar, sobretudo quando tens que lidar com questões como, sei lá, justiça intergercional e coisas desse tipo, não é? Portanto, eu acho que as ideias dele... Enfim, agora estou aqui numa tangente, mas acho que as ideias dele têm potencial para ainda vir a influenciar a política bastante no futuro. Ah,
Eunice Goes
mas Não é essa a tese dela.
José Maria Pimentel
Ah, não? Ah,
Eunice Goes
curioso. O livro é extremamente interessante porque quando ela o coloca no contexto em que o livro foi produzido, a conclusão dela é de que, pronto, o John Rawls fez uma contribuição muito importante para a filosofia política, dominou toda a academia anglo-saxónica e todo o debate sobre teoria política, mas as ideias estão um bocadinho ultrapassadas. Portanto, time to move on. Temos de nos concentrar, temos de pensar noutros problemas e noutras ideias. Portanto, a tese é também muito audaciosa, que eu acho que ela defende bastante bem, mas evidentemente está a ser altamente contestada, é um livro extremamente estimulante.
José Maria Pimentel
Ok, olha, eu fico é curioso. Tanto isso, isso já é suficiente. Olha, Eunice, muito obrigado por uma boa conversa.
Eunice Goes
Prazer também, muito obrigada também. Até breve.
José Maria Pimentel
Até breve, obrigada. Obrigada. Este episódio foi editado por Hugo Oliveira. Visitem o site 45graus.parafoods.net barra apoiar para ver como podem contribuir para o 45 Graus, através do Patreon ou diretamente, bem como os vários benefícios associados a cada modalidade de apoio. Se não puderem apoiar financeiramente, podem sempre contribuir para a continuidade do 45 Graus avaliando-o nas principais plataformas de podcasts e divulgando-o entre amigos e familiares. O 45 Graus é um projeto tornado possível pela comunidade de mecenas que o apoia e cujos nomes encontram na descrição deste episódio.