#126 João Ferro Rodrigues - «A Era do Nós»: conciliar liberdade e direitos com a promoção...
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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o
45 Graus. Neste episódio estou à conversa com o João Ferro Rodrigues
a propósito do seu livro A Era do Nós, propostas para uma
democracia do bem comum. O convidado é licenciado em Economia pela Universidade
Católica e tem o MBA pela Harvard Business School. Profissionalmente tem-se dedicado
à gestão em setores como a consultoria estratégica, as energias renováveis e
a tecnologia. Quem faz podcasts e outros programas começa a partir de
certo ponto a receber regularmente livros de editoras que querem, naturalmente, promover
os seus autores. Um dos livros que recebi no início deste ano
foi este, A Era do Nós, do João Ferro Rodrigues. Logo na
altura achei o tema muito pertinente e agradou-me sobretudo ver um não-académico
fazer uma incursão por estes tópicos. Além disso, ao percorrer o índice
do livro, encontrei vários pontos com os tópicos que abordo no Política
a 45° e por isso decidi esperar até publicar o livro para
convidar o João para o podcast. O Política a 45° saiu em
Abril, como se lembro, e poucas semanas depois recebo, via redes sociais,
uma mensagem do João a elogiar o livro e impressionado também ele
com a quantidade de temas em que coincidíamos. Estava feito ali o
METES, convidei-o ali mesmo para o Quantity sem Graus e o resultado
é este episódio. Este livro do João Fé Rodrigues, A Era do
Nós, é uma reflexão sobre a maneira como a sociedade tem evoluído
nas últimas décadas, no mundo e em Portugal, e o manifesto por
uma ênfase renovada no comunitarismo e no espírito, como ele lhe chama,
do bem comum. O livro parte da convicção de que vivemos hoje,
em resultado da evolução da economia e das mentalidades, numa era mais
individualista e compartimentada do que no passado. Esta tendência reflete-se no aumento
da atomização social, e por isso, para muitas pessoas, num maior isolamento,
mas outras pessoas mantêm uma vida social ativa, acontece que vivem naquilo
que o convidado chama bolhas sociais, em que contactam pouco com o
resto da sociedade e com pessoas que têm hábitos e pensam de
maneira diferente delas. O João entende que esta tendência anticomunitarista é, desde
logo, um mal em si mesmo, ou seja, moral, mas acha também
que tem trazido consequências negativas concretas na vida dos próprios indivíduos, seja
por via de um menor crescimento económico, seja pelo impacto que tem
na saúde e mesmo na felicidade individual. O livro termina por isso
com um conjunto de propostas muito concretas para aumentar a confiança entre
os cidadãos e a coesão da comunidade, gerando a tal nova Era
do Nós que consiga conciliar os ganhos da liberdade e inclusividade das
últimas décadas com a necessária harmonia e coesão social. As propostas do
convidado incluem medidas relativamente consensuais, como a promoção da mobilidade social, uma
maior descentralização, o melhor planeamento urbano ou a promoção do associativismo local,
mas inclui também algumas propostas mais ousadas, como por exemplo a da
criação de um serviço nacional obrigatório. Ou seja, uma espécie de serviço
militar obrigatório, mas focado sobretudo em dar aos jovens uma experiência de
contato direto com o país real e levá-los a trabalhar no terreno
em prol das comunidades. Nesta conversa com o João Fé Rodrigues abordámos
sobretudo o diagnóstico que o convidado faz da evolução da sociedade e
do estado da sociedade atual. Entre vários outros temas, falámos do encantamento
que hoje todos mais ou menos temos com a ideia do mérito
individual, da importância e das limitações desse conceito, falámos da importância de
enfatizar não só a liberdade e direitos dos indivíduos, mas também os
deveres para com a comunidade, E falámos da ascensão do populismo e
da sua relação com o facto de algumas camadas de população sentirem-se
hoje deixadas para trás pelas elites mais cosmopolitas, mais progressistas e pelo
foco da política em questões menos concretas e por uma agenda que
muitas vezes privilegia os direitos das minorias, que é obviamente necessário assegurar,
em detrimento de preocupações de camadas da população mais abrangentes. E falámos
também da importância de aumentar a mobilidade social, da necessidade de rebentar
as tais bolhas sociais e ainda sobre se as empresas devem ou
não ter um papel social. Espero que gostem, deixo-vos então com o
João Fé Rodrigues e antes disso, como de costume, muito obrigado aos
novos mecenas do 45 Graus, Susana Castelo, Miguel Passadouro, Felipe Duarte, muito
obrigado também pelo apoio do João Vieira dos Santos, do Germano Rio,
do Rafael Santos e do Ricardo Souza. Até ao próximo episódio. Vou
começar por te pedir para te escreveres o livro. O que é
que te levou a escrever o livro? Para quem nos está a
ouvir, porque eu li o livro, mas a maior parte das pessoas
ainda não. Vai ler depois, mas para já ainda não. Bem, antes
de mais, obrigado
João Ferro Rodrigues
pelo convite. Obrigado, eu gosto muito do teu podcast, portanto estou muito
contente de estar aqui a falar contigo. Olha, o livro foi escrito
durante o período da pandemia e, portanto, eu acho que não vale
a pena esconder aqui um elemento de disponibilidade de tempo e de
estar em casa durante fins de semana etc. Abriu-se aqui uma janela
de oportunidade que eu acho que foi o catalisador para a escrita
no momento em que eu escrevi. Depois eu costumo também dizer a
brincar que estou a meio da década dos meus 40 anos e
portanto também há aqui provavelmente uma crise de meia-idade que me obrigou
a fazer aqui uma espécie de balanço do que é que tem
sido a minha vida até agora e há pessoas que as crises
de meia-idade dão-lhes para outras coisas. Dá para comprar carros de grande
qualidade, dá para, sei lá, fazer returas conjugais. Eu, felizmente, não me
deu para isso. Pelo menos para já não
estou
para ir virado. E portanto achei que podia tentar aproveitar alguma dessa
energia reflexiva do momento da vida em que eu estou para escrever
e tentar perceber melhor o que é que eu acho sobre determinadas
coisas. E Finalmente, há um terceiro motivo que é o livro foi
escrito como resultado de leituras. Este livro não nasceu, tenho esta ideia,
vou pesquisar para o escrever, foi precisamente o contrário, foi leituras que
eu fiz nos últimos 5, 10 anos que eu achava que não
tinham nada a ver umas com as outras e que no fundo,
ainda diversas áreas das ciências sociais e das ciências físicas, eu estava
sempre a ler coisas que tinham muito a ver com o balanço
entre o bem comum e o individualismo. E o livro é sobre
isso, é sobre o balanço entre o bem comum e o individualismo.
João Ferro Rodrigues
Exatamente, mas o engraçado é que foi literalmente cair a ficha. Caiu
uma ficha a determinado momento, quando estava a terminar um dos últimos
livros que li sobre estes temas, que foi o do, penso que
foi do Michael Sandel, que foi o tirania do mérito, que eu
já tinha estado a ler sobre aquele tema, mas em contextos tão
diferentes como biologia evolucionária, economia e agora estava a ler-se no contexto
da filosofia moral e percebi que de facto havia aqui algo que
eu estava a sintetizar que tinha a ver com esta questão do
individualismo e do peso, no meu entender, excessivo que o individualismo tomou
nas nossas sociedades ocidentais nas últimas décadas e na necessidade de regressarmos,
e estes livros também todos apontavam para isso, a uma ótica em
que as decisões são tomadas mais a pensar no bem comum. Quando
me caiu essa ficha, tinha quase o livro praticamente escrito do ponto
de vista da estrutura que eu queria que o livro tivesse. Tentei
obviamente que o livro também cruzasse a minha própria experiência pessoal, para
não ser algo muito insípido, e comecei a escrevê-lo. Foi este o
processo. Portanto, o que me levou a escrever o livro, em resumo,
se quiseres, foi uma mistura de timing, de momento que eu tenho
na minha vida e de me ter caído a ficha sobre uma
síntese de várias leituras que fiz sobre um tema que me interessava
e que eu nem sabia que me interessava porque achava que os
livros não tinham nada a ver, mas afinal estavam todos relacionados. O
que
José Maria Pimentel
É giro porque o livro, tu acabas por fazer uma crítica aos
excessos do, poderíamos dizer, da direita liberal e daquilo que chamas de
esquerda identitária, que no meu livro até chamas de qualquer coisa do
tipo esquerda nova justiça social, mas que no fundo muitas vezes tem
essa componente identitária, mas acaba por estar focada em direitos individuais. E
tu dizes que é interessante que, em ambos os casos, sendo esses
designios altamente justificáveis, tanto da liberdade como dos direitos de minorias que
tinham ficado para trás, isso depois acaba por gerar um foco no
indivíduo que acaba por corroer o tecido social que existia antes. Essa
é uma tese interessante. Em primeiro lugar, deixo-me dizer que não é
minha. Isto é
João Ferro Rodrigues
algo que já é muito desenvolvido recentemente, por exemplo, pelo Michael Sandel,
que é o tal filósofo da Universidade de Harvard, do livro que
eu estava a referir anteriormente, mas também pelo Janty Hall, que é
um economista que tem
um livro
sobre a economia do bem comum, ou seja, eu aqui tentei mais
resumir aquilo que pessoas que pensam a sério, que não é o
meu caso, pessoas académicas, conclusões chegaram e tentar usar uma linguagem mais
coloquial para permitir que esses conceitos fossem entendidos por mais pessoas, mais
rapidamente que se fossem transmitidos da academia para a cultura. Esse é
o meu papel aqui, é tentar acelerar um pouco esse processo. Agora,
o que estás a dizer, aqui é preciso sempre ter muito cuidado
quando estamos a falar destas coisas, porque eu pessoalmente acho que os
avanços sociais e em grupos que têm sido reprimidos socialmente são fundamentais.
Eu sou muito favorável a esses avanços.
João Ferro Rodrigues
seja de etnias, seja de orientação sexual. Já houve outras fases em
que havia comunidades muito orientadas para o bem comum, mas que eram
feitas com base na repressão de muita gente destas comunidades, porque se
encaixavam num destes subgrupos. Agora, também o que é natural é que
quando o foco da política passa para corrigir estas assimetrias, que se
perca um pouco o tal foco nesse bem comum. E o que
eu acho é que agora estamos numa fase em que, aliás até
pelo crescimento dos populismos que o demonstram, que se queremos responder às
novas ameaças que temos, temos que, não perdendo nada dos avanços que
tivemos nestas causas, que são muito importantes, temos que voltar a política
a olhar para questões que são mais sobre a nossa dimensão coletiva
do que apenas de direitos individuais. Houve um autor, que eu já
não me lembro quem foi, que disse que se calhar não devia
haver apenas a declaração dos direitos do homem, mas também devia haver
a declaração dos deveres do homem. E eu acho que isto é
uma questão muito importante, que é que nós nos esquecemos, que é
também no dever com os outros que as sociedades seguentam, não é?
E para além de mais, acho que temos todas essa experiência que
é quando damos, nos sentimos melhor, mais felizes e, portanto, também até
para o bem-estar individual isso é
José Maria Pimentel
logo claro disso, mas eu acho interessante ter alguém que tem uma
profissão, que tem uma empresa, como é o teu caso, quer dizer,
que tem um trabalho para além disso, a juntar essa perspectiva que
vem de muitos trabalhos académicos, precisamente, com uma experiência de vida e
com uma reflexão baseada na experiência de vida. Porque isso também é
diferente daquilo a que um académico pode ter acesso, que pode se...
Eventualmente, obviamente, tem um conhecimento mais profundo de muitos destes fatores, mas
não tem a mesma capacidade de que tu ou outras pessoas que
tenham essa experiência de ligar uma experiência mais concreta do mundo real
é um bocadinho... Desculpa, os académicos que me estão a ouvir é
um bocadinho... É um bocadinho depreciativo, não é? Mas entendo o que
eu quero dizer, não é? Não, eu
João Ferro Rodrigues
sim. Mas como eu estava a dizer, a sensação que eu tive
quando estava a escrever o livro, ou que me levou também a
escrever o livro, é que há uma série de lugares comuns que
estão imbebidos na nossa cultura, que vêm da economia, que vêm da
biologia, que a própria academia já os ultrapassou. E no livro falo
do gênio egoísta, falo da tragédia dos comuns, só para dar aqui
alguns exemplos de coisas que... Da questão da meritocracia e da sua
valorização, são tudo temas que são importantes, mas que nós ainda estamos
na nossa cultura, na maneira como tomamos as nossas decisões, que é
a cultura que influencia muito, estamos a ser muitas vezes influenciados por
onde a academia estava nos anos 70 e anos 80 do século
passado. E a academia evoluiu muito, como sempre, continuou a progredir do
ponto de vista científico e muitos destes mitos, porque são mitos na
academia, já não são defendidos, mas continuam a ter um impacto muito
grande no nosso dia a dia, nas conversas que temos com nossos
amigos e, portanto, o tal papel de veículo transmissor, o que eu
tentei foi, na minha modesta dimensão, foi tentar se eu posso, vou
tentar aqui dar uma ajuda, pelo menos dar a conhecer, numa linguagem
mais coloquial, o que é que estas áreas científicas acreditam hoje em
dia sobre estes mesmos temas, porque isto vai ter que chegar de
novo a todos para que tenha impacto na vida em comunidade. Eu
penso que as pessoas muitas vezes não têm consciência, tu tens obviamente
porque és uma pessoa que tem uma ligação à academia, nós achamos
que a academia é uma coisa que está ali e que não
tem um grande impacto na vida das pessoas mas o conhecimento que
se produz na academia acaba por produzir líderes como o Matácher, como
o Reagan, como o António Costa, como o Mário Soares e, portanto,
João Ferro Rodrigues
É brutal, não é? E, portanto, Tudo o que seja acelerar essa
ligação entre o que é que a academia está a dar de
novo e como é que a nossa sociedade responde a esse conhecimento
culturalmente e depois através da sua organização, eu acho que esse é
o, se quiseres, o principal mérito que o livro possa ter. Não
é a produção de conhecimento pura e dura, é essa síntese e
a localização para Portugal, porque eu sou um produto de Portugal, não
é? Eu cresci em Lisboa nos anos 80 e nasci nos anos
70, tenho filhas que estudam em Portugal, em Lisboa e, portanto, eu
acho que essa dimensão pessoal é só minha, mas também ajuda. Este
livro não foi escrito a pensar noutros mercados, foi escrito a pensar
em pessoas que leem e dizem, eu revejo-me nesta história. Para caso
José Maria Pimentel
essa era uma pergunta que eu te queria fazer, porque eu pensei
muito nisso ao ler o teu livro e já tinha pensado nisso
muitas vezes ao ler alguns dos livros que servem de base também
ao teu. Que é, a pessoa está a ler, na maioria dos
casos, livros escritos para o mundo anglo-americano e aquilo ressoa em nós,
mas a pessoa identifica-se com parte daquele diagnóstico, mas por outro lado
eu penso, parte daquilo não se aplica necessariamente cá, não é porque
a realidade é diferente, nós somos um país, para o bem e
para o mal, mais coletivista, por exemplo, do que os Estados Unidos
ou até o Reino Unido, sobretudo, das metrópoles de hoje em dia,
não é? Tu sentiste isso ao escrever o livro? Ou seja, pensaste
a certo ponto? Não, quer
João Ferro Rodrigues
dizer, eu tentei... Ou seja, pensei, mas tentei sempre, tendo essa preocupação,
tentei assegurar que isto se encaixava na nossa realidade portuguesa. Na parte
das propostas, obviamente que é direto, estou a pensar no nosso país
em Portugal, mas mesmo na parte do diagnóstico, quando me refiro ao
que era o ensino de economia, por exemplo, nos anos 90, era
em universidades portuguesas. Sim. E sabes, José Maria, é verdade que nós
não somos os Estados Unidos ou uma Inglaterra, Eu acho que faço
aí algumas matizes a dizer que não somos, mas dentro da Europa
Ocidental temos um nível, por exemplo, da desigualdade e de outros indicadores,
em muitas coisas temos alguma proximidade maior com estes países anglo-saxónicos do
que com os países da Europa continental. Portanto, estamos ali no intermédio,
mas em algumas coisas até estamos mais aproximados. Mas depois estas questões,
por exemplo, identitárias e dos avanços que foram feitos, questões de género,
questões de etnias, etc. Ainda estamos em algumas das coisas um bocadinho
mais atrasados do que os países anglo-saxónicos. Pois, precisamente, é isso. Mas
já estamos a percorrer esse caminho. Eu acho que é muito importante
aqui o papel que os partidos mainstream em Portugal sempre, apesar de
tudo, mantiveram ali uma dimensão comunitária. O PS e o PSD refirma
isso, que é superior ao que aconteceu, por exemplo, aos partidos sociais-democratas
e de esquerda no resto da Europa. Aliás, isso nota-se nos votos,
na minha opinião. Esse balanço, essa capacidade ainda de responder a pensar
que os eleitores se reveem também, estes tipos ainda pensam na comunidade
e não apenas só em agendas individuais, acho que é uma das
coisas que acabou por explicar porque há menos erosão eleitoral cá nos
partidos. Ou seja, respondendo à tua pergunta, sim, muita da literatura que
eu consumi é anglo-saxónica, aliás a estrutura do livro é muito anglo-saxónica
no seu modelo de livro, mas eu penso que apesar de tudo
tive algum cuidado de curar essas conclusões para que elas tenham alguma
redezao à nossa realidade. Queria falar
José Maria Pimentel
das duas, são um bocado os dois lados da tua tese, que
é uma crítica como já há bocadinho. Parte dela, se quisermos, à
direita liberal e parte à esquerda identitária. Se calhar começando pela direita
liberal, um dos pontos que tu salientas que eu achei piada é
a questão do mérito, que é um aspecto que eu também já
pensei muito, mas eu acho interessante sobretudo porque tu remetes para o
teu próprio exemplo, ou seja, tu dizes que tens muitos amigos que
acham que basicamente o sítio onde estão é praticamente inteiramente resultado das
ações deles próprios, portanto mérito, e não entendem que, se é verdade,
obviamente que em muitos casos em parte é mérito, também há uma
grande parte que é ter o vento a favor deles. Tu sentes
mesmo isso?
João Ferro Rodrigues
Sim, mas acho que escolheram o meu livro abriram um bocado a
pistana. Não, deixa ver, eu penso que todos nós no nosso percurso
há uma dimensão de mérito. Eu próprio reconheço em mim mérito, não
penso que seja apenas um produto do acaso e da sorte. Agora,
eu nasci e cresci nos anos 80, Portugal já estava em democracia
e já havia outro tipo de oportunidades económicas, o crescimento todo relacionado
com a entrada na União Europeia. Que mérito é que eu tenho
nisto? Nenhum. Os meus pais conheceram-se e trabalhavam num organismo
público
que era na rua das praças em Lisboa. Por causa disso foram
morar ali perto, que é na zona da Lapa, e nascemos ali,
eu e a minha irmã, e portanto fomos para escolas públicas acima
da média e tivemos acesso a pessoas, amigos, de um nível socioeconómico
que era superior ao nosso e com isto acabámos por fazer um
percurso académico que foi parecido com o que esses amigos iriam fazendo
por natural, só pelo sítio onde nós vivemos. Qual é o meu
mérito nisso? Não é nenhum. Quer dizer, tenho amigos meus que dizem,
ah pois mas eu sou médico e estudei seis ou sete anos.
Claro que há muito mérito nisso, mas quantas pessoas nem chegam a
conseguir... Ah mas depois tem o pai médico ou a mãe médica
ou... Isso não é logo uma grande vantagem inicial. Claro. Não é?
Pronto. O meu ponto é esse, não é dizer que as pessoas
não têm... Eu conheço histórias de mérito total. Tenho amigos que têm
muitíssimo mérito, tenho outros que têm algum mérito, mas o meu tema
é que nós temos que ter uma noção clara de que há
fatores que não estão no domínio do mérito na nossa vida e
também azar. Atenção que eu até agora tive a dar situações positivas.
Eu também tive, por exemplo, azar ter acabado o MBA em 2002,
num ano em que houve uma enorme crise económica nos Estados Unidos,
onde eu estava, por causa dos dot-com bubbles que arrebentaram e tal,
e que havia muito menos trabalho do que se houvesse em 2000
e 2001, por exemplo. O meu curso era o mesmo, Eu apliquei-me
da mesma
maneira.
E, portanto, o que eu penso é que esta questão da conversa
da meritocracia é uma conversa perigosa quando não é colocada com este
tipo de contextualização, porque dá a sensação que cada um, no nível
interior, pode chegar onde quiser. E isso só seria verdade em sociedades
com uma mobilidade social total, que não é de todo o nosso
caso. Mas mesmo nesses casos, é duvidoso que seja a sociedade que
João Ferro Rodrigues
nesses casos temos dúvida. Porque, Por exemplo, a dimensão cognitiva que cada
um tem, que nasce com ela, e tem a ver também com
uma parte genética, obviamente, dos seus pais, etc. Que mérito é que
uma pessoa tem com essa dimensão cognitiva inicial? Ou seja, o meu
ponto é, o livro não é um livro que te defende só
o em comum e que acha que conceitos como o individualismo, questões
identitárias ou o mérito não têm valor nenhum. Não, é apenas uma
questão de reequilíbrio. A expressão do Michael Sandel que é muito feliz
é tirania do mérito. É acharmos que tudo se resolve com mérito.
O mérito é muito perigoso porque é uma maneira dos políticas públicas
se desculpabilizarem. Se nós dissermos que cada um de nós consegue fazer
o que quiser, é só uma questão de tentar e tentar mais
e tentar mais, desculpabiliza os governos, porque eles não têm que criar
condições, porque no fundo aquela pessoa não chegou lá, tentasse mais, tentasse
mais. Não teve mérito. Não
João Ferro Rodrigues
com muita atenção aquele podcast que tiveste recentemente com um convidado que
estava a falar dos números de pessoas de classes económicas mais baixas
que chegam à nossa universidade. Acham que essas pessoas é uma questão
de mérito por chegarem menos do que as outras classes. Não é,
não tem nada a ver com mérito, ou seja, é óbvio que
há a dimensão de classe e do ponto de partida e das
dificuldades que têm e não terem explicações, ou seja, os teus podcasts
necessários têm sido muito interessantes, demonstram que existem muitos fatores em que
as famílias que têm mais rendimentos dão uma ajuda enorme aos seus
filhos, como eu dou aos minhas filhas. Portanto, é preciso é ter
essa noção, porque se nós tivermos essa noção clara, depois vamos provavelmente
defender políticas públicas mais adequadas para o
José Maria Pimentel
bem comum. Eu estou completamente de acordo contigo. Acho que nós estamos
alinhados nesse aspecto. Deitar completamente fora o conceito de mérito seria altamente
perigoso, porque as pessoas não tinham nada no fundo que as movesse.
Mas é evidente que, eu digo até que a maioria dos fatores
são extra mérito. Há ali uma componente de mérito, mas na maior
parte dos casos os fatores são extra mérito. O que eu acho
que acontece na prática, a sensação que eu tenho, e isto também
vai de certa forma ao encontro da tua tese de que devíamos
ter mais comunitarismo. É que na experiência concreta das pessoas, as pessoas
contactam, não com aqueles que ficaram à porta da universidade, mas com
os colegas. E portanto, estás a avaliar o teu mérito face ao
teu peer e o teu par, provavelmente tem um percurso, tem um
background socioeconómico muito idêntico, tem um percurso muito idêntico e portanto aí
o teu mérito individual... Aí já se nota. Já se
João Ferro Rodrigues
da expressão da bolha, que eu uso no livro, que vivemos numa
certa bolha em que as pessoas com quem nos relacionamos, na maior
parte das vezes, já estão numa espécie de patamar em que a
maioria se calhar teve o mesmo tipo de apoio, pois há variações
mais pequenas. E depois aí se calhar tu podes dizer de facto,
opá, ok, eu cheguei mais longe que o meu colega AOB, ou
seja, da universidade ou do liceu e nós tínhamos mesmo condições de
partida, portanto aqui há algum mérito e há, esse caso funciona. Mas
eu acho que isso decorre também da homogeneidade das nossas relações sociais.
E daí entramos depois, se quiseres podemos falar um bocadinho por causa
da escola pública,
do
seu papel super importante porque é dos poucos sítios onde, apesar de
tudo, havia esta capacidade de nós percebermos que os pontos de partida
são muito diferentes
e a partir do momento
é que as crianças andam todas em escolas privadas ou em escolas
públicas muito homogéneas do ponto de vista social, elas perdem essa capacidade
de entender que há mais fatores que não apenas o mérito que
acabam por implicar nos seus resultados quando são adultos. Sim, esse teu
ponto de livro acho muito importante porque talvez seja de facto uma
coisa
José Maria Pimentel
que nos falta hoje em dia ou pelo menos que se deteriorou.
Porque tu dizias no início que as ideias são muito importantes, e
são, mas a maneira como as ideias aderem à mente das pessoas,
quisermos, depende muito da experiência concreta que elas têm. Isso é que
explica se tu vais sentir-te atraído por uma ideia ou não. E
se a tua experiência concreta for de pessoas do teu meio socioeconómico,
precisas ter uma pessoa com uma grande abertura de espírito e grande
curiosidade intelectual e eventualmente grande sensibilidade para aderir a ideias que suponham
tu percebes que há pessoas mais desprivilegadas. Porque a tua experiência concreta
não é essa. A tua experiência concreta é estar a olhar para
o teu par e pensar, olha eu esforcei mais do que ele
e não tive o mesmo resultado. Ou ao contrário. E portanto está
toda virada para essa questão de mérito, que é importante àquela escala,
mas numa escala do país, por exemplo, dificilmente serás, se calhar, a
favor de uma coisa como o rendimento básico incondicional ou qualquer tipo
de coisas de... Quer dizer, obviamente que são medidas que depois na
prática podem ter vários obstáculos em implementação, mas dificilmente isso te irá
sensibilizar porque aquilo nem se quer estar na tua experiência, quer dizer,
tu
João Ferro Rodrigues
não entendes que aquilo seja necessário. Estou completamente de acordo e aliás
a palavra experiência aqui é chave. Há duas maneiras, se tu quiseres,
há a maneira de indoctrinar as pessoas sobre estas questões, que é
o que nós estamos aqui a fazer, falar sobre elas, tentar-lhes abrir
o espírito. E o livro também vai por aí. E depois há
as experiências. É tu criares experiências de vida que permitam a elas,
de facto, ter um conhecimento diferente do que é a sua comunidade,
de toda a sua diversidade e com isso começarem-se a preocupar mais
com políticas e com soluções que saiam só da sua bolha. O
livro, eu penso, que aliás tem um capítulo que se chama Rebenta
a Bolha, que também é brincar um bocado com aquele nome daqueles...
Quando os jogos estavam viciados, não é? E portanto há aqui uma
espécie de um jogo viciado social e algumas políticas que têm a
ideia de rebentar a bolha. E é por via da criação de
experiências. Eu não estou a defender que isto deva ser falado no
currículo do décimo ano da educação de cidadania pelo professor nas escolas
dos meninos privados e dos meninos da pública para eles perceberem. Mas
estou a defender, por exemplo, uma coisa que eu vi alguns dos
teus convidados falarem, da importância de teres mobilidade nas escolas públicas e
teres crianças de meios mais desfavorecidos nas boas escolas públicas e arranjar...
Ou, por exemplo, a questão do serviço cívico obrigatório, que é uma
experiência. Repara, o serviço cívico obrigatório... É a tua proposta que deu
mais nas vistas. Deu mais nas vistas. Tu, eu acho que encaixaste-a
no ângulo exato que eu estava a pensar. Que é, isto não
vai lá por indoctrinar, isto vai lá por criar experiências. Se todas
as jovens deste país tivessem essa experiência, eles iam mudar um bocado
a sua perspetiva. A tropa, eu não sou defensor do serviço militar
obrigatório, atenção, o serviço cívico obrigatório tem outras dimensões. Uma delas pode
ser a militar, mas haver outras opções. Mas a tropa tinha esse
papel também. A geração dos nossos pais tinham, muitos deles, esta visão
mais unificadora da nossa comunidade porque partilhavam a tropa e experiências muitas
vezes muito duras e traumáticas com pessoas que muitas vezes não vinham
do mesmo meio social, vinham lá da sua aldeia, não sabiam ler
ou escrever, mas isso permitiu a essa geração ter uma noção do
que é a nossa comunidade, do nosso país, que eu temo que
a minha geração, e a tua também, que és um bocadinho mais
novo, mas não fazes assim tanta diferença, e dos nossos filhos então,
estejam mesmo a perder.
José Maria Pimentel
Mas há uma ponte, aliás, eu lembro do episódio que gravei, acho
que com o Pedro Lomba, na série de orientações políticas, que depois
deu um empate de origem ao livro, e eu lembro de estar
a ouvi-lo falar e de estar a dizer, há uma ponte entre
a direita conservadora e a esquerda clássica, não a nova esquerda, mas
a esquerda clássica, que vocês
José Maria Pimentel
percebo o teu ponto e até é verdade, não me lembrava desse
ângulo, que é de certo sentido óbvio, mas eu aqui até quero
dizer, Esse era um encontro ao centro, se quiseres. E eu aqui
falo de uma esquerda clássica, bastante, enfim, viamente, não é? E também
com um conservadorismo pouco moderno, não é? No sentido de enfatizar essa
questão da comunidade e até a questão do dever. Por exemplo, tu
tens aqui uma passagem, que eu vou citar, que tu dizes, num
tempo, qualquer coisa, em que os deveres sociais são esquecidos, em que
o ser humano é visto como alguém que vive de forma quase
virtual, sem relação com o território e sem as responsabilidades que deve
assumir perante a sua comunidade. E isto é muito decepto, tu fazes
este diagnóstico perante até as pessoas que no fundo venceram na economia
global, se nós quisermos, mas isto pode ser feito em relação a
muitas pessoas que vivem em meios urbanos e em parte delas é
exatamente nessa esquerda mais identitária. Sim, sem dúvida. É uma crítica interessante.
Olha
João Ferro Rodrigues
Maria, mas eu sou uma pessoa de esquerda mas não tenho problemas
nenhum em apontar o dedo aos meus pares ou às pessoas que
são de
outras ideologias ou a concordar. Agora, eu acho é que só o
facto de tu dizeres que uma frase dessas faz uma certa ligação
à direita conservadora, demonstra como algo na esquerda se perdeu, porque a
esquerda, social democracia, vem de um movimento cooperativo, não vem de um
movimento identitário, não é? E, portanto, e tu tens escritores, por exemplo,
como o Paul Collier, que é um economista que fala muito disso,
que é algo que se perdeu na social-democracia, que tem a palavra
social aqui, não é? Não tem a palavra individual, para que uma
frase como esta que tu acabaste de dizer, hoje em dia quase
que lida como uma frase de direita. Exato. Percebes o meu ponto?
Agora, que de facto é essa ligação à direita social e à
democracia cristã, etc, que existe? Claro que existe. Eu não me defino
como um conservador no sentido em que, para mim, tudo o que
é estruturas repressivas, extrativas é para arrebentar.
E portanto
nesse sentido sou um progressista puro e duro. Mas também não sou
um revolucionário no sentido em que estruturas que funcionem são para arrebentar
só porque sim. Pronto, Eu tenho elementos das coisas que eu defendo
que são conservadores. Por exemplo, eu sou conservador na democracia. Eu não
acho que... Eu acho que temos que a conservar. É uma instituição...
O Tribunal Constitucional é uma instituição. Se eu sou conservador nisso, se
calhar comparado com o Pedro Lombo ou com o Pedro Mechia, ou
etc., se calhar eles têm a 90% das coisas para eles é
para não mexer e eu tenho 50, 40.
João Ferro Rodrigues
Chama-se Galor, o autor do livro, e o livro chama-se The Journey
of Humankind, que fala da tese da geografia, da tese das instituições,
mas acrescenta aqui a tese também do mix entre diversidade e homogeneidade
étnica e cultural, que também pode ajudar ou não ao desenvolvimento das
sociedades. E sim, eu penso que há um ponto intermédio que não
é um ponto de total homogeneidade em que o bem comum tem
uma defesa absoluta. Não me esqueço que o Salazar, na Constituição de
1933, Tem lá o bem comum como principal causa, a principal razão
de tudo e qualquer atividade entre aspas subversiva era o bem comum
que era a justificação para acabar com ela. Portanto, o bem comum
é preciso ter cuidado, não pode ser levado em excesso porque é
levado a totalitarismos e comportamentos de tiranos e antidemocráticos, porque é uma
bela desculpa, não
é?
Mas por outro lado, tem que haver um grau de homogeneidade suficiente,
pelo menos a nível da cultura, a nível dos valores de uma
sociedade, para ela funcionar. E vai haver sempre um conflito, Isto é
uma questão irresolúvel. Eu se calhar se este livro fosse escrito daqui
a 30 anos eu estava a defender mais individualismo. O meu
José Maria Pimentel
lado do pêndulo. Aliás, a mesma questão do mérito liga aí, porque
houve um ponto de sucesso há bocado e depois não explorámos, que
é muito interessante, que é que mesmo que o mérito funcionasse, e
aqui por mérito podíamos substituir o elevador social, mesmo que a mobilidade
social fosse absoluta, isso não era necessariamente desejável, porque é um jogo
de soma nula por definição e portanto tu tinhas umas pessoas a
subir, outras a descer, portanto era bom para umas mas mau para
outras e até porventura criaria alguma perturbação. E ressentimento. E ressentimento, porque
tu tens que ter outros fatores identitários das pessoas para além do
trabalho, mas por outro lado também há um argumento inverso, até do
ponto de vista histórico, é dizer, o trabalho veio precisamente... O trabalho,
ou tu seres o teu trabalho, em grande medida veio iluminar fatores
que outra hora criaram guerras, por exemplo, não é? Porque com as
suas desvantagens, não é? Esta lógica do mérito e de tu... Quer
dizer, de nós sermos, acima de tudo, trabalhadores, não é? Mais do
que pertencer a determinada religião ou até a determinado país ou a
determinada etnia ou a determinado sexo, não é? Sejas homem ou mulher,
isso previne também as suas conflitos.
Sem dúvida. O
problema é que tu não podes eliminar isso completamente, senão... Sem dúvida.
As pessoas também não...
João Ferro Rodrigues
Eu penso que coloquei no livro, que é um exemplo direto do
Michael Sandel, muito interessante, para as pessoas perceberem esta questão do mérito.
Eu acho que esta questão do mérito é das mais difíceis de
desconstruir. Está tão dentro de nós que quem critica o mérito, espa,
este tipo está a fazer. Hoje em dia há muitos críticos. Sim,
começa a haver, mas não estou a falar a nível académico, estou
a falar a nível cultural, de falares com os teus amigos, é
uma palavra que é quase considerada como estar num altar. E o
exemplo que ele dá, que é muito feliz porque ajuda a entender,
e foi assim que eu percebi finalmente a questão, foi no tempo
da Idade Média havia os tipos que eram os nobres, os tipos
que eram os padres, os tipos que eram do povo, depois havia
a burguesia e não havia nenhuma mobilidade social. Uma pessoa nascia e
morria sempre na sua classe e no seu nível,
João Ferro Rodrigues
a nível da ordem social estabelecida. As pessoas que nasciam, por exemplo,
no povo, elas não assumiam de maneira nenhuma que necessariamente um nobre
era mais inteligente do que elas. Não. Ele até podia ter mais
dinheiro, podia ter 25 cavalos, podia comandar exércitos, mas era de outra
classe e, portanto, não havia ali nenhuma sensação de ressábio. Ou seja,
elas ficavam tristes por não ter mobilidade social, mas achavam que era
uma injustiça, mas não se sentiam de maneira nenhuma insultadas na sua
inteligência e na sua mobilidade e na sua capacidade, no seu mérito
de avançar. Quando entramos numa sociedade que é uma meritocracia perfeita, e
este é o argumento dele, isto não acontece. Quem fica para trás,
não só fica para trás, e portanto tem o pior resultado a
nível económico e social ficar para trás, como para além do prejuízo
ficar para trás, a expressão que ele usa é, adiciona, insulto ficar
para trás. Porque ele fica para trás e a sociedade aponta-lhe o
dedo a dizer tu ficaste para trás porque não conseguiste melhor e
agora já não tens a desculpa de não ver essa mobilidade, tu
terias conseguido, tu poderias ter lá chegado. E portanto é preciso perceber
que quando temos este efeito e de repente começamos a ter muitas
pessoas que não sobem a escada do mérito e lá está, é
uma palavra perigosíssima, expressão perigosa, porque não tiveram se calhar muito apoio
ao longo da sua vida para chegar a outros patamares, elas criam
um ressentimento muito grande E muito do que explica hoje em dia
este ressentimento contra as elites, que não existiria se calhar da mesma
maneira nos outros tempos, eu não estou a defender a idade média,
atenção, era pior, mas era precisamente que estas pessoas sentem este ressabiamento,
parece que a sociedade lhes está todas a dizer, não, chegaram porque
não conseguem, a culpa é vossa. E isto é um caldo muito
perigoso para uma comunidade, quando tu tens uma boa parte da população
a quem estás a apontar o dedo como se a culpa fosse
delas. E como a gente já tinha falado antes, a minha opinião
é que não é, que há aqui muitos fatores de
João Ferro Rodrigues
E é isso que muita esquerda e mesmo da direita mais moderada
não percebeu do apelo dele. É que ele não está a apontar
o dedo. Por mais besta quadrada que eu ache que seja, por
mais aldrabão, por mais antidemocrata, ele não está a apontar o dedo
a estas pessoas. E estas pessoas, antes de mais, têm um ressentimento.
E por alguma razão, o maior... Eu acho que tu já falas
disto no teu livro que eu vi, que o maior fator que
está ligado ao voto populista é a educação, né? E portanto tem
muito a ver com esse ressentimento de quem avançou ou não do
ponto de vista educacional E a maior crítica que estas pessoas fazem
às elites, ele atacando as elites, ele ataca quem eles sentem que
está a atacar. Exato. Ou seja, o inimigo do meu inimigo, meu
amigo é.
É
um pouco esta lógica que nos parece, que suscita também, que explica.
Eles sabem perfeitamente em quem estão a votar, mas valorizam muito ele
ter o mesmo inimigo que estas pessoas e estas comunidades têm. Portanto,
é um tema muito relevante.
José Maria Pimentel
E a crítica que tu fazes à esquerda identitária, no fundo, à
nova esquerda, se quisermos, eu imagino que seja até rejeitada por muitas
pessoas que se identificam dessa forma, porque tu dizes que parte da
esquerda deixou para trás, no fundo, as causas desta massa, de pessoas
que não estão especialmente mal, por comparação, sei lá, membros de minorias
que são vítimas de racismo, por exemplo, mas que não deixam ter
problemas económicos, de ter perdido rendimentos em alguns casos, ou pelo menos
de ter visto os rendimentos estagnarem enquanto os rendimentos de outros aumentaram,
e isso teria sido deixado para trás pela esquerda. Mas a verdade
é que há muita gente de esquerda que não deixa de ter
essa visão de que isso também é importante defender. O problema, e
isso quer dizer que o problema grande é que depois essas pessoas
não alinham no resto da agenda. E é isso que explica no
centro da Europa, não tanto em Portugal, ainda não se vê muito
isso, mas a crise da social democracia porque esses partidos da esquerda
clássica ficam de mãos atadas, não é? Porque não conseguem apelar a
ninguém e tu acabas por ter a nova esquerda a ir para
os partidos mais libertários e a esquerda antiga a ir para a
dieta radical, no fundo, a ir para o... Certo. Eu acho que
isso também explica porquê é que em Portugal, por exemplo,
José Maria Pimentel
eu acho que não há... Desculpa, interromper-te. Eu acho que não há
sequer na população... Nós somos o país mais empobrecido, com menos nível
educacional e, portanto, isto significa que, por um lado, a parte económica
continua a pesar muito porque é um país mais empobrecido e por
outro lado tu não tens ainda gente suficiente para apelar a essa...
Veja-se o Bloco ou o Livre, não é? Quer dizer, tu não
tens...
Sim, certo.
O Livre teve que se esforçar com tudo para eleger um deputado.
Sim,
João Ferro Rodrigues
Não, não, eu me apontei. Tal como eu, a maior parte das
pessoas que não votam no LIVRE e no BLOCO têm isso também
na agenda. A questão é quando a agenda é apenas dominada por
estes temas. E a verdade é que o PS, a sensação que
eu tenho, até se calhar por ter ali aquela bengala que é
ter o Bloco de Esquerda e o LIVRE etc. A poderem fazer
e as juventudes socialistas, antes de haver o bloco e tal, a
fazerem esse trabalho, sempre se conseguiu, apesar de tudo, manter, se fizessem
estudos de opinião no eleitorado, acho que mantinham que havia aqui uma
lógica do bem comum. Eu dou um exemplo num livro para mim,
é sintomática, que é a questão dos espaços sociais. Uma medida pura
e dura de bem comum, de pensar na comunidade, no bem estar
de todos, na sua mobilidade, na sua circulação. E é uma medida
que não encaixa em discursos identitários, como é fácil de compreender. E
há muitas destas medidas que, apesar de tudo, foram sendo tomadas num
carácter social mais transversal, mas que não é preocupada em determinados grupos
identitários, que é a razão porque eu penso que apesar de tudo
o PS e o PSD, porque a gente diz que o PSD
tem tido maus resultados, mas vai se mantendo ali entre os 25%
e os 30%, há muitos partidos da centro-direita na Europa que foram
à vida e que não têm este tipo de votações, e portanto
eu acho que a razão porque ambos os partidos ainda conseguem ter
um apelo eleitoral maioritário é porque nunca perderam completamente esta lógica. Dito
isto, quem controla a agenda mediática não é esta lógica hoje em
dia.
É o
Chega, é a iniciativa liberal, é o livre, é o logo de
esquerda e estes temas são temas que por serem mais polarizados, só
por isso mesmo têm mais atenção das pessoas. Não,
João Ferro Rodrigues
não só! É também aumentar em muita mobilidade social de quem está
em patamares mais baixos. Até é mais a pensar nisso.
Eu não estou
aqui só preocupado em permitir abrir a pistana a pessoas que já
estejam bem na vida. Eu acho que muitas dessas medidas, por exemplo,
aquelas relacionadas com escolas públicas, habitação pública, há muitos estudos económicos que
o que indicam é que é assim, por via de experiências, que
tudo permite-se a mobilidade social. É colocar pessoas de meios mais desfavorecidos
em contato direto com as melhores escolas, com os melhores bairros, terem
amigos que vão ser de outros tratos sociais e que também vão
puxar por eles ao longo da vida porque eles vão querer competir
com esses amigos, naquele fenómeno que tu falavas há pouco, que cada
um olha para as suas pessoas. E, portanto, a ideia do liquefação,
que eu gostei muito do liqueficador, é muito a pensar na mobilidade
social e nas oportunidades que criamos para quem tem um ponto de
partida inferior do ponto de vista da oportunidade. Eu
José Maria Pimentel
Exatamente. Ou seja, João, o que eu quero dizer é, eu achei
essa proposta muito interessante, mas sobretudo nessa lógica do crescimento econômico, se
quiseres. Na lógica de voltar a criar, ou até criar, um espírito
comunitário, que até que em alguns casos nunca existiu, mas corrijo-me se
eu estiver a ver isto mal, eu acho que aí o lado
interessante é as pessoas interagirem umas com as outras de maneira a
encontrarem pontos em comum, e no fundo criarem esse espírito comunitário mais
abrangente do que as bolhas que existem atualmente. Não percebo o teu
argumento. O que eu acho é que a dimensão óptima da
João Ferro Rodrigues
nossa comunidade não é atual. Atualmente nós estamos divididos e restringidos em
dimensões mais pequenas e isso tem um custo económico e existe desconfiança
entre diferentes bolhas, as bolhas socioeconómicas melhores e as que têm mais
rendimento e as que têm menos, pelos motivos que já falámos. Rebentar
esta bolha e pôr tudo no mesmo shaker, para usar a tua
expressão, faz com que aumentes a massa crítica e aumentes a confiança
nestes grupos, ou seja, fica um grupo maior e com mais confiança
e que isso é gerador de riqueza e prosperidade. Portanto, nesse ponto
de vista, se tu quiseres, a questão é, neste momento, a sensação
que eu tenho, vejamos um exemplo muito concreto, que se calhar é
melhor do que estas conversas teóricas para quem nos está a ouvir.
Na universidade, hoje em dia, estávamos a falar há pouco, que o
número de pessoas que estão a vir de classes sociais mais baixas
para chegar à universidade é francamente reduzido. Algo não está bem. Sempre
foi, não
João Ferro Rodrigues
Sim, mas do ponto de vista do peso, a minha questão é,
neste momento, a forma como o sistema de acesso à universidade está
feito privilegia muito as escolas privadas, porque elas fazem um trabalho de
muita qualidade, orientado para isso, para a entrada, e têm muito mais
apoio os alunos, e obviamente as famílias dos seus alunos também têm.
Privilegia muito as melhores escolas públicas, ou seja, também cria aqui uma
série de entropias e dificuldades para quem lá está, faça o seu
percurso educativo e até seja um aluno razoável, mas que não esteja
no melhor agrupamento de ensino público. E eu não tenho a certeza
se isto não se agravou nos últimos 20 anos. Eu acho que
esta desigualdade de acesso agravou-se. Concordo contigo, sempre aumentou, foi muito mais
o número de pessoas que acedem à universidade, mas a dificuldade no
acesso parece-me que se aumentou. O ponto de partida, a balança está
mais desequilibrada. Pronto, isto é um exemplo. A mesma coisa na habitação,
que sempre houve bairros mais ricos e bairros mais pobres, mas com
fenómenos como a gentrificação e com a expulsão das classes médias dos
centros urbanos, cada vez os territórios estão mais segmentados. Portanto, o meu
objetivo aqui é, se eu acredito que é preciso haver confiança a
uma escala maior para haver progresso, então nós temos que fazer políticas
que permitam que este progresso aconteça e é como? É rebentando estas
bolhas e em cada um destes setores, políticas na habitação, políticas na
educação, políticas em todas as áreas que tenham influência, para que mais
pessoas possam coexistir e com isto haver mais confiança na comunidade, porque
a confiança é o principal gerador de desenvolvimento. Se fores ver quase
todos os rankings de desenvolvimento económico, há uma correlação direta entre confiança
no seu vizinho e confiança nos seus eleitos. E Portugal está muito
baixo nisto.
Nós temos um problema de confiança muito grande. Isso nota-se em muitas
coisas. Nota-se no nosso tecido económico, que eu também penso que fala
no livro. Temos um número... Acho que houve uma vez um professor...
Não sei se não foi o Ricardo Reis, o professor Ricardo Reis,
que fez um artigo que era de Incredible Shrinking Portuguese Firm. Era
assim o nome. A nossa empresa média mínima a nível de dimensão.
É ridículo, sim. Porquê? Porque há uma questão de incentivos, mas também
há uma questão de falta de confiança que os nossos empresários não
gostam de associar-se. Começa a haver, atenção que muito tem mudado nos
últimos anos no associativismo empresarial, mas há um caminho enorme por fazer.
Alguém tem dúvidas que essa falta de confiança e esse pensamento compartimentado
custa muito dinheiro ao país? Porque essa falta de escala não nos
permite competir nos mercados globais. Portanto, o que eu penso é que
é, na economia, no território, na habitação, na educação, se nós usarmos
este prisma, como é que vamos reforçar a confiança e pôr mais
pessoas neste bolo e não só esta bolha, vai ter consequências muito
positivas a médio e longo prazo no nosso progresso e na nossa
riqueza. Portanto, eu nesse ponto de vista, eu acho que isto não
era um jogo de soma nula, nesse sentido.
José Maria Pimentel
É, mas eu estava a remeter para uma coisa diferente, agora estou
a perceber, estou a ouvir, e também depois de ter lido o
livro, tu tens dois tipos de argumentos para este maior comunitarismo. Um
é, se quisermos, material, que é de que ele gera mais crescimento
económico, até gera ganhos de saúde, por exemplo, e uma série de
outras coisas que tu lhe diste agora, e outro é mais, se
quisermos, moral e mais imaterial, e é de que esse comunitarismo é
algo bom em si mesmo, ou seja, é algo que devemos fazer
e é algo que em última análise até nos vai tornar mais
felizes. Tu fazes até esse argumento, não é? E tu tens propostas
que vão nos dois sentidos, não é? Acho que
João Ferro Rodrigues
resumiste melhor do que eu conseguiria. De facto, esses são os dois
argumentos e agradeço porque agora vou usar nas próximas conversas que tiver.
Que há o argumento moral, sem dúvida, mesmo que não tivesse nenhum
resultado material. A nossa dimensão moral deve-nos fazer viver em comunidades que
são saudáveis do ponto de vista moral, mas também há, e ao
meu lado de economista, e eu acredito muito nisso, um argumento forte
do ponto de vista material e de criação de riqueza e de
ultrapassarmos um patamar que nos limita, que é um patamar institucional, um
bocado na lógica da economia institucional, da forma como nós estamos organizados
e na forma como não estamos aí a buscar o melhor que
temos, que nos prejudica e, portanto, são esses dois argumentos. Cada leitor
vai se calhar dar mais importância a um ou outro, Mas eu
gostei da forma como tu resumiste, porque acho que o argumento material
eu não tenho sabido muitas vezes vendê-lo bem e é muito importante
também.
Pois, porque as pessoas tendem a...
Têm ir só ao argumento moral. Claro,
claro.
E eu não sou padre, quer dizer, não tenho nada contra, eu
gosto muito, nem sequer sou religioso e, portanto, claro que eu também
tenho a minha dimensão moral como qualquer cidadão, mas também escrevo o
livro muito a pensar ok, queremos ser mais ricos, queremos gerar mais
riqueza, queremos ter um país mais próspero, queremos criar mais oportunidades e
acho que, sinceramente, as propostas que o livro defende, não há aqui
um trade-off que para sermos mais comunitários vamos perder... No mesmo sentido,
sim. Não, não, é para criar riqueza, não é para reduzi-la.
José Maria Pimentel
Sim, e há até parte destas propostas que tu fazes, eu acho
que até são separáveis do teu diagnóstico em relação ao individualismo, porque
são problemas que vêm mais atrás, este problema da escala das empresas.
Nós até antes desta conversa falávamos no outro dia porque eu estava
a contar que tive almoçada com um amigo meu que é empresário
no país real, ou seja, não nas grandes cidades ou não em
Lisboa pelo menos e ele contava-me que não existem incentivos fiscais praticamente
à fusão de empresas, ou seja, à consolidação que é obviamente a
melhor maneira de ganhar a escala, não é? Porque, claro que a
empresa pode ganhar a escala porque cresce e ganha poder de mercado,
mas a maneira mais rápida é tu teres uma empresa a comprar
outras ou a fundirem-se. E eu fiquei um bocado escandalizado com aquilo
e ele dizia, não, na verdade... Ele dizia até com uma calma
ilugiável para alguém que está no terreno. Ele dizia, não, na verdade
não existe porque não há procura por isso, porque ainda há muito
poucas empresas a fazer isso e isso é cultural, porque os empresários
não querem. A última coisa que eles querem fazer é vender a
empresa a outro tipo que é o concorrente dele.
José Maria Pimentel
de saber. Eu penso que há alguma ligação. Mas eu tenho uma
pergunta para ti, porque eu acho que nós não estamos sempre a
falar do mesmo quando falamos de comunitarismo. Porque, por exemplo, quando nós
pensamos em comunitarismo, e lembras-te que eu até fazia aquela referência à
visão mais conservadora, mais tradicionalista, se tu quiseres, Nós estamos a pensar
numa moralidade mais homogénea, numa sociedade mais coesa, no fundo como era
antigamente. Mas os países que têm capital social mais elevado, ou seja,
que têm esta confiança interpessoal mais elevada, são os países nórdicos. E
os países nórdicos são países bastante individualistas nesse sentido. Ou seja, eles
têm um capital de moral mais leve, permite gerar uma confiança entre
as pessoas, o suficiente para confiar nos políticos, o suficiente para fazer
os negócios, mas não é aquela moral antiga, percebe-se o que eu
quero dizer? Percebo perfeitamente, mas... Ou seja, eles são muito individualistas.
João Ferro Rodrigues
não tenho a certeza, em relação à comunidade já não tenho a
certeza, mas o meu ponto é que se tu quiseres medir isso
pelo que as pessoas dizem, estou de acordo, depois se fores por
ver coisas mais métricas de associativismo local, de participação em clubes, em
associações locais, etc. Eles dão-nos 10 a 0 do ponto de vista
dessa participação cívica. Se quisermos tangibilizar um bocadinho o que é que
o bem comum significa, também é essa participação cívica. Eu percebo o
teu ponto e o que eu acho que eu gosto muito dos
países nórdicos é que têm níveis de confiança muito elevado. São coisas
diferentes.
Exato, é isso. Cada um está
na sua mas confiam muito no outro. O ponto de partida é
que o outro também está na sua mas confia em mim. E,
portanto, há ali uma espécie de uma relação feliz. E depois a
outra coisa que eu acho que é interessante é que não se
importam de deixar uma boa parte da sua riqueza para que a
sociedade como um todo funcione bem, neste caso é o Estado a
nível local, é o nível nacional, mas depois a terceira coisa que
eu gosto muito e que Também é uma coisa que tipicamente uma
pessoa que vota à esquerda em Portugal fala pouco, apesar de agora
hoje em dia estar a ver mais, é que são países muito
concorrenciais. Muito concorrenciais. E que conseguem coexistir ao mesmo tempo com um
Estado grande, mas nas áreas onde o Estado não está presente, há
muito poucas barreiras à entrada, há muita orientação para a exportação, há
muita lógica de associação e são economias que têm muita liquidez no
bom sentido, que acontece muita coisa e são a prova que o
peso do Estado e a questão da concorrência e da competitividade de
uma economia não são dimensões... Multamente exclusivas. Não é um trade-off, não
é um trade-off. Tu podes ter economias extremamente competitivas com maior ou
menor peso do Estado. Eu gosto muito pessoalmente do tipo de onde
chegaram. Deixa-me só dizer em relação às empresas, que estavas a falar
há bocado sobre a questão dos incentivos, que era patética que os
incentivos eram contrários. Eu te contei que antigamente os fundos europeus davam-te
dinheiro e davam-te uma majoração, se fosse uma PME, por sempre uma
PME. E depois tu fazias uma operação de consolidação com outra empresa,
em teoria é uma coisa economicamente favorável para o país. Perdias o
benefício e eles pediam o teu dinheiro de volta porque já não
cumprias com a majoração. Quer dizer, eu concordo com o teu amigo
quando ele diz que também não há muita procura, mas quando havia
procura os incentivos eram muito maus. Isso mudou um bocadinho agora. Eu
acho que, por exemplo, estas novas agendas mobilizadoras, não sei qual é
o resultado que vai dar, mas que são projetos muito grandes e
que estão a fomentar a criação de grandes consórcios. Ou seja, acho
que é um bom papel que o Estado pode ter é criar
condições e incentivos para que haja estas agregações. Ou seja, o Estado
também pode influenciar a criação de confiança. O meu ponto é esse.
E o livro fala de muitas políticas que na minha ideia são
de geradoras de confiança e que rebentam essas bolhas. E fazendo
José Maria Pimentel
aqui um bocado a advogado do diabo, não achas que uma medida
que promovesse a consolidação, que tinha óbvios benefícios económicos, não poderia agravar
o problema do individualismo, porque essas empresas muitas vezes, precisamente por estarem
muito ligadas à pessoa que as cria, têm muitas vezes um peso
na sociedade local que extravasa no seu âmbito económico, não é? Muitas
vezes, sei lá, patrocinam as festas da aldeia, sei lá, o geridor
da empresa
João Ferro Rodrigues
faz parte. Sim, mas espero que as empresas quando se consolidam saibam
manter a ligação territorial, não é? Ou seja, há uma consolidação. Sim,
não é possível fazer. Se isto é uma fábrica em Ovar e
outra em Santirso, espero que não decidam só apoiar Ovar a partir
de agora ou só Santirso, não é? Eu percebo o teu ponto.
Ou deixar de apoiar qualquer
um deles. Mas repara, na dimensão de comunidade e de agregação mais
nacional, faz sentido. Sim, sim, sim.
José Maria Pimentel
E por falar em empresas, isso agora nos levava de volta ao
início da conversa, tu começas no fundo por citar uma série de
mitos que no teu entendede se criaram, parte deles vindos da economia,
sobre a maneira como a economia deve funcionar. E essa era a
altura que tu citas o livro do Milton Friedman, que é o
Capitalismo e Liberdade, salvo erro, e isso fez-me lembrar de uma reflexão
que eu fiz há muito tempo e que eu acho que encaixa
bem aqui no modo comunitarista do teu livro. Porque o Friedman tem
um artigo que deu muito que falar e em parte está refletido
nesse livro, mas existe enquanto um artigo que publicou Salva no New
York Times em 76, que é um artigo muito polémico, é que
ele diz qual é a coisa do tipo, e acho que o
título até é mesmo este, a missão social das
José Maria Pimentel
sem discutir esse artigo muito. E eu também, numa cadeira que eu
dava, discutia esse artigo com os alunos. E é um artigo interessante
porque é um artigo bastante provocador, porque ele usa muitos argumentos altamente
convincentes e diz, entre outras coisas, que quando tu colocas outras coisas
em cima da mesa que não são objetivos económicos, aquilo é meio
que a minha andada para estares a drabar e estás a servir
os interesses que não são os interesses do fundo que é lá
pôs dinheiro e em última análise estás a deixar que esse dinheiro
seja capturado para fins que não interessam ou então a fazer umas
coisas tipo fazer assim umas obras sociais só para teres boa imprensa
mas que na prática não está acrescentar nada. E depois qual foi
a reflexão que eu fiz sobre isto, que eu acho que encaixa
bem aqui, é que eu acho que este lado social das empresas
é um bocadinho como a situação que tu tens lá do Ivala
Arário, das ineficiências, é qualquer coisa do tipo, são coisas práticas que
são aparentemente desperdício. Ineficiências by design, não é? Ineficiências by design, exatamente.
São coisas que são aparentemente desperdício, mas tu as tirares... Como o
exemplo do voto, acho que é o exemplo que eu... Tu dás
isso para o voto, não é? O exemplo do voto presencial. Exatamente,
se deslocar para votar. E um exemplo parecido são os presentes que
as pessoas dão a entre si, não é? Que é uma estupidez,
não é? Eu faço anos, tu dás-me um presente, faço anos eu
dou-te um presente. Que estupidez, não é? Exatamente. Agora, aquilo na verdade
é uma ineficiência que serve para... Não, é
prova que o
utilitarismo tem limitações. Exatamente. Isto vem no teu capítulo sobre o utilitarismo.
E eu acho que a responsabilidade social das empresas, que tem muito
de uma maneira de fazer publicidade, mas na prática acaba por forçar
as empresas, por um lado, a integrar-se nesse tecido social em questão,
por outro lado, levar as pessoas que lá trabalham a ter maneiras
de se realizarem para lá do trabalho do cur que estão a
fazer. E portanto, embora seja ineficiente, eu aí concordo com ele. Quer
dizer, claramente é ineficiente, é óbvio, o bottom line daquilo é muito
difícil de avaliar, mas tem esse efeito parecido a uma série de
ineficiências sociais que nós temos, do tipo de dar presentes, mas podíamos
nos lembrar de várias outras, que não servem para nada, mas servem
para, por um lado, nos dar sentido à vida, em certo sentido,
e por outro lado, permitem manter a confiança. Ok,
João Ferro Rodrigues
em trabalhar no motomotor... A minha experiência é... Tu tens o Porter,
também dizia, tem aquele framework em que uma empresa tem um ecossistema
que tem clientes, tem fornecedores, tem os reguladores, entidade reguladora, tem os
empregados, é fundamental, são estes os principais e depois tem os stakeholders,
os acionistas também. E o meu ponto é que o que se
calhar se chama fazer o bem ou responsabilidade social é só do
meu ponto de vista tratar decentemente e com uma perspectiva de longo
prazo todo esse ecossistema e que isso favorece os seus lucros. Portanto,
se tu fizeres essa análise, se calhar vais chegar à conclusão que
existem algumas atividades de responsabilidade social que não favorecem os lucros.
Tudo
bem, e se calhar as empresas nessas não se deviam meter. Por
exemplo, eu acho que as empresas deviam se meter em atividades que
são preocupações claras da sua comunidade de clientes, dos seus empregados, porque
o pulo de empregados é muito importante, e portanto favorecem a sua
retenção, porque a retenção dos empregados cria valor e lucro, que sejam
preocupações dos seus acionistas obviamente também, não é? E que sejam dos
seus fornecedores também. Portanto, o meu ponto é que existe hoje em
dia já muita literatura que demonstra que isso é um trade-off que
já não existe muito, que é quando as empresas fazem a responsabilidade
social de uma forma correta, ela é potenciadora, claramente, a prazo do
lucro. E do lucro não naquela perspectiva dos custos que tivemos aqui
extra com um determinado fornecedor porque lhe demos aqui uma ajuda para
ele não despedir pessoas ou com uma campanha que fizemos porque a
nossa base de clientes concorda que é um tema crítico para a
nossa sociedade, nós vamos estar a ganhar com isso passado uns tempos.
João Ferro Rodrigues
quando li que é... O autor do Sapiens, ele escreveu um artigo
no Financial Times a dizer que o voto presencial é um momento
comunitário, é um momento em que nós saímos de casa, vemos os
nossos vizinhos, estamos todos a ir orientados para algo que é para
o bem individual, mas para o bem comum, estamos lá. Se nós
estivéssemos a fazer isto no nosso telemóvel... Já ouvi muita gente a
dizer que era fantástico, que era muito eficiente, mas a dimensão simbólica
e comunitária deste processo perdia-se. É um rito, não é? Que celebra
um mito que é a democracia. E tu não podes alterar um
rito que celebra um mito, não é? Tal como a igreja tem
os seus ritos, a democracia também tem os seus. Por um rito
que é uma patetice que é carregar num botão de um telemóvel
e já votei, porque perdes esse valor simbólico que estás a atribuir
à democracia. Nós todos sabemos que é um dia especial o dia
do voto. O dia que vamos lá votar não é um dia
igual aos outros. O momento do voto sabemos que estamos a participar
de uma dimensão coletiva que já temos poucas. E então eu achei
esse exemplo que é um exemplo bom de uma ineficiência por desenho
que faz falta.
José Maria Pimentel
Sim, Eu defendo há muito tempo, ou tenho reservas em relação ao
voto eletrónico, com um elemento parecido, mas nunca lhe tinha chamado uma
coisa tão boa porque de facto é uma boa maneira de chamar.
Eu gosto muito de ir votar e para mim é um bocado
ridículo, é uma ocasião especial e a minha mulher acha uma coisa
meio bizarra, mas Eu gosto de ir lá. Claro, com certeza, eu
também gosto. Estou a falar o dia todo, vamos assistir ao almoço,
vamos não sei o quê. É um programa, é como ir
João Ferro Rodrigues
que é outro rito. Das poucas coisas que me lembro da filosofia
do décimo primeiro ano é uma professora que me disse que um
rito era a celebração de um mito, não é? E que tens
os
ritos da igreja
e, portanto, a igreja é a missa, não é? É um rito
porque é a celebração de um mito, não é? Que é o
mito de Jesus, não é? Eu não vou entrar mais em pormenores
porque tenho medo de dizer alguma paraboísa em relação ao tema. E
o que eu acabei de dizer eu sei que é assim. E,
portanto, na democracia e nas comunidades Existem também ritos que não têm
que ser necessariamente eficientes do ponto de vista económico, mas que fazem
falta para a tal cola, para a tal confiança. E eu acho
que o voto é um deles.
José Maria Pimentel
Não, isso aí estou de acordo contigo. Há um aspecto que nós
não falámos ainda, interessante, no livro, que levantas uma possibilidade interessante que
também já me tinha ocorrido de esta erosão da comunidade poder ter
criado um espaço que fez crescer precisamente estas visões mais radicais populistas
na maioria dos casos. E esse é um aspecto interessante. Tu até
citas um shirt da Ana Arendes interessante, a propósito do tutelaritarismo dos
anos 30, que por acaso não me teria ocorrido que tenha essa
causa, mas a proposta, pelo menos a interior, é algo que faz
sentido, que é quando desaparecem camadas intermédias, que passa a ser tu
indivíduo, a tua família, mas depois as outras, sei lá, o associativismo
local, ou a pertença à igreja, ou whatever, de qualquer aspecto identitário
que seja comunitário, vão desaparecendo. Depois aumenta a desconfiança e sobretudo aumenta,
cria espaço, e esse é até do ponto de vista da analogia
eu acho interessante, cria um espaço que depois pode ser ocupado. Eu
acho que pode ser, e nós acho que Estamos a ouvir isso
hoje em dia também, o reboco das redes sociais, mais ocupado pela
política no geral e depois dentro da política, por visões mais radicais.
Sim, é verdade. E repara que, por exemplo, o surgimento do fascismo
João Ferro Rodrigues
nessa época, ele é um fenómeno que foi ocupar a dimensão comunitária,
ou seja, ele não foi responder a necessidades individuais das pessoas, ele
foi dar uma visão totalitária, excessiva da comunidade, mas era uma visão
comunitária e veio responder até à vontade de pertença que as pessoas
têm a algo que é superior apenas aos seus interesses. Ainda agora,
recentemente, estava a ver um artigo, que eu não sei se já
não me lembro se cheguei a mencionar, no livro sobre os neofascistas
italianos, da forma como tentam replicar um bocadinho na ótica do bairro
e fazem entrevistas com pessoas que são afiliadas no partido e que
elas dizem coisas como eu tenho aqui agora um sítio para ir
para estar com pessoas que são aqui conhecer amigos eu estava muito
enfiado em casa sozinho e tenho aqui uma dimensão coletiva vamos colar
uns cartazes, bemos umas cervejas. O tema é que estas pessoas nem
sequer são necessariamente de extrema direita nem racistas mas há um preenchimento
de uma dimensão que todos nós temos de pertença que sabem fazer
e é perigoso. Ou seja, por isso é que há um dos
alertas do livro é cuidado porque o bem comum vai voltar. Agora,
quem é que vai agarrar nisto? Vai agarrar quem é democrata, tem
preocupações inclusivas e quer que ele coexista pacificamente com muita diversidade e
com os ganhos todos identitários das últimas décadas ou vai agarrar nisto
quem é o bem comum na ótica do tempo da outra senhora
que a única coisa que quer é um rolo que leva tudo
à frente numa ótica de uniformismo, tirania e autoritarismo. Esse é que
é o grande desafio. Não é tanto se o bem comum vem
aí ou não, é qual a faceta. Porque repara que na Europa
no século XX tivemos essas duas versões do bem comum. A versão
horrível, no meu ponto de vista, do nazismo, do fascismo e do
comunismo, do stalinismo, que são visões que não deixam para trás qualquer
tipo de individualismo e de autonomia individual, mas também tivemos aqui uma
coexistência mais interessante a seguir ao pós-guerra na Europa continental, no período
dos chamados 30 anos gloriosos, em que coexistiu com o progresso e
com liberdades individuais. Excluíram muitas pessoas que agora, e muitos subgrupos que
agora já não excluímos. E portanto, no fundo é, há esse risco
e quem é que vai aproveitar este espaço? Este espaço que as
pessoas sentem de pertença. Por isso é que o livro propõe que
sejam aproveitados por elementos que eu considero positivos para a comunidade, não
por elementos que eu considero que a parácia só vão trazer tragédia.
Tu
José Maria Pimentel
colocas a coisa entre os termistas, se quiseres, e os democratas, Mas
eu até acho que o que aqui está em causa é mais
entre os extremistas e as instituições intermédias, se quiseres. E aqui voltamos
ao argumento conservador. Ou seja, as pessoas têm a sua identidade, e
a sua identidade vai para lá do trabalho. Não há, acho eu,
ninguém cuja identidade se esgote no trabalho. E, portanto, as pessoas têm
que preencher com algo mais. E, a partir desse momento, o que
é que é melhor? É ter, por exemplo, uma instituição como a
Igreja, que a pessoa até pode achar obsoleta em muitos aspectos, ou
que essa instituição não exista e as pessoas tenham que preencher esse
tempo fazendo parte da lega, no é? É um bom exemplo.
João Ferro Rodrigues
que seja. E a sensação do contributo, de fazer parte de algo
maior do que os próprios. Os sindicatos também tinham esse papel. E
a verdade, e indo ao ponto que estavas a dizer, é que
se tem esvaziado um bocado quem fazia estes papéis na sociedade civil,
na sociedade que não está diretamente, os sindicatos, as igrejas mais tradicionais.
E, portanto, está a haver aqui um espaço que vai ser naturalmente
populado por algo diferente. Podemos ter aqui uma surpresa positiva, que ser
a sociedade civil democrática a arranjar estas novas associações e a criar
aqui coisas muito interessantes do ponto de vista local. Ou, espero eu,
Ou então ter um grande susto, que é começarmos a ver, a
aparecer em cada bairro onde não existe esta dimensão de pertença agora
solidificado, uma oferta de dimensões de pertença que não são aquelas que
nós mais gostamos, que são as dimensões autoritárias, extremistas, intolerantes e contra
os outros. Intolerantes e contra os outros. Há esse risco e o
livro também tem essa alerta que é melhor mexer-nos. É um bocadinho
como aos símbolos. O livro fala do tema do Bolsonaro, não sei
se te recordas,
da
bandeira amarela. Eu penso também, já terás abordado este tema no teu
livro, dos símbolos nacionais, da importância que eles não sejam todos cativados,
os símbolos coletivos, por extremistas. A primeira batalha é ganhar o símbolo
de volta. Cá em Portugal eu acho que apesar de tudo a
nossa bandeira, até por causa da seleção nacional, está bem protegida. Quem
a usa não é associada a um extremista, é associada
José Maria Pimentel
a um fã do Cristiano Ronaldo e da nossa equipa. Exatamente. Há
um aspecto nisto que, neste teu diagnóstico, pode levar a algum pessimismo,
porque sociologicamente provavelmente estes movimentos, estou a pensar no Chega no caso
português, terão até mais facilidade de encontrar pessoas dispostas a fazer esse
papel de doutrinação local do que propriamente as pessoas com uma visão
mais progressista. Porquê? Precisamente por aquele aspecto que tu falas de bolhas
e de uma espécie de descolagem entre, podemos chamar as elites se
quiseres, não gosto muito do termo mas acho que é se calhar
o termo mais fácil, e o resto da população. E por exemplo,
há um exemplo muito giro que tu dás no livro, que já
pensei várias vezes, tu fazes uma crítica a certo ponto a um
determinado órgão de comunicação social pela maneira como dá notícias sobre eventos
violentos com enorme desproporção face ao peso que eles têm na realidade.
E esse é um aspecto interessante, que é um aspecto que não
é especialmente falado. Mas na verdade, há imensa gente, sobretudo pessoas mais
velhas, mas não só, também pessoas não empregadas e enfim, eventualmente, não
tenho certeza disto, mais fora dos meios urbanos, que passam muitas horas
do seu dia a ver televisão, sobretudo, eu não sei se já
apanhaste, ou durante a pandemia apanha mais isso, aqueles programas da manhã.
Certo, até
José Maria Pimentel
Mas conheço o género, sim. A maior parte das pessoas mais educadas,
se quisermos, educadas no sentido do ensino, não têm bem essa noção,
porque tu tens um trabalho, quer dizer, não estás em casa, não
estás a ver televisão. Tu ligas a televisão e aquelas pessoas constantemente
a comentar os casos mais cabrosos, do não sei o quê, que
viu louco, esquartejou e há pessoas que passam horas do seu dia
a ver aquilo. É impressionante. Qual é a noção do país que
João Ferro Rodrigues
para ver. Há jornais. Dá para ver em 60 programas. Agora imaginem,
como é que... Claro que cada morte é uma tragédia, mas destas
80, cerca de metade é violência doméstica, que é horrível, não é?
Depois há muitas disputas de vizinhos, mas são 80 casos, não é?
E portanto, agora imaginem o esforço mediático que é preciso fazer por
um canal diário que está sempre a passar notícias de crimes, para
conseguir tirar sumo destas 80 fatalidades, ok? E agora imaginem a perceção
completamente equivocada que isto gera nas pessoas. Mas isto não passa só
pelas pessoas, com menos educação. Eu tenho amigos meus que têm uma
visão do que é a segurança do nosso país completamente baseada nisto,
porque estão a ser bombardeados diariamente com estas notícias. E não é
só nos programas da manhã. Uma ideia que o país está todos
os anos mais perigoso, quando todos os relatórios dizem que há uma
tendência estrutural e de décadas que o Portugal está com cada vez
menos episódios deste tipo de violência. É uma preocupação. Tem graça a
falar desses programas da manhã. Repara que esses programas da manhã mimetizam
muito a experiência que essa senhora teria no café da sua rua
a falar com os vizinhos. Lá está, é uma resposta a uma
certa dimensão comunitária, mas é
triste Porque
a pertença não é a mesma, ela continua a estar deste lado
da televisão e não está a interagir, não é? Por isso é
que se diz que ajudam as pessoas a combater a suidão e
tu falas... E as pessoas que vêem esses programas dizem isso. Mas
não é uma resposta tão boa como uma resposta de estar face
a face com alguém no seu bairro ou no seu centro de
dia ou num seu clube a jogar umas cartas ou fazer o
que for.
José Maria Pimentel
Olha João, para acabarmos, o teu livro tem propostas, mas a minha
pergunta é diferente disso, é para onde é que tu vês as
coisas encaminhar-se, independentemente de toda a gente acordar amanhã e ler o
livro e desatar em implementar aquilo que tu sugeres, como é que
tu vês? Porque eu acho que nós temos aqui várias tendências que
vão ver esse sentido contrário, não é? Tens as pessoas a utilizar,
quer dizer, mais isoladas se quiseres no seu telemóvel, por exemplo, é
uma tendência que é muito criticada e eu acho que em muitos
casos faz um diagnóstico exagerado, mas contribui para esse individualismo. Tens até
o teletrabalho que pode contribuir para esse individualismo e descolamento, porque também
no trabalho... Sem dúvida. As pessoas também têm a sua identidade ligada
aos colegas de trabalho e à empresa ou organização.
João Ferro Rodrigues
O livro, aliás, eu tenho lá um capítulo que é o capítulo
6. Já estamos aí, já estamos num momento em que o pêndulo
está mesmo a mudar para o bem comum, eu gostava de ter
uma resposta, mas não tenho. Ou seja, o que eu acho é
que se não atingimos o patamar de alguns desta cultura do eu,
estamos muito próximos disso. E acho que tanto a pandemia, como agora
até a questão da guerra, que é horrível. Há aqui muitos fatores
que estão, outra vez, a puxar para uma maior preocupação comunitária, que
são respostas quase naturais das sociedades e inimigos externos, que fazem também
puxar por isso. Em relação ao Portugal, em Portugal tenho a sensação
que, no tema da dimensão mais identitária, estamos um bocadinho atrás dos
países anglo-saxónicos, portanto é natural que esta corrente continue ainda mais uns
tempos até começar outra vez a equilibrar-se. Mas eu sou estruturalmente otimista
sobre Portugal e Acho que em última análise tivemos aqui uma elevada
pancada por questões externas nas últimas décadas a nível económico e que
agora muitas desses fatores estão a desaparecer e depois de ter ouvido
os teus programas sobre educação ainda mais otimista fiquei pelo facto mais
importante de todos que é apesar de tudo fizemos muita coisa nos
últimos 20, 30 anos nesse domínio e somos um país completamente diferente
e que vamos começar cada vez mais a receber os frutos disso.
Isso estava para outro programa e tu já fizeste muitos sobre esse
tema. Mas pronto, só para te dizer que a nível do bem
comum em Portugal, neste momento penso que estamos numa fase de transição,
mas que ainda não é líquido para mim, se ainda vai piorar
antes de melhorar ou vai começar já a melhorar.
João Ferro Rodrigues
Tenho. Aliás, vou aqui confessar que estamos a gravar este programa aqui
do estúdio, na casa do José Maria Pimentel e reparei que ele
tem um livro que é os Irmãos Karamazov e que vai levá-lo
muito bem para férias para ler e eu lembrei-me que tinha, para
não falarmos só destas questões de economia e de sociologia e de
que temos estado aqui a falar, de um livro que li recentemente
e gostei muito, eu penso que ainda não está traduzido em português,
mas se tiver o Zé Maria depois faz o favor de colocar
nas notas, chama-se A Swim in a Pond in the Rain, o
autor é o George Saunders, é um grande novelista conceituado americano de
short stories, portanto de contos, e o que ele faz neste livro
é uma aula, é muito interessante. Ele escolheu sete contos clássicos russos,
do Chekhov, do Tolstói, do Dostoyevski e, primeiro, uma pessoa lê o
conto e depois ele faz o que faz na sua universidade nos
Estados Unidos que é a sua desconstrução do conto em cerca de
20 páginas e aprende-se muito. Para quem gosta de literatura e quer,
como eu, começar a ler alguma coisa dos russos, é uma bela
porta de entrada. Eu confesso que até agora não tinha lido nada
dos clássicos russos e fico cheio de vontade de continuar a ler.
Estava