#125 Bernardo Motta - Ciência e religião são incompatíveis?
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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o
45 Graus. Antes de mais um anúncio para os ouvintes de Braga,
vou estar na Feira do Livro no próximo dia 12 de julho,
terça-feira, pelas 17 horas, a dar uma entrevista ao António Ferreira da
RUM. Na altura do lançamento do livro, como se recordam, fiz três
apresentações, Lisboa, Coimbra e Porto. Tive muita pena de não ter feito
em Braga, tive quase para fazer e portanto veio mesmo a calhar
de novo. O evento está marcado para as 17 horas, mas eu
conto estar lá pelo menos até às 7 da tarde, portanto se
puderem aparecer, mesmo que não seja para a entrevista a seguir, tinha
muito gosto em ver-vos lá e, enfim, e assinar alguns livros, se
quiserem. E feito este anúncio, vamos ao episódio de hoje. Quem ouve
o 45° há mais tempo sabe que o tema religião, e o
cristianismo em particular, me interessam muito, por vários motivos, desde logo porque
é essencial para compreender a história da humanidade, mas também pela importância
que a religião continua a ter ainda hoje na vida de muitas
pessoas, e isto apesar de vivermos num mundo mais secularizado e dominado
pela ciência. Enquanto agnóstico ou ateu, fascina-me sobretudo compreender como é que
um crente enquadra na sua fé a ciência, e de uma maneira
mais abrangente, de onde é que vem essa fé, em que motivos
é que ela é fundamentada e como é que é a experiência
subjetiva do divino. Conversei sobre estes temas e muito mais neste episódio
com Bernardo Mota, o convidado é engenheiro eletrotécnico de formação e com
carreira nessa área, mas é também um católico praticante, praticante a sério,
e um conhecedor profundo dos debates académicos sobre Deus e o Cristianismo,
aos quais tem dedicado muito nos últimos anos. A primeira vez que
o nome do Bernardo me foi sugerido foi por um antigo convidado
do 45°, um ateu dos quatro costados, mas que apesar disso recomendou
Bernardo Mota enquanto alguém com bases científicas sólidas e, sobretudo, conhecimento profundo
dos debates da filosofia da religião. Ora, vindo a esta recomendação de
alguém que não era crente, fiquei logo intrigado, até que o nome
do Bernardo me voltou a ser sugerido, desta vez por um mecenas
do podcast, e aí, como o tema de facto me interessa muito,
decidi avançar e convidá-lo para o 45°. O convidado tem-se dedicado a
estudar a história do cristianismo e a sua relação com a ciência.
Depois de um livro publicado em 2005, em que desmontava as teses
defendidas por Dan Brown no livro O Código da Vinci, na altura
muito na berra, o convidado tem-se dedicado sobretudo a estudar a relação
do cristianismo com a ciência e a difundir a sua visão sobre
ela, por exemplo, através de um curso que tem lecionado em vários
fóruns, inclusive no Instituto Superior Técnico nos alunos dos mestrados de Matemática
e Física. Mais recentemente, em 2017, publicou um livro sobre o milagre
de Fátima, em que defende simultaneamente a tese do milagre e uma
explicação triológica, isto é, científica, para o que foi observado. Este era
um tema de que era suposto termos falado, mas acabámos por não
ter tempo para discutir a nossa conversa. O Bernard Allen disse-se alguém
muito ativo nos recantos da internet, hoje em dia sobretudo nas redes
sociais, onde crentes e ateus se digladiam a debater este tipo de
questões. Aliás, embora o convidado seja um católico profundamente convicto, alguns diriam
mesmo fundamentalista, tem um gosto enorme no debate com ateus e agnósticos,
ao ponto, a risco, disso lhe gerar o paradoxo de que um
mundo supostamente ideal, ou seja, onde não houvesse ateus, seria provavelmente um
mundo muito mais aborrecido para ele. Nesta vontade em debater com não-crentes,
o convidado distingue-se, na verdade, de muitos católicos que remetem a crença
em Deus para uma questão puramente subjetiva de fé. Para o convidado,
pelo contrário, a existência de Deus é algo que pode ser provado,
filosófica e cientificamente, e portanto, é um debate tão ou mais relevante
do que qualquer outro. A nossa conversa resultou muito longa e por
isso resolvi dividir o episódio em duas partes. Começámos por falar do
modo como o Bernardo entrou nestes meandros dos debates sobre religião, quando
decidiu estudar a teoria da conspiração que acabou por servir de base
ao código da Avintes. O convidado tem aliás uma biografia peculiar neste
aspecto, porque como ele relata, passou um período longo longe da fé,
durante o qual acabou por gravitar para outras crenças, inclusive a religiões
orientais, pelo exoterismo antigo e por algum fascínio por este tipo de
teses alternativas. Mas o grosso desta primeira parte da nossa conversa foi
dedicada à relação do cristianismo com a ciência. Isto levou-nos a alguns
argumentos do convidado para a existência de Deus e a discutir várias
questões onde a ciência e a religião entram em colisão, como por
exemplo compatibilizar a narrativa criacionista da bíblia com a teoria da evolução,
a origem da vida na Terra, o lugar da Terra no Universo
e mesmo o eterno mistério da consciência, ou seja, o modo como
nós sentimos a nossa própria consciência como algo muito mais imaterial do
que propriamente material. A propósito, uma nota, eu engano-me a certo ponto
e digo etnocentrismo em vez de dizer geocentrismo, ou seja, a ideia
de que o universo ou o sistema planetário estava centrado na Terra.
Espero que gostem. Este episódio fez-me lembrar várias vezes da descrição deste
podcast. Um podcast para todos, mas não para qualquer um. Desde logo
pelo tema em si, que, a risco, não interessa a todos os
ouvintes. E em segundo lugar, e principalmente pelo tipo de conversa, longa,
mais filosófica e com um fio condutor menos claro do que acontece
nos episódios normais. No entanto, se gostarem destes temas e sobretudo Se
tiver a mente aberta, tenho a certeza de que irão gostar bastante
deste duplo episódio, mesmo que discordem muito do convidado. Aliás, precisamente por
eu próprio ter um ponto de partida muito diferente do do convidado
nestes temas, embora tenha procurado provocá-lo e confrontá-lo com as minhas opiniões,
optei sobretudo por dar primazia à curiosidade, que afinal de contas é
o espírito do 45°, e dar espaço ao convidado para explicar os
seus pontos de vista e fundamentar as suas ideias. Para a semana
sai então a segunda parte desta conversa, na qual cobrimos tópicos, dentro
do género, mais normais numa conversa sobre estes temas, como a figura
de Jesus, a experiência subjetiva do divino e o eterno problema do
mal. Deixo-vos então com a primeira parte da conversa com Bernardo Mota,
não sem antes agradecer, como de costume, aos novos mecenas do 45°,
Leonardo Rodrigues, Rui Passos Rocha, Filipe Amoreira Rato, Filipe Almeida e Emanuel
Saramago. Até lá. Bernardo, bem-vindo ao 45°. Muito obrigado, Zé Maria. Bom
parte de estar aqui. Eu não costumo fazer isto mas acho que
neste caso, como estávamos a falar há bocadinho, faz sentido começar pela
tua biografia, porque ela liga só o tema. Ou seja, tu não
foste sempre um católico praticante, como és hoje, e isso é interessante
porque esse caminho não surgiu por acaso, ou seja, o teu regresso
à religião não surgiu por acaso e também define grande parte daquilo
que tu acreditas hoje. Como é que isso aconteceu? Para o tema
Bernardo Motta
e que me entregava esse aspecto da sua prática religiosa. Como muitos
adolescentes em famílias católicas Fiz a primeira comunhão, fiz o Crisma, fiz
o Crisma com 15 anos. E hoje em dia se eu pensar
no que é que aquele rapaz de 15 anos sabia sobre a
fé católica, quase me dá vontade de rir, porque não sabia nada.
E por isso, como não sabia nada com 15 anos e é
o último sacramento da iniciação cristã, a partir daí a catequese termina,
como se fosse uma espécie de uma graduação ou de um fim
de curso, quando deveria ser o começo e naturalmente que a igreja
depois espera que as pessoas façam o seu percurso a partir dos
15 anos, mas no meu caso não aconteceu. Eu vou até à
universidade com um abandono progressivo da prática religiosa, a ser é que
alguma vez a tive, não é? Porque eu acho que a minha
prática religiosa até entrar para a universidade era muito de imitação, muito
de hábito. Eres católico por inércia, não é? Sim, católico por inércia
acho que é uma ótima expressão. E a entrada para a universidade,
para o instituto protécnico, para um curso de engenharia com o qual
eu sempre sonhei desde criança, com o meu fascínio por computadores e
por eletrónica foi para mim uma grande desilusão. E a desilusão não
tem a ver com o instituto protécnico, não tem a ver com
as pessoas que lá andavam, tem a ver com o facto de
que, talvez pela primeira vez, como jovem adulto, não tinha feito o
processo intelectual de pensar nos temas grandes da vida. E quando eu
me dou conta de que já estou na universidade e de que
vou ter pela frente cinco anos de matemática, eletrónica, tiros-circuitos e disciplinas
semelhantes, que para mim sempre foram o sonho, e robótica, depois sou
eu que explicei também robótica, para mim tudo aquilo era como estar
num par de diversões, mas a exigência do estudo e a aridez
de algumas matérias deixaram-me absolutamente desanimado. E, curiosamente, nesses anos de universidade
eu refugiei-me em algo que nunca me tinha fascinado por e além,
na Idade Média, na leitura de livros sobre os Templários, sobre História.
No fundo, a história a chamar-me a atenção e talvez como uma
forma de compensar fora de aulas, quando não estava na universidade, quando
estava em casa, compensar um excesso de tempo dedicado à parte da
engenharia. E abre-se uma janela que rapidamente a história me leva para
o exoterismo e para o ocultismo e para a alquimia e para
a magia e para esse tipo de coisas. Não tanto na perspectiva
moderna contemporânea do New Age, isso nunca me convenceu, sempre achei que
era tudo aldrabice, mas mais numa perspectiva de que se calhar havia
algo de genuíno e de bonito e bom para aprender num esoterismo
perdido nas areias dos tempos, em tradições alquímicas ou medievais e foi
um pouco por aí, as minhas leituras foram um bocadinho por aí...
Não sei se
Bernardo Motta
acho que era mesmo para compensar, talvez alguma forma de compensação psicológica.
E depois acabo por criar para mim próprio um hobby que consistiu
em ler de forma quase compulsiva acerca de uma lenda misto exotérica,
misto de tesouros, que tinha como epicentro uma aldeia no sul de
França, chamada Rennes-le-Château. E essa história, com muitos braços e ramificações, basicamente
falava de um padre que tinha enriquecido de forma ilícita. E esse
padre ocultava um grande segredo, e que para o calarem, ele era
subornado. E esse grande segredo é que ele tinha descoberto uma descendência
de Jesus Cristo, que teria casado com a Maria Magdalena. E que
esta linhagem chamada Sagrada teria sido escondida durante milénios, durante dois milénios.
E este padre teria descoberto esse segredo explosivo que podia fazer cair
a igreja católica e derrubá-la. E foi por isso que ele enriqueceu.
Esta história detetive resulta de uma fraude que surge nos anos 60,
obra hábil de três homens de grande inteligência e de grande sentido
de humor, mas eu não tinha cultura nem bagagem para perceber que
estava a ser levado por essa fraude que tinha 40 anos de
existência, essa fraude lendária, e passei talvez 5 ou 6 anos de
volta desse tema até descobrir que era tudo uma fraude e tive
uma reação de anticorpo, quase adversa, que foi dizer a Igreja Católica
afinal não é mada fita, afinal tudo isto é uma fraude e
tudo o que eu pensava e todas as minhas ideias sobre a
Igreja Católica estavam ao final erradas. Eu tinha tido uma birra, se
quisermos, contra a minha religião na juventude e estava a fazer as
passos
Bernardo Motta
E eu tive uma fase muito forte de heresia e de zanga
com a minha fé. Eu lembro-me que, durante algum tempo, na missa,
eu não conseguia rezar ao crédito, porque eu não acreditava. E isso
chega a uma altura que a nossa consciência nos diz se estás
a abrir a boca e a dizer, é bom que acredites, porque
se não acreditas, feches a tua boca
e não dizes.
Se não estás a mentir para ti e próprio para os outros,
porque o crédito é uma afirmação pública de fé. E durante algum
tempo eu deixei de rezar o crédito, porque estava a ler estes
livros e convencido que havia este grande segredo que a Igreja tinha
ocultado, que Jesus não era Deus, que Jesus era um homem como
os outros, que tinha-se casado, tinha-se filhos, etc. E quando eu descobri
que era tudo uma farsa, dasse-me uma reação oposta, que foi uma
reação de eu vou ter que escrever? Na altura não havia blocos,
havia sites que eram feitos com ferramentas muito arcaicas. Estamos em 98,
96, 98. E eu escrevi um site, usando linguagem mesmo de baixo
nível, HTML, para os entendidos na matéria, aquilo era mesmo escrito por
e duro, não havia cá ferramentas práticas para fazer isso. E comecei
a colocar informação sobre esta farsa para desmontá-la, mas ninguém tinha interesse
nenhum nisso, ninguém lia isso. Havia um grupo de três ou quatro
pessoas em Portugal e talvez vinte no Brasil, a escala do Brasil
é sempre um pouco interessante aqui. Pessoas que diziam você conhece este
tema? Sim, de real já estou assim. Então éramos um grupo minúsculo.
Aí se não quando o Dan Brown, em 2003, publica o romance
O Qualidade 20, que é uma reciclagem de má qualidade, estilo chiclete,
desta mesma lenda para um público muito vasto e com sucesso
Bernardo Motta
mas sendo que ele começava o romance dizendo, isto baseia-se em factos
históricos, em rituais verdadeiros e em personagens reais. E de repente,
este
não quando, as pessoas, os católicos aqui, em Portugal, que estavam a
parar-se para o tsunami de Coelho da Vinci nós podemos já não
recordar-nos, mas foi um tsunami, as paróquias, os padres, as escolas estavam
em pânico com Coelho da Vinci e a isto não quando começo
a receber telefonemas e e-mails porque encontraram o meu site e dizem
você parece ter alguma informação sobre o tema do Dan Braulio e
do Coyote da Vinicius. Para caso, eu já imaginava que... Porque em
98 congelei o site, nunca mais mexi. Portanto, em 2004, seis anos
depois, eu
Bernardo Motta
E de repente surge uma pressão enorme para começar a falar sobre
o assunto publicamente. Escrevi um livro, a tentar explicar a história de
uma ponta a outra, como é que a farsa foi montada e
depois passei, talvez dois anos, até até 2016, talvez, 2005 e 2016,
passei dois anos a visitar o país ao Covid de paróquias, para
falar a jovens e não jovens acerca desta história do Covid à
20. E eu acho que quando chegamos a 2016, e esta experiência
de falar em público e ter que explicar toda esta história, fez-me,
ao dar razões às pessoas que me ouviam para acreditarem na fé
católica e na igreja católica, ou dar-lhes razões para não acreditarem o
Dan Brown e não trocarem o padre pelo Dan Brown, não trocarem
a igreja por um romancista, acabei por eu próprio ir interiorizando esta
convicção de que eu afinal sou católico, sim. Eu nasci católico, fui
batizado, até fiz o carisma. E então fiz um bocado como que
uma catequese um pouco tarpalhona à custa...
Bernardo Motta
hinduísmo, o judaísmo na Kabbalah, o catolicismo e o islão, sobretudo numa
vertente mais eutérica, que é o sufismo, continham vestígios de uma religião
primordial. E fruto das leituras que eu fazia, estava convencido precisamente que
a solução para os problemas do mundo era um acordar da mente
humana para encontrarem a verdade em todas as religiões. Portanto, o oposto
do ateísmo. Atenção que aqui nunca entrou o ateísmo.
E a
certeza de que só é possível derrubar uma visão ateísta e materialista,
porque já nesta altura para mim o materialismo era uma ideia erradíssima
que era preciso combater. O que é que é o materialismo? O
materialismo é a convicção de que só há matéria e energia, que
não existe mais nada a não ser matéria e energia. A palavra
técnica que os filósofos utilizam é fisicalismo, mas é a mesma coisa.
Tudo é feito
Bernardo Motta
A alma é um aspecto imaterial dos seres vivos e portanto quem
é materialista nega que haja qualquer aspecto imaterial de qualquer coisa, quanto
mais de seres vivos. E é através da ciência e através sobretudo
da minha exposição a leituras de História da Ciência que me são
indicadas por uma pessoa que eu adoro muito, que é o professor
Henrique Leitão. Já foi convidado a este podcast. Já foi convidado a
este podcast. A primeira vez que eu vou ouvir falar o Henrique
Leitão é uma viragem na minha vida, porque pela primeira vez eu
vejo um católico com formação em física, com formação científica, com formação
em história da ciência, que me explica a ligação entre as origens
mediavais da ciência moderna e o castinismo. Explica, faz a ponta entre
a teologia crista e o projeto científico ter sido bem sucedido. E
disse para mim que caíram-me umas escamas dos olhos. E ajudou-me a
fazer as pazes com aquela aversão que eu tinha ganho no curso
de Engenharia. A parte mais científica houve uma espécie de uma viagem...
Uma reconciliação.
Uma
reconciliação, porque eu tive vários anos sem ler livros, lendo muito poucos
livros de ciência, não é? Nessas deambulações histórico-esotéricas, não é? E até
lendo Budismos e Hinduismos e coisas estranhas, não é? Até fazer a
volta completa e chegar de volta, outra vez, à ciência já com
outros olhos católicos.
Bernardo Motta
Eu acho que é interessante ter aqui um pouco de perspectiva. Ajuda-nos.
Nós, quando estamos numa cultura cristã, é normal a crítica interna, e
até é saudável, em muitos aspectos, desde que não seja, como está
a acontecer hoje em dia, uma destruição dos nossos princípios e valores,
que isso é que é preocupante. Ou seja, é saudável que haja
dentro da Europa cristã, ou da cultura ocidental, uma crítica ao cristianismo,
porque é uma crítica interna, que é preciso fazer. O que não
é saudável é uma destruição desses princípios cristãos, porque no fundo a
Europa nasce fruto... Há uma frase muito bonita, já não me recordo
de onde é que eu a li, mas que é um cruzamento
entre Jerusalém, Atenas e Roma. Também já ouvi essa... No fundo, a
religião vem dos além, a filosofia vem de Atenas e o direito
à civilização, a vida civilizada vem dos romanos. É Uma visão interessante.
Quando comparamos isto com outras civilizações, acontecem coisas curiosas. Por um lado,
nós vemos que há, sem dúvida, tecnologia. Estou-me a recordar agora daquele
que é o maior especialista em história da ciência na China. Já
morreu. O Joseph Needham. E o Joseph Needham foi, toda a vida,
um marxista convicto. Portanto, ele não é suspeito nestas coisas. E o
Joseph Needham interrogou-se numa obra enorme acerca da ciência na China, uma
obra longo de milénios, de séculos de trabalho, de investigação sobre um
período largado de séculos, em que ele à certa altura procura compreender
porque é que o projeto de uma ciência como um trabalho comunitário
que hoje em dia temos, não descolou na China. E ele chega
à conclusão de que não havia, nas tradições religiosas e espirituais orientais,
isto também é comum ao Budismo ou ao Hinduísmo, não é apenas
um tema shintoísta ou taoísta, Não há nenhuma certeza nem de que
o universo seja um universo baseado em leis, que não mudam, nem
que haja um legislador por trás destas leis. Nós às vezes esquecemos
que a expressão ocidental leis da natureza é uma coisa que era
usada no tempo de Isaac Newton, que escrevia acerca do legislador que
fez as leis da natureza. Ou seja, o Isaac Newton estava à
procura das leis porque ele sabia que havia um legislador. Nós esquecemos
que os pais da ciência eram todos cristãos e por isso para
eles era óbvio que as leis... Newton,
Bernardo Motta
falar de embolações, por exemplo, com o nosso cara Galileu, que é
um dos pais da ciência moderna. O Galileu, por exemplo, fazia horóscopos
para ganhar dinheiro, não é? Era uma coisa muito comum, não era
a única, era uma coisa muito comum na universidade na altura. Regressando
aqui à China, não tinha uma convicção, que é teológica na sua
essência, uma convicção de que valia a pena invertir uma vida, porque
a vida humana é sempre curta, não é? Valia a pena invertir
o quê? De 20, 30 anos, de vida adulta, intelectual, num estudo
de leis da natureza, porque não havia certeza de que se encontrariam
esses princípios universais da natureza. Enquanto que isso é um dado adquirido,
já para os judeus, mas embora não plenamente desenvolvido. Mas quando o
cristianismo surge, saindo de uma comunidade judaica, não, o cristianismo é um
braço do judaísmo, uma religião nova que salta do judaísmo, pela figura
de Jesus Cristo. Mas quando os primeiros cristãos chocam de frente com
a cultura helénica, e é muito importante perceber que uma das grandes
comunidades cristãs está em Alexandria, que é a capital do saber da
época, não é Roma. A capital do
Bernardo Motta
Este choque entre a filosofia grega e a mentalidade grega e esta
religião que está cheia de purgância e energia, que está a produzir
mártires a uma velocidade enorme, ou seja, pessoas que entregam a vida
por aquilo que acreditam nisso a sério, isto vai gerar uma nova
intelectualidade também. E os cristãos, para eles, vai ser óbvio, na cabeça
deles desde o princípio, que há dois livros. O livro das Sagradas
Escrituras, que é uma compilação de livros, que é a Bíblia, e
o livro da Natureza. Encontras outra vez esta expressão, de quem está...
Dos cristãos, quando escrevem, falam muitas vezes no livro da Natureza. É
algo que se pode estudar. E até evocando um trecho que eu
gosto muito do livro da sabedoria do Antigo Testamento, isto já vem
dos judeus, o que se passa é que os cristãos levam à
plenitude este conceito, que as sementes já estão no judaísmo. E diz
o livro da sabedoria, a certa altura, que Deus fez tudo de
acordo com medida, número e peso. Portanto, temos já aqui três grandezas
físicas muito interessantes. Temos a matemática, a contagem, temos a medida do
espaço, temos o peso, uma certeza de que
Deus
é fiel, Deus não vai criar um cosmos com gravidade no domingo
e acabar com a gravidade na segunda-feira. Deus não vai criar um
espaço no qual o ser humano não possa viver com alguma segurança
relativa. Que é o que as leis nos dão. E que te
permite interagir com as coisas à sua volta. E isso é uma
convicção teológica. E essa convicção teológica vai perdurar ao longo dos séculos
até que a ciência moderna surge, não com Galileu, mas nas universidades
medievais. É aí que a ciência moderna tem as suas raízes profundas.
José Maria Pimentel
Esse é o ponto que o Henrique faz e para algumas pessoas
poderá ser estranho, mas não me parece minimamente estranho. Hoje em dia
está mais ou menos acente que... Primeiro que há uma espécie de
excecionalidade europeia, se lhe queremos chamar assim, e o Henrique explicava isso,
que há uma lógica de que o mundo foi criado para nós
e há uma relação com a natureza que é muito específica da
cultura europeia e o ponto importante é, ela vem do cristianismo e
isso leva a que essa lógica de que o mundo é inteligível
e de que o mundo foi criado para nós cria essa pulsão
por conhecer o mundo e portanto faz todo sentido que isso tenha
estado nas géneros da ciência moderna e não há... Enfim, eu admito
que seja um ponto que passa um bocadinho subterraneamente hoje em dia,
ou seja, que não seja muito conhecido, mas parece-me mais ou menos
evidente que existe essa causalidade e de facto, quando nós vamos a
todos os pais da ciência, eles não só eram todos cristãos, como
alguns deles, mais do que ser cristãos, juntavam as duas atividades. O
Newton é o caso mais evidente, mas há
Bernardo Motta
outros. Sim, há outros. O Pascal também é um exemplo excelente, que
o
Pascal
tem imensos escritos sobre até a sua própria fé e a forma
como ele debatia com pessoas que não acreditavam. Mas eu acho que
às vezes nós corremos aqui uma tentação e acontece muitas vezes numa
primeira tentativa de se defender a igreja perante um suposto conflito com
a ciência, que é listar cientistas cristãos ou católicos. E a resposta
ateia é típica, é dizer, bom, na altura eram todos, não é?
Na altura o ateísmo era quase proibido, era uma coisa que não
se podia sequer afirmar, por isso não é surpresa que até ao
século 18, 19, as grandes cabeças fossem todas cristãs. Eu acho que
é interessante ir mais fundo, como há pouco vimos, e pensar que
a teologia cristã convida a confiar numa empatia científica. Vale a pena
fazer esse trabalho porque vai vir uma razão para as coisas. Há
um princípio em filosofia, que às vezes é contestado, mas é complicado
de contestá-lo, que é o princípio da razão suficiente, que está na
base da filosofia, mas também da ciência. As coisas não acontecem sem
uma razão. Isto vem de
onde?
Em nenhuma religião do mundo, exceto no judaico-cristianismo, há esta convicção de
que tem que haver uma razão para tudo. Porque se nós pensarmos
bem, porquê as coisas teriam de ser assim? Se Deus não existe,
se nenhuma inteligência está por trás disto tudo, de onde é que
vem esta mania de que as coisas têm que ter uma razão?
Sim, poderia
Bernardo Motta
Sim, o universo poderia ser absurdo, não teria a estrutura matemática que
tem e o grau de precisão e de certeza que a matemática
consegue extrair da natureza. Eu acho que era o Chester Tann que
dizia uma coisa curiosa. É um bocadinho caricatura o que eu vou
dizer. Atenção, não é para se levar muito à letra, mas o
Chester Tann era excelente em contar estas imagens muito apelativas. Ele dizia
que quando vamos a um templo budista, nós vemos o Buda reclinado,
eu não vou atrever-me a dizer a dormir para não provocar ninguém,
mas num sono que não é dormir, numa meditação profunda, se quisermos.
E o Buda está deitado, normalmente com a alfada confortável, barriga cheia,
e está com os olhos fechados. Há um conceito hindu que é
o conceito de Maya. Os sentidos são ilusórios. Os sentidos mostram-nos a
multiplicidade que é ilusão. Logo, o Yogi, o espírito superior, vai fechar
os olhos para meditar e encontrar o Uno por detrás do Múltiplo.
O Hinduísmo, na raiz, é um monismo. Ou seja, na verdade, Brahma
é o Uno e tudo o que há de Múltiplo são aspectos
ilusórios de Brahma. Eu não existo, não existe, na verdade, nós somos
aspetos ilusórios, fazemos parte de Brahma, no fim de contas, não é?
Esta ilusão entre o universal e o particular é puramente ilusão. Isto
é péssimo para fazer, a ciência. Como é que... Como seria possível
alguma vez estruturar uma abordagem empírica de estudar o mundo, quando os
gurus, os mais respeitados membros da sociedade, são yoguis que fecham os
olhos e nos ensinam que os
sentidos são ilusões. Claro,
Bernardo Motta
é chegar. Claro que sim, e há vocações por todos os gostos.
Mas quando se vive num ambiente em que a intelectualidade gera uma
desconfiança social nos sentidos, e num contexto em que a religião é
muito importante para a sociedade, se recuarmos a uma índia de há
dois, três mil anos atrás, os ritos são essenciais para o dia
a dia. E é o que as pessoas vivem e respiram. Não
há um ambiente propício
a
questionar e interrogar o cosmos, porque em primeiro lugar não se acreditam
no valor dos sentidos nem na estabilidade do próprio cosmos. E dizia
o de César Tano, para acabar esta frase dele, que em contraposição,
se eu vou a uma igreja, uma catedral medieval, até mais do
que uma igreja, se eu vou àquelas coisas que rasgam os céus
em exagero metros, e que representam quatro gerações de operários a trabalhar
naquilo e trabalho gratuito. Onde se coloca o melhor que há. Vitrais,
ouro, madeira trabalhada, tudo o que há de melhor, mármores. E tudo
é beleza empírica. Eu o oposto. Eu o oposto de uma experiência
interior budista e hindu. E dizer o de Shesterton, olhem para as
imagens dos santos numa igreja católica e o que é que vocês
vão reparar? Ao contrário de Buda, estão de pé, não estão deitados.
Ao
contrário de Buda, não são gordos, são magrérimos, esqueléticos.
Bernardo Motta
que eu vi com os meus próprios olhos no Sri Lanka, que
eram bastante bem abastecidos. Atenção que isso aparta a caricatura, porque há
certamente correntes hindus que advogam uma apretenção de alimentos substancial. Não quero
também apertar muito esse ponto, por isso é que eu diria que
é um pouco uma caricatura. Mas ele depois dizia, os santos católicos
têm os olhos esbogalhados. Ele usava esta expressão, os olhos estão quase
que saindo das óbitas. São pessoas que têm, é como se tivesse
uma sofreguidão existencial no santo católico. Não em todos, mas em alguns.
E ele faz este contraponto. Que vale o que vale, mas é
interessante ver que, às vezes, nós estamos um pouco cegos por só
conhecer a nossa sociedade e não ver as outras. E, por exemplo,
se a pessoa for àndia ou a alguns locais deste mundo, é
normal haver pessoas mortas no chão, quer dizer, miséria, fome. Enquanto que
nós, nossos orientais, é que ficamos extremamente chocados, e bem, com algo
que nós já tratámos como sociedade há muitos anos atrás e nem
nos demos conta de porquê tratámos isso. Não sabemos que os hospitais
são um conceito que floresta a Idade Média, não sabemos que os
tribunais nascem no Império Romano mas amadurecem no Cristianismo, etc.
José Maria Pimentel
E o Cristianismo distingue-se até do Judaísmo por ser uma religião universalista,
que é algo que vai sendo implementado muito gradualmente e nunca de
forma perfeita, mas claramente distingo o cristianismo. E voltando ao ponto que
eu estava a dizer há bocado, eu não tenho nenhum problema, quer
dizer, daí estou completamente de acordo contigo, que o surgimento do cristianismo
e a existência do cristianismo foi essencial para o surgimento da ciência,
foi essencial para muitos aspectos da sociedade atual, até para as sociedades
liberais do ocidente, liberá-la aqui no sentido amplo, no sentido da primazia
do indivíduo, tudo isso vem do cristianismo. Agora, onde eu divido-te-te é
que eu acho que se pode aplicar aquela analogia, não sei de
que filósofo era, da escada. Uma escada pode ter sido útil para
chegar a determinado ponto, mas não é necessariamente útil daí para frente.
Não quero dizer que o cristianismo não é útil para nada, aí
não tenho uma visão manicaísta, mas a ciência de facto, provavelmente a
partir de meados do século XIX, provavelmente a partir de Darwin, há
de facto uma descontinuidade e tu passas a ter um conflito entre
a ciência e a religião, que não é absoluto, é perfeitamente possível
de ser católico, ser cristão e ser cientista, mas de facto há
pontos onde é impossível nós ignorarmos que há uma colisão no etnocentrismo,
no antropocentrismo, há uma série de aspectos. Para falar de Darwin, Nós
sabemos que quando Darwin publica a origem das espécies, ele é completamente
trucidado e até aquele debate famoso entre o... O que ele chamava
o bulldog de Darwin já não sei, era um tipo... Porque não
era o próprio Darwin, era um tipo que o ia defender e
o arcebispo de... Não sei se era o arcebispo de Cantuária. Era
um
Bernardo Motta
Existe uma circunstância um pouco trágica da finitude do ser humano, que
é a seguinte. É extremamente difícil no curto tempo de vida que
as pessoas têm, e nas vocações e gostos que têm, uma pessoa
conseguir ter um conjunto de leituras e de gostos e de estudos
suficientes para ter uma visão de conjunto. Por isso eu quero isso.
O C.P. Snow escreveu um importante artigo sobre as duas culturas, que
é uma tragédia. Uma tragédia da nossa sociedade moderna, em que os
de humanidades estão de costas voltados para os das ciências e vice-versa.
Isto é uma tragédia cultural. Contra essa tragédia cultural só há um
antídoto, pelo menos falo por coisa própria, que é ler, procurar ler,
quem tenha a dupla licenciatura. Isto é sempre mais fácil dizer do
que fazer, mas é possível encontrar. Encontrar, de preferência, autores que se
tenham doutorado nos dois lados da disputa. Para mim foi muito importante
descobrir e ler a obra de um padre que se doutorou em
Teologia em Roma nos anos 50, o padre Stanley Iacchi. Ele nasceu
na Hungria, naturalizou-se norte-americano e depois americanizou-se o nome, como era muito
comum na altura, podia ser paitaves Stanislas ou algo assim, quando nasceu
na Hungria. Viveu toda a vida nos Estados Unidos, deu lá aulas
e depois de doutorar em Enteologia em Roma, foi estudar com o
Victor Hess. O Victor Hess, um físico importantíssimo do século XX, que
recebeu o prémio Nobel pelo trabalho nos raios cósmicos, em cosmologia. E
o padre Stanley Aki pediu uma autorização, depois de doutorar em Teologia
e de ser já sacerdote, para ir doutorar-se para os Estados Unidos
com o Vitor Hess. E assim fez. E já morreu, morreu em
2005 ou 2006. Esteve cá em Portugal, uma pessoa que me influenciou
imenso. Escreveu um livro acerca do Milagre do Sol em Fátima, sobre
o qual falaremos mais daqui um pouco na nossa conversa. E foi
a pessoa que até me apresentou pela primeira vez uma explicação decente
para o Milagre do Sol e que me influenciou ao ponto de
depois eu escrever um livro sobre esse assunto. Mas, sem entrar já
nesse tema, o padre Stanley Aki tinha muito mal feitio, como pessoa
lida que era, tinha muito mal feitio e tinha pouca paciência para
pessoas nolidas e para estupidezes. E ele, a ser altura, dizia assim,
eu não recordo bem, vou parafrasear porque eu não recordo as palavras
exatas, mas ele dizia algo como que era verdadeiramente insuportável aquele teólogo
que comentava da cátedra de Teólogo sobre um tema científico sem ter
passado uma hora num laboratório. Ele dizia isto também com algum orgulho,
imagino porque ele passou muitas horas em laboratórios, também deu com o
Prémio Nobel da Física. Mas ele tem muita verdade nisto porque ele
diz que grande parte dos equívocos que hoje em dia existem, enfilosfiedamente,
as discussões sobre a consciência, a origem da vida, o darwinismo, a
inteligência artificial, criação versus evolução, etc, big bang cosmologias, são discussões que
muitas vezes são tidas em diálogos absurdos, em que nós temos de
um lado pessoas que são cientificamente literadas, que leram livros, ou de
ciência, no melhor dos casos, ou de, pelo menos, divulgação científica, no
pior dos casos. Pelo menos leram um Carl Sagan, pelo menos, de
divulgação científica, um livro bom de divulgação científica, mas que depois está
carregado de preconceitos. Há acerca da religião, cristã em particular, e são
pontos de vista de quem é ignorante quer das histórias da humanidade
em geral, que às vezes é esse o ponto de partida, quer
depois especificamente da teologia, da história da Igreja, da doutrina que a
Igreja ensina, etc. Do lado de lá o que é que nós
temos? O outro surdo. O outro surdo quem é? O outro surdo
é um teólogo, ou um especialista em nutrica bíblica, ou em história
da Igreja, que estudou anos e anos, que amou pestañas, também em
livros, mas da teologia, ou de filosofia, ou de lógica, ou de
argumentação, ou de etc, etc. E que está naturalmente revoltado com a
ignorância do seu oponente, mas também não se dá conta de que
ele próprio não consegue interpretar uma equação matemática, porque depois é ileterado
nos temas científicos sem apreço. E isto é um diálogo de surdos.
E isso é uma tragédia que temos hoje em dia. Como é
que se resolve isto? A única hipótese é procurar ler autores eruditos
que tenham feito idealmente um doutoramento em ambos os lados da disputa.
Idealmente. Mas
José Maria Pimentel
onde é que os da ciência estão errados? Porque eu percebo o
teu ponto, e claro que eu não quero que isto dize que
não há nada de útil. Pelo contrário, tem que conhecer a Bíblia,
como é conhecer a história da Igreja, quer dizer, a história do
pensamento católico, é evidente que há. Agora, alguém do lado da ciência
pode argumentar que lhe basta o conhecimento do mundo, não é? O
contrário já não é necessariamente verdade. De facto, nós estamos de acordo
que alguém da Igreja, algum crente, tem de conhecer algo da ciência,
se vive no século XXI, para conseguir ter as suas crenças sustentadas.
Mas alguém do lado da ciência pode dizer, então mas para quê
que eu... Quer dizer, agora também tenho que ler a Tora e
o Corão, não é?
Bernardo Motta
Alguns são assim, mas, José Maria, muitos estão mortinhos por espetar a
sua farpa no que eles chamam os crimes do Deus do Antigo
Testamento, ou espetar a sua farpa no Novo Testamento,
etc. E
acontece muitas vezes, o nome de um Richard Dawkins vem logo à
cabeça, de uma pessoa que pontifica do alto da sua catedra de
cientista. Aliás, até se pode dizer, com um bocadinho de malícia, desculpa-me,
que Richard Dawkins tem mais anos de vida de evangelismo ateísta do
que tem anos de cientista. É interessante que ele continue a capitalizar
uma carreira científica produtiva de algumas décadas, duas décadas, mas ele com
a idade que tem já tem mais décadas de carreira ateística do
programa de produção científica. Ele também tem, quase 80 anos, acho que.
Sim, ele tem mais anos de ateu militante do que tem
José Maria Pimentel
ateísmo vem colado a uma aversão à igreja enquanto instituição, enquanto fonte
de autoridade, se nós quisermos, que tem esse lado ideológico, se quiseres,
e que existe no dogma, embora eu me pareça, até sou que
eu sou apreciador de várias coisas dele, mas ele claramente tem esse
lado, ou seja, a versão dele à igreja não é simplesmente de
um cientista, é também de alguém de esquerda que reage contra a...
Eu dou-te só um exemplo.
Bernardo Motta
No livro dele, The God Illusion, que é mal traduzido em português
para A Desilusão de Deus, uma tradução que não deveria ser feita
assim.
Que não foi, é sério.
A desilusão de Deus, a como o livro foi traduzido em Portugal.
Tem um capítulo no qual ele fala sobre as provas para a
existência de Deus e ele comenta, como é típico em alguns neo-ateus,
comenta os argumentos de São Tomás de Aquino para a existência de
Deus, que são argumentos que se dizem de São Tomás de Aquino,
mas o próprio, com muita humildade, característica dele, quando os apresenta na
Suma Teológica, que é um livro para estudantes, atenção, nem sequer é
um livro, provavelmente à época muito erudito, hoje em dia é um
livro dificilíssimo porque obriga um arcaboiço terminológico e conceptual para o compreender,
mas na altura era usado com alunos, com adolescentes e com jovens
adultos. A Suma Teológica. Na Suma Teológica, como não me indico, é
um resumo, é uma suma, é um resumo. Nem sequer é suposto
ser um tratado onde se desenvolvem coisas com extensão. O São Tomás
daqui ainda apresenta cinco argumentos para a ciência de Deus. E fala-os
remontar, alguns deles pelo menos, a Aristóteles. Outros é uma tradição mais
platónica, mas os primeiros três, sobretudo, a Aristóteles. E o quinto também.
Bernardo Motta
no Islão era uma coisa um bocadinho difícil, digamos assim. Mas havia
homens brilhantes que o fizeram e fizeram muito bem. E deixaram aqui
marca na política ibérica. E até na ciência, não só na filosofia,
mas também na ciência. São Tomás de Aquino, quando escreve os seus
argumentos para a essência de Deus, invoca Aristóteles. Ele, no fundo, está
a comentar argumentos que são antigos, muito antigos, vêm desde Aristóteles. Portanto,
não só para o homem, só para os pais de Aquino. E
o Dawkins, quando comenta estes argumentos... E vou dar só um exemplo.
A essa altura ele depois dizer uma série de coisas absurdas sobre
os argumentos de quem não os estudou, porque não basta ler a
somatológica. O que ele fez foi, e consegue-se entender o que ele
fez, ele abriu a somatológica, leu, usou palavras que lá estão de
forma equívoca, porque quando Aristóteles usa, e São Paz usa a palavra
movimento, movimento não é apenas movimento de objetos, quer dizer mudança, mas
quem não está dentro do jargão não compreende isso. E é só
um exemplo, mas ele entra numa leitura em que ele lê as
palavras que lá estão, numa tradução que ele tinha para inglês, certamente,
lê as palavras que lá estão como se fosse um vocabulário contemporâneo
e isso é vai dar asneira. Ou seja, ele está a ler
e está a interpretar sozinho, sem ser ajudado por nenhum especialista no
tema.
E o
pior é que nem sequer lê tudo. Há uma parte do livro
dele, que é absolutamente escandalosa, em que ele diz São Tomás de
Aquino acaba todos os argumentos a dizer e isto é o que
entendemos como Deus,
Bernardo Motta
depois São Tomás de Aquino não explica porquê é que Deus é
perfeito, porquê é que é sua mente bom, porquê é que é
omnisciente, porquê é que é omnipotente, porquê é que só há um
Deus, porquê é que é misericordioso, porquê é que é justo. O
Sr. Dawkins vira a página, homem, vira a página. Está a seguir.
A seguir ao artigo da existência de Deus, há 20 artigos, cada
um para as propriedades que se deduzem de Deus, a partir desses
argumentos. Ele não virou a página! Ou seja, não é só uma
pessoa que não se rodeia dos especialistas no tema para poder aprender,
antes de poder comentar como ateu, como nem sequer lê até ao
fim o autor que ele está a querer demolir naquilo que alguns
consideram a sobreprima de ateísmo.
Bernardo Motta
Não, eu não acho nada disso. Eu acho que eles não são
crentes por uma quantidade enorme de razões. Ou porque não nascem numa
família que se exponha a esses conceitos. Ou porque quando estudam os
professores não se expõem a essas obras e esses conceitos. Faz toda
a diferença, por exemplo, se, como eu tive aulas de filosofia no
ensino público, se salta dos pré-socráticos e da apologia de Sócrates, de
Platão, salta diretamente para Descartes. Eu nem vou usar a palavra chocante,
é uma coisa que eu acho que até chega a ser farsa.
Estamos a enganar os alunos, é como se não houvesse nada para
contar entre Sócrates. E o pior é que até fala muito pouco
de Aristóteles, que podiam ao menos falar de Aristóteles. Mas eu acho
que a essa altura eles devem pensar, Cuidado, porque se falarmos de
Aristóteles, Aristóteles é tão bom, e é, é tão bom, que corremos
o risco de que eles depois cortarem das colagens de vida medieval
e ainda se tornam católicos. Então está o caldo entornado.
Bernardo Motta
Talvez, climatéricas, crises, agriculturas, fomes, doenças. Na verdade, há poucas evidências documentais,
há pouca arqueologia para se fazer, comparado com outras épocas. Claro, Há
muita coisa, mas comparativamente. É um termo técnico, mas depois foi mal
interpretado. E até nasço no Renascimento com o Petrarca e com o
Saudosismo da época clássica. Este desprestígio pelos latinistas escolásticos. Ah, esses professores
da universidade, diziam os cientistas, são uns bárbaros. O latim que eles
falam é um latim eclesiástico, torpado. Temos que regressar ao latim puro
dos romanos e, portanto, esta ideia da idade média como negra nasce
no nascimento, é uma coisa muito antiga. Depois vai-se avolumando e torna-se
num insulto para tirar a cara dos cristãos.
José Maria Pimentel
Então, Bernardo, desculpa, voltando atrás ao nosso ponto, de facto, alguém contemporâneo,
sobretudo se não nascer numa família crente e tiver um mínimo de
formação científica, o básico, há vários aspectos da igreja que saltam à
vista como estando em tensão, não só estando em tensão com a
ciência, como em muitos casos sendo perdido para a ciência, o darionismo
é um desses exemplos, enfim, vários aspectos até da evolução da moral
e dos costumes, a própria, o Deus do Antigo Testamento, quer dizer,
diga-se o que se disser, tem vários aspectos não recomendáveis, digamos assim.
Tanto isto é verdade, que até há uma corrente católica que propunha
só ficarmos com o Novo Testamento, o problema é que muito do
Novo Testamento faz referência ao Antigo e, portanto, não dá para fazer
isso bem. Até o próprio estudo da Bíblia traz à tona muitos
aspectos factualmente incorretos e que estão em contradição dentro da própria Bíblia.
Portanto, há muitos aspectos do cristianismo que convivem mal com a ciência
e eu acho que isto para um crente tem que gerar um
debate interno, não é?
Bernardo Motta
Gera, e o que eu posso contar numa lógica biográfica é precisamente
isso, é que essa tensão que eu achava que era muito profunda,
quando eu não tinha leitura nenhuma em nenhum estudo feito, revelou-se como
superficial, Ou seja, todos os temas que tu abordaste, e naturalmente a
noite é curta para todos esses temas, mas todos os temas que
tu referiste, sem exceção, foram temas que me atormentaram. E a única
solução...
Bernardo Motta
E que alguns ainda atormentam, no bom sentido, ou seja, ainda desafiam
e obrigam a estudar mais. Qual é a solução para isso? Eu
sinceramente a solução que eu posso recomendar e foi a que eu
segui com algum sucesso é perguntar a quem sabe. Perguntar a quem
sabe é muito importante. Professores universitários competentes. Hoje em dia, até com
a internet, não é difícil até falar com professores estrangeiros e tirar
dúvidas e assistir aos vídeos deles no YouTube, que é altamente recomendável.
O YouTube tem coisas magníficas sobre todos esses temas e até debates
muito ricos entre posições totalmente opostas e é das melhores coisas que
se pode fazer. O que eu recomendo a qualquer pessoa nova, ainda
com os neurónios frescos, é assistam por favor a debates, e quanto
mais intensos melhor e mais exigentes melhor. Recomendo isso, procurar quem sabe,
e depois recomendo muito trabalho individual, isso eu recomendo. Todos estes temas
que agora te referiste, eu só resolvi a tensão superficial e só
cheguei à conclusão que havia uma concordância profunda depois de dedicar um
montão de tempo a todos estes temas. E depois de literalmente arruinar-me
em contas da Amazonas também.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no
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como pode contribuir diretamente ou através do Patreon. Obrigado. O meu ponto
se calhar é este, é sempre possível, à posteriori, tu reconciliares o
cristianismo com a ciência. Desde logo, porque há sempre coisas por explicar
na ciência, nós sabemos que, por exemplo, o Big Bang provavelmente nunca
conseguiremos verdadeiramente explicar, até em certo sentido se calhar transcende a cognição
humana, não é? E portanto é sempre possível reconciliar quaisquer descobertas que
pareçam estar em contradição, se não com a Bíblia, pelo menos com
a prática católica, não é? Porque muitas vezes não é necessariamente o
que está na Bíblia, é aquilo que a Igreja faz ou diz,
Mas a verdade é que existiu essa tensão. O caso Darwinismo é
o exemplo mais evidente de todos. Quando Darwin publica a origem das
espécies, aquilo é rejeitado, provoca uma rejeição visceral. Porque, como é que
nós podemos... Percebe-se, não é? Como é que nós somos animais. Não
é bem assim que somos animais, porque isso talvez não fosse completamente
estranho, mas como é que nós descendemos de uma espécie de macacos?
Se é assim, onde é que está a alma humana? Houve ali
uma traição para o homo sapiens e foi depositada a alma na
cabeça das pessoas a partir de há 200 mil anos. Há aí
uma série de contradições que existiam e persistem, na verdade,
Bernardo Motta
elas persistem. Como é que um católico explica? Há momentos, há momentos
de crise, mas não são novidade. Ou seja, nós podemos recuar aos
primeiros três séculos do Cristianismo e podemos pensar o que era ser
um judeu convertido a Jesus Cristo. Porque os primeiros cristãos eram judeus.
Depois, a pouco e pouco, logo no 1º século, os pagãos começam
também a ser batizados, sobretudo pela Santa de São Paulo. Mas é
fácil nós pôrmos na cabeça de um judeu que tem um contato
com esta religião de pescadores, a religião quando começa é uma religião
de pescadores, Jesus rodeia-se não de intelectuais, mas de pescadores. Talvez a
pessoa mais letrada que haveria no grupo seria Mateus, que era um
coro de impostos. Quem sabe seria talvez um dos mais letrados. Terá
escrito o Evangelho? Pelo menos estará na origem da tradição, porque é
interessante ver que os Evangelhos todos, no grego, usam a palavra kata,
que quer dizer segundo. Ou seja, desde os textos mais antigos, que
nós não temos Evangelho de Mateus,
Bernardo Motta
problema se houver alguém que saiba colocar por escrito uma tradição que
remonta a um apóstolo. Não, isso não tem problema nenhum. Até pode
haver aqui alguns anos de intervalo, não tem problema nenhum. E a
igreja nunca pretendeu que houvesse algo pela mão própria do próprio. Há
uma tradição de que São João teria escrito o seu evangelho e
o apocalipse. Uma tradição respeitável, mas que não é de todo um
artigo de fé. Esses primeiros três séculos fazem com que um judeu
erudito, exposto a uma cosmologia judaica, e a cosmologia judaica não é
de terra esférica, a cosmologia judaica, mais antiga, é uma espécie de
um cosmos plano em que há as águas inferiores e as águas
superiores. Muito cedo há um contacto com a filosofia grega e os
gregos sabiam que a Terra era esférica. Erastóteles fez as contas, viu
a sombra e percebeu que a Terra era esférica. Os marinheiros que
iam no mar viam o navio a desaparecer, ficava só a pontinha,
não é? Sim, esse é um mito que se criou. O sexto
da gávea ficava à vista, não é? Claramente só pode ser esférica.
Bom, é um mito. Este contacto dos pães cristãos com uma ciência
e uma filosofia gregas resolveu-se, foi um momento de muita atenção, de
imensa atenção, e resolveu-se. Não se resolveu de um momento para o
outro, resolveu-se ao longo dos três séculos. Ao ponto de termos um
Santo Agostinho,
que é
um homem que escreve o seu livro acerca da interpretação literal do
Génesis. O que hoje em dia achamos que é uma tragédia do
século XIX por causa de Darwin, ainda não. Santo Agostinho escreve um
livro inteiro sobre como harmonizar a leitura dos Génesis à luz do
saber mundano, à luz do saber dos gregos. E ele tem uma
expressão muito interessante, Santo Agostinho, estamos a falar, portanto, do século IV.
Ele diz, cuidado com aqueles homens de doutrina zelosa ou algo assim,
também estou a parafrasear, que quando falam das coisas da nossa santa
religião dizem barbaridades sobre a natureza e sobre os factos observáveis. O
que pensará um descrente? O que pensará um pagão que ouve falar?
Pensa, este homem diz asneiras sobre as coisas visíveis e está a
querer ensinar-me sobre as coisas invisíveis. Santo Acostinho tem este aviso acerca
de um drama, que é o drama do teólogo, que é cientificamente
ignorante, mas que fala muito. Não falem, ou melhor, falem sobre teologia.
Bernardo Motta
Eu tenho uma opinião sobre o darionismo, que já que te foi
dizer, que é uma opinião complicada de explicar, porque eu acho que
tudo gira em torno de termos mal compreendidos, como sempre, eu acho
que é tudo um tema de tensão superficial. Mas é para dizer
que este choque entre as verdades da fé e o conhecimento que
vem de outras fontes, o conhecimento profano,
não
é de agora. Não é de agora de todo. Nós temos, na
Idade Média, uma enorme disputa acerca do que fazer com Aristóteles. Rejeitá-lo?
Aceitá-lo parcialmente? Pois,
Bernardo Motta
eterno, por exemplo. São Tomás dizia, por fé, sei que o cosmos
começou. Porque a primeira palavra da bíblia é Bereshit, no princípio. Primeira
palavra de todas é no princípio. Por isso, por fé, dizia São
Tomás de Aquino, o cosmos começou. Mas não é uma contradição imaginar
um cosmos eterno. São Tomás de Aquino achava que isso não era
nenhuma contradição. Ele dizia, não há contradição lógica em assumir que o
Cosmos sempre existiu. Eu acho que... Ele achava que não havia. Mas
porquê? Só muito recentemente é que alguns matemáticos e filósofos criticam o
cosmos eterno desse ponto de vista, dizendo, por exemplo, que é impossível
haver infinitos momentos no passado, porque se houvesse infinitos instantes no passado,
eu nunca chegaria ao presente. Este tipo de argumentos são contemporâneos. Para
Sotomayor e Aquino, o conceito de um cosmos eterno, como Aristóteles pensava,
não apresenta nenhuma contradição. Ou seja, no fundo o que ele diz
é que se Deus quisesse, Deus poderia ter colocado em existência desde
toda a eternidade o cosmos. Não esquecer que para o cristão, Deus
não está no tempo nem no espaço. Deus tem um acesso instantâneo,
direto e não mediado a todos os instantes temporais. O tempo é
algo que não é parte da existência de Deus. Deus está fora
da restrição temporal. Então, Sambatia dizia, por que razão Deus não poderia
criar um universo eterno? Não há nada de errado nem de contrario
nisso. O que ele dizia é, nós sabemos que o universo começou
por revelação, porque a Bíblia e a tradição nos dizem, mas filosoficamente
não há nada de errado nisso.
Bernardo Motta
Um paradigma centrado no homem, é isso?
Não, é
centrado na Terra. Sim, mas se nós pusermos em perspectiva as coisas
e nós, por exemplo, eu não tenho nenhuma opinião fechada acerca da
vida extraterrestre, por exemplo, Acho que não há sinais nenhumes de que
ali exista, apesar de haver uma enorme abundância de sinais que nos
dizem que há uma infinitude de planetas parecidos com o nosso, em
que a vida pode ser possível. Eu não estou convencido de que
haja vida inteligente. Se houver, será-me uma ótima surpresa, não vou ficar
nada de chateado. Não acho que haja crise teológica nenhuma que venha
daí. Mas, quando os medievais colocam a Terra no centro do seu
universo isso não é todo estúpido, mas é preciso perceber uma coisa,
era um centro teológico. No fundo, a importância da Terra não desapareceu.
Jesus Cristo, Deus feito homem, encarnou aqui. A Terra é central do
ponto de vista até ao nosso conhecimento atual e isso poderá mudar.
Nós não sabemos se Deus encarnou noutros planetas, não temos forma nenhuma
de saber neste momento. Mas, com a informação que temos hoje, a
Terra é super importante porque Deus levou a Terra, fez-se homem aqui.
Tem importância de Jesus além, mas à escala planetária, não é? Este
é o planeta no qual Deus se fez homem, não é? E
essa importância teológica da Terra não mudou. Hoje em dia os católicos
também a têm.
José Maria Pimentel
É que não era só da Terra, era daquela zona específica da
Terra, não é? Esses são outros sinais que estão na Bíblia, não
é? Toda a geografia que é referida é a geografia daquela zona,
não é? E o mundo depois, outro dos, enfim, das balas, do
porta-aviões do cristianismo, também foi o facto de nós termos contactado com
outras civilizações e termos percebido que havia outras civilizações, outras mundo-evidências, não
é? Sim. E isto é independente de nós acharmos... Isto é essa
até excecionalidade europeia, que eu até acho... É um pensamento com o
que eu até simpatizo, não é? Mas não é disso que estamos
a falar. Não,
Bernardo Motta
é interessante explicar isto, porque pode ser novidade para algumas pessoas que
nos estão a ouvir. A Terra ser o centro do Universo é
um conceito científico de Aristóteles, da ciência da época, que está superado,
claro. Mas, à época, Aristóteles via o Cosmos como composto de quatro
princípios fundamentais, Terra, água, ar e
fogo. E
a Terra era mais densa, mais pesada. E na lógica dele, que
é intuitiva e que faz algum sentido, era de que os corpos
mais densos no Cosmos tenderiam a aglutinar-se num centro. Portanto, para Aristóteles,
a Terra está diante do Universo é porque é para onde confluem
todos os corpos, onde a Terra é mais predominante. Portanto, tudo o
que for denso e mais térreo vai compactar-se numa bola. E porquê
numa bola? Bom, se vem de todas as direções do Cosmos. Coisas
térreas, não é? Aquilo faz uma esfera. Ou seja, na física histotélica,
há uma força nas coisas pesadas que as faz caírem para o...
Para o ralo, se quisermos usar aqui uma palavra
Bernardo Motta
Sim, uma espécie de gravidade para o ralo do cosmos. Mas cuidado,
porque quando às vezes um Richard Dawkins ou alguém diz assim Ah,
os medievais eram tão ignorantes, tão burros, que eles no fundo colocavam
a Terra no centro do Universo porque eram muito importantes para eles
teologicamente. Não! Não! A Igreja colocava a Terra no centro do Universo,
não por causa da teologia. Bem, em parte porque Jesus Cristo encarnava
essa parte, sim. Mas, sobretudo, porque a ciência da época o ensinava.
José Maria Pimentel
Sim, e quer dizer, não era especialmente importante para o cristianismo, se
a Terra estava ou não estava no centro. Acho que há aí
um argumento interessante, eu não estava a pensar a falar disso, da
questão da vida extraterrestre, quer dizer, tu dizes que não seria para
ti um problema, quer dizer, se é um problema o confronto com
outras civilizações na Terra, imagina uma vida extraterrestre inteligente, qual é aquela
força?
Bernardo Motta
Ou não, ou então podemos imaginar um cenário em que há vida
inteligente nos outros planetas, essa vida inteligente, tal como Deus a criou
aqui na Terra, foi dotada de uma liberdade, um livre-arbítrio, de uma
capacidade para obedecer a Deus ou para desobedecer a Deus. Se noutras
civilizações há vida inteligente, como dizem os católicos, com uma consciência que
a faz saber o que deve fazer e o que não deve
fazer. Se nessas outras civilizações não há desobediência a Deus, não há
necessidade de Deus encarnar. Deus encarna para resolver um problema. A encarnação
não é uma necessidade. Deus encarnou porque nós fizemos a geneira. No
fundo é uma encarnação para que Deus, fazendo-se homem, ensine que é
possível ser-se homem e ser-se um homem perfeito, como ele foi em
vida.
Bernardo Motta
problema do gradual é quando se orda numa rampa. Porque repara uma
coisa. Se eu filosoficamente acredito que existe uma coisa chamada ser humano,
se eu distingo nós de outros animais, se eu faço uma distinção
deste animal racional para um animal que não é racional, ao fazer
essa distinção, e se eu o criticar é verdadeira, que não é
uma invenção social, não é uma convenção de um grupo de cientistas,
se eu acredito mesmo que é diferente ser homem de não ser
homem, então eu vou primeiro. É uma conclusão lógica, ou seja, o
que eu estou a afirmar
José Maria Pimentel
que se diz, senciente, não é? É um ser com uma espécie
de consciência, uma proto-consciência, um macaco, nós não descendemos do macaco, não
é, mas o macaco tem cognição, tem uma espécie de consciência, o
que tu fizeste foi, isso foi evoluindo e depois dentro das populações,
e por isso é que não há o primeiro homem e a
primeira mulher dessa forma, é que tu dentro das populações vais tendo
vários estádios, e depois tens um momento em que nem todos eles
conseguem reproduzir entre si, provavelmente há ali uma separação geográfica, e numa
população se calhar há 90% que ainda conseguiriam reproduzir com outra população
mais próxima dos macacos que iam assim, para ser simplistas, e depois
vai sendo cada vez menos, cada vez menos, até que chaces.
Bernardo Motta
Qual é aqui o problema? Quais são os rastos que o intelecto
deixa? Vestígios de artefactos, de ferramentas, talvez alguma arte, talvez alguma cerimónia
fúnebre, talvez. Nós também nos compassamos em vestígios. A arqueologia só indiretamente
e de forma muito imperfeita tem acesso a vestígios de um intelecto.
Por isso, cuidado com uma coisa. Quando se faz o estudo pela
clarística, da estatística dos genes e das árvores de evolução dos seres
vivos, a parte biológica genética está fantástica. Mas as pessoas não se
dão conta de que eu não tenho a mesma quantidade de evidências
para aquilo que é a vida mental dos primatas. Não tenho. Tenho
hoje. Só que hoje estou a trabalhar com outros ramos diferentes de
primatas. Não estou a trabalhar com os meus avós lá atrás. Primeiro
aviso. Segundo aviso. É verdade que para quem defende uma filosofia da
mente materialista e que diz que só há matéria, matéria e energia,
forçosamente a atividade mental tem base biológica, mas ainda tem base física,
química, fisiotérmica, ponto. Vou dizer de outra maneira, Se eu for um
filósofo convencido do materialismo, como são muitos, e muitos cientistas são, sem
se dar em conta de que há outras opções, não há outra
possível explicação, se não um gradualismo, se não o aparecimento da mente
como fruto da matéria. Não há outra opção. Eu só quero é
que as pessoas se deem em conta que no mundo académico hoje
em dia nós temos guerras abertas, feridas que não estão saradas, nomeadamente
no chamado Hard Problem of Conscience,
que nos anota
a Sárcia de Dónica, que é o problema duro da consciência. Porquê?
Porque o senhor Descartes decidiu fazer uma coisa muito complicada que foi
confundir tudo e, para sair da tradição aristótelica que a igreja abarcou,
o que é que dizia Aristóteles? Aristóteles dizia que o ser humano
é um animal racional. O ser humano tem um lado animal, que
é o seu aspecto material, que é o seu corpo, e esse
mesmo ser humano tem um lado imaterial, que é o seu aspecto
mental e que de certa forma se associa à alma, mas uma
alma racional. Porque Aristóteles também dizia, por exemplo, que as plantas tinham
almas, Porque ele dizia que a alma da planta eram as facultades
vegetativas da planta. E que os animais tinham uma alma, que era
uma alma superior, uma alma que proporcionava crescimento, capacidades sensoriais, locomoção, uma
alma animal. E depois o pináculo para Aristóteles era a alma intelectual,
que era vegetativa como as plantas porque tinha crescimento, que era sensitiva
como os animais e sensorial como os animais porque também temos sentidos
e também processamos informação sensorial. Mas depois, a coroa da alma era
a alma intelectual. Isso era o que pensava Aristóteles. O Aristóteles não
fazia o divórcio entre o nosso lado material e o nosso lado
imaterial. Isto calhou que nem gíngeres para a religião católica e isso
foi preservado. A filosofia católica nunca abandonou esta visão aristotélica da alma.
Que é muito diferente do conceito fantasma na máquina, que é um
conceito de Descartes. Descartes concebe, à revalia da tradição anterior a ele,
porque ele queria ser diferente, queria ser novo. Mas é verdade, e
depois eu posso contar algumas episódios engraçados a favor disso. Ele queria
ter a chave da novidade e da verdade científica. Então, ele concebe
os seres vivos como pequenas máquinas biológicas e no caso do ser
humano há a coisa que pensa, o res cogitans, a coisa que
pensa. E ele diz bom, o ser humano são duas substâncias, uma
substância que é um corpo e uma substância que pensa. Sim, material
e imaterial. E hoje em dia se está a tentar discutir mas
como é que isso é possível? Se elas são duas coisas distintas,
como é que elas interagem? Qual é o ponto de união? Descartes
dizia, deve ser a glândula pineal. Pois
Bernardo Motta
Pois, exato. Ou seja, Descartes inventou um problema fantástico e tem uma
vantagem que criou imensos postos de trabalho para filósofos da mente, e
hoje em dia continuam a trabalhar problemas criados pelo Papa Descartes. Mas
Aristóteles não tinha este problema, nem os escolásticos medievais também não existiam.
E hoje em dia temos alguns filósofos, como o norte-americano Edward Fazer,
por exemplo, que eu admiro bastante, que defende um neo-aristotelismo, ou seja,
recuperar, à luz da nova ciência, recuperar conceitos básicos, filosóficos de Aristóteles,
que diz o Fazer, explica, Não tem estes problemas. A filosofia da
mente pode ser recuperada do estado caótico em que está, se formos
buscar alguns conceitos. Aristóteles não é, agora de repente, ir para o
passado. Não. Mas é ir buscar
alguns bons princípios.
Por exemplo, dizer que... Ou
Bernardo Motta
Eu Vou dar um exemplo, buscando aqui um livro que eu acho
super interessante e que eu recomendo vivamente, que é um livro que
é escrito a duas mãos. Isto é um ótimo exemplo daquilo que
se deve fazer, comprar um livro em que haja ou uma pessoa
competente nas duas áreas ou duas pessoas, que é o caso deste
livro, que chama-se Philosophical Foundations of Neuroscience. É a segunda edição do
Sr. Bennett e do Sr. Hacker. Então, o Bennett é professor em
mérito de Neurociência em Sydney e o Hacker é professor de Oxford
em Neurologia. Nós temos duas pessoas que têm uma formação quer em
neurociências, quer na parte filosoficamente, na parte filosófica da coisa. Têm um
pé na ciência e um pé na filosofia. Neste livro, que já
vai na 2 edição, que está a ser muito lido e muito
discutido nos meios da especialidade, O que eles dizem é que vamos
ter que abandonar a ideia de que a consciência está ligada apenas
ao cérebro, porque a consciência está localizada no cérebro. E eles recuperam
um conceito, apesar de não falarem muito em Aristóteles. Atenção que isto
aqui tem zero a ver com a Igreja. Isto tem conceitos que
são aristótélicos numa discussão contemporânea, dificilmente. E o que eu estou a
dizer é que temos que, uma vez por todas, abandonar este erro
conceptual de achar que a consciência do ser humano é algo que
só existe no cérebro. Para eles, a consciência está no corpo todo.
Porque eu tenho consciência dos dedos dos pés, consciência de uma cócega
aqui atrás da nuca, consciência de uma dor na minha cabeça, etc,
etc.
Bernardo Motta
neurônios... Atenção que eu não estou a falar por eles, mas isto
a mim cheira a Maristóteles. E não é só aqui que está
a acontecer, está a acontecer em muitos aspectos. Há um filósofo ateu
que é o Thomas Nagel. O Thomas Nagel escreveu aqui há menos
de uma década um livro super polémico em que ele diz, Why
it's almost certain that the materialistic Darwinian evolution theory is wrong. Ele
é ateu, tem uma carta a jogar nesse aspecto. E o que
ele está a fazer, curiosamente, para quem lê o livro de Thomas
Nagel, vindo da escola aristotélica, que é o caso do Edward Fraser
de outros, está a dizer Senhor Thomas Nagel, o que ele está
a fazer? Está a descobrir o aristotelismo. Bem-vindo ao clube. Ele ainda
não entrou no clube dos aristotélicos, mas ele está... O livro dele,
que é uma revolta contra a narrativa materialista do darwinismo, é um
livro escrito por outro eu, que não tenho nenhuma vantagem em fazer
isso, do ponto de vista nem político nem religioso.
Bernardo Motta
Ou seja, a filosofia da mente é crucial para o darwinismo. Estes
temas estão todos ligados. Porquê? Porque se eu for um materialista em
filocida mente, eu vou trabalhar a teoria da Arminista do único ponto
de vista que tu acabaste de escrever muito bem. Tem que ser
gradualismo, porque a mente vem da matéria. A matéria evolui gradualmente, a
mente evolui gradualmente. Aqui está um exemplo de muitos da ligação umbilical
que há entre as nossas convicções em filosofia da mente e a
forma como olhamos para os dados da genética e dos fósseis. Vindo
de uma perspectiva aristótica, que é aquela que eu estou aqui a
defender, eu posso olhar para os dados dos fósseis de uma maneira
completamente diferente e posso dizer o seguinte. Sim, há um rasto genético
que eu não posso negar. E eu, quando vou aqui e acolá
falar em paróquias e a outros católicos que não leram estes temas
e que não estudaram, e que também têm estas dúvidas, o que
eu lhes digo é, senhores, não vamos questionar os dados científicos que
são factuais e são muito sólidos. Ou seja, porquê é que hoje
temos que defender que há um antepassado comum? Que nós todos provimos,
muito antes de Adão e Eva, que nós todos provimos de um
primeiro ser vivo. Porquê é que temos que dizer isso? Por uma
série de razões. Primeiro já porque todos utilizamos o ADN para a
codificação do nosso genoma e para a produção de proteínas. Isto é
inevitável. Toda a vida que nós conhecemos baseia-se em ADN. E baseia-se
no complexo processo de produção de proteínas, num complexo processo que tem
imensas coisas em comum, desde o micro-organismo mais pequeno, o unicelular, até
nós. Imensas coisas em comum. Ponto 1. Ponto 2. As árvores genéticas
que se constroem com a cladística, com a estatística. É um trabalho
conjectural? É. Mas é super forte, super provável. A forma como se
consegue matematicamente construir uma árvore genealógica toda a vida é super interessante
e é super potente como evidência. E aqueles que disserem, ah mas
é o passado, não podemos ter certeza. Senhores, então vamos também o
quê? Questionar a história? Ou seja, quando um cristão está a dizer,
o Nome do Festival é muito incrédível como livro histórico, que eu
digo que é. Que livro é um livro histórico. Se eu estou
a dizer que é possível tratar a história como uma ciência, então
eu não vou atacar o Darwinismo só porque é uma conjetura do
passado. Isso é incoerente, não é? Por isso, sim, eu acredito que
a história é uma ciência. É possível conhecer o passado a certa
medida. Por isso, respeitemos os fósseis, respeitemos a cladística, respeitemos as evidências
de que há uma árvore da vida que é comum a todos
os seres vivos. Ponto 1. Na Terra, pelo menos. Ponto 1. Ponto
2. Como é que a vida surgiu é um problema completamente diferente.
Eu atrevo-me a dizer, ninguém sabe.
Bernardo Motta
Não sou eu que digo, há vários especialistas no tema que dizem
que ninguém faz ideia. Eu vou dar um nome. James Ture. O
James Ture especializa-se em nanomoléculas. Ele tem uma equipa que compete todos
os anos, ou quando há campeonatos desses, em corridas de nanomotores. Em
que eles constroem microcarrinhos que são feitos de moléculas apenas. É uma
escola à escala dos nanómetros. E estamos a falar de um homem
que lidera uma equipa científica que ganha este tipo de campeonatos, e
tem um especialista no tema. E o James Tur, estou a usar
o argumento da autoridade, atenção, porque eu também não sou biólogo, não
posso falar para além de argumentos da autoridade, perdoem-me por isso, mas
o James Tur tem uma série de vídeos muito interessantes que eu
recomendo que se vejam no YouTube, em que ele diz assim, no
one has a clue, Ninguém tem a menor das ideias de como
é que a vida surgiu. Há teorias interessantíssimas, ninguém sabe como é
que ela surgiu. O salto da química orgânica para a vida não
está explicado.
Bernardo Motta
assumir isso, eu por acaso tenho uma opinião diferente.
Mas qual é
a relevância disso também para a religião em quanto tal? Para o
cristianismo? Está tão distante. Tem uma importância enorme para desmontar uma narrativa
do evolucionismo como uma metastória. Qual é o problema hoje em dia
que as pessoas talvez não se deem em conta? Eu defendo os
factos científicos do Neodarwinismo. O que é o Neodarwinismo? Eu defendo, e
vou lendo e acompanhando, aquilo que se escreve em ciência, não é
nos livros polémicos dos ateus, é em ciência, ciência mesmo, que é
o que eu gosto de ler. O Neodarwinismo é o casamento da
teoria darwinista da associação natural com a genética mendeliana. Já agora, Gregor
Mendel, apresente-vos, monge austríaco, monge católico austríaco, pai da genética. O casamento
da genética de Mendel com a associação natural é o que se
chama síntese neo-darwiniana. Eu estou a falar da parte científica, eu não
estou a criticar isso. O que eu vou criticar agora, no resto
da nossa conversa, é o que eu chamo a narrativa filosófica, que
dá pelo nome de materialismo darwinista. Cuidado que eu coloquei a palavra
materialismo. Se uma pessoa é materialista, não há nenhuma mente que criou
o universo, não há nenhum propósito, não há nenhum design, não há
nenhuma inteligência, as coisas aconteceram fruto do acaso e de umas leis
que ninguém sabe bem sequer porque lhes chamamos de leis, porque não
há nenhum legislador, é uma força de expressão. Se eu for materialista,
só há uma narrativa, que é a evolução, a partir do momento
em que surge o ADN. E quando não há ADN, quando estamos
em química orgânica e ainda não existe ADN.
Eu vou
ter que arranjar uma espécie de Darwinismo da química
José Maria Pimentel
Eu acho essas conversas sobre a origem da vida, o Big Bang,
são conversas interessantes para... Até seriam interessantes para o podcast, mas acho
que em última análise são histérias. Porque tu podes ser agnóstico, podes
ser taísta, não sei se é a palavra certa, ou seja, tu
podes acreditar que é possível que exista um Deus, quer dizer, o
unmoved mover, não é aquela que eu vou citar, o exército de
São Tomás, não é?
José Maria Pimentel
E que vem de Aristóteles, exatamente, que no fundo deu origem ao
universo, que até terá dado origem à vida, não é? Mas isso
não te impede de depois construir o resto da ciência sobre isso
e, quer dizer, desse move the mover até ao cristianismo ou qualquer
outra religião, vai um... Uma distância enorme. Vai uma distância enorme, não
é? Quer dizer, o ponto que eu aqui acho interessante discutir, estes
acho que seriam interessantes para a conversa de café, não é? Mas
o que eu acho interessante para um católico, não é? Para estar
contigo enquanto católico é o ser humano, não é? Quer dizer, esse
é que é o ponto que interessa. Como é que tu tens
essa descontinuidade, quer dizer, sendo a vida toda ela baseada em ADN,
havendo evolução por seleção natural e... A
Bernardo Motta
questão é, tu tens uma série de problemas por resolver E eu
vou só disparar aqui alguns que depois podemos aprofundar, se tu tiveres
mais gosto. Mas já falámos sobre um deles, não é? Explicar a
consciência, que é um problema relativamente novo, porque vem do Descartes. Problemas
muito antigos. Explicar o problema dos universais na Idade Média. Conceitos universais.
Por exemplo, ser humano. Existem seres humanos que nós colocamos na categoria
de ser humano. Até lhe damos o nome, que é Homo Sapiens,
mas por efeito agora interessa pouco. Ser humano. O conceito de ser
humano é universal. É uma categoria na qual nós colocamos vários seres
humanos, instâncias de seres humanos. Eu, tu e pessoas que estão a
morrer e outras que ainda vão nascer. Esses conceitos abstratos existem? Se
existem, onde é que existem? Qual é a natureza desse conceito? Para
já há uma coisa que parece claríssima, que é um conceito abstrato
não é concreto. Desculpa-me, verdade de lá para a lice. São coisas
que se complementam. Ao concreto e ao abstrato. E até usando um
exemplo ainda mais simpático do que o de ser humano, que é
um bocado polémico, depois levamos a muita discussões, vamos pensar, por exemplo,
num triângulo. Que é o exemplo que usa o Edward Fraser muitas
vezes. Quando a gente gerar um triângulo teórico, esse triângulo é perfeito.
Os ângulos somam 120°. Fantástico. Rigoroso. Preciso. Todos os triângulos que alguém
desanha são imperfeitos. Se eu apontar para lá o microscópio e mesmo
que eu desenhe aquilo com o computador, com a impressora de alta
resolução, com muitos TPI's, etc. Se eu fizer zoom naquela imagem eu
vou ver imperfeições da tinta, vou ver imperfeições à escala atómica no
limite, não é? Isso é um bocado platónico, não é? Ora bem,
o Platão tinha uma coisa muito séria em mãos, que é preciso
de explicar qual é a realidade destes conceitos abstratos, porque senão eu
não consigo sequer pensar, ou seja, o pensamento humano requer conceitos abstratos
para poder sequer chegar à verdade das coisas, para poder discutir e
investigar e avaliar. A nossa mente trabalha com conceitos abstratos. Mas
Bernardo Motta
materialismo é falso? Por uma série de razões. Uma das razões que
se aponta desde o infinito dos tempos. Desde os primórdios da humanidade
se aponta este efeito ao materialismo. Já no tempo do Demócrito, que
dizia que tudo era átomos, Demócrito é o primeiro materialista conhecido da
história da filosofia, mas certamente que houve outros. Porquê que o materialismo
está falso? Por várias razões. Uma delas é esta. Se a minha
mente é puramente material, ou se são processos eletroquímicos que se reduzem
à matéria, então não há entidades abestatras. Não há. A questão é,
se eu fizer zoom aos meus neurônios, eu não vou encontrar o
tal tirango perfeito. Um exemplo ainda mais dramático. Se eu fizer zoom
aos meus nanónios, eu não vou encontrar o número pi. Mas todos
sabem que o pi é o que eu vou utilizar para calcular
a proporção entre um perímetro e um diâmetro. De uma forma rigorosíssima.
É um rigor que a matéria não contém. E entramos aqui num
tema que eu acho interessante de introduzir, que é o tema hoje
em dia muito discutido em filosofia da matemática. Todos os ramos do
sabedor têm uma filosofia. Há a filosofia da física, da química, da
biologia. Em filosofia da matemática discute-se muito esta questão. A matemática é
descoberta ou é inventada? Eu acho que ela é descoberta. Platão estava
num caminho certo, que depois foi corrigido, na minha opinião, no Cristianismo,
que era apostelar um mundo das ideias, em que tem que haver
um espaço em que as verdades matemáticas existam, mesmo que não haja
seres humanos. E basta as pessoas que nos estão a ouvir pensarem
no seguinte, vamos imaginar que amanhã uma bomba nuclear destruía a nossa
civilização, não ficava ninguém nesta terra e que não havia vida inteligente,
portanto os seres inteligentes desapareceram do universo e que não havia Deus.
Vamos imaginar tudo isso. Onde é que estão as verdades matemáticas? Para
onde é que foram? Ou pensar ao contrário, antes de aparecer a
Bernardo Motta
Mas é que ela não é instanciada de forma perfeita de forma
nenhuma. Ou seja, ela não está em nenhuma pedra, em nenhuma rocha,
em nenhuma forma. Porque o que a extração intelectual nos mostra é
que esses conceitos só estão puros na nossa mente. Sempre que eu
tento retratá-los numa rocha, numa onda de um oceano, numa onda sinusoidal,
numa radiação de uma estação de rádio, quer que seja, são sempre
aproximações imperfeitas. O perfeito só está mesmo na mente do matemático. E
isto é um problema muito complicado, que é o problema dos abstratos
ou dos universais, que fez os medievais andarem que nem uns doidos
à procura de soluções para este problema. Não há assim muitas soluções.
Há negar os universais. Ora bem, quando nós negamos os universais, quando
nós negamos que o ser humano seja capaz de conceitos abstratos, surgem
imensos problemas filosóficos. O que é a linguagem? O que é a
comunicação entre seres que usam linguagem? O que é uma lei sequer
da natureza? Surgem inúmeros problemas sem fim, quando nós negamos os universais.
Que é o que se chama o nominalismo. Os nominalistas, este palavrão,
são aqueles que negam os universais. O nominalismo é um sem fim
de problemas filosóficos. Por outro lado, há outra hipótese, que é como
fez o Platão, de dizer não, há ali um mundo, um mundo
das ideias, em que as coisas estão lá sosseguidinhas e eu tenho
acesso a elas quando penso nelas, que é uma ideia bonita, mas
depois a questão é muito bem, vamos Imaginar que há um mundo
das ideias, que até é complicado imaginar o que é que isso
seria, não é? O que é que é um mundo das ideias?
Porque se ele não é material, o que é que é isso?
O que é que são ideias a flutuar, não é? Fora de
uma mente. Nós só conhecemos ideias dentro de mentes. É a nossa
experiência. O que é que resta? Resta dizer que a nossa experiência
do dia a dia é que as ideias Vivem em mentes. É
o que nós conhecemos, mesmo os ateus. As ideias vivem dentro de
mentes. O que é que fizeram os cristãos? Muito simples. Pegaram no
mundo as ideias de Platão e puseram-nas no intelecto divino. Onde está
a matemática? No intelecto divino. Vou dar só um único exemplo, mas
há vários. Por acaso, até tinha pensado em dois exemplos para sugerir.
Os matemáticos, hoje em dia, estão um bocado perplexos com algumas coisas
de acontecer no século XX quando certos matemáticos, por razões acidentais, descobrem
pontes entre áreas da matemática que não têm nada a ver uma
com a outra. Descobrem ligações profundas. É como se o matemático estivesse
a descobrir um território mental que, se fosse uma invenção humana, nós
não esperaríamos a ver pontos entre, por exemplo, a torre matemática do
movimento browniano, que é uma área estocástica, estadística. Estão ali os estocásticos,
os brownianos, fanáticos por essa área. E Depois há aqui uma outra
área onde estão os senhores das iguações diferenciais. Tudo é contínuo, tudo
é indiferenciável, funcõezinhas direitinhas, com pontos infinitos. São mundos que não têm
nada a ver uns com os outros. E depois aparece, acho que
foi um senhor chamado Kakutani, já não me recordo bem, que é
autor do século XX, anos 40, anos 30. E o Kaku Tani
liga o problema de Dirichlet, que tem a ver com funções deriváveis,
diferenciáveis, liga-o com a teoria browniana do movimento, ou a teoria do
movimento browniana, que é estocástica. E mais do que isso...
Bernardo Motta
vários destes. E ele faz, é mais do que um aponte, ele
faz um viaduto onde passam carros e é uma coisa mesmo muito
sólida que ele faz e ele demonstra ligações profundíssimas entre áreas da
matemática que surgiram por razões diferentes, que trabalharam por pessoas diferentes e
que ele unias de uma forma surpreendente. Ora, isto é um argumento
que aqueles que defendem uma filosofia descoberta na matemática, a chamada escola
Sidney, ou o Sr. Chamado Franklin, que é professor catedrático em Sidney,
que representa hoje em dia esta escola de filosofia na matemática, que
diz que a matemática é descoberta, curiosamente eu moro estélico, curiosamente, e
com alguns toques de platonismo, diz que a matemática é descoberta. Ora,
para um cristão, isto é música para os nossos ouvidos, porque se
a matemática é descoberta, naturalmente estamos a descobrir a mente de Deus.
A matemática vive na mente de Deus, que é o demático perfeito.