#125 Bernardo Motta - Ciência e religião são incompatíveis?

Click on a part of the transcription, to jump to its video, and get an anchor to it in the address bar

José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45 Graus. Antes de mais um anúncio para os ouvintes de Braga, vou estar na Feira do Livro no próximo dia 12 de julho, terça-feira, pelas 17 horas, a dar uma entrevista ao António Ferreira da RUM. Na altura do lançamento do livro, como se recordam, fiz três apresentações, Lisboa, Coimbra e Porto. Tive muita pena de não ter feito em Braga, tive quase para fazer e portanto veio mesmo a calhar de novo. O evento está marcado para as 17 horas, mas eu conto estar lá pelo menos até às 7 da tarde, portanto se puderem aparecer, mesmo que não seja para a entrevista a seguir, tinha muito gosto em ver-vos lá e, enfim, e assinar alguns livros, se quiserem. E feito este anúncio, vamos ao episódio de hoje. Quem ouve o 45° há mais tempo sabe que o tema religião, e o cristianismo em particular, me interessam muito, por vários motivos, desde logo porque é essencial para compreender a história da humanidade, mas também pela importância que a religião continua a ter ainda hoje na vida de muitas pessoas, e isto apesar de vivermos num mundo mais secularizado e dominado pela ciência. Enquanto agnóstico ou ateu, fascina-me sobretudo compreender como é que um crente enquadra na sua fé a ciência, e de uma maneira mais abrangente, de onde é que vem essa fé, em que motivos é que ela é fundamentada e como é que é a experiência subjetiva do divino. Conversei sobre estes temas e muito mais neste episódio com Bernardo Mota, o convidado é engenheiro eletrotécnico de formação e com carreira nessa área, mas é também um católico praticante, praticante a sério, e um conhecedor profundo dos debates académicos sobre Deus e o Cristianismo, aos quais tem dedicado muito nos últimos anos. A primeira vez que o nome do Bernardo me foi sugerido foi por um antigo convidado do 45°, um ateu dos quatro costados, mas que apesar disso recomendou Bernardo Mota enquanto alguém com bases científicas sólidas e, sobretudo, conhecimento profundo dos debates da filosofia da religião. Ora, vindo a esta recomendação de alguém que não era crente, fiquei logo intrigado, até que o nome do Bernardo me voltou a ser sugerido, desta vez por um mecenas do podcast, e aí, como o tema de facto me interessa muito, decidi avançar e convidá-lo para o 45°. O convidado tem-se dedicado a estudar a história do cristianismo e a sua relação com a ciência. Depois de um livro publicado em 2005, em que desmontava as teses defendidas por Dan Brown no livro O Código da Vinci, na altura muito na berra, o convidado tem-se dedicado sobretudo a estudar a relação do cristianismo com a ciência e a difundir a sua visão sobre ela, por exemplo, através de um curso que tem lecionado em vários fóruns, inclusive no Instituto Superior Técnico nos alunos dos mestrados de Matemática e Física. Mais recentemente, em 2017, publicou um livro sobre o milagre de Fátima, em que defende simultaneamente a tese do milagre e uma explicação triológica, isto é, científica, para o que foi observado. Este era um tema de que era suposto termos falado, mas acabámos por não ter tempo para discutir a nossa conversa. O Bernard Allen disse-se alguém muito ativo nos recantos da internet, hoje em dia sobretudo nas redes sociais, onde crentes e ateus se digladiam a debater este tipo de questões. Aliás, embora o convidado seja um católico profundamente convicto, alguns diriam mesmo fundamentalista, tem um gosto enorme no debate com ateus e agnósticos, ao ponto, a risco, disso lhe gerar o paradoxo de que um mundo supostamente ideal, ou seja, onde não houvesse ateus, seria provavelmente um mundo muito mais aborrecido para ele. Nesta vontade em debater com não-crentes, o convidado distingue-se, na verdade, de muitos católicos que remetem a crença em Deus para uma questão puramente subjetiva de fé. Para o convidado, pelo contrário, a existência de Deus é algo que pode ser provado, filosófica e cientificamente, e portanto, é um debate tão ou mais relevante do que qualquer outro. A nossa conversa resultou muito longa e por isso resolvi dividir o episódio em duas partes. Começámos por falar do modo como o Bernardo entrou nestes meandros dos debates sobre religião, quando decidiu estudar a teoria da conspiração que acabou por servir de base ao código da Avintes. O convidado tem aliás uma biografia peculiar neste aspecto, porque como ele relata, passou um período longo longe da fé, durante o qual acabou por gravitar para outras crenças, inclusive a religiões orientais, pelo exoterismo antigo e por algum fascínio por este tipo de teses alternativas. Mas o grosso desta primeira parte da nossa conversa foi dedicada à relação do cristianismo com a ciência. Isto levou-nos a alguns argumentos do convidado para a existência de Deus e a discutir várias questões onde a ciência e a religião entram em colisão, como por exemplo compatibilizar a narrativa criacionista da bíblia com a teoria da evolução, a origem da vida na Terra, o lugar da Terra no Universo e mesmo o eterno mistério da consciência, ou seja, o modo como nós sentimos a nossa própria consciência como algo muito mais imaterial do que propriamente material. A propósito, uma nota, eu engano-me a certo ponto e digo etnocentrismo em vez de dizer geocentrismo, ou seja, a ideia de que o universo ou o sistema planetário estava centrado na Terra. Espero que gostem. Este episódio fez-me lembrar várias vezes da descrição deste podcast. Um podcast para todos, mas não para qualquer um. Desde logo pelo tema em si, que, a risco, não interessa a todos os ouvintes. E em segundo lugar, e principalmente pelo tipo de conversa, longa, mais filosófica e com um fio condutor menos claro do que acontece nos episódios normais. No entanto, se gostarem destes temas e sobretudo Se tiver a mente aberta, tenho a certeza de que irão gostar bastante deste duplo episódio, mesmo que discordem muito do convidado. Aliás, precisamente por eu próprio ter um ponto de partida muito diferente do do convidado nestes temas, embora tenha procurado provocá-lo e confrontá-lo com as minhas opiniões, optei sobretudo por dar primazia à curiosidade, que afinal de contas é o espírito do 45°, e dar espaço ao convidado para explicar os seus pontos de vista e fundamentar as suas ideias. Para a semana sai então a segunda parte desta conversa, na qual cobrimos tópicos, dentro do género, mais normais numa conversa sobre estes temas, como a figura de Jesus, a experiência subjetiva do divino e o eterno problema do mal. Deixo-vos então com a primeira parte da conversa com Bernardo Mota, não sem antes agradecer, como de costume, aos novos mecenas do 45°, Leonardo Rodrigues, Rui Passos Rocha, Filipe Amoreira Rato, Filipe Almeida e Emanuel Saramago. Até lá. Bernardo, bem-vindo ao 45°. Muito obrigado, Zé Maria. Bom parte de estar aqui. Eu não costumo fazer isto mas acho que neste caso, como estávamos a falar há bocadinho, faz sentido começar pela tua biografia, porque ela liga só o tema. Ou seja, tu não foste sempre um católico praticante, como és hoje, e isso é interessante porque esse caminho não surgiu por acaso, ou seja, o teu regresso à religião não surgiu por acaso e também define grande parte daquilo que tu acreditas hoje. Como é que isso aconteceu? Para o tema
Bernardo Motta
que nos traz aqui hoje, eu começaria por dizer que a minha infância e até mesmo a adolescência, teve pouco interesse, no sentido em que foi semelhante a muitas. Nasci de uma família católica, marcado Com figuras femininas de uma forte prática católica, as femininas mais do que as masculinas, o que é interessante.
Bernardo Motta
Acontece, acontece frequentemente. E figuras que eu admirava
Bernardo Motta
e que me entregava esse aspecto da sua prática religiosa. Como muitos adolescentes em famílias católicas Fiz a primeira comunhão, fiz o Crisma, fiz o Crisma com 15 anos. E hoje em dia se eu pensar no que é que aquele rapaz de 15 anos sabia sobre a fé católica, quase me dá vontade de rir, porque não sabia nada. E por isso, como não sabia nada com 15 anos e é o último sacramento da iniciação cristã, a partir daí a catequese termina, como se fosse uma espécie de uma graduação ou de um fim de curso, quando deveria ser o começo e naturalmente que a igreja depois espera que as pessoas façam o seu percurso a partir dos 15 anos, mas no meu caso não aconteceu. Eu vou até à universidade com um abandono progressivo da prática religiosa, a ser é que alguma vez a tive, não é? Porque eu acho que a minha prática religiosa até entrar para a universidade era muito de imitação, muito de hábito. Eres católico por inércia, não é? Sim, católico por inércia acho que é uma ótima expressão. E a entrada para a universidade, para o instituto protécnico, para um curso de engenharia com o qual eu sempre sonhei desde criança, com o meu fascínio por computadores e por eletrónica foi para mim uma grande desilusão. E a desilusão não tem a ver com o instituto protécnico, não tem a ver com as pessoas que lá andavam, tem a ver com o facto de que, talvez pela primeira vez, como jovem adulto, não tinha feito o processo intelectual de pensar nos temas grandes da vida. E quando eu me dou conta de que já estou na universidade e de que vou ter pela frente cinco anos de matemática, eletrónica, tiros-circuitos e disciplinas semelhantes, que para mim sempre foram o sonho, e robótica, depois sou eu que explicei também robótica, para mim tudo aquilo era como estar num par de diversões, mas a exigência do estudo e a aridez de algumas matérias deixaram-me absolutamente desanimado. E, curiosamente, nesses anos de universidade eu refugiei-me em algo que nunca me tinha fascinado por e além, na Idade Média, na leitura de livros sobre os Templários, sobre História. No fundo, a história a chamar-me a atenção e talvez como uma forma de compensar fora de aulas, quando não estava na universidade, quando estava em casa, compensar um excesso de tempo dedicado à parte da engenharia. E abre-se uma janela que rapidamente a história me leva para o exoterismo e para o ocultismo e para a alquimia e para a magia e para esse tipo de coisas. Não tanto na perspectiva moderna contemporânea do New Age, isso nunca me convenceu, sempre achei que era tudo aldrabice, mas mais numa perspectiva de que se calhar havia algo de genuíno e de bonito e bom para aprender num esoterismo perdido nas areias dos tempos, em tradições alquímicas ou medievais e foi um pouco por aí, as minhas leituras foram um bocadinho por aí... Não sei se
José Maria Pimentel
é que isso é bom engenheiro, porque é antico, é antídice. Eu
Bernardo Motta
acho que era mesmo para compensar, talvez alguma forma de compensação psicológica. E depois acabo por criar para mim próprio um hobby que consistiu em ler de forma quase compulsiva acerca de uma lenda misto exotérica, misto de tesouros, que tinha como epicentro uma aldeia no sul de França, chamada Rennes-le-Château. E essa história, com muitos braços e ramificações, basicamente falava de um padre que tinha enriquecido de forma ilícita. E esse padre ocultava um grande segredo, e que para o calarem, ele era subornado. E esse grande segredo é que ele tinha descoberto uma descendência de Jesus Cristo, que teria casado com a Maria Magdalena. E que esta linhagem chamada Sagrada teria sido escondida durante milénios, durante dois milénios. E este padre teria descoberto esse segredo explosivo que podia fazer cair a igreja católica e derrubá-la. E foi por isso que ele enriqueceu. Esta história detetive resulta de uma fraude que surge nos anos 60, obra hábil de três homens de grande inteligência e de grande sentido de humor, mas eu não tinha cultura nem bagagem para perceber que estava a ser levado por essa fraude que tinha 40 anos de existência, essa fraude lendária, e passei talvez 5 ou 6 anos de volta desse tema até descobrir que era tudo uma fraude e tive uma reação de anticorpo, quase adversa, que foi dizer a Igreja Católica afinal não é mada fita, afinal tudo isto é uma fraude e tudo o que eu pensava e todas as minhas ideias sobre a Igreja Católica estavam ao final erradas. Eu tinha tido uma birra, se quisermos, contra a minha religião na juventude e estava a fazer as passos
Bernardo Motta
e pouco a pouco a regressar. Desculpe interromper, mas aquilo não é... Essa tese não era ateia, não é? Não era ateia, eu nunca fui ateu.
José Maria Pimentel
Seria herética, eventualmente, mas não ateia, não é? Herética, sim.
Bernardo Motta
E eu tive uma fase muito forte de heresia e de zanga com a minha fé. Eu lembro-me que, durante algum tempo, na missa, eu não conseguia rezar ao crédito, porque eu não acreditava. E isso chega a uma altura que a nossa consciência nos diz se estás a abrir a boca e a dizer, é bom que acredites, porque se não acreditas, feches a tua boca e não dizes. Se não estás a mentir para ti e próprio para os outros, porque o crédito é uma afirmação pública de fé. E durante algum tempo eu deixei de rezar o crédito, porque estava a ler estes livros e convencido que havia este grande segredo que a Igreja tinha ocultado, que Jesus não era Deus, que Jesus era um homem como os outros, que tinha-se casado, tinha-se filhos, etc. E quando eu descobri que era tudo uma farsa, dasse-me uma reação oposta, que foi uma reação de eu vou ter que escrever? Na altura não havia blocos, havia sites que eram feitos com ferramentas muito arcaicas. Estamos em 98, 96, 98. E eu escrevi um site, usando linguagem mesmo de baixo nível, HTML, para os entendidos na matéria, aquilo era mesmo escrito por e duro, não havia cá ferramentas práticas para fazer isso. E comecei a colocar informação sobre esta farsa para desmontá-la, mas ninguém tinha interesse nenhum nisso, ninguém lia isso. Havia um grupo de três ou quatro pessoas em Portugal e talvez vinte no Brasil, a escala do Brasil é sempre um pouco interessante aqui. Pessoas que diziam você conhece este tema? Sim, de real já estou assim. Então éramos um grupo minúsculo. Aí se não quando o Dan Brown, em 2003, publica o romance O Qualidade 20, que é uma reciclagem de má qualidade, estilo chiclete, desta mesma lenda para um público muito vasto e com sucesso
José Maria Pimentel
tremendo. E com uma história pelo meio, com
Bernardo Motta
romance. Com romance pelo meio,
Bernardo Motta
mas sendo que ele começava o romance dizendo, isto baseia-se em factos históricos, em rituais verdadeiros e em personagens reais. E de repente, este não quando, as pessoas, os católicos aqui, em Portugal, que estavam a parar-se para o tsunami de Coelho da Vinci nós podemos já não recordar-nos, mas foi um tsunami, as paróquias, os padres, as escolas estavam em pânico com Coelho da Vinci e a isto não quando começo a receber telefonemas e e-mails porque encontraram o meu site e dizem você parece ter alguma informação sobre o tema do Dan Braulio e do Coyote da Vinicius. Para caso, eu já imaginava que... Porque em 98 congelei o site, nunca mais mexi. Portanto, em 2004, seis anos depois, eu
José Maria Pimentel
estava defunto.
Bernardo Motta
E de repente surge uma pressão enorme para começar a falar sobre o assunto publicamente. Escrevi um livro, a tentar explicar a história de uma ponta a outra, como é que a farsa foi montada e depois passei, talvez dois anos, até até 2016, talvez, 2005 e 2016, passei dois anos a visitar o país ao Covid de paróquias, para falar a jovens e não jovens acerca desta história do Covid à 20. E eu acho que quando chegamos a 2016, e esta experiência de falar em público e ter que explicar toda esta história, fez-me, ao dar razões às pessoas que me ouviam para acreditarem na fé católica e na igreja católica, ou dar-lhes razões para não acreditarem o Dan Brown e não trocarem o padre pelo Dan Brown, não trocarem a igreja por um romancista, acabei por eu próprio ir interiorizando esta convicção de que eu afinal sou católico, sim. Eu nasci católico, fui batizado, até fiz o carisma. E então fiz um bocado como que uma catequese um pouco tarpalhona à custa...
José Maria Pimentel
À atualidade. Quase que
Bernardo Motta
posso agradecer ao Dan Brown ter feito essa catequese. Sim, mas da maneira como estás a contar parece que tu te reconverteste por negação dessa versão herética. Sim. Mas a tua
José Maria Pimentel
crença católica é mais profunda do que isso. E tem a ver também com a maneira como tu consegues encontrar a religião com a ciência, por exemplo. Porque para ti elas não estão em contradição, e era um tema que eu queria falar contigo.
Bernardo Motta
Não estão em contradição. Há um momento em que realmente
José Maria Pimentel
a ciência... Ventou uma área da ciência. Sem
Bernardo Motta
dúvida. E acho que as pazes só são feitas entre a minha fé e o meu gosto pela ciência mais tarde do que isso. Mas há alguns por volta de 2006, 2008, onde é que eu estava? Eu estava convencido que era católico, mas o meu catolicismo estava apoiado em ideias esotéricas e gnósticas. O que é que isto quer dizer? Quer dizer que eu estava convencido de que, sendo católico, eu estava na posse de conhecimento superior acerca da minha própria religião, mas acerca de outras religiões. Motivado pela leitura de um autor francês chamado René Guénon, eu fiz uma trajetória que se poderá chamar gnóstica ou exotérica, em que eu estava convencido que a Igreja Católica era verdadeira, mas não era a
Bernardo Motta
única. Sim, era uma coisa meio sincrética. Sincretismo é a palavra certa, é mesmo isso. Ou seja, eu estava convencido que o
Bernardo Motta
hinduísmo, o judaísmo na Kabbalah, o catolicismo e o islão, sobretudo numa vertente mais eutérica, que é o sufismo, continham vestígios de uma religião primordial. E fruto das leituras que eu fazia, estava convencido precisamente que a solução para os problemas do mundo era um acordar da mente humana para encontrarem a verdade em todas as religiões. Portanto, o oposto do ateísmo. Atenção que aqui nunca entrou o ateísmo. E a certeza de que só é possível derrubar uma visão ateísta e materialista, porque já nesta altura para mim o materialismo era uma ideia erradíssima que era preciso combater. O que é que é o materialismo? O materialismo é a convicção de que só há matéria e energia, que não existe mais nada a não ser matéria e energia. A palavra técnica que os filósofos utilizam é fisicalismo, mas é a mesma coisa. Tudo é feito
José Maria Pimentel
de matéria e energia. E isso é usado na filosofia da mente para dizer se existe ou não consciência, enfim, estado de emergência.
Bernardo Motta
Exatamente, os materialistas dizem que não, dizem que a consciência... Mas também pode ser usado
José Maria Pimentel
do ponto de vista da religião para dizer se existe ou
Bernardo Motta
não a alma, por exemplo. Exatamente.
José Maria Pimentel
Alma e enfim, tudo o resto, não é?
Bernardo Motta
A alma é um aspecto imaterial dos seres vivos e portanto quem é materialista nega que haja qualquer aspecto imaterial de qualquer coisa, quanto mais de seres vivos. E é através da ciência e através sobretudo da minha exposição a leituras de História da Ciência que me são indicadas por uma pessoa que eu adoro muito, que é o professor Henrique Leitão. Já foi convidado a este podcast. Já foi convidado a este podcast. A primeira vez que eu vou ouvir falar o Henrique Leitão é uma viragem na minha vida, porque pela primeira vez eu vejo um católico com formação em física, com formação científica, com formação em história da ciência, que me explica a ligação entre as origens mediavais da ciência moderna e o castinismo. Explica, faz a ponta entre a teologia crista e o projeto científico ter sido bem sucedido. E disse para mim que caíram-me umas escamas dos olhos. E ajudou-me a fazer as pazes com aquela aversão que eu tinha ganho no curso de Engenharia. A parte mais científica houve uma espécie de uma viagem... Uma reconciliação. Uma reconciliação, porque eu tive vários anos sem ler livros, lendo muito poucos livros de ciência, não é? Nessas deambulações histórico-esotéricas, não é? E até lendo Budismos e Hinduismos e coisas estranhas, não é? Até fazer a volta completa e chegar de volta, outra vez, à ciência já com outros olhos católicos.
Bernardo Motta
E é assim que termina este ciclo, se quisermos, de conversão adulta. Não termina porque continuo a estudar. O ponto que eu acho interessante é, e que pode parecer estranho,
José Maria Pimentel
até aí não é estranho para mim, mas poderá parecer estranho a muitas pessoas que nos estão a ouvir, porque é que a ciência e o catolicismo não só não são incompatíveis, como pelo contrário se alimentam, ou o Cristianismo alimenta a ciência.
Bernardo Motta
Eu acho que é interessante ter aqui um pouco de perspectiva. Ajuda-nos. Nós, quando estamos numa cultura cristã, é normal a crítica interna, e até é saudável, em muitos aspectos, desde que não seja, como está a acontecer hoje em dia, uma destruição dos nossos princípios e valores, que isso é que é preocupante. Ou seja, é saudável que haja dentro da Europa cristã, ou da cultura ocidental, uma crítica ao cristianismo, porque é uma crítica interna, que é preciso fazer. O que não é saudável é uma destruição desses princípios cristãos, porque no fundo a Europa nasce fruto... Há uma frase muito bonita, já não me recordo de onde é que eu a li, mas que é um cruzamento entre Jerusalém, Atenas e Roma. Também já ouvi essa... No fundo, a religião vem dos além, a filosofia vem de Atenas e o direito à civilização, a vida civilizada vem dos romanos. É Uma visão interessante. Quando comparamos isto com outras civilizações, acontecem coisas curiosas. Por um lado, nós vemos que há, sem dúvida, tecnologia. Estou-me a recordar agora daquele que é o maior especialista em história da ciência na China. Já morreu. O Joseph Needham. E o Joseph Needham foi, toda a vida, um marxista convicto. Portanto, ele não é suspeito nestas coisas. E o Joseph Needham interrogou-se numa obra enorme acerca da ciência na China, uma obra longo de milénios, de séculos de trabalho, de investigação sobre um período largado de séculos, em que ele à certa altura procura compreender porque é que o projeto de uma ciência como um trabalho comunitário que hoje em dia temos, não descolou na China. E ele chega à conclusão de que não havia, nas tradições religiosas e espirituais orientais, isto também é comum ao Budismo ou ao Hinduísmo, não é apenas um tema shintoísta ou taoísta, Não há nenhuma certeza nem de que o universo seja um universo baseado em leis, que não mudam, nem que haja um legislador por trás destas leis. Nós às vezes esquecemos que a expressão ocidental leis da natureza é uma coisa que era usada no tempo de Isaac Newton, que escrevia acerca do legislador que fez as leis da natureza. Ou seja, o Isaac Newton estava à procura das leis porque ele sabia que havia um legislador. Nós esquecemos que os pais da ciência eram todos cristãos e por isso para eles era óbvio que as leis... Newton,
José Maria Pimentel
como o Henrique aliás explicava nesse episódio, mais do que
Bernardo Motta
isso. Mais do que isso, era alquimista. Era alquimista e
José Maria Pimentel
dedicou. Ele dizia, acho que não estou a trair, ele dedicou... É possível que ele tenha dedicado ainda mais tempo à cifração bíblica? Não sei o nome mais certo. Sim, às
Bernardo Motta
cronologias do Antigo Testamento. Exatamente. Sobre o Templo. E a tentar tirar relações dali do que provavelmente há física. Sem dúvida. E essa parte não é muito conhecida. Já parou de
Bernardo Motta
falar de embolações, por exemplo, com o nosso cara Galileu, que é um dos pais da ciência moderna. O Galileu, por exemplo, fazia horóscopos para ganhar dinheiro, não é? Era uma coisa muito comum, não era a única, era uma coisa muito comum na universidade na altura. Regressando aqui à China, não tinha uma convicção, que é teológica na sua essência, uma convicção de que valia a pena invertir uma vida, porque a vida humana é sempre curta, não é? Valia a pena invertir o quê? De 20, 30 anos, de vida adulta, intelectual, num estudo de leis da natureza, porque não havia certeza de que se encontrariam esses princípios universais da natureza. Enquanto que isso é um dado adquirido, já para os judeus, mas embora não plenamente desenvolvido. Mas quando o cristianismo surge, saindo de uma comunidade judaica, não, o cristianismo é um braço do judaísmo, uma religião nova que salta do judaísmo, pela figura de Jesus Cristo. Mas quando os primeiros cristãos chocam de frente com a cultura helénica, e é muito importante perceber que uma das grandes comunidades cristãs está em Alexandria, que é a capital do saber da época, não é Roma. A capital do
Bernardo Motta
saber é Alexandria.
Bernardo Motta
Este choque entre a filosofia grega e a mentalidade grega e esta religião que está cheia de purgância e energia, que está a produzir mártires a uma velocidade enorme, ou seja, pessoas que entregam a vida por aquilo que acreditam nisso a sério, isto vai gerar uma nova intelectualidade também. E os cristãos, para eles, vai ser óbvio, na cabeça deles desde o princípio, que há dois livros. O livro das Sagradas Escrituras, que é uma compilação de livros, que é a Bíblia, e o livro da Natureza. Encontras outra vez esta expressão, de quem está... Dos cristãos, quando escrevem, falam muitas vezes no livro da Natureza. É algo que se pode estudar. E até evocando um trecho que eu gosto muito do livro da sabedoria do Antigo Testamento, isto já vem dos judeus, o que se passa é que os cristãos levam à plenitude este conceito, que as sementes já estão no judaísmo. E diz o livro da sabedoria, a certa altura, que Deus fez tudo de acordo com medida, número e peso. Portanto, temos já aqui três grandezas físicas muito interessantes. Temos a matemática, a contagem, temos a medida do espaço, temos o peso, uma certeza de que Deus é fiel, Deus não vai criar um cosmos com gravidade no domingo e acabar com a gravidade na segunda-feira. Deus não vai criar um espaço no qual o ser humano não possa viver com alguma segurança relativa. Que é o que as leis nos dão. E que te permite interagir com as coisas à sua volta. E isso é uma convicção teológica. E essa convicção teológica vai perdurar ao longo dos séculos até que a ciência moderna surge, não com Galileu, mas nas universidades medievais. É aí que a ciência moderna tem as suas raízes profundas.
José Maria Pimentel
Esse é o ponto que o Henrique faz e para algumas pessoas poderá ser estranho, mas não me parece minimamente estranho. Hoje em dia está mais ou menos acente que... Primeiro que há uma espécie de excecionalidade europeia, se lhe queremos chamar assim, e o Henrique explicava isso, que há uma lógica de que o mundo foi criado para nós e há uma relação com a natureza que é muito específica da cultura europeia e o ponto importante é, ela vem do cristianismo e isso leva a que essa lógica de que o mundo é inteligível e de que o mundo foi criado para nós cria essa pulsão por conhecer o mundo e portanto faz todo sentido que isso tenha estado nas géneros da ciência moderna e não há... Enfim, eu admito que seja um ponto que passa um bocadinho subterraneamente hoje em dia, ou seja, que não seja muito conhecido, mas parece-me mais ou menos evidente que existe essa causalidade e de facto, quando nós vamos a todos os pais da ciência, eles não só eram todos cristãos, como alguns deles, mais do que ser cristãos, juntavam as duas atividades. O Newton é o caso mais evidente, mas há
Bernardo Motta
outros. Sim, há outros. O Pascal também é um exemplo excelente, que o Pascal tem imensos escritos sobre até a sua própria fé e a forma como ele debatia com pessoas que não acreditavam. Mas eu acho que às vezes nós corremos aqui uma tentação e acontece muitas vezes numa primeira tentativa de se defender a igreja perante um suposto conflito com a ciência, que é listar cientistas cristãos ou católicos. E a resposta ateia é típica, é dizer, bom, na altura eram todos, não é? Na altura o ateísmo era quase proibido, era uma coisa que não se podia sequer afirmar, por isso não é surpresa que até ao século 18, 19, as grandes cabeças fossem todas cristãs. Eu acho que é interessante ir mais fundo, como há pouco vimos, e pensar que a teologia cristã convida a confiar numa empatia científica. Vale a pena fazer esse trabalho porque vai vir uma razão para as coisas. Há um princípio em filosofia, que às vezes é contestado, mas é complicado de contestá-lo, que é o princípio da razão suficiente, que está na base da filosofia, mas também da ciência. As coisas não acontecem sem uma razão. Isto vem de onde? Em nenhuma religião do mundo, exceto no judaico-cristianismo, há esta convicção de que tem que haver uma razão para tudo. Porque se nós pensarmos bem, porquê as coisas teriam de ser assim? Se Deus não existe, se nenhuma inteligência está por trás disto tudo, de onde é que vem esta mania de que as coisas têm que ter uma razão? Sim, poderia
José Maria Pimentel
ser aleatório ou insondável.
Bernardo Motta
Sim, o universo poderia ser absurdo, não teria a estrutura matemática que tem e o grau de precisão e de certeza que a matemática consegue extrair da natureza. Eu acho que era o Chester Tann que dizia uma coisa curiosa. É um bocadinho caricatura o que eu vou dizer. Atenção, não é para se levar muito à letra, mas o Chester Tann era excelente em contar estas imagens muito apelativas. Ele dizia que quando vamos a um templo budista, nós vemos o Buda reclinado, eu não vou atrever-me a dizer a dormir para não provocar ninguém, mas num sono que não é dormir, numa meditação profunda, se quisermos. E o Buda está deitado, normalmente com a alfada confortável, barriga cheia, e está com os olhos fechados. Há um conceito hindu que é o conceito de Maya. Os sentidos são ilusórios. Os sentidos mostram-nos a multiplicidade que é ilusão. Logo, o Yogi, o espírito superior, vai fechar os olhos para meditar e encontrar o Uno por detrás do Múltiplo. O Hinduísmo, na raiz, é um monismo. Ou seja, na verdade, Brahma é o Uno e tudo o que há de Múltiplo são aspectos ilusórios de Brahma. Eu não existo, não existe, na verdade, nós somos aspetos ilusórios, fazemos parte de Brahma, no fim de contas, não é? Esta ilusão entre o universal e o particular é puramente ilusão. Isto é péssimo para fazer, a ciência. Como é que... Como seria possível alguma vez estruturar uma abordagem empírica de estudar o mundo, quando os gurus, os mais respeitados membros da sociedade, são yoguis que fecham os olhos e nos ensinam que os sentidos são ilusões. Claro,
José Maria Pimentel
do ponto de vista do hinduísmo e do budismo, a ciência não é uma atividade necessariamente que vale à pena prosseguir. O objetivo não é esse. O que de resto, enfim, dá em si mesmo uma discussão interessante.
Bernardo Motta
A ciência que se faz hoje em dia na China, no Japão, nandia, é a ciência ocidental, atenção, é
José Maria Pimentel
interessante. Sim, é pelos paradigmas do cinema. Não é tradicional. Sim, é universal, claro. É uma física que nasceu no cinema. Eu dizia que é discutível perguntar se o nosso propósito na vida é fazer ciência ou transcender. Percebes o mundo que
Bernardo Motta
é chegar. Claro que sim, e há vocações por todos os gostos. Mas quando se vive num ambiente em que a intelectualidade gera uma desconfiança social nos sentidos, e num contexto em que a religião é muito importante para a sociedade, se recuarmos a uma índia de há dois, três mil anos atrás, os ritos são essenciais para o dia a dia. E é o que as pessoas vivem e respiram. Não há um ambiente propício a questionar e interrogar o cosmos, porque em primeiro lugar não se acreditam no valor dos sentidos nem na estabilidade do próprio cosmos. E dizia o de César Tano, para acabar esta frase dele, que em contraposição, se eu vou a uma igreja, uma catedral medieval, até mais do que uma igreja, se eu vou àquelas coisas que rasgam os céus em exagero metros, e que representam quatro gerações de operários a trabalhar naquilo e trabalho gratuito. Onde se coloca o melhor que há. Vitrais, ouro, madeira trabalhada, tudo o que há de melhor, mármores. E tudo é beleza empírica. Eu o oposto. Eu o oposto de uma experiência interior budista e hindu. E dizer o de Shesterton, olhem para as imagens dos santos numa igreja católica e o que é que vocês vão reparar? Ao contrário de Buda, estão de pé, não estão deitados. Ao contrário de Buda, não são gordos, são magrérimos, esqueléticos.
José Maria Pimentel
Mas não todos os Budas são gordos. Depende da tradição. Na China
Bernardo Motta
são magros. Estava a falar do fracasso
Bernardo Motta
que eu vi com os meus próprios olhos no Sri Lanka, que eram bastante bem abastecidos. Atenção que isso aparta a caricatura, porque há certamente correntes hindus que advogam uma apretenção de alimentos substancial. Não quero também apertar muito esse ponto, por isso é que eu diria que é um pouco uma caricatura. Mas ele depois dizia, os santos católicos têm os olhos esbogalhados. Ele usava esta expressão, os olhos estão quase que saindo das óbitas. São pessoas que têm, é como se tivesse uma sofreguidão existencial no santo católico. Não em todos, mas em alguns. E ele faz este contraponto. Que vale o que vale, mas é interessante ver que, às vezes, nós estamos um pouco cegos por só conhecer a nossa sociedade e não ver as outras. E, por exemplo, se a pessoa for àndia ou a alguns locais deste mundo, é normal haver pessoas mortas no chão, quer dizer, miséria, fome. Enquanto que nós, nossos orientais, é que ficamos extremamente chocados, e bem, com algo que nós já tratámos como sociedade há muitos anos atrás e nem nos demos conta de porquê tratámos isso. Não sabemos que os hospitais são um conceito que floresta a Idade Média, não sabemos que os tribunais nascem no Império Romano mas amadurecem no Cristianismo, etc.
José Maria Pimentel
E o Cristianismo distingue-se até do Judaísmo por ser uma religião universalista, que é algo que vai sendo implementado muito gradualmente e nunca de forma perfeita, mas claramente distingo o cristianismo. E voltando ao ponto que eu estava a dizer há bocado, eu não tenho nenhum problema, quer dizer, daí estou completamente de acordo contigo, que o surgimento do cristianismo e a existência do cristianismo foi essencial para o surgimento da ciência, foi essencial para muitos aspectos da sociedade atual, até para as sociedades liberais do ocidente, liberá-la aqui no sentido amplo, no sentido da primazia do indivíduo, tudo isso vem do cristianismo. Agora, onde eu divido-te-te é que eu acho que se pode aplicar aquela analogia, não sei de que filósofo era, da escada. Uma escada pode ter sido útil para chegar a determinado ponto, mas não é necessariamente útil daí para frente. Não quero dizer que o cristianismo não é útil para nada, aí não tenho uma visão manicaísta, mas a ciência de facto, provavelmente a partir de meados do século XIX, provavelmente a partir de Darwin, há de facto uma descontinuidade e tu passas a ter um conflito entre a ciência e a religião, que não é absoluto, é perfeitamente possível de ser católico, ser cristão e ser cientista, mas de facto há pontos onde é impossível nós ignorarmos que há uma colisão no etnocentrismo, no antropocentrismo, há uma série de aspectos. Para falar de Darwin, Nós sabemos que quando Darwin publica a origem das espécies, ele é completamente trucidado e até aquele debate famoso entre o... O que ele chamava o bulldog de Darwin já não sei, era um tipo... Porque não era o próprio Darwin, era um tipo que o ia defender e o arcebispo de... Não sei se era o arcebispo de Cantuária. Era um
Bernardo Motta
arcebispo, de que o Clint também chama para lembrar dos nomes, eu sei exatamente o que estás a dizer.
José Maria Pimentel
E é um debate muito conhecido, quer dizer, tens igreja verso ciência, claramente e essa atenção aos olhos de muita gente é uma simplificação ao facto, mas é uma atenção que preciso hoje em dia. E os, desculpa só para terminar o meu ponto, E eu acho que também os canines não ajudam muito, porque muitas vezes vestem essa pele anti-ciência.
Bernardo Motta
Existe uma circunstância um pouco trágica da finitude do ser humano, que é a seguinte. É extremamente difícil no curto tempo de vida que as pessoas têm, e nas vocações e gostos que têm, uma pessoa conseguir ter um conjunto de leituras e de gostos e de estudos suficientes para ter uma visão de conjunto. Por isso eu quero isso. O C.P. Snow escreveu um importante artigo sobre as duas culturas, que é uma tragédia. Uma tragédia da nossa sociedade moderna, em que os de humanidades estão de costas voltados para os das ciências e vice-versa. Isto é uma tragédia cultural. Contra essa tragédia cultural só há um antídoto, pelo menos falo por coisa própria, que é ler, procurar ler, quem tenha a dupla licenciatura. Isto é sempre mais fácil dizer do que fazer, mas é possível encontrar. Encontrar, de preferência, autores que se tenham doutorado nos dois lados da disputa. Para mim foi muito importante descobrir e ler a obra de um padre que se doutorou em Teologia em Roma nos anos 50, o padre Stanley Iacchi. Ele nasceu na Hungria, naturalizou-se norte-americano e depois americanizou-se o nome, como era muito comum na altura, podia ser paitaves Stanislas ou algo assim, quando nasceu na Hungria. Viveu toda a vida nos Estados Unidos, deu lá aulas e depois de doutorar em Enteologia em Roma, foi estudar com o Victor Hess. O Victor Hess, um físico importantíssimo do século XX, que recebeu o prémio Nobel pelo trabalho nos raios cósmicos, em cosmologia. E o padre Stanley Aki pediu uma autorização, depois de doutorar em Teologia e de ser já sacerdote, para ir doutorar-se para os Estados Unidos com o Vitor Hess. E assim fez. E já morreu, morreu em 2005 ou 2006. Esteve cá em Portugal, uma pessoa que me influenciou imenso. Escreveu um livro acerca do Milagre do Sol em Fátima, sobre o qual falaremos mais daqui um pouco na nossa conversa. E foi a pessoa que até me apresentou pela primeira vez uma explicação decente para o Milagre do Sol e que me influenciou ao ponto de depois eu escrever um livro sobre esse assunto. Mas, sem entrar já nesse tema, o padre Stanley Aki tinha muito mal feitio, como pessoa lida que era, tinha muito mal feitio e tinha pouca paciência para pessoas nolidas e para estupidezes. E ele, a ser altura, dizia assim, eu não recordo bem, vou parafrasear porque eu não recordo as palavras exatas, mas ele dizia algo como que era verdadeiramente insuportável aquele teólogo que comentava da cátedra de Teólogo sobre um tema científico sem ter passado uma hora num laboratório. Ele dizia isto também com algum orgulho, imagino porque ele passou muitas horas em laboratórios, também deu com o Prémio Nobel da Física. Mas ele tem muita verdade nisto porque ele diz que grande parte dos equívocos que hoje em dia existem, enfilosfiedamente, as discussões sobre a consciência, a origem da vida, o darwinismo, a inteligência artificial, criação versus evolução, etc, big bang cosmologias, são discussões que muitas vezes são tidas em diálogos absurdos, em que nós temos de um lado pessoas que são cientificamente literadas, que leram livros, ou de ciência, no melhor dos casos, ou de, pelo menos, divulgação científica, no pior dos casos. Pelo menos leram um Carl Sagan, pelo menos, de divulgação científica, um livro bom de divulgação científica, mas que depois está carregado de preconceitos. Há acerca da religião, cristã em particular, e são pontos de vista de quem é ignorante quer das histórias da humanidade em geral, que às vezes é esse o ponto de partida, quer depois especificamente da teologia, da história da Igreja, da doutrina que a Igreja ensina, etc. Do lado de lá o que é que nós temos? O outro surdo. O outro surdo quem é? O outro surdo é um teólogo, ou um especialista em nutrica bíblica, ou em história da Igreja, que estudou anos e anos, que amou pestañas, também em livros, mas da teologia, ou de filosofia, ou de lógica, ou de argumentação, ou de etc, etc. E que está naturalmente revoltado com a ignorância do seu oponente, mas também não se dá conta de que ele próprio não consegue interpretar uma equação matemática, porque depois é ileterado nos temas científicos sem apreço. E isto é um diálogo de surdos. E isso é uma tragédia que temos hoje em dia. Como é que se resolve isto? A única hipótese é procurar ler autores eruditos que tenham feito idealmente um doutoramento em ambos os lados da disputa. Idealmente. Mas
José Maria Pimentel
onde é que os da ciência estão errados? Porque eu percebo o teu ponto, e claro que eu não quero que isto dize que não há nada de útil. Pelo contrário, tem que conhecer a Bíblia, como é conhecer a história da Igreja, quer dizer, a história do pensamento católico, é evidente que há. Agora, alguém do lado da ciência pode argumentar que lhe basta o conhecimento do mundo, não é? O contrário já não é necessariamente verdade. De facto, nós estamos de acordo que alguém da Igreja, algum crente, tem de conhecer algo da ciência, se vive no século XXI, para conseguir ter as suas crenças sustentadas. Mas alguém do lado da ciência pode dizer, então mas para quê que eu... Quer dizer, agora também tenho que ler a Tora e o Corão, não é?
Bernardo Motta
Se essa pessoa quer criticar a Tora e o Corão, sim. Mas ela não tem que criticar, ou seja, ela pode dizer, eu
José Maria Pimentel
sou ateu, não é? Não há nenhuma razão para eu acreditar em Deus?
Bernardo Motta
Alguns são assim, mas, José Maria, muitos estão mortinhos por espetar a sua farpa no que eles chamam os crimes do Deus do Antigo Testamento, ou espetar a sua farpa no Novo Testamento, etc. E acontece muitas vezes, o nome de um Richard Dawkins vem logo à cabeça, de uma pessoa que pontifica do alto da sua catedra de cientista. Aliás, até se pode dizer, com um bocadinho de malícia, desculpa-me, que Richard Dawkins tem mais anos de vida de evangelismo ateísta do que tem anos de cientista. É interessante que ele continue a capitalizar uma carreira científica produtiva de algumas décadas, duas décadas, mas ele com a idade que tem já tem mais décadas de carreira ateística do programa de produção científica. Ele também tem, quase 80 anos, acho que. Sim, ele tem mais anos de ateu militante do que tem
Bernardo Motta
de cientista e essa parte é preciso não perder a perspectiva, não é? E atenção, estas coisas também se cruzam e há um lado político das coisas e muitas vezes o
José Maria Pimentel
ateísmo vem colado a uma aversão à igreja enquanto instituição, enquanto fonte de autoridade, se nós quisermos, que tem esse lado ideológico, se quiseres, e que existe no dogma, embora eu me pareça, até sou que eu sou apreciador de várias coisas dele, mas ele claramente tem esse lado, ou seja, a versão dele à igreja não é simplesmente de um cientista, é também de alguém de esquerda que reage contra a... Eu dou-te só um exemplo.
Bernardo Motta
No livro dele, The God Illusion, que é mal traduzido em português para A Desilusão de Deus, uma tradução que não deveria ser feita assim. Que não foi, é sério. A desilusão de Deus, a como o livro foi traduzido em Portugal. Tem um capítulo no qual ele fala sobre as provas para a existência de Deus e ele comenta, como é típico em alguns neo-ateus, comenta os argumentos de São Tomás de Aquino para a existência de Deus, que são argumentos que se dizem de São Tomás de Aquino, mas o próprio, com muita humildade, característica dele, quando os apresenta na Suma Teológica, que é um livro para estudantes, atenção, nem sequer é um livro, provavelmente à época muito erudito, hoje em dia é um livro dificilíssimo porque obriga um arcaboiço terminológico e conceptual para o compreender, mas na altura era usado com alunos, com adolescentes e com jovens adultos. A Suma Teológica. Na Suma Teológica, como não me indico, é um resumo, é uma suma, é um resumo. Nem sequer é suposto ser um tratado onde se desenvolvem coisas com extensão. O São Tomás daqui ainda apresenta cinco argumentos para a ciência de Deus. E fala-os remontar, alguns deles pelo menos, a Aristóteles. Outros é uma tradição mais platónica, mas os primeiros três, sobretudo, a Aristóteles. E o quinto também.
José Maria Pimentel
Ele está, sobretudo, a tentar, o exercício dele, tentar compatibilizar o aristotelismo com o cristianismo. Exatamente.
Bernardo Motta
É mesmo isso que ele está a querer fazer. Ele está a querer batizar Aristóteles e explicar... Batizar Aristóteles? É um pouco isso, é explicar que não vamos ser Aristótelicos fanáticos que havia na altura, não era ele, se abaste daqui, não era um averruísta, que era uma das facções Aristótelicas fanáticas, que diziam que Aristóteles escreveu a última palavra, nada mais a dizer, Está tudo dito por ele. Era de Espanha, não é? No Hovehois era um fulano de tradição árabe.
José Maria Pimentel
Pois. Mas ele era da Espanha árabe, não é? Sim. Ou seja, estava no contexto do islamismo, não é? Sim, lá está.
Bernardo Motta
E no contexto até anticorânico, no sentido em que a tradição corânica detestava este tipo de coisas, detestava este tipo de incursões pela filosofia
Bernardo Motta
grega. E por isso é que depois voltou atrás, não é? Por isso é que depois rapidamente teve o caminho. Ser filósofo
Bernardo Motta
no Islão era uma coisa um bocadinho difícil, digamos assim. Mas havia homens brilhantes que o fizeram e fizeram muito bem. E deixaram aqui marca na política ibérica. E até na ciência, não só na filosofia, mas também na ciência. São Tomás de Aquino, quando escreve os seus argumentos para a essência de Deus, invoca Aristóteles. Ele, no fundo, está a comentar argumentos que são antigos, muito antigos, vêm desde Aristóteles. Portanto, não só para o homem, só para os pais de Aquino. E o Dawkins, quando comenta estes argumentos... E vou dar só um exemplo. A essa altura ele depois dizer uma série de coisas absurdas sobre os argumentos de quem não os estudou, porque não basta ler a somatológica. O que ele fez foi, e consegue-se entender o que ele fez, ele abriu a somatológica, leu, usou palavras que lá estão de forma equívoca, porque quando Aristóteles usa, e São Paz usa a palavra movimento, movimento não é apenas movimento de objetos, quer dizer mudança, mas quem não está dentro do jargão não compreende isso. E é só um exemplo, mas ele entra numa leitura em que ele lê as palavras que lá estão, numa tradução que ele tinha para inglês, certamente, lê as palavras que lá estão como se fosse um vocabulário contemporâneo e isso é vai dar asneira. Ou seja, ele está a ler e está a interpretar sozinho, sem ser ajudado por nenhum especialista no tema. E o pior é que nem sequer lê tudo. Há uma parte do livro dele, que é absolutamente escandalosa, em que ele diz São Tomás de Aquino acaba todos os argumentos a dizer e isto é o que entendemos como Deus,
Bernardo Motta
essa parte é verdadeira. Mas
Bernardo Motta
depois São Tomás de Aquino não explica porquê é que Deus é perfeito, porquê é que é sua mente bom, porquê é que é omnisciente, porquê é que é omnipotente, porquê é que só há um Deus, porquê é que é misericordioso, porquê é que é justo. O Sr. Dawkins vira a página, homem, vira a página. Está a seguir. A seguir ao artigo da existência de Deus, há 20 artigos, cada um para as propriedades que se deduzem de Deus, a partir desses argumentos. Ele não virou a página! Ou seja, não é só uma pessoa que não se rodeia dos especialistas no tema para poder aprender, antes de poder comentar como ateu, como nem sequer lê até ao fim o autor que ele está a querer demolir naquilo que alguns consideram a sobreprima de ateísmo.
José Maria Pimentel
Então, mas já vamos aos argumentos da existência de Deus, mas esse era o ponto que eu queria explorar, é que tu achas que o cristianismo e a ciência não estão em tensão. Não,
Bernardo Motta
não. Estão em concordância profunda e em tensão superficial. Sim, ao nível social. Sim. Ao nível social há uma tensão, como falámos há pouco, há esta tensão do facto que a nossa sociedade está dividida e como não há hoje em dia aquela figura do homem do renascimento, não é? As pessoas não conseguem dominar os dois temas para poder fazer um diálogo. É um diálogo de surtos.
José Maria Pimentel
Sim, mas o normal... E essa é a tensão. Sendo verdade, sobretudo, o normal seria que as pessoas da ciência também gravitassem para a religião. Quer dizer, que eles fossem crentes, não é? Porque é que eles não são crentes? Há uma espécie de conspiração?
Bernardo Motta
Não, eu não acho nada disso. Eu acho que eles não são crentes por uma quantidade enorme de razões. Ou porque não nascem numa família que se exponha a esses conceitos. Ou porque quando estudam os professores não se expõem a essas obras e esses conceitos. Faz toda a diferença, por exemplo, se, como eu tive aulas de filosofia no ensino público, se salta dos pré-socráticos e da apologia de Sócrates, de Platão, salta diretamente para Descartes. Eu nem vou usar a palavra chocante, é uma coisa que eu acho que até chega a ser farsa. Estamos a enganar os alunos, é como se não houvesse nada para contar entre Sócrates. E o pior é que até fala muito pouco de Aristóteles, que podiam ao menos falar de Aristóteles. Mas eu acho que a essa altura eles devem pensar, Cuidado, porque se falarmos de Aristóteles, Aristóteles é tão bom, e é, é tão bom, que corremos o risco de que eles depois cortarem das colagens de vida medieval e ainda se tornam católicos. Então está o caldo entornado.
Bernardo Motta
Não acho que isso seja conspirativo. Não, eu acho que
Bernardo Motta
alguns professores podem ter uma aversão aos medievais. Isso sim, muitos talvez tenham uma aversão aos medievais e por isso
José Maria Pimentel
saltam. Houve um mito da Dark Ages, não é? Durante muito
Bernardo Motta
tempo. Sim, sim. Lá está, falta de cultura histórica porque há historiadores que explicam que Dark Ages é um termo técnico. Dark Ages é um período no século 8º, 9º, 10º, em que há poucos documentos dessa época, por várias razões. Por
José Maria Pimentel
razões até climatéricas, acho que é.
Bernardo Motta
Talvez, climatéricas, crises, agriculturas, fomes, doenças. Na verdade, há poucas evidências documentais, há pouca arqueologia para se fazer, comparado com outras épocas. Claro, Há muita coisa, mas comparativamente. É um termo técnico, mas depois foi mal interpretado. E até nasço no Renascimento com o Petrarca e com o Saudosismo da época clássica. Este desprestígio pelos latinistas escolásticos. Ah, esses professores da universidade, diziam os cientistas, são uns bárbaros. O latim que eles falam é um latim eclesiástico, torpado. Temos que regressar ao latim puro dos romanos e, portanto, esta ideia da idade média como negra nasce no nascimento, é uma coisa muito antiga. Depois vai-se avolumando e torna-se num insulto para tirar a cara dos cristãos.
José Maria Pimentel
Então, Bernardo, desculpa, voltando atrás ao nosso ponto, de facto, alguém contemporâneo, sobretudo se não nascer numa família crente e tiver um mínimo de formação científica, o básico, há vários aspectos da igreja que saltam à vista como estando em tensão, não só estando em tensão com a ciência, como em muitos casos sendo perdido para a ciência, o darionismo é um desses exemplos, enfim, vários aspectos até da evolução da moral e dos costumes, a própria, o Deus do Antigo Testamento, quer dizer, diga-se o que se disser, tem vários aspectos não recomendáveis, digamos assim. Tanto isto é verdade, que até há uma corrente católica que propunha só ficarmos com o Novo Testamento, o problema é que muito do Novo Testamento faz referência ao Antigo e, portanto, não dá para fazer isso bem. Até o próprio estudo da Bíblia traz à tona muitos aspectos factualmente incorretos e que estão em contradição dentro da própria Bíblia. Portanto, há muitos aspectos do cristianismo que convivem mal com a ciência e eu acho que isto para um crente tem que gerar um debate interno, não é?
Bernardo Motta
Gera, e o que eu posso contar numa lógica biográfica é precisamente isso, é que essa tensão que eu achava que era muito profunda, quando eu não tinha leitura nenhuma em nenhum estudo feito, revelou-se como superficial, Ou seja, todos os temas que tu abordaste, e naturalmente a noite é curta para todos esses temas, mas todos os temas que tu referiste, sem exceção, foram temas que me atormentaram. E a única solução...
José Maria Pimentel
Pois, eu imagino que sim, por isso é que estou a perguntar.
Bernardo Motta
E que alguns ainda atormentam, no bom sentido, ou seja, ainda desafiam e obrigam a estudar mais. Qual é a solução para isso? Eu sinceramente a solução que eu posso recomendar e foi a que eu segui com algum sucesso é perguntar a quem sabe. Perguntar a quem sabe é muito importante. Professores universitários competentes. Hoje em dia, até com a internet, não é difícil até falar com professores estrangeiros e tirar dúvidas e assistir aos vídeos deles no YouTube, que é altamente recomendável. O YouTube tem coisas magníficas sobre todos esses temas e até debates muito ricos entre posições totalmente opostas e é das melhores coisas que se pode fazer. O que eu recomendo a qualquer pessoa nova, ainda com os neurónios frescos, é assistam por favor a debates, e quanto mais intensos melhor e mais exigentes melhor. Recomendo isso, procurar quem sabe, e depois recomendo muito trabalho individual, isso eu recomendo. Todos estes temas que agora te referiste, eu só resolvi a tensão superficial e só cheguei à conclusão que havia uma concordância profunda depois de dedicar um montão de tempo a todos estes temas. E depois de literalmente arruinar-me em contas da Amazonas também.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no site 45graus.parafuso.net barra apoiar. Veja os benefícios associados a cada modalidade e como pode contribuir diretamente ou através do Patreon. Obrigado. O meu ponto se calhar é este, é sempre possível, à posteriori, tu reconciliares o cristianismo com a ciência. Desde logo, porque há sempre coisas por explicar na ciência, nós sabemos que, por exemplo, o Big Bang provavelmente nunca conseguiremos verdadeiramente explicar, até em certo sentido se calhar transcende a cognição humana, não é? E portanto é sempre possível reconciliar quaisquer descobertas que pareçam estar em contradição, se não com a Bíblia, pelo menos com a prática católica, não é? Porque muitas vezes não é necessariamente o que está na Bíblia, é aquilo que a Igreja faz ou diz, Mas a verdade é que existiu essa tensão. O caso Darwinismo é o exemplo mais evidente de todos. Quando Darwin publica a origem das espécies, aquilo é rejeitado, provoca uma rejeição visceral. Porque, como é que nós podemos... Percebe-se, não é? Como é que nós somos animais. Não é bem assim que somos animais, porque isso talvez não fosse completamente estranho, mas como é que nós descendemos de uma espécie de macacos? Se é assim, onde é que está a alma humana? Houve ali uma traição para o homo sapiens e foi depositada a alma na cabeça das pessoas a partir de há 200 mil anos. Há aí uma série de contradições que existiam e persistem, na verdade,
Bernardo Motta
elas persistem. Como é que um católico explica? Há momentos, há momentos de crise, mas não são novidade. Ou seja, nós podemos recuar aos primeiros três séculos do Cristianismo e podemos pensar o que era ser um judeu convertido a Jesus Cristo. Porque os primeiros cristãos eram judeus. Depois, a pouco e pouco, logo no 1º século, os pagãos começam também a ser batizados, sobretudo pela Santa de São Paulo. Mas é fácil nós pôrmos na cabeça de um judeu que tem um contato com esta religião de pescadores, a religião quando começa é uma religião de pescadores, Jesus rodeia-se não de intelectuais, mas de pescadores. Talvez a pessoa mais letrada que haveria no grupo seria Mateus, que era um coro de impostos. Quem sabe seria talvez um dos mais letrados. Terá escrito o Evangelho? Pelo menos estará na origem da tradição, porque é interessante ver que os Evangelhos todos, no grego, usam a palavra kata, que quer dizer segundo. Ou seja, desde os textos mais antigos, que nós não temos Evangelho de Mateus,
Bernardo Motta
não. Temos Evangelho segundo Mateus. Sim, aqui o escrever é quase um
José Maria Pimentel
anacronismo. É quase um anacronismo, porque nós é que estamos habituados a que seja o próprio escrito. Não há nenhum
Bernardo Motta
problema se houver alguém que saiba colocar por escrito uma tradição que remonta a um apóstolo. Não, isso não tem problema nenhum. Até pode haver aqui alguns anos de intervalo, não tem problema nenhum. E a igreja nunca pretendeu que houvesse algo pela mão própria do próprio. Há uma tradição de que São João teria escrito o seu evangelho e o apocalipse. Uma tradição respeitável, mas que não é de todo um artigo de fé. Esses primeiros três séculos fazem com que um judeu erudito, exposto a uma cosmologia judaica, e a cosmologia judaica não é de terra esférica, a cosmologia judaica, mais antiga, é uma espécie de um cosmos plano em que há as águas inferiores e as águas superiores. Muito cedo há um contacto com a filosofia grega e os gregos sabiam que a Terra era esférica. Erastóteles fez as contas, viu a sombra e percebeu que a Terra era esférica. Os marinheiros que iam no mar viam o navio a desaparecer, ficava só a pontinha, não é? Sim, esse é um mito que se criou. O sexto da gávea ficava à vista, não é? Claramente só pode ser esférica. Bom, é um mito. Este contacto dos pães cristãos com uma ciência e uma filosofia gregas resolveu-se, foi um momento de muita atenção, de imensa atenção, e resolveu-se. Não se resolveu de um momento para o outro, resolveu-se ao longo dos três séculos. Ao ponto de termos um Santo Agostinho, que é um homem que escreve o seu livro acerca da interpretação literal do Génesis. O que hoje em dia achamos que é uma tragédia do século XIX por causa de Darwin, ainda não. Santo Agostinho escreve um livro inteiro sobre como harmonizar a leitura dos Génesis à luz do saber mundano, à luz do saber dos gregos. E ele tem uma expressão muito interessante, Santo Agostinho, estamos a falar, portanto, do século IV. Ele diz, cuidado com aqueles homens de doutrina zelosa ou algo assim, também estou a parafrasear, que quando falam das coisas da nossa santa religião dizem barbaridades sobre a natureza e sobre os factos observáveis. O que pensará um descrente? O que pensará um pagão que ouve falar? Pensa, este homem diz asneiras sobre as coisas visíveis e está a querer ensinar-me sobre as coisas invisíveis. Santo Acostinho tem este aviso acerca de um drama, que é o drama do teólogo, que é cientificamente ignorante, mas que fala muito. Não falem, ou melhor, falem sobre teologia.
José Maria Pimentel
Essa eu duto, que uma religião de sucesso pode ser vítima do seu próprio sucesso que é ao tornar-se massificada tem pessoas a dizer coisas, a dizer tudo isso e que não correspondem à ortodoxia. A ortodoxia, ou enfim...
Bernardo Motta
Ou uma versão mais intelectualizada, mais pura da coisa.
José Maria Pimentel
Não, mais intelectualizada e oficial. Sim, oficial. Pode ser intelectualizada mas não ser oficial. Aqui o meu ponto é ser oficial. Agora, várias destas tensões... Eu estou aqui a apertar contigo a questão do darionismo porque aqui era a igreja oficial. E eu não estou a fugir da questão. Era e é. Há padres que continuaram a conviver bem com isso.
Bernardo Motta
Eu tenho uma opinião sobre o darionismo, que já que te foi dizer, que é uma opinião complicada de explicar, porque eu acho que tudo gira em torno de termos mal compreendidos, como sempre, eu acho que é tudo um tema de tensão superficial. Mas é para dizer que este choque entre as verdades da fé e o conhecimento que vem de outras fontes, o conhecimento profano, não é de agora. Não é de agora de todo. Nós temos, na Idade Média, uma enorme disputa acerca do que fazer com Aristóteles. Rejeitá-lo? Aceitá-lo parcialmente? Pois,
Bernardo Motta
eu sou o que mais entra aí, não é? Aristóteles diz que o cosmos é
Bernardo Motta
eterno, por exemplo. São Tomás dizia, por fé, sei que o cosmos começou. Porque a primeira palavra da bíblia é Bereshit, no princípio. Primeira palavra de todas é no princípio. Por isso, por fé, dizia São Tomás de Aquino, o cosmos começou. Mas não é uma contradição imaginar um cosmos eterno. São Tomás de Aquino achava que isso não era nenhuma contradição. Ele dizia, não há contradição lógica em assumir que o Cosmos sempre existiu. Eu acho que... Ele achava que não havia. Mas porquê? Só muito recentemente é que alguns matemáticos e filósofos criticam o cosmos eterno desse ponto de vista, dizendo, por exemplo, que é impossível haver infinitos momentos no passado, porque se houvesse infinitos instantes no passado, eu nunca chegaria ao presente. Este tipo de argumentos são contemporâneos. Para Sotomayor e Aquino, o conceito de um cosmos eterno, como Aristóteles pensava, não apresenta nenhuma contradição. Ou seja, no fundo o que ele diz é que se Deus quisesse, Deus poderia ter colocado em existência desde toda a eternidade o cosmos. Não esquecer que para o cristão, Deus não está no tempo nem no espaço. Deus tem um acesso instantâneo, direto e não mediado a todos os instantes temporais. O tempo é algo que não é parte da existência de Deus. Deus está fora da restrição temporal. Então, Sambatia dizia, por que razão Deus não poderia criar um universo eterno? Não há nada de errado nem de contrario nisso. O que ele dizia é, nós sabemos que o universo começou por revelação, porque a Bíblia e a tradição nos dizem, mas filosoficamente não há nada de errado nisso.
José Maria Pimentel
Mas a expressão é muito grande. O Vidor fala bem do universo, se não me engano. Fala
Bernardo Motta
do mundo. Do começo do universo, entendido como a Terra e os planetas e as estrelas, que na altura isso era conhecido, que
Bernardo Motta
não era só a Terra, era tudo o que estava para lá. Eu sei que isto é um golpe baixo, mas porquê não estão lá as galáxias? Porquê não está lá
José Maria Pimentel
o universo visível? Não está porque não era conhecido na altura porque aí o escreveu. Ou seja, tens aí a mão humana.
Bernardo Motta
A Vía Láctea era bem conhecida, não é? Vi-se à noite. Não havia, claro, uma compreensão científica de quão longe estavam as estrelas, de quantas seriam, da
Bernardo Motta
imensidão de cosmos.
Bernardo Motta
Mas é interessante que já os gregos e os medievais sabiam isso, tinham algumas noções de escala. Por exemplo, a escala Sol-Terra-Lua tinha sido estimada pelos gregos e os medievais conheciam-na. Talvez seja uma surpresa para quem nos está a ouvir, que quando São Tomás de Aquino faz o seu comentário ao Decello do Aristóteles, que é a obra sobre os céus de Aristóteles, São Tomás de Aquino comenta com o conhecimento da época qual era o tamanho da esfera da Terra. Ou seja, Sónibas de Aquino conhecia os cálculos da época que se inspiravam nos gregos mas com melhoramentos posteriores e Sónibas
Bernardo Motta
de Aquino não estava muito errado em relação ao tamanho da Terra real. Sim, Mas vivia num paradigma etnocêntrico ainda, século XIII.
Bernardo Motta
Um paradigma centrado no homem, é isso? Não, é centrado na Terra. Sim, mas se nós pusermos em perspectiva as coisas e nós, por exemplo, eu não tenho nenhuma opinião fechada acerca da vida extraterrestre, por exemplo, Acho que não há sinais nenhumes de que ali exista, apesar de haver uma enorme abundância de sinais que nos dizem que há uma infinitude de planetas parecidos com o nosso, em que a vida pode ser possível. Eu não estou convencido de que haja vida inteligente. Se houver, será-me uma ótima surpresa, não vou ficar nada de chateado. Não acho que haja crise teológica nenhuma que venha daí. Mas, quando os medievais colocam a Terra no centro do seu universo isso não é todo estúpido, mas é preciso perceber uma coisa, era um centro teológico. No fundo, a importância da Terra não desapareceu. Jesus Cristo, Deus feito homem, encarnou aqui. A Terra é central do ponto de vista até ao nosso conhecimento atual e isso poderá mudar. Nós não sabemos se Deus encarnou noutros planetas, não temos forma nenhuma de saber neste momento. Mas, com a informação que temos hoje, a Terra é super importante porque Deus levou a Terra, fez-se homem aqui. Tem importância de Jesus além, mas à escala planetária, não é? Este é o planeta no qual Deus se fez homem, não é? E essa importância teológica da Terra não mudou. Hoje em dia os católicos também a têm.
José Maria Pimentel
É que não era só da Terra, era daquela zona específica da Terra, não é? Esses são outros sinais que estão na Bíblia, não é? Toda a geografia que é referida é a geografia daquela zona, não é? E o mundo depois, outro dos, enfim, das balas, do porta-aviões do cristianismo, também foi o facto de nós termos contactado com outras civilizações e termos percebido que havia outras civilizações, outras mundo-evidências, não é? Sim. E isto é independente de nós acharmos... Isto é essa até excecionalidade europeia, que eu até acho... É um pensamento com o que eu até simpatizo, não é? Mas não é disso que estamos a falar. Não,
Bernardo Motta
mas é mais um exemplo de uma fé que está a desenvolver e que está a crescer expor-se à novidade. Pode ser científica, pode ser geográfica, pode ser botânica, pode ser artística, pode ser linguística, não é? Isso está tudo muito bem. Certo, certo, mas o ponto é... E muda, e muda. Algumas coisas mudam com isso. Não mudam na sua essência,
José Maria Pimentel
mas algumas coisas mudam com isso. Uma coisa é o cristianismo enquanto
Bernardo Motta
moral e enquanto... Doutrina. Doutrina. São os dois pilares. Mentalidade, se quiser. Doutrina e moral são os dois
Bernardo Motta
pilares. Há muita coisa que nós associamos à Igreja Católica à arte, à literatura, até à própria filosofia. São circunstâncias muito mais expostas ao contato com as culturas. Doutrina e moral são coisas que nós defendemos como verdadeiras desde o princípio. Claro, exatamente.
José Maria Pimentel
E enquanto a outra... O meu ponto é, tu até podes considerar que o cristianismo é uma religião, quer dizer, não só estimável, como superior a outras, do ponto de vista da prática e de encorajar a esse debate. E digo isso. O fundamental para ser crente é acreditar. E isso implica acreditar na Bíblia e acreditar no papel que a Igreja teve ao longo dos séculos, naquilo que a Igreja defendeu e continua a defender. É
Bernardo Motta
preciso ver, quando a Igreja diz que a Terra está no centro do Universo, na Idade Média e depois quando há o conflito com o Galileu...
José Maria Pimentel
Eu nem estava a pensar por aí, atenção! Mas
Bernardo Motta
é interessante explicar isto, porque pode ser novidade para algumas pessoas que nos estão a ouvir. A Terra ser o centro do Universo é um conceito científico de Aristóteles, da ciência da época, que está superado, claro. Mas, à época, Aristóteles via o Cosmos como composto de quatro princípios fundamentais, Terra, água, ar e fogo. E a Terra era mais densa, mais pesada. E na lógica dele, que é intuitiva e que faz algum sentido, era de que os corpos mais densos no Cosmos tenderiam a aglutinar-se num centro. Portanto, para Aristóteles, a Terra está diante do Universo é porque é para onde confluem todos os corpos, onde a Terra é mais predominante. Portanto, tudo o que for denso e mais térreo vai compactar-se numa bola. E porquê numa bola? Bom, se vem de todas as direções do Cosmos. Coisas térreas, não é? Aquilo faz uma esfera. Ou seja, na física histotélica, há uma força nas coisas pesadas que as faz caírem para o... Para o ralo, se quisermos usar aqui uma palavra
Bernardo Motta
de lavatório. Uma espécie de gravidade.
Bernardo Motta
Sim, uma espécie de gravidade para o ralo do cosmos. Mas cuidado, porque quando às vezes um Richard Dawkins ou alguém diz assim Ah, os medievais eram tão ignorantes, tão burros, que eles no fundo colocavam a Terra no centro do Universo porque eram muito importantes para eles teologicamente. Não! Não! A Igreja colocava a Terra no centro do Universo, não por causa da teologia. Bem, em parte porque Jesus Cristo encarnava essa parte, sim. Mas, sobretudo, porque a ciência da época o ensinava.
José Maria Pimentel
Sim, e quer dizer, não era especialmente importante para o cristianismo, se a Terra estava ou não estava no centro. Acho que há aí um argumento interessante, eu não estava a pensar a falar disso, da questão da vida extraterrestre, quer dizer, tu dizes que não seria para ti um problema, quer dizer, se é um problema o confronto com outras civilizações na Terra, imagina uma vida extraterrestre inteligente, qual é aquela força?
Bernardo Motta
Seria um desafio. Eu digo é que não há nada na doutrina da Igreja que impeça tal cenário. Nem que o sugira, nem que o negue. Ou seja, a doutrina católica é neutra da construção da
José Maria Pimentel
vida extraterrestre. A única hipótese de ser conciliável seria, quer dizer, Jesus Cristo ter aparecido também nesse planeta, não é? Ou uma versão idêntica.
Bernardo Motta
Ou não, ou então podemos imaginar um cenário em que há vida inteligente nos outros planetas, essa vida inteligente, tal como Deus a criou aqui na Terra, foi dotada de uma liberdade, um livre-arbítrio, de uma capacidade para obedecer a Deus ou para desobedecer a Deus. Se noutras civilizações há vida inteligente, como dizem os católicos, com uma consciência que a faz saber o que deve fazer e o que não deve fazer. Se nessas outras civilizações não há desobediência a Deus, não há necessidade de Deus encarnar. Deus encarna para resolver um problema. A encarnação não é uma necessidade. Deus encarnou porque nós fizemos a geneira. No fundo é uma encarnação para que Deus, fazendo-se homem, ensine que é possível ser-se homem e ser-se um homem perfeito, como ele foi em vida.
José Maria Pimentel
Mas nós só fizemos a geneira ali no Médio Oriente?
Bernardo Motta
Nós fizemos a geneira sempre praticamente, desde o que se chama o pecado original, que é o primeiro momento de desobediência. O ser humano faz a geneira todos os dias, mesmo nós, basta ter espelhos em casa. Como aqui na Terra aconteceu algo que não era obrigatório, que os nossos
Bernardo Motta
primeiros pais, Adão e Eva, desobedeceram, não era oratório que assim fosse. Quanto a nossos primeiros pais, tu acreditas na narrativa creacionista? Eu acredito que... Nem tem nada a ver com
Bernardo Motta
a Bíblia, tem a ver com a lógica. Acredito que eu vou de humano homem para humano mulher. E isto é aquela parte em que às vezes as pessoas, e não falo por mim para me elogiar nem pensar, mas eu aprendi isto com muita leitura. Mas com algum raciocínio nós compreendemos que é forçoso dizer que houve o primeiro homem e o primeiro mulher. Chamar-lhe Adão e Eva é uma tradição hebraica que eu gosto de manter. Podemos chamar-lhe do que nós quisermos. Mas espera, espera. Quando diz que houve o primeiro
Bernardo Motta
homem e a primeira mulher, estamos a falar do primeiro homem ao sápien há 200, 300 mil anos? O que eu estou a dizer é um conceito que é mais filosófico
Bernardo Motta
do que científico, porque a ciência vai tateando, vai procurando entender isso. Por exemplo, quem nos está a ouvir pode manter a noção de que as árvores genealógicas que os historiadores e que fazem antropologia e que fazem estudo dos fósseis vão fazendo, é sempre um trabalho conjetural que muda. Quando eu descubro um fóssil, eu tenho que alterar quase sempre as árvores. É um trabalho de indução. Eu vou obtendo dados e vou construindo um modelo Evolutivo.
Bernardo Motta
A parte genética faz-o de maneira diferente. Sim, a genética veio revolucionar isto porque eu
Bernardo Motta
posso fazer com mais precisão. Mas é um trabalho que continua. Mas é estatístico. É estatístico, mas o que eu quero dizer é que é muito dependente das evidências. Quando aparece um novo crânio ou um novo osso do hominídeo, eu tenho que ir trabalhar e isso vai ter um impacto nas minhas árvores, vou ter que alterá-las. Mas
José Maria Pimentel
o que é dependente da evidência é quando surgiu o homem moderno, o ser humano moderno.
Bernardo Motta
Mas nós aí, o que eu diria é que nós não temos acesso a essa informação. Não
José Maria Pimentel
temos acesso a quando surgiu, mas sabemos pela maneira como os seres vivos evoluem. Sabemos que isso foi gradual e que não houve um momento em que de repente há o primeiro homo sapiens.
Bernardo Motta
Não, eu aí discordo de ti. Aí discordo de ti. Tem que haver um primeiro homem e uma primeira mulher por conclusão porque somos uma espécie sexuada. Não,
José Maria Pimentel
a tua tensão de separação é gradual. Quer dizer, nós fomos... O
Bernardo Motta
problema do gradual é quando se orda numa rampa. Porque repara uma coisa. Se eu filosoficamente acredito que existe uma coisa chamada ser humano, se eu distingo nós de outros animais, se eu faço uma distinção deste animal racional para um animal que não é racional, ao fazer essa distinção, e se eu o criticar é verdadeira, que não é uma invenção social, não é uma convenção de um grupo de cientistas, se eu acredito mesmo que é diferente ser homem de não ser homem, então eu vou primeiro. É uma conclusão lógica, ou seja, o que eu estou a afirmar
Bernardo Motta
não é. Não, não, não. Para cá vi, descorti. Nenhuma afirmação de
Bernardo Motta
fé nem científica.
José Maria Pimentel
Primeiro, enfim, essa distinção não é binária, não é? Isso é uma discussão em si mesmo, não é? Com diferentes nós somos dos outros animais. Não podes dizer um
Bernardo Motta
meio-homem. Ou tens um homem ou tens um ser vivo, que
Bernardo Motta
é um animal racional lá não tens. Mas isso é um contínuo. Um cão é um ser, como é
José Maria Pimentel
que se diz, senciente, não é? É um ser com uma espécie de consciência, uma proto-consciência, um macaco, nós não descendemos do macaco, não é, mas o macaco tem cognição, tem uma espécie de consciência, o que tu fizeste foi, isso foi evoluindo e depois dentro das populações, e por isso é que não há o primeiro homem e a primeira mulher dessa forma, é que tu dentro das populações vais tendo vários estádios, e depois tens um momento em que nem todos eles conseguem reproduzir entre si, provavelmente há ali uma separação geográfica, e numa população se calhar há 90% que ainda conseguiriam reproduzir com outra população mais próxima dos macacos que iam assim, para ser simplistas, e depois vai sendo cada vez menos, cada vez menos, até que chaces.
Bernardo Motta
Quer dizer, no... Bom,
Bernardo Motta
essa é a teoria clássica do neo-darwinismo. É uma teoria que foi criticada pelos próprios darwinistas. O Stephen Jay Gould, como é conhecido, defende uma teoria mais por saltos, mais saltacionista do que uma teoria gradual. E foi quase considerado como o herege do Darwinismo contemporâneo. Hoje em dia já ultrapassámos quer essa visão gradualista, quer a visão saltacionista do J. Golda Schwell, não sendo biólogo, que eu vou lendo por aqui e por acolá, que é uma série de ideias
José Maria Pimentel
dentro do próprio Darwinismo. Desculpa te interromper, mas esse salto não é um salto... Acho que não estou a trair o pensamento dele, e essa é a tese. Não é de nós para os nossos filhos, não é um salto que se dá em várias gerações. Claro que do ponto de vista geológico e paleontológico, ele é uma espécie de salto. Eu queria
Bernardo Motta
dizer, José Maria, que do ponto de vista conceitual, e nós não temos acesso ao passado, não é? É forçoso haver uma disrupção. Forçoso. Porquê? Porque é uma disrupção conceitual. Porque o ser humano não é um primata igual aos outros primatas. Não é, porque senão eu não usava uma palavra diferente para o designar, não é? Ou seja... É parecido, não
Bernardo Motta
é? É parecido e evoluído de maneira diferente. Um animal
Bernardo Motta
primata super evoluído que seja dotado, e agora vamos entrar numa parte que é muito importante distinguir, que seja dotado de faculdades intelectuais, que é uma novidade, e livre arbítrio, que é outra novidade,
José Maria Pimentel
é absolutamente disruptivo. Mas isso não são novidades? Eu discordo de ti, quer dizer, há imensas experiências feitas com primatas e com outros animais que tu... Claro que não é ao mesmo nível de nós, mas tu notas que eles têm livre arbítrio, há imensas
Bernardo Motta
experiências com macacos, têm cognição, não é? Há um problema muito complicado nessa análise. Por exemplo, é feito muito estudo em torno dos chimpanzés, mas os chimpanzés na árvore dos nossos antepassados não têm nada a ver, é um ramo completamente diferente. Mas é o mais próximo. São os bonobos, não é? A questão é, nós não temos acesso aos nossos avós e muito recuados, não temos acesso a eles, a não ser por porfossas.
José Maria Pimentel
Nem aos primos mais próximos que seriam os libertários.
Bernardo Motta
Qual é aqui o problema? Quais são os rastos que o intelecto deixa? Vestígios de artefactos, de ferramentas, talvez alguma arte, talvez alguma cerimónia fúnebre, talvez. Nós também nos compassamos em vestígios. A arqueologia só indiretamente e de forma muito imperfeita tem acesso a vestígios de um intelecto. Por isso, cuidado com uma coisa. Quando se faz o estudo pela clarística, da estatística dos genes e das árvores de evolução dos seres vivos, a parte biológica genética está fantástica. Mas as pessoas não se dão conta de que eu não tenho a mesma quantidade de evidências para aquilo que é a vida mental dos primatas. Não tenho. Tenho hoje. Só que hoje estou a trabalhar com outros ramos diferentes de primatas. Não estou a trabalhar com os meus avós lá atrás. Primeiro aviso. Segundo aviso. É verdade que para quem defende uma filosofia da mente materialista e que diz que só há matéria, matéria e energia, forçosamente a atividade mental tem base biológica, mas ainda tem base física, química, fisiotérmica, ponto. Vou dizer de outra maneira, Se eu for um filósofo convencido do materialismo, como são muitos, e muitos cientistas são, sem se dar em conta de que há outras opções, não há outra possível explicação, se não um gradualismo, se não o aparecimento da mente como fruto da matéria. Não há outra opção. Eu só quero é que as pessoas se deem em conta que no mundo académico hoje em dia nós temos guerras abertas, feridas que não estão saradas, nomeadamente no chamado Hard Problem of Conscience, que nos anota a Sárcia de Dónica, que é o problema duro da consciência. Porquê? Porque o senhor Descartes decidiu fazer uma coisa muito complicada que foi confundir tudo e, para sair da tradição aristótelica que a igreja abarcou, o que é que dizia Aristóteles? Aristóteles dizia que o ser humano é um animal racional. O ser humano tem um lado animal, que é o seu aspecto material, que é o seu corpo, e esse mesmo ser humano tem um lado imaterial, que é o seu aspecto mental e que de certa forma se associa à alma, mas uma alma racional. Porque Aristóteles também dizia, por exemplo, que as plantas tinham almas, Porque ele dizia que a alma da planta eram as facultades vegetativas da planta. E que os animais tinham uma alma, que era uma alma superior, uma alma que proporcionava crescimento, capacidades sensoriais, locomoção, uma alma animal. E depois o pináculo para Aristóteles era a alma intelectual, que era vegetativa como as plantas porque tinha crescimento, que era sensitiva como os animais e sensorial como os animais porque também temos sentidos e também processamos informação sensorial. Mas depois, a coroa da alma era a alma intelectual. Isso era o que pensava Aristóteles. O Aristóteles não fazia o divórcio entre o nosso lado material e o nosso lado imaterial. Isto calhou que nem gíngeres para a religião católica e isso foi preservado. A filosofia católica nunca abandonou esta visão aristotélica da alma. Que é muito diferente do conceito fantasma na máquina, que é um conceito de Descartes. Descartes concebe, à revalia da tradição anterior a ele, porque ele queria ser diferente, queria ser novo. Mas é verdade, e depois eu posso contar algumas episódios engraçados a favor disso. Ele queria ter a chave da novidade e da verdade científica. Então, ele concebe os seres vivos como pequenas máquinas biológicas e no caso do ser humano há a coisa que pensa, o res cogitans, a coisa que pensa. E ele diz bom, o ser humano são duas substâncias, uma substância que é um corpo e uma substância que pensa. Sim, material e imaterial. E hoje em dia se está a tentar discutir mas como é que isso é possível? Se elas são duas coisas distintas, como é que elas interagem? Qual é o ponto de união? Descartes dizia, deve ser a glândula pineal. Pois
José Maria Pimentel
é, porque ele não sabia para que é que servia.
Bernardo Motta
Pois, exato. Ou seja, Descartes inventou um problema fantástico e tem uma vantagem que criou imensos postos de trabalho para filósofos da mente, e hoje em dia continuam a trabalhar problemas criados pelo Papa Descartes. Mas Aristóteles não tinha este problema, nem os escolásticos medievais também não existiam. E hoje em dia temos alguns filósofos, como o norte-americano Edward Fazer, por exemplo, que eu admiro bastante, que defende um neo-aristotelismo, ou seja, recuperar, à luz da nova ciência, recuperar conceitos básicos, filosóficos de Aristóteles, que diz o Fazer, explica, Não tem estes problemas. A filosofia da mente pode ser recuperada do estado caótico em que está, se formos buscar alguns conceitos. Aristóteles não é, agora de repente, ir para o passado. Não. Mas é ir buscar alguns bons princípios. Por exemplo, dizer que... Ou
José Maria Pimentel
seja, como é que isso explica a consciência?
Bernardo Motta
Eu Vou dar um exemplo, buscando aqui um livro que eu acho super interessante e que eu recomendo vivamente, que é um livro que é escrito a duas mãos. Isto é um ótimo exemplo daquilo que se deve fazer, comprar um livro em que haja ou uma pessoa competente nas duas áreas ou duas pessoas, que é o caso deste livro, que chama-se Philosophical Foundations of Neuroscience. É a segunda edição do Sr. Bennett e do Sr. Hacker. Então, o Bennett é professor em mérito de Neurociência em Sydney e o Hacker é professor de Oxford em Neurologia. Nós temos duas pessoas que têm uma formação quer em neurociências, quer na parte filosoficamente, na parte filosófica da coisa. Têm um pé na ciência e um pé na filosofia. Neste livro, que já vai na 2 edição, que está a ser muito lido e muito discutido nos meios da especialidade, O que eles dizem é que vamos ter que abandonar a ideia de que a consciência está ligada apenas ao cérebro, porque a consciência está localizada no cérebro. E eles recuperam um conceito, apesar de não falarem muito em Aristóteles. Atenção que isto aqui tem zero a ver com a Igreja. Isto tem conceitos que são aristótélicos numa discussão contemporânea, dificilmente. E o que eu estou a dizer é que temos que, uma vez por todas, abandonar este erro conceptual de achar que a consciência do ser humano é algo que só existe no cérebro. Para eles, a consciência está no corpo todo. Porque eu tenho consciência dos dedos dos pés, consciência de uma cócega aqui atrás da nuca, consciência de uma dor na minha cabeça, etc, etc.
José Maria Pimentel
Faz sentido, porque nós temos determinados nervosos no corpo todo e
Bernardo Motta
neurônios... Atenção que eu não estou a falar por eles, mas isto a mim cheira a Maristóteles. E não é só aqui que está a acontecer, está a acontecer em muitos aspectos. Há um filósofo ateu que é o Thomas Nagel. O Thomas Nagel escreveu aqui há menos de uma década um livro super polémico em que ele diz, Why it's almost certain that the materialistic Darwinian evolution theory is wrong. Ele é ateu, tem uma carta a jogar nesse aspecto. E o que ele está a fazer, curiosamente, para quem lê o livro de Thomas Nagel, vindo da escola aristotélica, que é o caso do Edward Fraser de outros, está a dizer Senhor Thomas Nagel, o que ele está a fazer? Está a descobrir o aristotelismo. Bem-vindo ao clube. Ele ainda não entrou no clube dos aristotélicos, mas ele está... O livro dele, que é uma revolta contra a narrativa materialista do darwinismo, é um livro escrito por outro eu, que não tenho nenhuma vantagem em fazer isso, do ponto de vista nem político nem religioso.
José Maria Pimentel
Sim, sim. Na filosofia da mente há todos os gostos. Mas este ponto é constante.
Bernardo Motta
Ou seja, a filosofia da mente é crucial para o darwinismo. Estes temas estão todos ligados. Porquê? Porque se eu for um materialista em filocida mente, eu vou trabalhar a teoria da Arminista do único ponto de vista que tu acabaste de escrever muito bem. Tem que ser gradualismo, porque a mente vem da matéria. A matéria evolui gradualmente, a mente evolui gradualmente. Aqui está um exemplo de muitos da ligação umbilical que há entre as nossas convicções em filosofia da mente e a forma como olhamos para os dados da genética e dos fósseis. Vindo de uma perspectiva aristótica, que é aquela que eu estou aqui a defender, eu posso olhar para os dados dos fósseis de uma maneira completamente diferente e posso dizer o seguinte. Sim, há um rasto genético que eu não posso negar. E eu, quando vou aqui e acolá falar em paróquias e a outros católicos que não leram estes temas e que não estudaram, e que também têm estas dúvidas, o que eu lhes digo é, senhores, não vamos questionar os dados científicos que são factuais e são muito sólidos. Ou seja, porquê é que hoje temos que defender que há um antepassado comum? Que nós todos provimos, muito antes de Adão e Eva, que nós todos provimos de um primeiro ser vivo. Porquê é que temos que dizer isso? Por uma série de razões. Primeiro já porque todos utilizamos o ADN para a codificação do nosso genoma e para a produção de proteínas. Isto é inevitável. Toda a vida que nós conhecemos baseia-se em ADN. E baseia-se no complexo processo de produção de proteínas, num complexo processo que tem imensas coisas em comum, desde o micro-organismo mais pequeno, o unicelular, até nós. Imensas coisas em comum. Ponto 1. Ponto 2. As árvores genéticas que se constroem com a cladística, com a estatística. É um trabalho conjectural? É. Mas é super forte, super provável. A forma como se consegue matematicamente construir uma árvore genealógica toda a vida é super interessante e é super potente como evidência. E aqueles que disserem, ah mas é o passado, não podemos ter certeza. Senhores, então vamos também o quê? Questionar a história? Ou seja, quando um cristão está a dizer, o Nome do Festival é muito incrédível como livro histórico, que eu digo que é. Que livro é um livro histórico. Se eu estou a dizer que é possível tratar a história como uma ciência, então eu não vou atacar o Darwinismo só porque é uma conjetura do passado. Isso é incoerente, não é? Por isso, sim, eu acredito que a história é uma ciência. É possível conhecer o passado a certa medida. Por isso, respeitemos os fósseis, respeitemos a cladística, respeitemos as evidências de que há uma árvore da vida que é comum a todos os seres vivos. Ponto 1. Na Terra, pelo menos. Ponto 1. Ponto 2. Como é que a vida surgiu é um problema completamente diferente. Eu atrevo-me a dizer, ninguém sabe.
José Maria Pimentel
A vida? O nissolar? A vida. Como é que surgiu
Bernardo Motta
a vida? Como é que nós passamos de uma química orgânica para a vida?
Bernardo Motta
Há um montão de teorias.
Bernardo Motta
Não sou eu que digo, há vários especialistas no tema que dizem que ninguém faz ideia. Eu vou dar um nome. James Ture. O James Ture especializa-se em nanomoléculas. Ele tem uma equipa que compete todos os anos, ou quando há campeonatos desses, em corridas de nanomotores. Em que eles constroem microcarrinhos que são feitos de moléculas apenas. É uma escola à escala dos nanómetros. E estamos a falar de um homem que lidera uma equipa científica que ganha este tipo de campeonatos, e tem um especialista no tema. E o James Tur, estou a usar o argumento da autoridade, atenção, porque eu também não sou biólogo, não posso falar para além de argumentos da autoridade, perdoem-me por isso, mas o James Tur tem uma série de vídeos muito interessantes que eu recomendo que se vejam no YouTube, em que ele diz assim, no one has a clue, Ninguém tem a menor das ideias de como é que a vida surgiu. Há teorias interessantíssimas, ninguém sabe como é que ela surgiu. O salto da química orgânica para a vida não está explicado.
José Maria Pimentel
Mas isso... Quer dizer, vamos assumir que Deus foi esse... Enfim, agente, que queiramos chamar, que foi esse salto... Eu não estou a
Bernardo Motta
assumir isso, eu por acaso tenho uma opinião diferente. Mas qual é a relevância disso também para a religião em quanto tal? Para o cristianismo? Está tão distante. Tem uma importância enorme para desmontar uma narrativa do evolucionismo como uma metastória. Qual é o problema hoje em dia que as pessoas talvez não se deem em conta? Eu defendo os factos científicos do Neodarwinismo. O que é o Neodarwinismo? Eu defendo, e vou lendo e acompanhando, aquilo que se escreve em ciência, não é nos livros polémicos dos ateus, é em ciência, ciência mesmo, que é o que eu gosto de ler. O Neodarwinismo é o casamento da teoria darwinista da associação natural com a genética mendeliana. Já agora, Gregor Mendel, apresente-vos, monge austríaco, monge católico austríaco, pai da genética. O casamento da genética de Mendel com a associação natural é o que se chama síntese neo-darwiniana. Eu estou a falar da parte científica, eu não estou a criticar isso. O que eu vou criticar agora, no resto da nossa conversa, é o que eu chamo a narrativa filosófica, que dá pelo nome de materialismo darwinista. Cuidado que eu coloquei a palavra materialismo. Se uma pessoa é materialista, não há nenhuma mente que criou o universo, não há nenhum propósito, não há nenhum design, não há nenhuma inteligência, as coisas aconteceram fruto do acaso e de umas leis que ninguém sabe bem sequer porque lhes chamamos de leis, porque não há nenhum legislador, é uma força de expressão. Se eu for materialista, só há uma narrativa, que é a evolução, a partir do momento em que surge o ADN. E quando não há ADN, quando estamos em química orgânica e ainda não existe ADN. Eu vou ter que arranjar uma espécie de Darwinismo da química
Bernardo Motta
orgânica, que é o que se está a procurar fazer agora.
Bernardo Motta
Não há outra narrativa. É preciso perceber que a paixão com a qual um ateu materialista se agarra ao Darwin, que é uma paixão que às vezes é prejudicial para a ciência porque não a deixa evoluir, a paixão com que eles se agarram a essa narrativa é igual à paixão do pastor evangélico que se agarra à sua bíblia e que grita no microfone. É mesmo um tipo
Bernardo Motta
de paixão. Sim, mas eu percebo o que queres
Bernardo Motta
dizer. É só o que resta, não há outra narrativa.
José Maria Pimentel
Eu acho essas conversas sobre a origem da vida, o Big Bang, são conversas interessantes para... Até seriam interessantes para o podcast, mas acho que em última análise são histérias. Porque tu podes ser agnóstico, podes ser taísta, não sei se é a palavra certa, ou seja, tu podes acreditar que é possível que exista um Deus, quer dizer, o unmoved mover, não é aquela que eu vou citar, o exército de São Tomás, não é?
Bernardo Motta
Sim, e de Aristóteles.
José Maria Pimentel
E que vem de Aristóteles, exatamente, que no fundo deu origem ao universo, que até terá dado origem à vida, não é? Mas isso não te impede de depois construir o resto da ciência sobre isso e, quer dizer, desse move the mover até ao cristianismo ou qualquer outra religião, vai um... Uma distância enorme. Vai uma distância enorme, não é? Quer dizer, o ponto que eu aqui acho interessante discutir, estes acho que seriam interessantes para a conversa de café, não é? Mas o que eu acho interessante para um católico, não é? Para estar contigo enquanto católico é o ser humano, não é? Quer dizer, esse é que é o ponto que interessa. Como é que tu tens essa descontinuidade, quer dizer, sendo a vida toda ela baseada em ADN, havendo evolução por seleção natural e... A
Bernardo Motta
questão é, tu tens uma série de problemas por resolver E eu vou só disparar aqui alguns que depois podemos aprofundar, se tu tiveres mais gosto. Mas já falámos sobre um deles, não é? Explicar a consciência, que é um problema relativamente novo, porque vem do Descartes. Problemas muito antigos. Explicar o problema dos universais na Idade Média. Conceitos universais. Por exemplo, ser humano. Existem seres humanos que nós colocamos na categoria de ser humano. Até lhe damos o nome, que é Homo Sapiens, mas por efeito agora interessa pouco. Ser humano. O conceito de ser humano é universal. É uma categoria na qual nós colocamos vários seres humanos, instâncias de seres humanos. Eu, tu e pessoas que estão a morrer e outras que ainda vão nascer. Esses conceitos abstratos existem? Se existem, onde é que existem? Qual é a natureza desse conceito? Para já há uma coisa que parece claríssima, que é um conceito abstrato não é concreto. Desculpa-me, verdade de lá para a lice. São coisas que se complementam. Ao concreto e ao abstrato. E até usando um exemplo ainda mais simpático do que o de ser humano, que é um bocado polémico, depois levamos a muita discussões, vamos pensar, por exemplo, num triângulo. Que é o exemplo que usa o Edward Fraser muitas vezes. Quando a gente gerar um triângulo teórico, esse triângulo é perfeito. Os ângulos somam 120°. Fantástico. Rigoroso. Preciso. Todos os triângulos que alguém desanha são imperfeitos. Se eu apontar para lá o microscópio e mesmo que eu desenhe aquilo com o computador, com a impressora de alta resolução, com muitos TPI's, etc. Se eu fizer zoom naquela imagem eu vou ver imperfeições da tinta, vou ver imperfeições à escala atómica no limite, não é? Isso é um bocado platónico, não é? Ora bem, o Platão tinha uma coisa muito séria em mãos, que é preciso de explicar qual é a realidade destes conceitos abstratos, porque senão eu não consigo sequer pensar, ou seja, o pensamento humano requer conceitos abstratos para poder sequer chegar à verdade das coisas, para poder discutir e investigar e avaliar. A nossa mente trabalha com conceitos abstratos. Mas
José Maria Pimentel
onde é que entra aí o ser humano? É um conceito abstrato, claro, mas isso não impede de nós percebermos que houve uma evolução, que nós viemos de seres mais primitivos e
Bernardo Motta
que essa evolução foi gradual, que nas populações não ocorra tudo ao mesmo tempo. Temos aqui um problema chamado conceitos abstratos. E é aí que eu queria chegar. Porquê que o
Bernardo Motta
materialismo é falso? Por uma série de razões. Uma das razões que se aponta desde o infinito dos tempos. Desde os primórdios da humanidade se aponta este efeito ao materialismo. Já no tempo do Demócrito, que dizia que tudo era átomos, Demócrito é o primeiro materialista conhecido da história da filosofia, mas certamente que houve outros. Porquê que o materialismo está falso? Por várias razões. Uma delas é esta. Se a minha mente é puramente material, ou se são processos eletroquímicos que se reduzem à matéria, então não há entidades abestatras. Não há. A questão é, se eu fizer zoom aos meus neurônios, eu não vou encontrar o tal tirango perfeito. Um exemplo ainda mais dramático. Se eu fizer zoom aos meus nanónios, eu não vou encontrar o número pi. Mas todos sabem que o pi é o que eu vou utilizar para calcular a proporção entre um perímetro e um diâmetro. De uma forma rigorosíssima. É um rigor que a matéria não contém. E entramos aqui num tema que eu acho interessante de introduzir, que é o tema hoje em dia muito discutido em filosofia da matemática. Todos os ramos do sabedor têm uma filosofia. Há a filosofia da física, da química, da biologia. Em filosofia da matemática discute-se muito esta questão. A matemática é descoberta ou é inventada? Eu acho que ela é descoberta. Platão estava num caminho certo, que depois foi corrigido, na minha opinião, no Cristianismo, que era apostelar um mundo das ideias, em que tem que haver um espaço em que as verdades matemáticas existam, mesmo que não haja seres humanos. E basta as pessoas que nos estão a ouvir pensarem no seguinte, vamos imaginar que amanhã uma bomba nuclear destruía a nossa civilização, não ficava ninguém nesta terra e que não havia vida inteligente, portanto os seres inteligentes desapareceram do universo e que não havia Deus. Vamos imaginar tudo isso. Onde é que estão as verdades matemáticas? Para onde é que foram? Ou pensar ao contrário, antes de aparecer a
José Maria Pimentel
primeira inteligência... Os dados têm que estar em algum
Bernardo Motta
lado? A questão é esta. Se a matemática é descoberta, sim. Se a matemática é uma invenção humana, não. Mas vamos aprofundar um bocadinho a sério. Mas
Bernardo Motta
tem que estar em algum lado, mas necessariamente materialmente. As constantes do universo não estão em nenhum lado, existem. São propriedades. Antes de haver uma inteligência sobre o universo, uma inteligência
Bernardo Motta
aparecer em cena no nosso universo, havia ou não havia o termo de Pitágoros? Esquecendo agora o nome de Pitágoros, não é? Havia ou não havia esse termo? Qual é a
Bernardo Motta
tua opinião? Sim.
Bernardo Motta
É onde? Onde é que está? Tinha-se
José Maria Pimentel
alguma propriedade, não é? Não existia.
Bernardo Motta
Mas é que ela não é instanciada de forma perfeita de forma nenhuma. Ou seja, ela não está em nenhuma pedra, em nenhuma rocha, em nenhuma forma. Porque o que a extração intelectual nos mostra é que esses conceitos só estão puros na nossa mente. Sempre que eu tento retratá-los numa rocha, numa onda de um oceano, numa onda sinusoidal, numa radiação de uma estação de rádio, quer que seja, são sempre aproximações imperfeitas. O perfeito só está mesmo na mente do matemático. E isto é um problema muito complicado, que é o problema dos abstratos ou dos universais, que fez os medievais andarem que nem uns doidos à procura de soluções para este problema. Não há assim muitas soluções. Há negar os universais. Ora bem, quando nós negamos os universais, quando nós negamos que o ser humano seja capaz de conceitos abstratos, surgem imensos problemas filosóficos. O que é a linguagem? O que é a comunicação entre seres que usam linguagem? O que é uma lei sequer da natureza? Surgem inúmeros problemas sem fim, quando nós negamos os universais. Que é o que se chama o nominalismo. Os nominalistas, este palavrão, são aqueles que negam os universais. O nominalismo é um sem fim de problemas filosóficos. Por outro lado, há outra hipótese, que é como fez o Platão, de dizer não, há ali um mundo, um mundo das ideias, em que as coisas estão lá sosseguidinhas e eu tenho acesso a elas quando penso nelas, que é uma ideia bonita, mas depois a questão é muito bem, vamos Imaginar que há um mundo das ideias, que até é complicado imaginar o que é que isso seria, não é? O que é que é um mundo das ideias? Porque se ele não é material, o que é que é isso? O que é que são ideias a flutuar, não é? Fora de uma mente. Nós só conhecemos ideias dentro de mentes. É a nossa experiência. O que é que resta? Resta dizer que a nossa experiência do dia a dia é que as ideias Vivem em mentes. É o que nós conhecemos, mesmo os ateus. As ideias vivem dentro de mentes. O que é que fizeram os cristãos? Muito simples. Pegaram no mundo as ideias de Platão e puseram-nas no intelecto divino. Onde está a matemática? No intelecto divino. Vou dar só um único exemplo, mas há vários. Por acaso, até tinha pensado em dois exemplos para sugerir. Os matemáticos, hoje em dia, estão um bocado perplexos com algumas coisas de acontecer no século XX quando certos matemáticos, por razões acidentais, descobrem pontes entre áreas da matemática que não têm nada a ver uma com a outra. Descobrem ligações profundas. É como se o matemático estivesse a descobrir um território mental que, se fosse uma invenção humana, nós não esperaríamos a ver pontos entre, por exemplo, a torre matemática do movimento browniano, que é uma área estocástica, estadística. Estão ali os estocásticos, os brownianos, fanáticos por essa área. E Depois há aqui uma outra área onde estão os senhores das iguações diferenciais. Tudo é contínuo, tudo é indiferenciável, funcõezinhas direitinhas, com pontos infinitos. São mundos que não têm nada a ver uns com os outros. E depois aparece, acho que foi um senhor chamado Kakutani, já não me recordo bem, que é autor do século XX, anos 40, anos 30. E o Kaku Tani liga o problema de Dirichlet, que tem a ver com funções deriváveis, diferenciáveis, liga-o com a teoria browniana do movimento, ou a teoria do movimento browniana, que é estocástica. E mais do que isso...
José Maria Pimentel
E há vários exemplos desses. E há
Bernardo Motta
vários destes. E ele faz, é mais do que um aponte, ele faz um viaduto onde passam carros e é uma coisa mesmo muito sólida que ele faz e ele demonstra ligações profundíssimas entre áreas da matemática que surgiram por razões diferentes, que trabalharam por pessoas diferentes e que ele unias de uma forma surpreendente. Ora, isto é um argumento que aqueles que defendem uma filosofia descoberta na matemática, a chamada escola Sidney, ou o Sr. Chamado Franklin, que é professor catedrático em Sidney, que representa hoje em dia esta escola de filosofia na matemática, que diz que a matemática é descoberta, curiosamente eu moro estélico, curiosamente, e com alguns toques de platonismo, diz que a matemática é descoberta. Ora, para um cristão, isto é música para os nossos ouvidos, porque se a matemática é descoberta, naturalmente estamos a descobrir a mente de Deus. A matemática vive na mente de Deus, que é o demático perfeito.
José Maria Pimentel
Este episódio foi editado por Hugo Oliveira. Visitem o site 45graus.parafuso.net barra apoiar para ver como podem contribuir para o 45 Graus, através do Patreon ou diretamente, bem como os vários benefícios associados a cada modalidade de apoio. Se não puderem apoiar financeiramente, podem sempre contribuir para a continuidade do 45 Graus avaliando-o nas principais plataformas de podcasts e divulgando-o entre amigos e familiares. O 45 Graus é um projeto tornado possível pela comunidade de mecenas que o apoia e cujos nomes encontram na descrição deste episódio.