#123 Lívia Franco - Que nova Ordem Mundial podemos esperar no pós guerra da Ucrânia?
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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o
45 Graus. Desde a invasão da Ucrânia, no dia 24 de Fevereiro,
que a guerra tem dominado a discussão no espaço público. Tenho, porém,
hesitado em trazer um tema tão volátil ao 45 graus, tendo em
conta um dos princípios do podcast. Que cada episódio seja o mais
pre-ano possível. Ou seja, que cada episódio perca o mínimo possível se
for ouvido daqui a um, dois ou mesmo cinco anos. E no
entanto, a verdade é que este é um tema incontornável e um
evento que, qualquer que venha a ser o desfecho, veio a alterar
a ordem mundial de maneira irreversível. E imprevisível também? Provavelmente sim, no
início da guerra, que apanhou quase todos de surpresa. Mas agora que
já passam 3 meses do início da invasão. Numa altura em que
começam a ficar claras as posições da Rússia, da Ucrânia e do
Ocidente e de outros países importantes como a China ou andia, achei
que era a altura certa para finalmente trazer este tema ao podcast,
focando sobretudo nas implicações geopolíticas da guerra e no que ela implica
para o futuro da ordem mundial. Para este tipo de conversa dificilmente
poderia escolher melhor convidada do que Lívia Franco. A convidada é professora
e investigadora no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica e é
investigadora associada do European Centre for Foreign Relations, um think tank paneuropeu.
A investigação da convidada dedica-se a várias áreas da política internacional, com
especial foco na política europeia e em questões de democracia, segurança e
defesa. Nesta conversa com Lívia Franco, aprofundámos três aspectos essenciais para compreender
a guerra e as suas implicações geopolíticas. Primeiro, o início de tudo.
As motivações da Rússia para a invasão. Eu sei que este tema
pode parecer pisado e repisado, mas a verdade é que é mais
complexo do que te nos parece, dá análise muitas vezes apressada das
televisões. E por isso vale a pena aprofundá-lo com a calma e
a profundidade que só um podcast proporciona. Porque a verdade é que
as motivações russas são, como não poderia deixar de ser, várias, complexas
e intrincadas. Por exemplo, É claro que há quem veja na invasão
simplesmente a loucura de um déspota, isolado pela pandemia, que vê neonazis
em todo lado. Mas essa explicação necessariamente é curta. E quando tentamos
procurar outras causas, encontramos várias. Já todos vimos a invasão ser descrita
como a vontade de Putin em recuperar o território da antiga URSS,
mas também há quem diga que é uma reação, em certo sentido
legítima, à ameaça trazida pela suposta intenção antiga da NATO de expandir
ao leste da Europa. Por outro lado, há quem diga que a
preocupação da cúpula russa não está tanto no território ou estritamente na
ameaça bélica, mas sobretudo com a aproximação que tem havido nos últimos
anos dos governos e da política ucraniana em geral na direção do
Ocidente e das democracias liberais. Por outro lado ainda, há quem sugira,
como faz a convidada durante a conversa, que a invasão da Ucrânia
teve também a intenção de afirmar o poder russo num mundo que
está rapidamente a convergir para um modelo dominado por dois polos, os
Estados Unidos e a China. Há por isso várias explicações possíveis, provavelmente
todas elas um pouco verdade e sobretudo relacionadas entre si, para este
estado de coisas e vale a pena conhecê-las melhor. O segundo aspecto
que discutimos na conversa é o passo seguinte. Qual poderá ser o
desfecho da guerra? Nesta altura parece quase certo que nem a Rússia
nem a Ucrânia irão poder cantar vitória e que o desfecho terá
de decorrer pela via negocial. E aí chegados, que cedências, que compromissos
poderão estar em cima da mesa? O que poderá ser aceitável para
ambos os lados e, desejavelmente, ao mesmo tempo, devolver ao mundo alguma
estabilidade geopolítica? E finalmente, o terceiro tópico que discutimos é o mais
importante de todos. Que implicações terá esta guerra na ordem mundial? A
convidada lembra a certo ponto a famosa tese do cientista político norte-americano
Francis Fukuyama, desenvolvida no livro O Fim da História, que este publicou
em 1992. Segundo esta tese, a queda da União Soviética, que acabava
de ocorrer, e com ela o fim do modelo comunista, trazia consigo
a inevitabilidade da convergência do mundo para a ordem liberal do modelo
ocidental. Ou seja, democracia, economia do mercado, defesa dos direitos humanos, respeito
pela integridade territorial dos Estados e da autodeterminação dos povos. No meu
livro eu falo desta tese para mostrar que ela era demasiado otimista
no que diz respeito à suposta superioridade prática do modelo democrático, o
que tem ficado evidente, sobretudo nos países ocidentais, com o crescimento eleitoral
dos movimentos populistas. Nesta conversa com Lívia Franco, a convidada remete também
para a tese de Fukuyama, mas para assinalar o modo como ela
estava errada também na sua vertente geopolítica, uma vez que apesar do
suposto peso das instituições multilaterais no mundo de hoje, como por exemplo
a ONU, e mesmo do grau de integração da economia mundial, a
invasão da Ucrânia provou que ainda é possível a líderes autocráticos usar
o seu poder e a capacidade de acicatar sentimentos nacionalistas entre a
população para invadir outros países, desrespeitando esses princípios, sem que seja possível
impedi-los. A invasão da Ucrânia veio assim mostrar que a expectativa implícita
na tese de Fukuyama era ingénua. E ao mesmo tempo forçou os
outros países mundiais, sobretudo aqueles com mais peso geopolítico, a porem as
cartas na mesa, ou contra a Rússia, como fizeram a generalidade dos
países ocidentais, ou a favor desta. Ou pelo menos assumindo uma postura
ambígua, como têm tentado fazer países como andia ou a China. Aliás,
o retrato que tem emergido é menos harmonioso do que possa parecer
aos olhos ocidentais porque nem todos os países, sobretudo quanto mais afastados
estiverem da Europa, estão dispostos a alinhar na postura de condenação absoluta
ao regime de Putin que tem efeito a maioria dos países ocidentais.
Seja como for, o que parece hoje quase certo é que a
invasão da Ucrânia irá provocar uma alteração da ordem mundial. Mas para
onde? O que é que vai mudar exatamente? A convidada tem aqui,
como vão ver, uma tese provocadora. Segundo ela, a ação da Rússia,
em vez de lhe conceder, como pretendia Putin, um peso maior na
arena mundial, pode, pelo contrário, ter precipitado a tendência que vinha de
trás da emergência do mundo bipolar dividido entre um polo dominado pelos
Estados Unidos de um lado e do outro um polo dominado pela
China. Deixo-vos então com esta conversa com Lívia Franco. Não sei antes,
como de costume, agradecer aos novos mecenas do podcast, Rui Teixeira, Sara
Spencer, Miguel Cabral, Tomás Lucena e Teresa Melville de Araújo. Obrigado a
todos e até ao próximo episódio. Lívia, muito bem-vinda a esta humilde
casa. Obrigada, estou com muito gosto aqui. Eu queria começar por falar
de um assunto que já está, quer dizer, podemos achar que ele
já está repisado, mas eu acho que ainda tem algumas coisas a
dizer, que é o início da guerra, quer dizer, a invasão. Parece
mais ou menos evidente, acho, a toda a gente que Putin fez
um erro de cálculo, isso parece mais ou menos evidente. O que
eu acho ainda, apesar de tudo, interessante perceber é porquê que ocorreu
esse erro de cálculo. Que motivações é que ele tinha que ser
inaugurado? Há aspectos que parecem mais ou menos incontestáveis, que o exército
não era tão bom como parecia ser, pelo menos na prática não
funcionou assim tão bem. Parece também que ele contava com uma desunião
e inoperância do Ocidente, que depois acabou por não acontecer, ou por
acontecer justamente o contrário. O que é que aconteceu mais? O que
é que nós conseguimos perceber que estava na cabeça dele, ou da
cúpula do regime? Às vezes a pessoa também personaliza isso, não é
necessariamente o...
Lívia Franco
não, eu direi que a um certo nível operacional aconteceu e é
evidente. E, portanto, essa leitura mais operacional tem a ver com o
facto de que Putin e os grandes decisores, que trabalham com ele
diretamente, políticos e militares, evidentemente trabalharam sobre a expectativa de que as
Forças Armadas Russas iriam ter uma eficácia no teatro de operações, que
não aconteceu. E não aconteceu a vários níveis. Não aconteceu do ponto
de vista logístico. Não aconteceu do ponto de vista, digamos assim, da
cadeia de comando, não aconteceu também do ponto de vista da operacionalidade
do equipamento militar. E eu acho que nós... Isso foi uma surpresa
também para o Ocidente, acho que foi uma surpresa para Moscou, para
o Kremlin, acho que foi uma surpresa para o Ocidente e acho
que a explicação encontra-se principalmente na natureza do próprio regime. Por um
lado, Porque quando os regimes são altamente centralizados têm falta de informação
que vem da periferia sobre efetivamente o estado das coisas, do comando,
das chefias militares, mas também digamos assim dos procedimentos logísticos e da
situação em que se encontra o equipamento militar, mas também porque, quer
dizer, do ponto de vista político se trabalham mais sobre convicções ideológicas
ou políticas construídas do que efetivamente sobre o feedback que vem da
realidade. Digamos assim, os sistemas que são funcionais são sistemas que enviam
informação nos dois sentidos e o caso do sistema russo, por ser
altamente centralizado e autoritário, ele já é desfuncional. Pronto, acho que isso
aconteceu. E também acho que, quer dizer, isso está associado depois a
uma outra questão que eu acho que também tem a ver com
os sistemas de centralização e mais numa dimensão econômica, que é o
facto desta economia ser uma economia altamente oligárquica e centralizada também cria
sempre necessariamente, e nós temos muitos exemplos históricos de como isso aconteceu
em outras situações, mas em sistemas organizados da mesma maneira, uma economia
paralela, muito que funciona numa lógica, digamos assim, da corrupção. Portanto, aquilo
que nós também fomos tendo indicações ao longo destes meses é que,
por exemplo, do ponto de vista da cadeia logística ou do ponto
de vista do equipamento militar, as coisas não funcionaram bem porque peças
desapareceram, foram entretanto vendidas num mercado negro, não é? Porque têm um
determinado valor, porque é tal história da economia paralela. Ou seja, não
foi surpreendente para o Krémlin não estar avisado disso, porque isso acho
que é as consequências e a natureza do regime para o próprio
regime. Acho que há alguma surpresa do ponto de vista da leitura
que o Ocidente faz, em particular os sistemas de informação, como por
exemplo os norte-americanos, os britânicos, como é que não tinham essa informação
de maneira assim tão evidente? Porque agora, vistas à posteriori, era mais
ou menos evidente que isto iria acontecer. Portanto, eu acho que sim,
aí podemos encontrar um erro de cálculo.
Lívia Franco
É funcional, é operacional e funcional. Não acho que seja um erro
de cálculo do ponto de vista político. Porque, quer dizer, do ponto
de vista da narrativa, Não vejo que isso fosse um erro de
cálculo. Podia, se calhar, pensar-se que é um erro na maneira como
esta narrativa corresponde à realidade. Mas isso não é um erro de
cálculo. Quer dizer, ou seja, a guerra da Ucrânia, A Operação Especial
da Rússia na Ucrânia, e eu estou a fazer de propósito dar-lhe
estes dois nomes, na verdade explica-se precisamente pela discrepância entre duas leituras
que são feitas sobre A mesma realidade. Uma leitura que nós podemos
dizer que é uma leitura essencialmente ocidental e partilhada por uma Ucrânia
que se vê si própria como no caminho de uma transição e
de uma consolidação democrática e, portanto, para efetivar mesmo aquilo que é
a sua independência, que já foi formalizada no direito internacional em 1991,
mas que na vida política nós sabemos que ainda não era, não
estava completa, não é? Aliás, com vários momentos, não é? Em 2005
a Revolução Laranja mostra exatamente isso, que é esse caminho que está
a ser feito. Em 2013, com a chamada Revolta do Euromaidan, era
também a continuação do mesmo processo e eu acho que agora, manifestamente,
esta reação, que foi inesperada para quem partilha de outra leitura sobre
o que é que está a acontecer na Ucrânia e qual é
o apoio que o Ocidente estava a dar à Ucrânia, só, quer
dizer, desse olhar que não partilha da mesma leitura, que de facto
pode achar que isto é estranho, uma novidade e incompreensível. Portanto, eu
não acho que seja um erro de cálculo, acho que é mais
porque a leitura que é feita de Moscovo do lugar em que
os ucranianos, não tanto a Ucrânia, mas os ucranianos e a maioria
dos ucranianos se encontravam em 2013 e agora em 2022, era uma
leitura que era criada. Bem, todas as narrativas políticas são criadas, nós
temos que sempre, quando trabalhamos na área da ciência política, temos que
trabalhar exatamente sobre isso. E, portanto, qual é a leitura que Moscouf
tinha? Bem, a leitura que Moscouf tinha era esta leitura de que,
quer dizer, a Ucrânia é uma construção. Em parte, até, Putin diz
isso muito bem num discurso que faz nas versões de invasão, que
era uma construção sobre a qual, aliás, a própria União Soviética tinha
tido grande responsabilidade em construir a Ucrânia. Historicamente, no fundo é esta
a visão do Kremlin e da liderança, a Ucrânia não existe enquanto
Estado-nação, é uma construção, é uma construção moderna e é uma construção
desmentida pela própria história, por um lado, desmentida pela geopolítica e desmentida
também por um olhar, digamos assim, civilizacional. Isto é para dizer o
quê? Que esta tal leitura, que é a leitura sobre a qual
os decisores do Kremlin trabalham, é uma leitura que tem uma série
de componentes, nos quais eles acreditam de modo convicto. Atenção, a leitura
Vista do Ocidente também tem uma série de componentes na qual quem
partilha dessa leitura também
José Maria Pimentel
Ainda bem que falou disso, que era exatamente aí que eu queria
ir. E essa distinção é interessante. No fundo, há aqui erros que
nós podemos apontar, que são mais ou menos óbvios, mas são erros
de ordem prática, que têm a ver com, lá está, com a
eficácia do exército, com por outro lado a eficácia do exército ucraniano,
com a união da população, com a reação do ocidente. Tudo isto
são mais ou menos imponderáveis. Mas depois há outro aspecto que eu
acho interessante, ainda bem que levou a conversa para aí, que era
exatamente a minha ideia, que é a parte estratégica. E eu acho
que Há uma distinção que eu tenho muita curiosidade em perceber entre,
se quisermos, o lado emocional e o lado estritamente estratégico. Porque essa
narrativa que vem do Kremlin e até aquele ensaio muito conhecido do
Putin sobre a história, sobre a visão do State Town disponível
Lívia Franco
O que é Rússia? Qual é o lugar da Rússia enquanto Rússia,
enquanto Federação Russa, enquanto potência? Há sempre esta ambivalência histórica. A Rússia
é o quê? É uma potência essencialmente europeia? É uma potência euroasiática?
É uma potência que se inscreve na civilização cristã no seu sentido
mais alargado, que se inscreve numa visão civilizacional essencialmente ortodoxa, É uma
potência, e repare que a linha continua é que é sempre uma
potência, é uma potência que deve ter relações de abertura, de proximidade
e complementariedade com a Europa e com o Ocidente ou não? Ou
é uma potência que para continuar a ser potência tem que manter
traços característicos que lhe advém exatamente do facto de ser um bocadinho
europeia e muito asiática. Isto para dizer que esta narrativa que nós
andamos também aqui a ver que é a narrativa sobre a Ucrânia,
na verdade ela diz muito mais sobre a Rússia, sobre a maneira
como a Rússia se vê, se vê, se propre mais, e a
maneira como a Rússia vê o seu lugar no contexto regional, isto
é, na Europa e na Ásia Central, mas também a maneira como
a Rússia vê o seu lugar no mundo. E a guerra da
Ucrânia e a maneira como ela começa, que traz associada consigo esta
visão e esta leitura da realidade a estes vários níveis, diz-nos imenso
sobre esta Rússia, como este regime agora pensa sobre a Rússia. E,
portanto, desse ponto de vista eu acho que não é um erro
de cálculo porque essa decisão é racional, estrategicamente lógica nesse enquadramento. É
aí que eu acho
Lívia Franco
mas eu acho que normalmente até o que acontece é ao contrário.
Quer dizer, A decisão sobre o posicionamento estratégico, eu estou a pensar,
por exemplo, em Portugal agora vai-se voltar a discutir o Conceito Estratégico
Nacional. A União Europeia este ano publicou finalmente a chamada bússola estratégica.
Daqui a um mês vai ser, em princípio, formalizado o novo conceito
estratégico da NATO. Ora, os posicionamentos estratégicos, eles resultam daquilo que é
uma reflexão e o entendimento sobre o mundo que está à nossa
volta e o nosso lugar nesse mundo e, portanto, aquilo que nós
somos. Mas depende do lado identitário ou não? Claro que sim! Quer
dizer, quando nós estamos a fazer a leitura sobre o que o
mundo é, quer dizer, isso traz consigo uma história, traz consigo uma
narrativa e o que é que nós somos neste mundo, então isso
não tem uma definição da nossa identidade.
Lívia Franco
Maria, o que eu no fundo estou aqui a dizer é que
me parece que qualquer exercício de reflexão estratégica traz consigo também um
exercício de reflexão sobre o que é que nós somos, onde é
que nós estamos, o que é que nós queremos, o que é
que para nós constitui ameaças, o que é que não devem ser
vistos como ameaças, quais são os meios que nós devemos ter para
responder a estas ameaças, face àquilo que é a última análise, a
nossa sobrevivência e a meio caminho a nossa agenda, digamos assim, de
interesses, de valores e de princípios. Portanto, eu também não sei até
que ponto é que é muito útil nós fazermos essa separação entre
essa leitura, digamos assim, mais identitária ou mais estratégica. Eu acho que
elas estão intimamente ligadas.
Lívia Franco
Mesmo as análises realistas não conseguem eliminar, digamos assim, uma dimensão mais
valorativa. Não conseguem. A ideia é essa, não é? Quer dizer, nós
podemos dizer que há um exercício teórico realista que resume essencialmente a
leitura da realidade, à lógica da distribuição do poder, como é que
se mantém os equilíbrios de poder, como é que podemos estabelecer ordens
mais ou menos estáveis. Claro que esse é um exercício, mas esse
é um exercício essencialmente teórico que normalmente os governos não se limitam
a usá-lo assim estritamente, não é? Porque tem que introduzir digamos assim
estes elementos e estas características mais substantivas. Portanto, essa ideia do realismo
é assim...
Lívia Franco
Sim, ou seja, o que é que me quer dizer? Por exemplo,
a sua pergunta é sobre ou por uma narrativa que é mais
liberal, mais idealista, mais com esses elementos e materiais que é proposta
pelo Ocidente e em particular pela União Europeia versus uma outra leitura
onde o poder tem um papel mais central e o poder é
visto como instrumento mas também como fim, portanto é mais sobretudo ligada
à tradição da Realpolitik. Sim, nós podemos notar isso. As duas diferentes
leituras, nós podemos notar isso. Por exemplo, não é por acaso que
a União Europeia e o conjunto dos países europeus têm hesitado mais
na maneira como usa o poder e os recursos de poder em
resposta aos acontecimentos na Ucrânia, porque de facto atribui um valor diferente
a meios que não são ditos meios, digamos assim, mais diretamente de
exercício de poder, não é? Hard power, e acha que há outros
meios que pela sua natureza são moralmente superiores e devem ser utilizados
antes de mais. A tónica na negociação, no multilateralismo, É óbvio que
sim, mas em última análise também não dispensa ao poder. Na toolbox,
na caixa de ferramentas também não dispensa ao poder. Sim, sim, e
Lívia Franco
Esse é que é o risco. Absolutamente. Há na verdade todas estas
várias dimensões da
agenda,
mas nós para compreendermos a ação e a decisão no seu todo
temos também que pôr este enquadramento geral. Absolutamente. E é reativo. E
há aqui uma reação, claro. Até uma reação, digamos assim, de emergência.
É muito interessante, a Rússia tem, eu acho que historicamente, e isso
voltou a estar ainda mais marcado agora quando Putin chegou ao poder,
uma concessão que é o seguinte, a soberania é uma associação direta
entre aquilo que é o entendimento de soberania e aquilo que é
o entendimento de poder. Quer dizer, visto do ponto de vista do
direito internacional, a soberania é um atributo. A soberania não é poder,
não é? Quer dizer, por exemplo, países pequeninos que são irrelevantes do
ponto de vista poder são soberanos. Tuvalu, Vanuatu, têm o mesmo lugar
que os Estados Unidos têm, que a China tem, têm todos a
mesma soberania. Mas a concepção que a Rússia tem, que é uma
concepção com raízes históricas, é que a soberania se associa diretamente ao
poder e, portanto, Na verdade só pode ser soberano e portanto fazer
o exercício da sua soberania quem tem verdadeiramente esse poder para defender
a sua soberania. Eu acho, desconfio, enfim, estou mesmo convencida que, por
exemplo, olhando para a Ucrânia, que a Rússia pensou, e pensou assim
no final de 2014 e pensou assim em fevereiro de 2022. A
Ucrânia tem soberania, a sua soberania é reconhecida internacionalmente, mas a Ucrânia
não tem poder e nós vamos demonstrar isto e nós vamos demonstrar
que na verdade só podem ser grandes jogadores do jogo internacional. Não
é quem tem soberania, mas é quem tem soberania e é uma
grande potência. Só que, paradoxalmente, ou ironicamente, a guerra da Ucrânia parece
estar a servir para mostrar isso. Sim, que a Federação Russa é
um grande país no seu peso territorial, é um grande país do
ponto de vista, por exemplo, dos recursos energéticos que tem, mas já
não é um grande país e já não é uma grande potência
do ponto de vista operacional militar. É verdade que tem armas nucleares,
não é isso? Dá-lhe também apoio num outro patamar. Sim. Mas não
está já ao mesmo nível que os Estados Unidos e que a
China e não tem o mesmo nível de autonomia num contexto global,
já não tem o mesmo nível de resiliência e já não tem
o mesmo nível, digamos assim, de autonomia logística e operacional, acho, que
é aquilo que estes três meses nos estão a mostrar e portanto
esse enquadramento mais geral eu acho que é muito importante para nós
compreendermos o que está a acontecer.
Lívia Franco
ele o citou o quê? Preventiva no sentido de defender aquilo que
é o estatuto e os interesses da Rússia, porque se a Rússia
continuava a deixar que as coisas acontecessem, digamos assim, na sua esfera
de influência, usando a linguagem realista, ou se quiser, no seu perímetro
próximo, ou naquilo que a própria Rússia chama o estrangeiro próximo. Sim,
a Ucrânia. Sim, a Ucrânia e não só. Os países que agora
são soberanos mas são do chamado espaço pós-soviético, então a própria soberania
russa entendida como potência correria perigo também. Sim,
Lívia Franco
dá-lhe jeito que o foco seja um foco sobretudo sobre o Ocidente
e os Estados Unidos, não é? Mas a médio prazo a Rússia
também vai reagir àquilo que é a emergência da China como grande
potência global. Neste momento ainda lhe dá jeito, numa lógica estratégica, sobretudo
que haja uma relação de proximidade com a China. Mas essa relação
de proximidade com a China não é uma aliança, não é uma
estratégia de alinhamento, digamos assim, positiva. É negativa no sentido, ok, porque
é que nós agora nos aproximamos porque temos um inimigo comum? Porque
aquilo que nós queremos evitar é a mesma coisa, é que os
Estados Unidos continuem a ser uma grande potência e ter o apoio
da União Europeia. Mas a médio prazo, não tenho a menor dúvida,
de que a Rússia vai perceber, bem, que a emergência da China
também não é boa para a Rússia. Aliás, eu tenho dito isto
muito, que é... Eu acho que há mesmo risco, sobretudo quem beneficia
com isto é a China, com esta estratégia, e há mesmo risco
de nós daqui a 10 anos, 15 anos, vermos que basicamente esta
decisão da Rússia funcionou sobretudo a favor da China e que a
Rússia vai ser assim uma espécie de bielo à Rússia da China.
Eu tenho dito isto muitas vezes. Acho que há esse risco muito
claro, mas que é um risco que agora neste momento a Rússia
está disponível a correr. Eu acho que a Rússia acharia que as
coisas lhe iriam correr de outra maneira, mas não estou convencida que
as coisas efetivamente estejam a correr como ela queria e que, portanto,
na aposta que é feito nos ganhos com esta parceria estratégica negativa
com a China, que a Rússia vai conseguir ganhar a mão como
pensava. Não, quem vai ganhar a mão toda é a China e
a China é encantada.
José Maria Pimentel
bem. Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no site 45graus.parafuso.net
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contribuir diretamente ou através do Patreon. Obrigado. Já lá vamos aos efeitos
geopolíticos, o que é que pode ser o futuro, que é um
tema que é interessante explorar. Devia-se só um último aspecto em relação
à invasão que nós explorámos há bocadinho e que eu acho interessante,
que é a questão das populações russas ou russófonas na Ucrânia. Que
eu francamente não percebia ainda que papel verdadeiramente é que essas populações
têm. Ou seja, a Rússia, ou pronto, não é a Rússia, é
aquela zona da Europa, ao contrário do que acontece, ou do que
acontecia até há pouco tempo na Europa Ocidental, é etnicamente heterogênea.
Lívia Franco
Acho que é um pretexto e uma forma de legitimação da decisão,
de acordo com aquilo que é a narrativa, que é a narrativa
que está a ser partilhada, essencialmente para consumo interno, mas para também
consumo regional. Mas o ponto aqui que importa perceber é que a
Ucrânia, na verdade, é uma criação relativamente moderna, não é? Porque a
Ucrânia... Enquanto Estado. Enquanto Estado, a Ucrânia e o território da Ucrânia
foi sempre dividido entre os grandes impérios históricos da região,
quer
fosse uma parte mais do império de Habsburgo e portanto dos austro-húngares,
quer fosse o império russo propriamente, quer fosse até antes disso, historicamente,
o grande ducado da Polónia e da Lituânia, que foi um grande
potencial do século XVI e do século XVII na região. E, portanto,
o que é que acontece? Acontece, de facto, que a Ucrânia é
aquilo que Brasílis chama de facto um pivô geopolítico. Aliás, a própria
designação, O termo Ucrânia significa zona de fronteira, não é? Ucrânia é
zona de fronteira porque é exatamente uma zona de fronteira e entre,
digamos assim, várias civilizações e vários mundos e várias concessões de arranjos,
digamos assim, dos poderes fortes naquela região. Portanto, também não é por
acaso que isto acontece na Ucrânia, não é? Porque exatamente a Ucrânia
fica nessa zona de transição. Nestas últimas semanas estive a trabalhar com
os alunos, por exemplo, o argumento do Samuel Huntington do choque das
civilizações, quando ele dizia, ah, o padrão de conflito moderno vai muito
acontecer nestas zonas de transição civilizacionais, não é? Enfim, com o entendimento
mais ou menos generalista do que é civilizacional. Sendo que nós, a
consciência que temos de ter é que essas fronteiras não são fronteiras
definidas, não é? Como nós passamos de Elvas para Badajoz, ou quilómetro,
não sei quantos, tem a tabuleta a dizer, agora já entrou em
Espanha, do ponto de vista civilizacional isso não acontece. Portanto, há também
uma grande miscigenação. Pois isso tem a ver com as políticas, digamos,
administrativas dos poderes que estão, no fundo, a administrar esses territórios. Ora,
o que acontece? Isso tem manifestações politico-culturais, não é? Portanto, uma grande
parte da população dessa zona, que teve ligada à Polónia e à
Lituânia, ou que teve ligada ao Império de Habsburgo, também tem uma
visão que é uma visão, digamos assim, mais influenciada por aquilo que
foi a evolução política, a evolução técnica e a evolução intelectual, digamos
assim, do Ocidente. Mas outra parte da Ucrânia está, sobretudo, ligada àquilo
que, digamos, a experiência histórica do Império Russo, como nós sabemos, foi
muito mais tardio em certos processos. O fim do sistema da servidão,
por exemplo, que só foi para aí em 1861, ou a própria
revolução industrial que chega muito mais tarde também à Rússia. Ora, isso
tem um grande impacto sobre as populações, sobre a maneira como elas
olham também para a realidade, sobre a maneira como elas concebem o
que é que é o poder político. E depois, na verdade, na
experiência da União Soviética, nós sabemos que uma das ferramentas, digamos assim,
que o poder soviético fez foi fazer, no fundo, esse baralhar e
tornar a dar das populações. E, portanto, o que acontece é que
depois, com a implosão da União Soviética e a emergência destes Estados
pós-soviéticos, quer dizer, estes territórios pós-soviéticos, em particular Isso é notório na
Ucrânia e há alguns dos países, no caso aqui estão também, há
alguns dos países bálticos que há umas fortes minorias russas, russófonas e
russas nesses países, o que também complica de facto a dimensão da
política interna nesses novos territórios. E é verdade, também não podemos dizer
que Evo não esteve isento de alguma responsabilidade. Porque quer dizer, quando,
por exemplo, maiorias tão fortes, como é a maioria russófona, em zonas
regionais muito específicas da Ucrânia, nomeadamente estas zonas ligadas ao leste e
ao sul. Quer dizer, se também não se contemplam algumas... Por exemplo,
o reconhecimento disso mesmo, de que essas minorias têm um papel, apesar
de um papel importante em algumas zonas e que a língua russa
deve merecer de facto algum reconhecimento como sendo a língua maioritariamente falada
nessas regiões. Quer dizer, então isso também é perigoso porque nós sabemos
que uma democracia entendida no sentido liberal, a resposta que dá a
essas diferenças, estou a pensar, por exemplo, no caso britânico, é também
reconhecer exatamente essas diferenças, não é? Claro que há sempre riscos, porque
a democracia liberal também não traz uma solução perfeita para essas questões,
mas tem que dar voz e dar reconhecimento a essas minorias. E
é verdade que Kiev também teve algumas dificuldades em fazer isso. Eu
acho interessante
Lívia Franco
escoceses a certa altura, há pouco tempo, quiseram fazer o referendo, porque
é que continuam a falar, quer em segundo, ou a questão da
Catalunha, não é? Porque se mesmo as democracias consolidadas têm essa dificuldade
nessa gestão, não é? Bem, então países destes que estão no início
das suas transições democráticas, são processos históricos muito recentes, essas coisas ainda
são muito mais complexas. Mas já agora, José Marissa, então também interessa
nós pensarmos prospetivamente como Nós não sabemos exatamente o que é que
vai acontecer, mas é evidente que pensar numa Ucrânia com um futuro
político de independência, de autonomia e democracia é pensar também no que
é que vai acontecer a essas populações russófonas que estão na
José Maria Pimentel
Ucrânia. Sim, sim, sim. E isso é o ponto que eu queria
perguntar, que é, nós, ao dia que estamos a gravar isto, passaram
um pouco mais de três meses desde o início da guerra. A
guerra não terminou, a gente sabe, mas acho que já acentuou talvez
suficientemente a poeira para nós conseguimos ter uma ideia de qual pode
ser o resultado final. E o resultado final pode ser uma derrota
total da Rússia sem quaisquer cedências ou até pode ser no outro
extremo uma vitória em Rússia e uma cedência grandes da Ucrânia, que
provavelmente não é nenhum destes extremos. Qual é que é o cenário
mais provável que nós podemos conjeturar hoje? A Rússia continua a ser
um Estado de paria, há excedências, que excedências é que há, territoriais,
diplomáticas…
Lívia Franco
Esse exercício de construir cenários é um exercício que é sempre útil
e que ajuda, por exemplo, às decisões políticas e ajuda para quem
faz análise política e de facto há uma série de cenários que
nós podemos pensar, sei lá, estou a pensar em pelo menos 4,
5 cenários, mas que são cenários que na maior parte dos casos
de facto são essencialmente uma dimensão teórica ou se quiser desager, uma
vitória total da Ucrânia, uma vitória total da Rússia, deixar que a
situação se prolongue do tipo daquilo que foi, mas já não em
tão baixa intensidade, quer dizer, numa intensidade conflituosa maior, mas daquilo que
aconteceu de 2014 até 2022. Ou não, ou de facto arranjar aqui
cenários de algum compromisso. Eu também acho que me inclinaria mais para
uma lógica de compromisso. Agora, mesmo
Lívia Franco
coisa chata. Pois, sim, não, e sobretudo não sei fazer previsões, mas
podemos aqui construir cenários, não é? Que possam ser um bocadinho mais
plausíveis. Eu inclino mais para um cenário de compromisso. A dificuldade do
exercício é esta, muitas vezes quando nós queremos aplicar aqui uma certa
lógica, uma certa racionalidade, nós temos tendência a fazer com que essa
racionalidade parte daquilo que para nós são as expectativas que nós consideramos
as melhores.
Então,
Tendo feito este disclaimer, para quem está a ouvir, vou avançar. Quer
dizer, está sempre ligado, mas vou avançar. Pronto, está feito o aviso.
Vou avançar. Quer dizer, se o bem maior que nós podemos pretender
num cenário de futuro é trazer alguma estabilidade àquela região e assegurar
uma arquitetura de segurança europeia que funcione durante tempo considerável e de
alguma maneira, quer dizer, numa lógica macro, confirmar esta transição para uma
distribuição bipolar sem humilhar a Rússia, então eu direi que tem mesmo
de haver compromissos de ambas as partes. Agora, eu acho que há
limites claros que têm que ser postos sobre a mesa, na mesa
das negociações. Primeiro é, eu acho que tem que ser muito claro
que os limites é, Primeiro, respeito ao direito internacional, quer dizer, temos
que continuar a defender que as agendas revisionistas do ponto de vista
territorial, sobretudo quando o revisionismo é feito através da força por grandes
potências, é ilegal. Este é o primeiro. Segundo, que também não se
pode usar... Um certo tipo de armas não podem ser usadas. Nós
não sabemos também o que é que ainda vai acontecer, não é?
E não está completamente fora do cenário a possibilidade de virem a
ser usadas armas, por exemplo, armas químicas ou armas nucleares, sobretudo do
ponto de vista teatro, não é? De alcance intermédio. Mas quer dizer,
isso tem que ficar muito claro que isso não pode ser uma
opção. A segunda opção, não é a segunda opção, a segunda preocupação,
o segundo princípio, acho que a história também nos mostra que não
é bom humilhar o derrotado ou nenhum dos interlocutores. Portanto, se for
a Ucrânia derrotada, que juro que vai ser difícil que o Ocidente
não vai deixar, nunca pode ser derrotada humilhada, quer dizer, não pode
desaparecer, não é? Quer dizer, não se pode pôr em Kiev um
governo fantoche favorável, quer dizer, não é favorável, é fantoche de Moscovo,
mas o mesmo também não pode acontecer, não é? Digo eu, para
um cenário destes, que me parece a mim o mais razoável. Podia
ser perigoso a prazo, não é? Pronto, ou seja, a Rússia não
deve ser humilhada. Não humilhar a Rússia quer dizer não impor limites
à Rússia? Não, não é a mesma coisa. Porque sim, eu acho
que devem ser impostos de limites à Rússia, mas esses limites não
devem ser, para já não devem ser impostos, devem, ou pelo menos
formal e aparentemente aparecer como negociados. E que significa o quê? Significa
exatamente isto. Daqui para a frente, estes países são efetivamente países independentes,
são países soberanos e a soberania significa, em última análise, poder escolher
as alianças a que nós queremos pertencer. E então aqui eu já
vou introduzir um outro elemento que é não aceitar, por exemplo, que
processos como seja o processo de alargamento da NATO ou o processo
de alargamento da União Europeia sejam vistos como expansão, porque a linguagem
não é neutra. Mas como é que se faz isso? O que
se faz isso é dizer, por exemplo, por moratórias, ou pode dizer
durante não sei quanto tempo, isso pode não acontecer. Tecnicamente a diplomacia
tem sempre imensos meios, quer dizer, um acordo deste pode ter uma
parte definitiva e uma parte provisória e dizer ok, nos próximos 25
anos, ou seja, isso já permitia, digamos assim, uma aceitação de coisas
que podiam ser, se não houvesse esta possibilidade intermédia, que seria um
perder de face para Kiev ou para Moscou. Dizer assim, não é
a neutralização da Ucrânia, mas é, durante 25 anos a Ucrânia não
pode entrar na NATO, ou isso serve para a Rússia, não é?
Não é a satelização que a Rússia faz da Ucrânia dizendo, não,
não, a vossa soberania não é completa, é assim uma espécie de
finlandização imposta, vocês não podem aderir, não é? Mas é dizer, durante
25 anos isso não pode ser em benefício do quê? De uma
lógica de estabilização, pronto, porque os acordos podem ter essas componentes transitórias.
É interessante, sim. Podemos pensar, obviamente, em elementos desses que são elementos,
de facto, transitórios. Depois é tentar atribuir num tratado de paz um
lugar à Rússia correspondente efetivamente ao peso que a Rússia tem naquilo
que é a arquitetura de segurança europeia. Não há dúvida nenhuma, basta
olhar para o mapa outra vez e vermos como é que é
possível existir uma segurança na Europa, uma estabilidade, digamos assim, securitária na
Europa, sem a Rússia. Não é possível. Portanto, aí é os elementos
de realismo que temos mesmo que introduzir, não é?
Lívia Franco
Na prática é reconhecer que a Rússia tem que ter um protagonismo.
Agora, o protagonismo não é à medida, digamos assim, das intenções da
Rússia. É, por exemplo, desenvolver... De alguma maneira isso foi tentado. A
NATO criou, no pós-guerra
fria,
tentou desenvolver um órgão, que é um órgão no contexto da NATO
e um outro órgão paralelo com menos protagonismo no contexto da União
Europeia, que estabeleceu, formalizou um diálogo constante entre a NAT e a
União Europeia com a Rússia. Mas os russos acharam sempre que aquilo
era uma coisa um bocado de segunda categoria e na verdade que
era uma coisa oferecida por aquelas duas instituições e portanto isso punha
sempre a Rússia como numa situação de menorização. Provavelmente temos que arranjar
aí uma estrutura qualquer que seja de origem, para já não ligada
à experiência da Guerra Fria, não trazida da Guerra Fria. Com isto
não estou a dizer que a Nato seja posta em causa, não
é isso que
eu
estou a dizer. A Nato deve continuar a ser mentida na medida
em que os seus membros entendem que ela deve ser mentida e
na medida em que ela tem candidatos para aderirem à própria Nato.
Quer dizer, então aqui a lógica é essa, porque é que a
NATO está a desaparecer? Se os países veem esta aliança como sendo
indispensável e mais, e há outros países que não são membros que
querem pertencer. Não é isso que eu estou a dizer. O que
eu estou a dizer, por exemplo, é criar uma certa estrutura, Eu
acho que nesse sentido a OSCE, a OSCE podia ter tido esse
papel, mas na verdade acabou por ser um papel muitíssimo redutor, porque
também ela está ligada à experiência da Guerra Fria, não é? Criada
na Conferência de Helsinque em 1975, Uma coisa nova pós-Guerra Fria que
introduz, de facto, algumas lógicas, algumas regras, nomeadamente de diálogo e de
comunicação e que formalmente permita a Rússia pensar que tem ali um
fórum que não é um fórum informado nem pelas estruturas euroatlânticas nem
pela experiência da própria Guerra Fria. Não sei, os diplomatas têm imensa
imaginação nestas coisas. Vamos lá ver. Não é dar por adquirido que
isso não é possível.
Lívia Franco
encontrar círculos. E aliás, e aqui também os interlocutores russos e os
diplomatas russos também têm que trazer ideias. E eu acho que tem
que haver essa abertura. Mas num
equilíbrio...
Zé Maria, deixa-me só dizer mais uma coisa que me parece a
mim muito importante, que é, eu estive aqui a falar do Ocidente,
estive aqui a falar da Rússia, mas há aqui um outro aspecto
que me parece a mim muito importante para uma paz que seja
uma paz que tenha pés para andar e que possa ter um
potencial de estabilidade mais ou menos duradouro, que é ter em conta
também aquilo que é a opinião dos ucranianos face aos custos do
esforço de guerra que a guerra está a pedir aos ucranianos. Há
milhares de mortos ucranianos. Nós não temos falado muito sobre isso, mas
há milhares de mortos ucranianos. Milhões de ucranianos que tiveram que ser
deslocados e mais e refugiados. E a destruição do país, das estruturas
produtivas, económicas, industriais, cidades e cidades. Quer dizer, isso significa
que esse custo
tem que ser contabilizado numa paz. Portanto, a paz não é apenas
o que a Rússia quer, o que as estruturas euroatlânticas querem. Não,
não. A paz também tem que ser aquilo que a opinião pública
ucraniana acha que é razoável, tendo em vista o custo essencial da
guerra, que é sobre os próprios ucranianos. Arranjar, bem, aqui são as
más notícias, ou as notícias que são mais duras de digerir é
arranjar um equilíbrio sobre essas três coisas, que a Ucrânia possa verdadeiramente
um dia ser um país livre e independente e que possa ser
assegurada a estabilidade na Europa, que a Rússia não se sinta humilhada
e sinta que a sua voz também se ouve, mas também que
os ucranianos compreendam e consigam ver reconhecidos o preço que os ucranianos
pagaram por aquilo que é de facto esta discussão do pós-pós-guerra fria
na Europa, isso tudo tem que ficar consagrado num tratado de paz.
É fácil… Incluindo reparações, por exemplo? Pois quem sabe, mas as reparações
também podem ser para os dois lados, não é? Também a pergunta
que se coloca aqui é, do ponto de vista material, como é
que nós podemos traduzir isto? Significa que provavelmente a Ucrânia vai ter
de pagar alguma coisa pela paz e pela sua independência em termos
territoriais? Talvez. Acho que é provável que vá perder a Crimea. Como
é que isso pode ser enquadrado? Também é assim, se não perder
a Crimea, como é que vai ser para Kiev gerir uma Ucrânia
num futuro onde a maioria da população na Crimeia continua a ser
russófona e no Dombáss também. Tudo isto tem que ser
Lívia Franco
também o ponto que eu quero trazer aqui é, e as populações
da região? Ou seja, aquilo que eu também estou a insistir... Eu
não estou a minorizar isso. Não, o que eu estou a insistir
aqui é que na verdade isso também não é uma discussão apenas
entre a Rússia e, sei lá, a Rússia e os grandes protagonistas
do mundo ocidental. Ou seja, o que eu estou a dizer é
que essa agenda de uma eventual paz tem que ser muito marcada
também por aquilo que é o protagonismo dos ucranianos. E os ucranianos
inclui os ucranianos pro-occidentais, por isto de uma maneira um bocado mais
binária, e os ucranianos russófonos. E aqueles que querem fazer parte da
Federação Russa e aqueles que não querem, aqueles que querem continuar a
fazer parte da Ucrânia. Claro, claro. Quer
Lívia Franco
é? Claro! Portanto, é isto tudo. Ou seja, a equação é sempre
muito mais complexa. Às vezes nós em política, eu acho que há
muito essa tendência que nós temos, ou essa inclinação, aliás isso também
se notou muito bem, por exemplo, nas várias crises que assolaram, em
particular a Europa, nos últimos 15 anos, estamos sempre à procura de
soluções que sejam soluções absolutas para a crise econômica e financeira, técnicas,
para a crise migratória, para a crise, digamos assim, das identidades, a
questão do Brexit. Mas em política, e por isso é que a
política é política, as soluções não são absolutas e não são,
Lívia Franco
Não, eu estou a dizer também no processo de negociação do que
vão ser as condições da paz. Mas essas coisas não são fáceis.
Não, está bem, mas então vamos lá ver. Nós estamos a trabalhar
sobre a realidade ou estamos a trabalhar sobre ficções? Estamos a trabalhar
sobre a realidade. Então, se é a realidade, implica olhar para as
coisas tal como elas são. Vamos olhar para o mapa. E o
mapa mostra que a Rússia é uma grande potência europeia. Portanto, não
há paz e não há estabilidade na Europa se a Rússia não
for o interlocutor. Isso significa que a agenda política seja absolutamente terminada
pelo Kremlin e pela leitura que o Kremlin faz da realidade? Claro
que não, mas ele tem de ser um partícipe. Mas significa que
seja mais do que o passado. O que eu estou a dizer
é, as linhas é, a Rússia não pode ser humilhada, claro que
não. Não pode ser humilhada agora. Isso significa que, então vamos reconhecer
que a Ucrânia não tem lugar? Claro que não também. Portanto, isto
é um processo também, não é? Mas também, mais uma vez, a
política é um processo. A política é um
Lívia Franco
Eu acho que a lógica aqui é esta lógica, aliás muitos autores
têm defendido isto, do regresso na história entendido como a constatação de
que, ao contrário daquilo que Francisco Guiama tinha dito, não chegámos mesmo
ao fim da história, sendo que o fim da história é entendido,
digamos assim, como a história tendo um devir essencialmente cosmopolita, que todos
nós já sabemos que já ninguém quer guerra, já ninguém quer tirania,
já ninguém quer pobreza. Não é verdade, não é? Quer dizer, não
sei se a história tem onde vir, desconfio que não tem em
nenhum lugar de vir, que ela também não é cíclica e que
a história é o que ela é porque ela é feita assim
também por aquilo que é a liberdade dos homens e das comunidades
humanas pelas escolhas que fazem. Bom, mas tendo feito este introito mais
ou menos ligado à filosofia política, aquilo que eu quero dizer é,
essencialmente, aquilo que nós estamos a assistir, julgo eu, é de facto
uma transição de poder, que me parece, uma transição, outra vez, para
uma configuração bipolar. E como eu há bocadinho disse, eu acho que
a Rússia está a reagir a isso também.
Lívia Franco
Mais bipolar do que multipolar. Também devo dizer isto, as configurações de
poder, numa lógica da tese, enfim, das teorias hegemónicas, não significam que
elas não possam ser híbridas, ou seja, do nível macro ser bipolar,
mas depois haver uma distribuição de potências intermedias que seja multipolar. Mas
eu acho que ela é essencialmente bipolar e, portanto, aí muitos autores
têm falado, e eu acho que a Zé Maria também já aflorou
isso, uma guerra fria. Ok, se nós entendemos a guerra fria como
uma distribuição sistémica do poder entre dois grandes polos de poder, sim,
estamos. Só que esta guerra fria é uma guerra fria diferente da
Guerra Fria que aconteceu de 1947, 45, 47 a 1989, 91. É
diferente. E porquê que é diferente? Porque aí os polos de poder
em si mesmos estabeleceram dois sistemas que eram sistemas independentes, ok? E
que eles pouco se tocavam. Ora, esta guerra fria, se nós quisermos
falar assim, porque estamos a falar de uma lógica de bipolarização, Portanto,
numa competição estratégica, para já não dizer de um conflito estratégico entre
os Estados Unidos e a China, é feita num contexto que é
um contexto de globalização, que é feito num contexto de enorme interdependência.
O que quer dizer que os sistemas já não são independentes entre
si, já não são autónomos. Portanto, a dinâmica também vai ser muito
diferente.
Lívia Franco
tinha a Guerra Fria. Porque a própria globalização, apesar de ter um
enquadramento ideológico grande, e vai haver esse confronto, eu acho, sobretudo entre
a oferta de uma ordem global, liberal
ou de uma
ordem global, por exemplo, chinesa, não é? E portanto há essa dimensão.
Na verdade, eu acho que há sobretudo um cuidado na maneira como
nós vamos usar o poder que temos num contexto que é um
contexto de grande interdependência. O chavão que agora nós usamos em relação
à globalização é o chavão da weaponização da própria globalização. Por exemplo,
nós estamos a ver isso com as canções, com a história, por
exemplo, da decisão do Swift, de excluir a Rússia do Swift. E
por isso também eu acho que a China aqui está a navegar
Muito, muito, muito bem. A minha preocupação é mesmo esta. Os ganhos
que a China está a fazer sem nós temos muito, muito essa
consciência. Quer dizer, temos essa consciência mas não temos tido tempo para
pensar muito. Aliás, não é por acaso que houve esta visita de
Biden à Ásia, não é? Ao Indo-Pacífico, porque exatamente os americanos estão
também um bocado com essa preocupação de... Mas o quadro estratégico macro
continua a ser este.
Lívia Franco
sei se precipitou. A pandemia também pode ter ajudado a precipitar. Mais
do que precipitar. Eu acho que até a pandemia precipitou mais. Sim,
sabe porquê? Porque eu acho que a pandemia nos veio mostrar de
facto como a globalização podia ser weaponized. De repente o Ocidente viu-se
com uma enorme fragilidade em responder aos efeitos da pandemia porque percebeu
que a sua interdependência com a China era até, em alguns aspectos,
muito mais dependência da China do que propriamente interdependência. Em particular os
países europeus que de repente não tinham ventiladores nem tinham capacidade industrial
para os ventiladores e que ficaram completamente dependentes da capacidade da China,
da vontade, da capacidade e da vontade da China, enviar esses ventiladores,
vender esses ventiladores ou, por exemplo, da dependência que nós tivemos de
fármacos, por exemplo, que são produzidos pelandia, não é? E que nós
não tínhamos para tratar dos doentes ou até para conseguir, por exemplo,
ter capacidade, desenvolver nossa capacidade industrial por causa das vacinas, porque precisamos
daqueles princípios ativos que não se encontram no Ocidente. Não é por
acaso também que os Estados Unidos e a Europa nos últimos anos
se têm preocupado imenso com a questão da autonomia estratégica, que na
verdade não é tanto questões de segurança mas é questões da resiliência
a todos os níveis. Portanto, eu acho que a pandemia até pôs
mais a nu isso. Mas aquilo que a invasão da Ucrânia eu
acho que veio mesmo de mostrar é não só esta weaponização desta
interdependência já está em elaboração, como além disso as potências têm as
agendas revisionistas, em particular a Rússia e a China, já não têm
qualquer problema em mostrar que as suas agendas são efetivamente revisionistas, inclusive
do ponto de vista político territorial. A Rússia mostrou isso em 24
de Fevereiro de 2022. O Biden agora estava na Ásia e disse,
ah pois, se a China responder pela invasão de Taiwan, ou seja,
nós temos de responder, claro que nós temos de responder.
Lívia Franco
O raciocínio, a deliberação, a maneira como os chineses, como Pequim, pensa,
vê, age sobre a política internacional é muito diferente da russa, até
porque a experiência moderna da China e da Rússia são substancialmente diferentes.
Portanto, eu acho que nós não podemos tirar eleições imediatas daquilo que
foi o modo de liberação do Kremlin e aplicá-lo e dizendo, ah,
por causa disso e porque é também uma potência emergente e revisionista
a China vai fazer. Não, eu acho que a China tem uma
capacidade de paciência estratégica que é completamente diferente e sobretudo eu acho
que neste momento não há uma resposta direta a essa pergunta porque
eu acho que a própria China e porque ainda está a ver
como é que as coisas param. Agora, se há uma agenda revisionista
desse ponto de vista, isso há, claro que essa agenda existe. Se
perguntem, mas os chineses têm essa agenda revisionista? Têm. E os chineses
estão a equacionar, efetivar essa agenda revisionista? Já estão, nos mares do
sul da China já estão a fazer, mas em particular em relação
a Taiwan, eu acho que estão a ver como é que... Se
Lívia Franco
eu acho que essa ambivalência se notou bem nas votações... Na ONU.
Na ONU, não é? Em particular, se notou bem na votação relativa
à decisão de suspender a pertença da Rússia ao Conselho de Direitos
Humanos. Mas mais uma vez, a lógica que eu digo aqui é,
eu acho que para esses países, sobretudo, as chamadas grandes potências emergentes,
essa ambivalência traz-lhes neste momento vantagens. E portanto, a tendência é tentar
manter o mais possível essa ambivalência. Portanto, mais uma vez aqui também,
eu direi que a nossa análise não se deve concentrar em aplicar
uma grade de leitura binária, ou estão com aqueles ou estão com
aqueloutos, mas perceber que também há do ponto de vista da política
internacional esta possibilidade da ambivalência, que muitas vezes a ambivalência é a
opção que estrategicamente funciona melhor. E para essas grandes países, na América
Latina, nondico e na Ásia, neste momento eu acho que ela está
a funcionar bem. Outra coisa é dizer, E neste contexto da crescente
bipolarização não vai haver um momento… Aliás, a própria Europa também tem
um bocado essa ambivalência, vamos lá ver. Se calhar não tanto nas
votações em contexto das Nações Unidas relativamente à Rússia, mas tem tido
uma grande ambivalência naquilo que são também as relações que têm desenvolvido
com a China.
Lívia Franco
E com a Rússia também, igual, por exemplo, a Alemanha, não é?
Sim, sim. Mas também, quer dizer, os países europeus, muitos estudos de
opinião que têm sido feitos, a opinião pública europeia sobre, ah, na
possibilidade de que esta competição estratégica entre os Estados Unidos e a
China venha a tornar-se mesmo num conflito, de que lado é que
estaria? E há sempre três opções, mais do lado dos Estados Unidos,
nós estamos com eles na NATO, não é? É a nossa aliança
estratégica. Do lado da China, com quem nós não temos nenhuma aliança
estratégica, mas temos uma grande interdependência económica e comercial ou neutros, a
grande, grande, grande maioria da opinião pública europeia é favorável à neutralidade,
que não deixa de ser uma ambivalência. Pertencemos à NATO, todos os
países europeus da Europa, dito ocidental, pertencem à NATO. Como é que
é possível existir esta neutralidade, esta ambivalência? Portanto, eu acho que essa
ambivalência existe em geral e é também um meio que de facto
tem sido muito usado, mas que eu acho que à medida que
se vai introduzindo um elemento de rigidificação nesta bipolarização, e a tendência
a isso acontecer, vai haver menos espaço de manobra para essa ambivalência
e a certa altura eu acho que essas grandes potências, inclusive é
também a União Europeia, a União Europeia agora já está a ser
mais clara, não é? Na posição que está a escolher. E isso
também, eu acho que agrada muito e descansa as lideranças americanas, quer
aquelas que estão, quer aquelas que acabaram de estar, quer aquelas que
eventualmente virão, mas vai haver a certa altura que vão ter que
escolher.
Lívia Franco
mas isso também era o que nós estávamos a dizer quando estávamos
a falar sobre a arquitetura de segurança europeia, a dizer, ah, pois
é, mas a geografia está lá. Bem, é verdade, a geografia também
está lá. Mas isso então leva-nos a outra questão, que é a
questão, digamos assim, mais filosófica de saber. Mas é verdadeiramente possível existir
uma ordem internacional? Porque muitas vezes, e isso também eu acho que
é um aviso à navegação, muitas vezes quando nós estamos a falar
sobre política internacional, a pensar, a discutir os processos e os fenómenos
da política internacional, nós estamos a pensar na política internacional um bocado
como se pensa sobre política a nível interno. Só que nós não
nos podemos esquecer que o pano de fundo onde ocorre a política
internacional é completamente diferente, não há nenhum contrato social. Quer dizer, é
basicamente um contexto, digamos assim, de anarquia, não é? E de poderes
que são funcionalmente equivalentes, mas que são muito diferentes do ponto de
vista da sua capacidade. Pronto, então é para dizer isso, não é?
É
para dizer...
Sim, sim, sim. Então, ok, em última análise, se nós queremos chegar
a essa grande reflexão, que é a reflexão de mas é possível
uma ordem internacional? Isto
Lívia Franco
O ponto é esse que eu estou aqui a querer dizer desde
o princípio. Mas nesta situação é particularmente… Bem, se é neutro, então
é… não sei, a vida humana, se é neutra, então, bom, não
é neutra. O ponto que eu quero dizer é, parece-me a mim
que o princípio razoável é que os países independentes tenham a liberdade,
antes de mais, de estabelecer os relacionamentos que acham que devem estabelecer
e, em particular, os mais importantes que são entrar nas alianças a
que devem querer pertencer, não é? Quer dizer, vamos lá ver, não
é os Estados Unidos, não é Washington nem Bruxelas que estão a
fazer uma pressão enorme sobre Helsinqui e sobre Estocolmo para virem aderir
à Nato, são estes países que, faço ao que aconteceu em 24
de Fevereiro de 2022, vieram pedir para entrar. Ok? Pronto. Parece-me que
este ponto também é um ponto aqui que é muito, muito, muito
importante sublinhar. Porque eu acho que também há uma certa mistificação em
relação a essa questão de dizer que horror, a NATO está mesmo
a avançar. A NATO é uma aliança defensiva, a NATO não é
uma aliança ofensiva. A NATO é uma aliança de um conjunto de
países que se comprometem a proteger uns aos outros, de preferência de
modos pacíficos, dizendo que essencialmente o artigo 5º, que é o tal
cláusula de assistência mútua, serve para isto, para dissuadir os outros de
nos atacarem. A lógica principal é a lógica da dissuasão. Quer dizer,
porquê é que nós fazemos esta aliança? Para convencer os outros de
que não é nada bom atacar-nos. É por isso. Ora, é normal
que os países possam fazer esta escolha versus uma outra escolha de
estarem sozinhos ou de andarem constantemente cheios de medo de que sejam
atacados ou ter que estar preocupados constantemente em atacar
Lívia Franco
Sim. Bom, então, julgo que ainda não está publicado em Portugal, não
sei se vai haver alguma tradução, na sua versão original, que é
uma edição, portanto, americana, chama-se Putin's World, o mundo de Putin, e
tem o subtítulo Russia against the West and with the rest. A
Rússia contra o Ocidente e com o resto do mundo, que aliás
tem muito a ver com
Lívia Franco
a falar. E, portanto, é no fundo tentar compreender a proposta deste
estudo, que é fruto de uma longa carreira de ensino de Angela
Stent, que é uma professora de estudos russos e euroasiáticos na Universidade
de Georgetown. É o produto da reflexão que ela desenvolveu durante larguíssimas
décadas, quatro décadas de carreira, digamos, de ensino, portanto carreira académica, mas
também ela teve também uma experiência de policymaking, não é? Portanto, foi
assessora e colaboradora em algumas das administrações norte-americanas e portanto não é
apenas pensamento que vem da Torre de Marfim, que eu reconheço que
tem sempre limites, mas também de quem de facto ajudou a deliberar
e a tomar decisões. E alguém que conhece muito bem a Rússia
por dentro e que trabalha exatamente sobre a tal narrativa e a
tal leitura e sobretudo esta visão que a Rússia tem sobre si
própria e sobre o resto do mundo. O que compreendo o tal
subtítulo que é um subtítulo que aparece aqui muito nessa lógica a
partir do Kremlin que é a Rússia de facto contra o Ocidente
e com o resto do mundo. Eu acho que é uma reflexão
de grande folgo, uma reflexão de quem vem há mais de 40
anos a trabalhar, mais até de 40 anos, a trabalhar sobre estas
matérias, a refletir, a ensinar, a discutir e a participar em processos
deliberativos do ponto de vista policy e com grandes conversas com grandes
interlocutores, inclusive é russos também, não é? Grandes especialistas e que eu
acho que nos ajuda a compreender muito bem estas várias dimensões que
nós fomos aflorando aqui na nossa conversa. E o livro é de
2019? O livro foi publicado em 2019, tem uma enorme atualidade. Aliás,
ele foi publicado, não tenho a certeza qual é o mês, mas
foi publicado pouco antes da pandemia. Aliás, esta edição que eu tenho,
por acaso, é até 2020, mas poucos meses antes da pandemia cair.
Portanto, nós sabemos que a pandemia também introduziu aí algum elemento, digamos
assim, de stand-by do ponto de vista da produção científica. Portanto, para
dizer que coisas atuais e com a qualidade que este livro tem
ainda não começaram a aparecer muito. Acho que vai haver aí com
certeza uma avalanche de coisas, não tarda nada, mas ainda não começaram
a aparecer e portanto eu recomendo absolutamente a