#123 Lívia Franco - Que nova Ordem Mundial podemos esperar no pós guerra da Ucrânia?

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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45 Graus. Desde a invasão da Ucrânia, no dia 24 de Fevereiro, que a guerra tem dominado a discussão no espaço público. Tenho, porém, hesitado em trazer um tema tão volátil ao 45 graus, tendo em conta um dos princípios do podcast. Que cada episódio seja o mais pre-ano possível. Ou seja, que cada episódio perca o mínimo possível se for ouvido daqui a um, dois ou mesmo cinco anos. E no entanto, a verdade é que este é um tema incontornável e um evento que, qualquer que venha a ser o desfecho, veio a alterar a ordem mundial de maneira irreversível. E imprevisível também? Provavelmente sim, no início da guerra, que apanhou quase todos de surpresa. Mas agora que já passam 3 meses do início da invasão. Numa altura em que começam a ficar claras as posições da Rússia, da Ucrânia e do Ocidente e de outros países importantes como a China ou andia, achei que era a altura certa para finalmente trazer este tema ao podcast, focando sobretudo nas implicações geopolíticas da guerra e no que ela implica para o futuro da ordem mundial. Para este tipo de conversa dificilmente poderia escolher melhor convidada do que Lívia Franco. A convidada é professora e investigadora no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica e é investigadora associada do European Centre for Foreign Relations, um think tank paneuropeu. A investigação da convidada dedica-se a várias áreas da política internacional, com especial foco na política europeia e em questões de democracia, segurança e defesa. Nesta conversa com Lívia Franco, aprofundámos três aspectos essenciais para compreender a guerra e as suas implicações geopolíticas. Primeiro, o início de tudo. As motivações da Rússia para a invasão. Eu sei que este tema pode parecer pisado e repisado, mas a verdade é que é mais complexo do que te nos parece, dá análise muitas vezes apressada das televisões. E por isso vale a pena aprofundá-lo com a calma e a profundidade que só um podcast proporciona. Porque a verdade é que as motivações russas são, como não poderia deixar de ser, várias, complexas e intrincadas. Por exemplo, É claro que há quem veja na invasão simplesmente a loucura de um déspota, isolado pela pandemia, que vê neonazis em todo lado. Mas essa explicação necessariamente é curta. E quando tentamos procurar outras causas, encontramos várias. Já todos vimos a invasão ser descrita como a vontade de Putin em recuperar o território da antiga URSS, mas também há quem diga que é uma reação, em certo sentido legítima, à ameaça trazida pela suposta intenção antiga da NATO de expandir ao leste da Europa. Por outro lado, há quem diga que a preocupação da cúpula russa não está tanto no território ou estritamente na ameaça bélica, mas sobretudo com a aproximação que tem havido nos últimos anos dos governos e da política ucraniana em geral na direção do Ocidente e das democracias liberais. Por outro lado ainda, há quem sugira, como faz a convidada durante a conversa, que a invasão da Ucrânia teve também a intenção de afirmar o poder russo num mundo que está rapidamente a convergir para um modelo dominado por dois polos, os Estados Unidos e a China. Há por isso várias explicações possíveis, provavelmente todas elas um pouco verdade e sobretudo relacionadas entre si, para este estado de coisas e vale a pena conhecê-las melhor. O segundo aspecto que discutimos na conversa é o passo seguinte. Qual poderá ser o desfecho da guerra? Nesta altura parece quase certo que nem a Rússia nem a Ucrânia irão poder cantar vitória e que o desfecho terá de decorrer pela via negocial. E aí chegados, que cedências, que compromissos poderão estar em cima da mesa? O que poderá ser aceitável para ambos os lados e, desejavelmente, ao mesmo tempo, devolver ao mundo alguma estabilidade geopolítica? E finalmente, o terceiro tópico que discutimos é o mais importante de todos. Que implicações terá esta guerra na ordem mundial? A convidada lembra a certo ponto a famosa tese do cientista político norte-americano Francis Fukuyama, desenvolvida no livro O Fim da História, que este publicou em 1992. Segundo esta tese, a queda da União Soviética, que acabava de ocorrer, e com ela o fim do modelo comunista, trazia consigo a inevitabilidade da convergência do mundo para a ordem liberal do modelo ocidental. Ou seja, democracia, economia do mercado, defesa dos direitos humanos, respeito pela integridade territorial dos Estados e da autodeterminação dos povos. No meu livro eu falo desta tese para mostrar que ela era demasiado otimista no que diz respeito à suposta superioridade prática do modelo democrático, o que tem ficado evidente, sobretudo nos países ocidentais, com o crescimento eleitoral dos movimentos populistas. Nesta conversa com Lívia Franco, a convidada remete também para a tese de Fukuyama, mas para assinalar o modo como ela estava errada também na sua vertente geopolítica, uma vez que apesar do suposto peso das instituições multilaterais no mundo de hoje, como por exemplo a ONU, e mesmo do grau de integração da economia mundial, a invasão da Ucrânia provou que ainda é possível a líderes autocráticos usar o seu poder e a capacidade de acicatar sentimentos nacionalistas entre a população para invadir outros países, desrespeitando esses princípios, sem que seja possível impedi-los. A invasão da Ucrânia veio assim mostrar que a expectativa implícita na tese de Fukuyama era ingénua. E ao mesmo tempo forçou os outros países mundiais, sobretudo aqueles com mais peso geopolítico, a porem as cartas na mesa, ou contra a Rússia, como fizeram a generalidade dos países ocidentais, ou a favor desta. Ou pelo menos assumindo uma postura ambígua, como têm tentado fazer países como andia ou a China. Aliás, o retrato que tem emergido é menos harmonioso do que possa parecer aos olhos ocidentais porque nem todos os países, sobretudo quanto mais afastados estiverem da Europa, estão dispostos a alinhar na postura de condenação absoluta ao regime de Putin que tem efeito a maioria dos países ocidentais. Seja como for, o que parece hoje quase certo é que a invasão da Ucrânia irá provocar uma alteração da ordem mundial. Mas para onde? O que é que vai mudar exatamente? A convidada tem aqui, como vão ver, uma tese provocadora. Segundo ela, a ação da Rússia, em vez de lhe conceder, como pretendia Putin, um peso maior na arena mundial, pode, pelo contrário, ter precipitado a tendência que vinha de trás da emergência do mundo bipolar dividido entre um polo dominado pelos Estados Unidos de um lado e do outro um polo dominado pela China. Deixo-vos então com esta conversa com Lívia Franco. Não sei antes, como de costume, agradecer aos novos mecenas do podcast, Rui Teixeira, Sara Spencer, Miguel Cabral, Tomás Lucena e Teresa Melville de Araújo. Obrigado a todos e até ao próximo episódio. Lívia, muito bem-vinda a esta humilde casa. Obrigada, estou com muito gosto aqui. Eu queria começar por falar de um assunto que já está, quer dizer, podemos achar que ele já está repisado, mas eu acho que ainda tem algumas coisas a dizer, que é o início da guerra, quer dizer, a invasão. Parece mais ou menos evidente, acho, a toda a gente que Putin fez um erro de cálculo, isso parece mais ou menos evidente. O que eu acho ainda, apesar de tudo, interessante perceber é porquê que ocorreu esse erro de cálculo. Que motivações é que ele tinha que ser inaugurado? Há aspectos que parecem mais ou menos incontestáveis, que o exército não era tão bom como parecia ser, pelo menos na prática não funcionou assim tão bem. Parece também que ele contava com uma desunião e inoperância do Ocidente, que depois acabou por não acontecer, ou por acontecer justamente o contrário. O que é que aconteceu mais? O que é que nós conseguimos perceber que estava na cabeça dele, ou da cúpula do regime? Às vezes a pessoa também personaliza isso, não é necessariamente o...
Lívia Franco
Não, mas eu acho que no caso específico deste regime deve ser personalizado, absolutamente. Aliás, há uma certa multidivisão. Acho que é ele com os seus colaboradores mais diretos, em particular os ideólogos e teóricos do regime. Acho que sim, acho que é um regime absolutamente personalizado e portanto acho que aqui neste caso Deve mesmo ser aplicada essa lente. Sim,
José Maria Pimentel
sim. Mas o que é que falhou?
Lívia Franco
Eu não tenho a certeza se concordo com essa leitura de erro de cálculo.
José Maria Pimentel
Ah, bom, então mais interessante ainda. Sim,
Lívia Franco
não, eu direi que a um certo nível operacional aconteceu e é evidente. E, portanto, essa leitura mais operacional tem a ver com o facto de que Putin e os grandes decisores, que trabalham com ele diretamente, políticos e militares, evidentemente trabalharam sobre a expectativa de que as Forças Armadas Russas iriam ter uma eficácia no teatro de operações, que não aconteceu. E não aconteceu a vários níveis. Não aconteceu do ponto de vista logístico. Não aconteceu do ponto de vista, digamos assim, da cadeia de comando, não aconteceu também do ponto de vista da operacionalidade do equipamento militar. E eu acho que nós... Isso foi uma surpresa também para o Ocidente, acho que foi uma surpresa para Moscou, para o Kremlin, acho que foi uma surpresa para o Ocidente e acho que a explicação encontra-se principalmente na natureza do próprio regime. Por um lado, Porque quando os regimes são altamente centralizados têm falta de informação que vem da periferia sobre efetivamente o estado das coisas, do comando, das chefias militares, mas também digamos assim dos procedimentos logísticos e da situação em que se encontra o equipamento militar, mas também porque, quer dizer, do ponto de vista político se trabalham mais sobre convicções ideológicas ou políticas construídas do que efetivamente sobre o feedback que vem da realidade. Digamos assim, os sistemas que são funcionais são sistemas que enviam informação nos dois sentidos e o caso do sistema russo, por ser altamente centralizado e autoritário, ele já é desfuncional. Pronto, acho que isso aconteceu. E também acho que, quer dizer, isso está associado depois a uma outra questão que eu acho que também tem a ver com os sistemas de centralização e mais numa dimensão econômica, que é o facto desta economia ser uma economia altamente oligárquica e centralizada também cria sempre necessariamente, e nós temos muitos exemplos históricos de como isso aconteceu em outras situações, mas em sistemas organizados da mesma maneira, uma economia paralela, muito que funciona numa lógica, digamos assim, da corrupção. Portanto, aquilo que nós também fomos tendo indicações ao longo destes meses é que, por exemplo, do ponto de vista da cadeia logística ou do ponto de vista do equipamento militar, as coisas não funcionaram bem porque peças desapareceram, foram entretanto vendidas num mercado negro, não é? Porque têm um determinado valor, porque é tal história da economia paralela. Ou seja, não foi surpreendente para o Krémlin não estar avisado disso, porque isso acho que é as consequências e a natureza do regime para o próprio regime. Acho que há alguma surpresa do ponto de vista da leitura que o Ocidente faz, em particular os sistemas de informação, como por exemplo os norte-americanos, os britânicos, como é que não tinham essa informação de maneira assim tão evidente? Porque agora, vistas à posteriori, era mais ou menos evidente que isto iria acontecer. Portanto, eu acho que sim, aí podemos encontrar um erro de cálculo.
José Maria Pimentel
Mas é prático?
Lívia Franco
É funcional, é operacional e funcional. Não acho que seja um erro de cálculo do ponto de vista político. Porque, quer dizer, do ponto de vista da narrativa, Não vejo que isso fosse um erro de cálculo. Podia, se calhar, pensar-se que é um erro na maneira como esta narrativa corresponde à realidade. Mas isso não é um erro de cálculo. Quer dizer, ou seja, a guerra da Ucrânia, A Operação Especial da Rússia na Ucrânia, e eu estou a fazer de propósito dar-lhe estes dois nomes, na verdade explica-se precisamente pela discrepância entre duas leituras que são feitas sobre A mesma realidade. Uma leitura que nós podemos dizer que é uma leitura essencialmente ocidental e partilhada por uma Ucrânia que se vê si própria como no caminho de uma transição e de uma consolidação democrática e, portanto, para efetivar mesmo aquilo que é a sua independência, que já foi formalizada no direito internacional em 1991, mas que na vida política nós sabemos que ainda não era, não estava completa, não é? Aliás, com vários momentos, não é? Em 2005 a Revolução Laranja mostra exatamente isso, que é esse caminho que está a ser feito. Em 2013, com a chamada Revolta do Euromaidan, era também a continuação do mesmo processo e eu acho que agora, manifestamente, esta reação, que foi inesperada para quem partilha de outra leitura sobre o que é que está a acontecer na Ucrânia e qual é o apoio que o Ocidente estava a dar à Ucrânia, só, quer dizer, desse olhar que não partilha da mesma leitura, que de facto pode achar que isto é estranho, uma novidade e incompreensível. Portanto, eu não acho que seja um erro de cálculo, acho que é mais porque a leitura que é feita de Moscovo do lugar em que os ucranianos, não tanto a Ucrânia, mas os ucranianos e a maioria dos ucranianos se encontravam em 2013 e agora em 2022, era uma leitura que era criada. Bem, todas as narrativas políticas são criadas, nós temos que sempre, quando trabalhamos na área da ciência política, temos que trabalhar exatamente sobre isso. E, portanto, qual é a leitura que Moscouf tinha? Bem, a leitura que Moscouf tinha era esta leitura de que, quer dizer, a Ucrânia é uma construção. Em parte, até, Putin diz isso muito bem num discurso que faz nas versões de invasão, que era uma construção sobre a qual, aliás, a própria União Soviética tinha tido grande responsabilidade em construir a Ucrânia. Historicamente, no fundo é esta a visão do Kremlin e da liderança, a Ucrânia não existe enquanto Estado-nação, é uma construção, é uma construção moderna e é uma construção desmentida pela própria história, por um lado, desmentida pela geopolítica e desmentida também por um olhar, digamos assim, civilizacional. Isto é para dizer o quê? Que esta tal leitura, que é a leitura sobre a qual os decisores do Kremlin trabalham, é uma leitura que tem uma série de componentes, nos quais eles acreditam de modo convicto. Atenção, a leitura Vista do Ocidente também tem uma série de componentes na qual quem partilha dessa leitura também
José Maria Pimentel
acredita. Sim, mas essa nós conhecemos.
Lívia Franco
Pronto, outra coisa é, digamos, da adequação dessa narrativa e dessa leitura com aquilo que são os elementos da realidade. E podemos dizer que neste momento não é tanto um erro de cálculo, mas é uma maior desadequação dessa leitura sobre realidade, sobre o lugar, sobre a existência da própria Ucrânia. Portanto, como é que a Ucrânia ia reagir da parte de Moscouvo comparativamente à leitura que é feita do outro lado.
José Maria Pimentel
Ainda bem que falou disso, que era exatamente aí que eu queria ir. E essa distinção é interessante. No fundo, há aqui erros que nós podemos apontar, que são mais ou menos óbvios, mas são erros de ordem prática, que têm a ver com, lá está, com a eficácia do exército, com por outro lado a eficácia do exército ucraniano, com a união da população, com a reação do ocidente. Tudo isto são mais ou menos imponderáveis. Mas depois há outro aspecto que eu acho interessante, ainda bem que levou a conversa para aí, que era exatamente a minha ideia, que é a parte estratégica. E eu acho que Há uma distinção que eu tenho muita curiosidade em perceber entre, se quisermos, o lado emocional e o lado estritamente estratégico. Porque essa narrativa que vem do Kremlin e até aquele ensaio muito conhecido do Putin sobre a história, sobre a visão do State Town disponível
Lívia Franco
online, porém, não é? Sim, que aliás chega a grandes pensadores russos da atualidade, como o Dugin, por exemplo, ou Surkov, que é um grande ideólogo do regime. Muito conhecido já.
José Maria Pimentel
Esse ensaio tem uma componente emocional forte, não é? No sentido de que aquilo tem moral.
Lívia Franco
Porque Esta leitura, mais do que ser sobre a Ucrânia, é uma leitura sobre a identidade.
José Maria Pimentel
É identitária, justamente, é isso mesmo.
Lívia Franco
O que é Rússia? Qual é o lugar da Rússia enquanto Rússia, enquanto Federação Russa, enquanto potência? Há sempre esta ambivalência histórica. A Rússia é o quê? É uma potência essencialmente europeia? É uma potência euroasiática? É uma potência que se inscreve na civilização cristã no seu sentido mais alargado, que se inscreve numa visão civilizacional essencialmente ortodoxa, É uma potência, e repare que a linha continua é que é sempre uma potência, é uma potência que deve ter relações de abertura, de proximidade e complementariedade com a Europa e com o Ocidente ou não? Ou é uma potência que para continuar a ser potência tem que manter traços característicos que lhe advém exatamente do facto de ser um bocadinho europeia e muito asiática. Isto para dizer que esta narrativa que nós andamos também aqui a ver que é a narrativa sobre a Ucrânia, na verdade ela diz muito mais sobre a Rússia, sobre a maneira como a Rússia se vê, se vê, se propre mais, e a maneira como a Rússia vê o seu lugar no contexto regional, isto é, na Europa e na Ásia Central, mas também a maneira como a Rússia vê o seu lugar no mundo. E a guerra da Ucrânia e a maneira como ela começa, que traz associada consigo esta visão e esta leitura da realidade a estes vários níveis, diz-nos imenso sobre esta Rússia, como este regime agora pensa sobre a Rússia. E, portanto, desse ponto de vista eu acho que não é um erro de cálculo porque essa decisão é racional, estrategicamente lógica nesse enquadramento. É aí que eu acho
José Maria Pimentel
interessante fazer uma distinção conceptual, ou pelo menos parece-me interessante, se a minha atividade faz sentido ou não, que entre esse lado mais identitário e o lado estratégico ou barra realista, não é? Porque o lado identitário tem que ver com a maneira como Putin e outras figuras da cúpula olham para a Rússia. E o lado estritamente estratégico do ponto de vista realista é como é que um país com aquela geografia, independentemente da sua história, se tem que posicionar, tem que reagir tendo em conta os vizinhos que tem. E aí pode entrar um lado estratégico que não tem estritamente que ver com esse lado identitário. Não,
Lívia Franco
mas eu acho que normalmente até o que acontece é ao contrário. Quer dizer, A decisão sobre o posicionamento estratégico, eu estou a pensar, por exemplo, em Portugal agora vai-se voltar a discutir o Conceito Estratégico Nacional. A União Europeia este ano publicou finalmente a chamada bússola estratégica. Daqui a um mês vai ser, em princípio, formalizado o novo conceito estratégico da NATO. Ora, os posicionamentos estratégicos, eles resultam daquilo que é uma reflexão e o entendimento sobre o mundo que está à nossa volta e o nosso lugar nesse mundo e, portanto, aquilo que nós somos. Mas depende do lado identitário ou não? Claro que sim! Quer dizer, quando nós estamos a fazer a leitura sobre o que o mundo é, quer dizer, isso traz consigo uma história, traz consigo uma narrativa e o que é que nós somos neste mundo, então isso não tem uma definição da nossa identidade.
José Maria Pimentel
Não, eu concordo que eles estão intrincados, mas conceptualmente são separáveis. Zé
Lívia Franco
Maria, o que eu no fundo estou aqui a dizer é que me parece que qualquer exercício de reflexão estratégica traz consigo também um exercício de reflexão sobre o que é que nós somos, onde é que nós estamos, o que é que nós queremos, o que é que para nós constitui ameaças, o que é que não devem ser vistos como ameaças, quais são os meios que nós devemos ter para responder a estas ameaças, face àquilo que é a última análise, a nossa sobrevivência e a meio caminho a nossa agenda, digamos assim, de interesses, de valores e de princípios. Portanto, eu também não sei até que ponto é que é muito útil nós fazermos essa separação entre essa leitura, digamos assim, mais identitária ou mais estratégica. Eu acho que elas estão intimamente ligadas.
José Maria Pimentel
Não, elas estão, eu estou de acordo. O que eu digo é que, conceptualmente, por exemplo, aquela escola realista, o que nos diz, e foi muito falado agora nesta altura, a Rússia está a ter esta reação porque tinha a NATO à porta, por exemplo. Este aspecto é independente desse lado identitário.
Lívia Franco
Mesmo as análises realistas não conseguem eliminar, digamos assim, uma dimensão mais valorativa. Não conseguem. A ideia é essa, não é? Quer dizer, nós podemos dizer que há um exercício teórico realista que resume essencialmente a leitura da realidade, à lógica da distribuição do poder, como é que se mantém os equilíbrios de poder, como é que podemos estabelecer ordens mais ou menos estáveis. Claro que esse é um exercício, mas esse é um exercício essencialmente teórico que normalmente os governos não se limitam a usá-lo assim estritamente, não é? Porque tem que introduzir digamos assim estes elementos e estas características mais substantivas. Portanto, essa ideia do realismo é assim...
José Maria Pimentel
Mas eu também não sou defensor desse objetivo. Eu estava a tentar fazer esse contraste.
Lívia Franco
Sim, ou seja, o que é que me quer dizer? Por exemplo, a sua pergunta é sobre ou por uma narrativa que é mais liberal, mais idealista, mais com esses elementos e materiais que é proposta pelo Ocidente e em particular pela União Europeia versus uma outra leitura onde o poder tem um papel mais central e o poder é visto como instrumento mas também como fim, portanto é mais sobretudo ligada à tradição da Realpolitik. Sim, nós podemos notar isso. As duas diferentes leituras, nós podemos notar isso. Por exemplo, não é por acaso que a União Europeia e o conjunto dos países europeus têm hesitado mais na maneira como usa o poder e os recursos de poder em resposta aos acontecimentos na Ucrânia, porque de facto atribui um valor diferente a meios que não são ditos meios, digamos assim, mais diretamente de exercício de poder, não é? Hard power, e acha que há outros meios que pela sua natureza são moralmente superiores e devem ser utilizados antes de mais. A tónica na negociação, no multilateralismo, É óbvio que sim, mas em última análise também não dispensa ao poder. Na toolbox, na caixa de ferramentas também não dispensa ao poder. Sim, sim, e
José Maria Pimentel
essas duas perspetivas são mais úteis de maneira abstrata do que propriamente na prática que estão sempre a estar ligadas. Mas o contraste que eu estava a fazer não era esse, era entre a perspectiva realista, por exemplo, que nos dirá que isto é sobretudo uma reação à expansão da NATO ou à possibilidade de uma expansão da NATO e outra que dirá que isto é uma reação, como a Lívia dizia no início, isto é uma reação sobretudo ao aproximar da Ucrânia do Ocidente e a convergência para um modelo mais próximo.
Lívia Franco
É uma reação à fragilidade regional e sistémica que a Rússia está a sentir relativamente à concepção que a Rússia tem de si própria. Vamos lá ver, A um nível mais macro, o que é que explica o enquadramento geral desta decisão? Porquê que houve a decisão de fazer uma intervenção que no início vai logo apontar para Kiev e isso não aconteceu, por exemplo, em 2014? Porque agora em 2022 parece mais evidente para as autoridades russas que nesta distribuição de poder macro, a competição e o jogo se faz essencialmente entre os Estados Unidos e a China. E faz-se porque os Estados Unidos e a China se reconhecem a si próprios como os grandes jogadores e não há dúvida que a Rússia está a reagir a isto. Quer dizer, a Rússia quer continuar a estar na grande mesa estratégica das negociações, mas na verdade e até também num olhar realista só pode continuar a estar nessa mesa quem efetivamente tem o poder e a capacidade para estar nessa mesa?
José Maria Pimentel
Essa perspectiva é interessante. A
Lívia Franco
Rússia, com a intervenção na Ucrânia, quis chamar a atenção para dizer, mas olhem que nós conseguimos. Mas conseguem? É isso que está a ser demonstrado? Ou pelo contrário, o que está a ser confirmado pela maneira como estes três meses de curso de guerra têm mostrado é que a Rússia já não tem a mesma capacidade que os Estados Unidos e a China estão a ter. E
José Maria Pimentel
tem uma daquela agenda maior do que se pensava.
Lívia Franco
Esse é que é o risco. Absolutamente. Há na verdade todas estas várias dimensões da agenda, mas nós para compreendermos a ação e a decisão no seu todo temos também que pôr este enquadramento geral. Absolutamente. E é reativo. E há aqui uma reação, claro. Até uma reação, digamos assim, de emergência. É muito interessante, a Rússia tem, eu acho que historicamente, e isso voltou a estar ainda mais marcado agora quando Putin chegou ao poder, uma concessão que é o seguinte, a soberania é uma associação direta entre aquilo que é o entendimento de soberania e aquilo que é o entendimento de poder. Quer dizer, visto do ponto de vista do direito internacional, a soberania é um atributo. A soberania não é poder, não é? Quer dizer, por exemplo, países pequeninos que são irrelevantes do ponto de vista poder são soberanos. Tuvalu, Vanuatu, têm o mesmo lugar que os Estados Unidos têm, que a China tem, têm todos a mesma soberania. Mas a concepção que a Rússia tem, que é uma concepção com raízes históricas, é que a soberania se associa diretamente ao poder e, portanto, Na verdade só pode ser soberano e portanto fazer o exercício da sua soberania quem tem verdadeiramente esse poder para defender a sua soberania. Eu acho, desconfio, enfim, estou mesmo convencida que, por exemplo, olhando para a Ucrânia, que a Rússia pensou, e pensou assim no final de 2014 e pensou assim em fevereiro de 2022. A Ucrânia tem soberania, a sua soberania é reconhecida internacionalmente, mas a Ucrânia não tem poder e nós vamos demonstrar isto e nós vamos demonstrar que na verdade só podem ser grandes jogadores do jogo internacional. Não é quem tem soberania, mas é quem tem soberania e é uma grande potência. Só que, paradoxalmente, ou ironicamente, a guerra da Ucrânia parece estar a servir para mostrar isso. Sim, que a Federação Russa é um grande país no seu peso territorial, é um grande país do ponto de vista, por exemplo, dos recursos energéticos que tem, mas já não é um grande país e já não é uma grande potência do ponto de vista operacional militar. É verdade que tem armas nucleares, não é isso? Dá-lhe também apoio num outro patamar. Sim. Mas não está já ao mesmo nível que os Estados Unidos e que a China e não tem o mesmo nível de autonomia num contexto global, já não tem o mesmo nível de resiliência e já não tem o mesmo nível, digamos assim, de autonomia logística e operacional, acho, que é aquilo que estes três meses nos estão a mostrar e portanto esse enquadramento mais geral eu acho que é muito importante para nós compreendermos o que está a acontecer.
José Maria Pimentel
Eu ia puxar para aí precisamente porque eu acho esse ângulo muito interessante, a ideia da Rússia, do Putin, foi agir quase preventivamente antes que o mundo se tornasse definitivamente
Lívia Franco
bipolar. Aliás, ele disse isso no discurso que fez a 9 de maio, não é? Na parada militar do 9 de maio. Foi isso que ele disse, ele usou mesmo essa expressão. Do mundo bipolar? Não, de ser uma coisa preventiva. Da ação preventiva? Sim, sim. Preventiva, absolutamente. Mas
José Maria Pimentel
preventiva, confesso que já não lembro, mas
Lívia Franco
ele o citou o quê? Preventiva no sentido de defender aquilo que é o estatuto e os interesses da Rússia, porque se a Rússia continuava a deixar que as coisas acontecessem, digamos assim, na sua esfera de influência, usando a linguagem realista, ou se quiser, no seu perímetro próximo, ou naquilo que a própria Rússia chama o estrangeiro próximo. Sim, a Ucrânia. Sim, a Ucrânia e não só. Os países que agora são soberanos mas são do chamado espaço pós-soviético, então a própria soberania russa entendida como potência correria perigo também. Sim,
José Maria Pimentel
sim, sim. Não, mas ele não fez referência, quer dizer, nem podia fazer, acho eu, à emergência da China, não é? Porque isso seria pôr as cartas na mesa, não é?
Lívia Franco
Sim, a lógica é,
José Maria Pimentel
provisoriamente,
Lívia Franco
dá-lhe jeito que o foco seja um foco sobretudo sobre o Ocidente e os Estados Unidos, não é? Mas a médio prazo a Rússia também vai reagir àquilo que é a emergência da China como grande potência global. Neste momento ainda lhe dá jeito, numa lógica estratégica, sobretudo que haja uma relação de proximidade com a China. Mas essa relação de proximidade com a China não é uma aliança, não é uma estratégia de alinhamento, digamos assim, positiva. É negativa no sentido, ok, porque é que nós agora nos aproximamos porque temos um inimigo comum? Porque aquilo que nós queremos evitar é a mesma coisa, é que os Estados Unidos continuem a ser uma grande potência e ter o apoio da União Europeia. Mas a médio prazo, não tenho a menor dúvida, de que a Rússia vai perceber, bem, que a emergência da China também não é boa para a Rússia. Aliás, eu tenho dito isto muito, que é... Eu acho que há mesmo risco, sobretudo quem beneficia com isto é a China, com esta estratégia, e há mesmo risco de nós daqui a 10 anos, 15 anos, vermos que basicamente esta decisão da Rússia funcionou sobretudo a favor da China e que a Rússia vai ser assim uma espécie de bielo à Rússia da China. Eu tenho dito isto muitas vezes. Acho que há esse risco muito claro, mas que é um risco que agora neste momento a Rússia está disponível a correr. Eu acho que a Rússia acharia que as coisas lhe iriam correr de outra maneira, mas não estou convencida que as coisas efetivamente estejam a correr como ela queria e que, portanto, na aposta que é feito nos ganhos com esta parceria estratégica negativa com a China, que a Rússia vai conseguir ganhar a mão como pensava. Não, quem vai ganhar a mão toda é a China e a China é encantada.
José Maria Pimentel
Sim, em certo sentido pode ser o principal beneficiário de tudo
Lívia Franco
isto. É, absolutamente. Eu acho que é absolutamente esse o beneficiário. Aliás, até porque nós sabemos que, historicamente, a história, aquilo que nos demonstra também é que essa lógica, digamos, do equilíbrio de poder que a Rússia tem que estar sempre a fazer por causa da sua dimensão geopolítica é sempre com o Ocidente e com a China, ou com o Extremo Oriente, pode ser com o Japão também. Tem uma má
José Maria Pimentel
geografia a China, a Rússia.
Lívia Franco
Não sei se é má, é uma geografia muito difícil. É muito, muito, muito, muito difícil. Agora funciona a seu
José Maria Pimentel
favor essa aproximação. Temos ali até o mapa mundo e
Lívia Franco
atrás. Que mostra, não é? Que mostra exatamente isso. Vê-se bem, vê-se
José Maria Pimentel
bem. Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no site 45graus.parafuso.net barra apoiar. Veja os benefícios associados a cada modalidade e como pode contribuir diretamente ou através do Patreon. Obrigado. Já lá vamos aos efeitos geopolíticos, o que é que pode ser o futuro, que é um tema que é interessante explorar. Devia-se só um último aspecto em relação à invasão que nós explorámos há bocadinho e que eu acho interessante, que é a questão das populações russas ou russófonas na Ucrânia. Que eu francamente não percebia ainda que papel verdadeiramente é que essas populações têm. Ou seja, a Rússia, ou pronto, não é a Rússia, é aquela zona da Europa, ao contrário do que acontece, ou do que acontecia até há pouco tempo na Europa Ocidental, é etnicamente heterogênea.
Lívia Franco
Muito heterogênea. E isso
José Maria Pimentel
criou muitos problemas que deram origem à primeira e sobretudo à segunda guerra mundial na Europa continental. Portanto, isso é sempre um bolo de pólvora. Agora, a minha dúvida é se isso de facto foi também uma das causas da invasão ou que no fundo contribuíram sempre para que uma invasão fosse possível ou na prática foi só um pretexto. Eu
Lívia Franco
Acho que é um pretexto e uma forma de legitimação da decisão, de acordo com aquilo que é a narrativa, que é a narrativa que está a ser partilhada, essencialmente para consumo interno, mas para também consumo regional. Mas o ponto aqui que importa perceber é que a Ucrânia, na verdade, é uma criação relativamente moderna, não é? Porque a Ucrânia... Enquanto Estado. Enquanto Estado, a Ucrânia e o território da Ucrânia foi sempre dividido entre os grandes impérios históricos da região, quer fosse uma parte mais do império de Habsburgo e portanto dos austro-húngares, quer fosse o império russo propriamente, quer fosse até antes disso, historicamente, o grande ducado da Polónia e da Lituânia, que foi um grande potencial do século XVI e do século XVII na região. E, portanto, o que é que acontece? Acontece, de facto, que a Ucrânia é aquilo que Brasílis chama de facto um pivô geopolítico. Aliás, a própria designação, O termo Ucrânia significa zona de fronteira, não é? Ucrânia é zona de fronteira porque é exatamente uma zona de fronteira e entre, digamos assim, várias civilizações e vários mundos e várias concessões de arranjos, digamos assim, dos poderes fortes naquela região. Portanto, também não é por acaso que isto acontece na Ucrânia, não é? Porque exatamente a Ucrânia fica nessa zona de transição. Nestas últimas semanas estive a trabalhar com os alunos, por exemplo, o argumento do Samuel Huntington do choque das civilizações, quando ele dizia, ah, o padrão de conflito moderno vai muito acontecer nestas zonas de transição civilizacionais, não é? Enfim, com o entendimento mais ou menos generalista do que é civilizacional. Sendo que nós, a consciência que temos de ter é que essas fronteiras não são fronteiras definidas, não é? Como nós passamos de Elvas para Badajoz, ou quilómetro, não sei quantos, tem a tabuleta a dizer, agora já entrou em Espanha, do ponto de vista civilizacional isso não acontece. Portanto, há também uma grande miscigenação. Pois isso tem a ver com as políticas, digamos, administrativas dos poderes que estão, no fundo, a administrar esses territórios. Ora, o que acontece? Isso tem manifestações politico-culturais, não é? Portanto, uma grande parte da população dessa zona, que teve ligada à Polónia e à Lituânia, ou que teve ligada ao Império de Habsburgo, também tem uma visão que é uma visão, digamos assim, mais influenciada por aquilo que foi a evolução política, a evolução técnica e a evolução intelectual, digamos assim, do Ocidente. Mas outra parte da Ucrânia está, sobretudo, ligada àquilo que, digamos, a experiência histórica do Império Russo, como nós sabemos, foi muito mais tardio em certos processos. O fim do sistema da servidão, por exemplo, que só foi para aí em 1861, ou a própria revolução industrial que chega muito mais tarde também à Rússia. Ora, isso tem um grande impacto sobre as populações, sobre a maneira como elas olham também para a realidade, sobre a maneira como elas concebem o que é que é o poder político. E depois, na verdade, na experiência da União Soviética, nós sabemos que uma das ferramentas, digamos assim, que o poder soviético fez foi fazer, no fundo, esse baralhar e tornar a dar das populações. E, portanto, o que acontece é que depois, com a implosão da União Soviética e a emergência destes Estados pós-soviéticos, quer dizer, estes territórios pós-soviéticos, em particular Isso é notório na Ucrânia e há alguns dos países, no caso aqui estão também, há alguns dos países bálticos que há umas fortes minorias russas, russófonas e russas nesses países, o que também complica de facto a dimensão da política interna nesses novos territórios. E é verdade, também não podemos dizer que Evo não esteve isento de alguma responsabilidade. Porque quer dizer, quando, por exemplo, maiorias tão fortes, como é a maioria russófona, em zonas regionais muito específicas da Ucrânia, nomeadamente estas zonas ligadas ao leste e ao sul. Quer dizer, se também não se contemplam algumas... Por exemplo, o reconhecimento disso mesmo, de que essas minorias têm um papel, apesar de um papel importante em algumas zonas e que a língua russa deve merecer de facto algum reconhecimento como sendo a língua maioritariamente falada nessas regiões. Quer dizer, então isso também é perigoso porque nós sabemos que uma democracia entendida no sentido liberal, a resposta que dá a essas diferenças, estou a pensar, por exemplo, no caso britânico, é também reconhecer exatamente essas diferenças, não é? Claro que há sempre riscos, porque a democracia liberal também não traz uma solução perfeita para essas questões, mas tem que dar voz e dar reconhecimento a essas minorias. E é verdade que Kiev também teve algumas dificuldades em fazer isso. Eu acho interessante
José Maria Pimentel
porque eu acho que há provavelmente, enfim, conflitos e contradições internas que no meio da... Aquilo que muitas vezes se torna uma quase propaganda, não é? Porque nós estamos todos com a Ucrânia. Eu acho que muitas vezes não passam. E eu tinha essa sensação que o próprio regime ucraniano também teria feito algumas dessas populações russófonas sentir-se marginalizadas. Até com a expansão da língua. Certo. Se isso já é
Lívia Franco
difícil para muitos países que funcionam bem, do
José Maria Pimentel
ponto de vista democrático... É isso. A diversidade étnica é uma democracia. E não é por acaso que os
Lívia Franco
escoceses a certa altura, há pouco tempo, quiseram fazer o referendo, porque é que continuam a falar, quer em segundo, ou a questão da Catalunha, não é? Porque se mesmo as democracias consolidadas têm essa dificuldade nessa gestão, não é? Bem, então países destes que estão no início das suas transições democráticas, são processos históricos muito recentes, essas coisas ainda são muito mais complexas. Mas já agora, José Marissa, então também interessa nós pensarmos prospetivamente como Nós não sabemos exatamente o que é que vai acontecer, mas é evidente que pensar numa Ucrânia com um futuro político de independência, de autonomia e democracia é pensar também no que é que vai acontecer a essas populações russófonas que estão na
José Maria Pimentel
Ucrânia. Sim, sim, sim. E isso é o ponto que eu queria perguntar, que é, nós, ao dia que estamos a gravar isto, passaram um pouco mais de três meses desde o início da guerra. A guerra não terminou, a gente sabe, mas acho que já acentuou talvez suficientemente a poeira para nós conseguimos ter uma ideia de qual pode ser o resultado final. E o resultado final pode ser uma derrota total da Rússia sem quaisquer cedências ou até pode ser no outro extremo uma vitória em Rússia e uma cedência grandes da Ucrânia, que provavelmente não é nenhum destes extremos. Qual é que é o cenário mais provável que nós podemos conjeturar hoje? A Rússia continua a ser um Estado de paria, há excedências, que excedências é que há, territoriais, diplomáticas…
Lívia Franco
Esse exercício de construir cenários é um exercício que é sempre útil e que ajuda, por exemplo, às decisões políticas e ajuda para quem faz análise política e de facto há uma série de cenários que nós podemos pensar, sei lá, estou a pensar em pelo menos 4, 5 cenários, mas que são cenários que na maior parte dos casos de facto são essencialmente uma dimensão teórica ou se quiser desager, uma vitória total da Ucrânia, uma vitória total da Rússia, deixar que a situação se prolongue do tipo daquilo que foi, mas já não em tão baixa intensidade, quer dizer, numa intensidade conflituosa maior, mas daquilo que aconteceu de 2014 até 2022. Ou não, ou de facto arranjar aqui cenários de algum compromisso. Eu também acho que me inclinaria mais para uma lógica de compromisso. Agora, mesmo
José Maria Pimentel
dentro do compromisso há inúmeras possibilidades. O que eu quero perguntar é, o que é que pode estar realisticamente em cima da mesa de uma negociação de fim de guerra? Quer dizer, se nem ser de territórios, é um compromisso de não aderir à Nato, por exemplo? Sim. Ao dia de hoje, não é o que é que não é? Eu sei que tu olha para o DiPaco e já atrás é uma
Lívia Franco
coisa chata. Pois, sim, não, e sobretudo não sei fazer previsões, mas podemos aqui construir cenários, não é? Que possam ser um bocadinho mais plausíveis. Eu inclino mais para um cenário de compromisso. A dificuldade do exercício é esta, muitas vezes quando nós queremos aplicar aqui uma certa lógica, uma certa racionalidade, nós temos tendência a fazer com que essa racionalidade parte daquilo que para nós são as expectativas que nós consideramos as melhores. Então, Tendo feito este disclaimer, para quem está a ouvir, vou avançar. Quer dizer, está sempre ligado, mas vou avançar. Pronto, está feito o aviso. Vou avançar. Quer dizer, se o bem maior que nós podemos pretender num cenário de futuro é trazer alguma estabilidade àquela região e assegurar uma arquitetura de segurança europeia que funcione durante tempo considerável e de alguma maneira, quer dizer, numa lógica macro, confirmar esta transição para uma distribuição bipolar sem humilhar a Rússia, então eu direi que tem mesmo de haver compromissos de ambas as partes. Agora, eu acho que há limites claros que têm que ser postos sobre a mesa, na mesa das negociações. Primeiro é, eu acho que tem que ser muito claro que os limites é, Primeiro, respeito ao direito internacional, quer dizer, temos que continuar a defender que as agendas revisionistas do ponto de vista territorial, sobretudo quando o revisionismo é feito através da força por grandes potências, é ilegal. Este é o primeiro. Segundo, que também não se pode usar... Um certo tipo de armas não podem ser usadas. Nós não sabemos também o que é que ainda vai acontecer, não é? E não está completamente fora do cenário a possibilidade de virem a ser usadas armas, por exemplo, armas químicas ou armas nucleares, sobretudo do ponto de vista teatro, não é? De alcance intermédio. Mas quer dizer, isso tem que ficar muito claro que isso não pode ser uma opção. A segunda opção, não é a segunda opção, a segunda preocupação, o segundo princípio, acho que a história também nos mostra que não é bom humilhar o derrotado ou nenhum dos interlocutores. Portanto, se for a Ucrânia derrotada, que juro que vai ser difícil que o Ocidente não vai deixar, nunca pode ser derrotada humilhada, quer dizer, não pode desaparecer, não é? Quer dizer, não se pode pôr em Kiev um governo fantoche favorável, quer dizer, não é favorável, é fantoche de Moscovo, mas o mesmo também não pode acontecer, não é? Digo eu, para um cenário destes, que me parece a mim o mais razoável. Podia ser perigoso a prazo, não é? Pronto, ou seja, a Rússia não deve ser humilhada. Não humilhar a Rússia quer dizer não impor limites à Rússia? Não, não é a mesma coisa. Porque sim, eu acho que devem ser impostos de limites à Rússia, mas esses limites não devem ser, para já não devem ser impostos, devem, ou pelo menos formal e aparentemente aparecer como negociados. E que significa o quê? Significa exatamente isto. Daqui para a frente, estes países são efetivamente países independentes, são países soberanos e a soberania significa, em última análise, poder escolher as alianças a que nós queremos pertencer. E então aqui eu já vou introduzir um outro elemento que é não aceitar, por exemplo, que processos como seja o processo de alargamento da NATO ou o processo de alargamento da União Europeia sejam vistos como expansão, porque a linguagem não é neutra. Mas como é que se faz isso? O que se faz isso é dizer, por exemplo, por moratórias, ou pode dizer durante não sei quanto tempo, isso pode não acontecer. Tecnicamente a diplomacia tem sempre imensos meios, quer dizer, um acordo deste pode ter uma parte definitiva e uma parte provisória e dizer ok, nos próximos 25 anos, ou seja, isso já permitia, digamos assim, uma aceitação de coisas que podiam ser, se não houvesse esta possibilidade intermédia, que seria um perder de face para Kiev ou para Moscou. Dizer assim, não é a neutralização da Ucrânia, mas é, durante 25 anos a Ucrânia não pode entrar na NATO, ou isso serve para a Rússia, não é? Não é a satelização que a Rússia faz da Ucrânia dizendo, não, não, a vossa soberania não é completa, é assim uma espécie de finlandização imposta, vocês não podem aderir, não é? Mas é dizer, durante 25 anos isso não pode ser em benefício do quê? De uma lógica de estabilização, pronto, porque os acordos podem ter essas componentes transitórias. É interessante, sim. Podemos pensar, obviamente, em elementos desses que são elementos, de facto, transitórios. Depois é tentar atribuir num tratado de paz um lugar à Rússia correspondente efetivamente ao peso que a Rússia tem naquilo que é a arquitetura de segurança europeia. Não há dúvida nenhuma, basta olhar para o mapa outra vez e vermos como é que é possível existir uma segurança na Europa, uma estabilidade, digamos assim, securitária na Europa, sem a Rússia. Não é possível. Portanto, aí é os elementos de realismo que temos mesmo que introduzir, não é?
José Maria Pimentel
Mas como é que isso se faz na prática?
Lívia Franco
Na prática é reconhecer que a Rússia tem que ter um protagonismo. Agora, o protagonismo não é à medida, digamos assim, das intenções da Rússia. É, por exemplo, desenvolver... De alguma maneira isso foi tentado. A NATO criou, no pós-guerra fria, tentou desenvolver um órgão, que é um órgão no contexto da NATO e um outro órgão paralelo com menos protagonismo no contexto da União Europeia, que estabeleceu, formalizou um diálogo constante entre a NAT e a União Europeia com a Rússia. Mas os russos acharam sempre que aquilo era uma coisa um bocado de segunda categoria e na verdade que era uma coisa oferecida por aquelas duas instituições e portanto isso punha sempre a Rússia como numa situação de menorização. Provavelmente temos que arranjar aí uma estrutura qualquer que seja de origem, para já não ligada à experiência da Guerra Fria, não trazida da Guerra Fria. Com isto não estou a dizer que a Nato seja posta em causa, não é isso que eu estou a dizer. A Nato deve continuar a ser mentida na medida em que os seus membros entendem que ela deve ser mentida e na medida em que ela tem candidatos para aderirem à própria Nato. Quer dizer, então aqui a lógica é essa, porque é que a NATO está a desaparecer? Se os países veem esta aliança como sendo indispensável e mais, e há outros países que não são membros que querem pertencer. Não é isso que eu estou a dizer. O que eu estou a dizer, por exemplo, é criar uma certa estrutura, Eu acho que nesse sentido a OSCE, a OSCE podia ter tido esse papel, mas na verdade acabou por ser um papel muitíssimo redutor, porque também ela está ligada à experiência da Guerra Fria, não é? Criada na Conferência de Helsinque em 1975, Uma coisa nova pós-Guerra Fria que introduz, de facto, algumas lógicas, algumas regras, nomeadamente de diálogo e de comunicação e que formalmente permita a Rússia pensar que tem ali um fórum que não é um fórum informado nem pelas estruturas euroatlânticas nem pela experiência da própria Guerra Fria. Não sei, os diplomatas têm imensa imaginação nestas coisas. Vamos lá ver. Não é dar por adquirido que isso não é possível.
José Maria Pimentel
Claro, claro, claro. Sim, sim, há muitas maneiras de
Lívia Franco
encontrar círculos. E aliás, e aqui também os interlocutores russos e os diplomatas russos também têm que trazer ideias. E eu acho que tem que haver essa abertura. Mas num equilíbrio... Zé Maria, deixa-me só dizer mais uma coisa que me parece a mim muito importante, que é, eu estive aqui a falar do Ocidente, estive aqui a falar da Rússia, mas há aqui um outro aspecto que me parece a mim muito importante para uma paz que seja uma paz que tenha pés para andar e que possa ter um potencial de estabilidade mais ou menos duradouro, que é ter em conta também aquilo que é a opinião dos ucranianos face aos custos do esforço de guerra que a guerra está a pedir aos ucranianos. Há milhares de mortos ucranianos. Nós não temos falado muito sobre isso, mas há milhares de mortos ucranianos. Milhões de ucranianos que tiveram que ser deslocados e mais e refugiados. E a destruição do país, das estruturas produtivas, económicas, industriais, cidades e cidades. Quer dizer, isso significa que esse custo tem que ser contabilizado numa paz. Portanto, a paz não é apenas o que a Rússia quer, o que as estruturas euroatlânticas querem. Não, não. A paz também tem que ser aquilo que a opinião pública ucraniana acha que é razoável, tendo em vista o custo essencial da guerra, que é sobre os próprios ucranianos. Arranjar, bem, aqui são as más notícias, ou as notícias que são mais duras de digerir é arranjar um equilíbrio sobre essas três coisas, que a Ucrânia possa verdadeiramente um dia ser um país livre e independente e que possa ser assegurada a estabilidade na Europa, que a Rússia não se sinta humilhada e sinta que a sua voz também se ouve, mas também que os ucranianos compreendam e consigam ver reconhecidos o preço que os ucranianos pagaram por aquilo que é de facto esta discussão do pós-pós-guerra fria na Europa, isso tudo tem que ficar consagrado num tratado de paz. É fácil… Incluindo reparações, por exemplo? Pois quem sabe, mas as reparações também podem ser para os dois lados, não é? Também a pergunta que se coloca aqui é, do ponto de vista material, como é que nós podemos traduzir isto? Significa que provavelmente a Ucrânia vai ter de pagar alguma coisa pela paz e pela sua independência em termos territoriais? Talvez. Acho que é provável que vá perder a Crimea. Como é que isso pode ser enquadrado? Também é assim, se não perder a Crimea, como é que vai ser para Kiev gerir uma Ucrânia num futuro onde a maioria da população na Crimeia continua a ser russófona e no Dombáss também. Tudo isto tem que ser
José Maria Pimentel
muito pensado. É, exato. Mas eu acho o lado territorial interessante para comparar aqueles dois aspectos que eu falava há bocadinho. Porque se a preocupação da Rússia é estritamente securitária... Mas não é. Eu sei, mas se fosse estritamente securitária, o território não importava assim tanto. O mais importante era garantir que aqueles estados de fronteira, aqueles estados próximos, fossem neutros.
Lívia Franco
Sim, aquela faixa, exatamente, que tivessem sempre uma lógica de filandização.
José Maria Pimentel
Exatamente, Estava ali a geografia, estava a fronteira coberta e estava o assunto resolvido.
Lívia Franco
Essa era a expectativa da Rússia, não é? Do pós-guerra
José Maria Pimentel
fria. Era a expectativa do pós-guerra fria, mas o que nós vimos, como falávamos há bocadinho, o que nós vimos é que a invasão também tem esse lado mais identitário de aquela parte, se não toda a Ucrânia, pelo menos aquela parte que tem população russa, deve fazer parte da Rússia.
Lívia Franco
Não sei se deve, porque eu também não acho que tem que ser necessariamente isso. Quer dizer, se nós perguntarmos a essas populações, estou a pensar as repúblicas separatistas do Donetsk e do Lugansk, eu acho que uma parte irá, que faz sentido a anexação à Federação Russa, mas outra parte diz que não. E aquilo que eles exigem é essencialmente o reconhecimento de um estatuto de grande autonomia dentro do contexto de
José Maria Pimentel
uma Ucrânia. Não, mas para Putin, o meu ponto é, porque é esta coisa dos Estados contemporâneos de que o território tem um valor emocional. Eu até estava a ouvir esta semana, há um programa muito giro do Observador que é o resto da história, eles falavam da venda do Alasca e o Rui Ramos dizia... Com o João Miguel Tavares e o Rui Ramos. Ele dizia que a venda do Alasca bastava 20 ou 30 anos depois já não teria acontecido porque Os estados não abdicam de parte do seu território. E isto também funciona ao contrário. Se há um estado que acha que determinar território devia fazer parte dele, fará muito mais do que aquilo racionalmente justificável para obter esse território. Depende
Lívia Franco
da racionalidade, porque para eles isso é racional.
José Maria Pimentel
Eu sei, do ponto de vista securitário, se quisermos. Do ponto de vista econômico, de tudo o que se passa. Sim, sim, absolutamente. E isso é interessante. Mas
Lívia Franco
também o ponto que eu quero trazer aqui é, e as populações da região? Ou seja, aquilo que eu também estou a insistir... Eu não estou a minorizar isso. Não, o que eu estou a insistir aqui é que na verdade isso também não é uma discussão apenas entre a Rússia e, sei lá, a Rússia e os grandes protagonistas do mundo ocidental. Ou seja, o que eu estou a dizer é que essa agenda de uma eventual paz tem que ser muito marcada também por aquilo que é o protagonismo dos ucranianos. E os ucranianos inclui os ucranianos pro-occidentais, por isto de uma maneira um bocado mais binária, e os ucranianos russófonos. E aqueles que querem fazer parte da Federação Russa e aqueles que não querem, aqueles que querem continuar a fazer parte da Ucrânia. Claro, claro. Quer
José Maria Pimentel
dizer, em última análise é que interessam, não
Lívia Franco
é? Claro! Portanto, é isto tudo. Ou seja, a equação é sempre muito mais complexa. Às vezes nós em política, eu acho que há muito essa tendência que nós temos, ou essa inclinação, aliás isso também se notou muito bem, por exemplo, nas várias crises que assolaram, em particular a Europa, nos últimos 15 anos, estamos sempre à procura de soluções que sejam soluções absolutas para a crise econômica e financeira, técnicas, para a crise migratória, para a crise, digamos assim, das identidades, a questão do Brexit. Mas em política, e por isso é que a política é política, as soluções não são absolutas e não são,
José Maria Pimentel
mais uma vez, binárias. E aqui neste caso, se nós... A Lívia dizia há bocadinho que parte da solução terá que passar por dar mais peso à Rússia. Não
Lívia Franco
sei se é dar mais peso. A Rússia também tem que fazer ouvir a sua voz. Mas isso não significa que a agenda russa seja toda ela... Mais
José Maria Pimentel
peso geopolítico...
Lívia Franco
Não, pelas suas preocupações! É as preocupações. Porquê? Porque a geografia nos obriga a reconhecer que não há estabilidade na Europa se a Rússia não for tida em conta.
José Maria Pimentel
Mas o meu ponto é, eu estou a fazer o Delegado do Diabo, não é? Mas nós estamos com isso a dar mais proponderância a um país que acaba justamente de demonstrar que não tem o poder que se achava que tinha. Não foi isso
Lívia Franco
que eu fiz, aliás eu acho que até tive aqui a tentar defender a causa ucraniana
José Maria Pimentel
com muita insistência. Eu sei, eu sei.
Lívia Franco
Não, eu estou a dizer também no processo de negociação do que vão ser as condições da paz. Mas essas coisas não são fáceis. Não, está bem, mas então vamos lá ver. Nós estamos a trabalhar sobre a realidade ou estamos a trabalhar sobre ficções? Estamos a trabalhar sobre a realidade. Então, se é a realidade, implica olhar para as coisas tal como elas são. Vamos olhar para o mapa. E o mapa mostra que a Rússia é uma grande potência europeia. Portanto, não há paz e não há estabilidade na Europa se a Rússia não for o interlocutor. Isso significa que a agenda política seja absolutamente terminada pelo Kremlin e pela leitura que o Kremlin faz da realidade? Claro que não, mas ele tem de ser um partícipe. Mas significa que seja mais do que o passado. O que eu estou a dizer é, as linhas é, a Rússia não pode ser humilhada, claro que não. Não pode ser humilhada agora. Isso significa que, então vamos reconhecer que a Ucrânia não tem lugar? Claro que não também. Portanto, isto é um processo também, não é? Mas também, mais uma vez, a política é um processo. A política é um
José Maria Pimentel
processo. Nós há bocadinho já... A Líbia já florou mais ou menos o que pode ser a nova ordem mundial depois disto, não é? E é interessante porque no início da invasão parecia que nós de certa forma tínhamos voltado atrás no tempo à realidade pré-fim da União Soviética. Tínhamos voltado à guerra seria. O que parece, quer dizer, isto é uma simplificação, o que parece cada vez mais é que nós, como dizia há bocadinho, apressamos a entrada do mundo bipolar, dominado de um lado pelos Estados Unidos e do outro lado pela China. Mas isto também é uma simplificação, porque na verdade...
Lívia Franco
Eu acho que a lógica aqui é esta lógica, aliás muitos autores têm defendido isto, do regresso na história entendido como a constatação de que, ao contrário daquilo que Francisco Guiama tinha dito, não chegámos mesmo ao fim da história, sendo que o fim da história é entendido, digamos assim, como a história tendo um devir essencialmente cosmopolita, que todos nós já sabemos que já ninguém quer guerra, já ninguém quer tirania, já ninguém quer pobreza. Não é verdade, não é? Quer dizer, não sei se a história tem onde vir, desconfio que não tem em nenhum lugar de vir, que ela também não é cíclica e que a história é o que ela é porque ela é feita assim também por aquilo que é a liberdade dos homens e das comunidades humanas pelas escolhas que fazem. Bom, mas tendo feito este introito mais ou menos ligado à filosofia política, aquilo que eu quero dizer é, essencialmente, aquilo que nós estamos a assistir, julgo eu, é de facto uma transição de poder, que me parece, uma transição, outra vez, para uma configuração bipolar. E como eu há bocadinho disse, eu acho que a Rússia está a reagir a isso também.
José Maria Pimentel
Mais do que multipolar.
Lívia Franco
Mais bipolar do que multipolar. Também devo dizer isto, as configurações de poder, numa lógica da tese, enfim, das teorias hegemónicas, não significam que elas não possam ser híbridas, ou seja, do nível macro ser bipolar, mas depois haver uma distribuição de potências intermedias que seja multipolar. Mas eu acho que ela é essencialmente bipolar e, portanto, aí muitos autores têm falado, e eu acho que a Zé Maria também já aflorou isso, uma guerra fria. Ok, se nós entendemos a guerra fria como uma distribuição sistémica do poder entre dois grandes polos de poder, sim, estamos. Só que esta guerra fria é uma guerra fria diferente da Guerra Fria que aconteceu de 1947, 45, 47 a 1989, 91. É diferente. E porquê que é diferente? Porque aí os polos de poder em si mesmos estabeleceram dois sistemas que eram sistemas independentes, ok? E que eles pouco se tocavam. Ora, esta guerra fria, se nós quisermos falar assim, porque estamos a falar de uma lógica de bipolarização, Portanto, numa competição estratégica, para já não dizer de um conflito estratégico entre os Estados Unidos e a China, é feita num contexto que é um contexto de globalização, que é feito num contexto de enorme interdependência. O que quer dizer que os sistemas já não são independentes entre si, já não são autónomos. Portanto, a dinâmica também vai ser muito diferente.
José Maria Pimentel
E também não tem o lado ideológico, doutrinal que
Lívia Franco
tinha a Guerra Fria. Porque a própria globalização, apesar de ter um enquadramento ideológico grande, e vai haver esse confronto, eu acho, sobretudo entre a oferta de uma ordem global, liberal ou de uma ordem global, por exemplo, chinesa, não é? E portanto há essa dimensão. Na verdade, eu acho que há sobretudo um cuidado na maneira como nós vamos usar o poder que temos num contexto que é um contexto de grande interdependência. O chavão que agora nós usamos em relação à globalização é o chavão da weaponização da própria globalização. Por exemplo, nós estamos a ver isso com as canções, com a história, por exemplo, da decisão do Swift, de excluir a Rússia do Swift. E por isso também eu acho que a China aqui está a navegar Muito, muito, muito bem. A minha preocupação é mesmo esta. Os ganhos que a China está a fazer sem nós temos muito, muito essa consciência. Quer dizer, temos essa consciência mas não temos tido tempo para pensar muito. Aliás, não é por acaso que houve esta visita de Biden à Ásia, não é? Ao Indo-Pacífico, porque exatamente os americanos estão também um bocado com essa preocupação de... Mas o quadro estratégico macro continua a ser este.
José Maria Pimentel
Isto precipitou, de certa forma, essa convergência. Eu não
Lívia Franco
sei se precipitou. A pandemia também pode ter ajudado a precipitar. Mais do que precipitar. Eu acho que até a pandemia precipitou mais. Sim, sabe porquê? Porque eu acho que a pandemia nos veio mostrar de facto como a globalização podia ser weaponized. De repente o Ocidente viu-se com uma enorme fragilidade em responder aos efeitos da pandemia porque percebeu que a sua interdependência com a China era até, em alguns aspectos, muito mais dependência da China do que propriamente interdependência. Em particular os países europeus que de repente não tinham ventiladores nem tinham capacidade industrial para os ventiladores e que ficaram completamente dependentes da capacidade da China, da vontade, da capacidade e da vontade da China, enviar esses ventiladores, vender esses ventiladores ou, por exemplo, da dependência que nós tivemos de fármacos, por exemplo, que são produzidos pelandia, não é? E que nós não tínhamos para tratar dos doentes ou até para conseguir, por exemplo, ter capacidade, desenvolver nossa capacidade industrial por causa das vacinas, porque precisamos daqueles princípios ativos que não se encontram no Ocidente. Não é por acaso também que os Estados Unidos e a Europa nos últimos anos se têm preocupado imenso com a questão da autonomia estratégica, que na verdade não é tanto questões de segurança mas é questões da resiliência a todos os níveis. Portanto, eu acho que a pandemia até pôs mais a nu isso. Mas aquilo que a invasão da Ucrânia eu acho que veio mesmo de mostrar é não só esta weaponização desta interdependência já está em elaboração, como além disso as potências têm as agendas revisionistas, em particular a Rússia e a China, já não têm qualquer problema em mostrar que as suas agendas são efetivamente revisionistas, inclusive do ponto de vista político territorial. A Rússia mostrou isso em 24 de Fevereiro de 2022. O Biden agora estava na Ásia e disse, ah pois, se a China responder pela invasão de Taiwan, ou seja, nós temos de responder, claro que nós temos de responder.
José Maria Pimentel
E a propósito, acha que isto tornou mais ou menos provável, a invasão da Ucrânia tornou mais ou menos provável a invasão de Taiwan pela China.
Lívia Franco
O raciocínio, a deliberação, a maneira como os chineses, como Pequim, pensa, vê, age sobre a política internacional é muito diferente da russa, até porque a experiência moderna da China e da Rússia são substancialmente diferentes. Portanto, eu acho que nós não podemos tirar eleições imediatas daquilo que foi o modo de liberação do Kremlin e aplicá-lo e dizendo, ah, por causa disso e porque é também uma potência emergente e revisionista a China vai fazer. Não, eu acho que a China tem uma capacidade de paciência estratégica que é completamente diferente e sobretudo eu acho que neste momento não há uma resposta direta a essa pergunta porque eu acho que a própria China e porque ainda está a ver como é que as coisas param. Agora, se há uma agenda revisionista desse ponto de vista, isso há, claro que essa agenda existe. Se perguntem, mas os chineses têm essa agenda revisionista? Têm. E os chineses estão a equacionar, efetivar essa agenda revisionista? Já estão, nos mares do sul da China já estão a fazer, mas em particular em relação a Taiwan, eu acho que estão a ver como é que... Se
José Maria Pimentel
calhar não estão tão descontentes com o status quo como...
Lívia Franco
Neste momento o status quo é-lhes muitíssimo favorável. Ora, parece-me haver aqui uma lógica economicista básica que é que enquanto o status quo está a funcionar bem para nós não vale a pena, nós estamos a aumentar os nossos custos para ter mais ou menos os mesmos resultados ou se calhar até pôr em causa os ganhos que estamos a ter nesta altura porque corremos riscos acrescentados. Desse ponto de vista, para trazermos outra vez a racionalidade para a análise política, eu acho que está sobretudo numa lógica do 8&6.
José Maria Pimentel
E onde é que ficam os outros países no meio deste equilíbrio? Países como andia, por exemplo, que tem uma postura às vezes ambivalente, porque tem alguns laços com a Rússia, mas também tem uma postura estratégica com os Estados Unidos, com a África do Sul.
Lívia Franco
E com a União Europeia, não é?
José Maria Pimentel
E com a União Europeia, exatamente. A
Lívia Franco
profundar durante a presidência portuguesa, por exemplo, houve essa tentativa, a Cimeira Virtual, etc. E
José Maria Pimentel
até os países da América Latina têm uma postura mais ambivalente do que nós poderíamos acreditar. Sim,
Lívia Franco
eu acho que essa ambivalência se notou bem nas votações... Na ONU. Na ONU, não é? Em particular, se notou bem na votação relativa à decisão de suspender a pertença da Rússia ao Conselho de Direitos Humanos. Mas mais uma vez, a lógica que eu digo aqui é, eu acho que para esses países, sobretudo, as chamadas grandes potências emergentes, essa ambivalência traz-lhes neste momento vantagens. E portanto, a tendência é tentar manter o mais possível essa ambivalência. Portanto, mais uma vez aqui também, eu direi que a nossa análise não se deve concentrar em aplicar uma grade de leitura binária, ou estão com aqueles ou estão com aqueloutos, mas perceber que também há do ponto de vista da política internacional esta possibilidade da ambivalência, que muitas vezes a ambivalência é a opção que estrategicamente funciona melhor. E para essas grandes países, na América Latina, nondico e na Ásia, neste momento eu acho que ela está a funcionar bem. Outra coisa é dizer, E neste contexto da crescente bipolarização não vai haver um momento… Aliás, a própria Europa também tem um bocado essa ambivalência, vamos lá ver. Se calhar não tanto nas votações em contexto das Nações Unidas relativamente à Rússia, mas tem tido uma grande ambivalência naquilo que são também as relações que têm desenvolvido com a China.
José Maria Pimentel
E com a Rússia até à guerra.
Lívia Franco
E com a Rússia também, igual, por exemplo, a Alemanha, não é? Sim, sim. Mas também, quer dizer, os países europeus, muitos estudos de opinião que têm sido feitos, a opinião pública europeia sobre, ah, na possibilidade de que esta competição estratégica entre os Estados Unidos e a China venha a tornar-se mesmo num conflito, de que lado é que estaria? E há sempre três opções, mais do lado dos Estados Unidos, nós estamos com eles na NATO, não é? É a nossa aliança estratégica. Do lado da China, com quem nós não temos nenhuma aliança estratégica, mas temos uma grande interdependência económica e comercial ou neutros, a grande, grande, grande maioria da opinião pública europeia é favorável à neutralidade, que não deixa de ser uma ambivalência. Pertencemos à NATO, todos os países europeus da Europa, dito ocidental, pertencem à NATO. Como é que é possível existir esta neutralidade, esta ambivalência? Portanto, eu acho que essa ambivalência existe em geral e é também um meio que de facto tem sido muito usado, mas que eu acho que à medida que se vai introduzindo um elemento de rigidificação nesta bipolarização, e a tendência a isso acontecer, vai haver menos espaço de manobra para essa ambivalência e a certa altura eu acho que essas grandes potências, inclusive é também a União Europeia, a União Europeia agora já está a ser mais clara, não é? Na posição que está a escolher. E isso também, eu acho que agrada muito e descansa as lideranças americanas, quer aquelas que estão, quer aquelas que acabaram de estar, quer aquelas que eventualmente virão, mas vai haver a certa altura que vão ter que escolher.
José Maria Pimentel
E, aqui um lado, estes pensamentos são sempre perigosos porque a pessoa está a partir do ponto de vista ocidental, mas parece-me possível dizer que nesse mundo bipolar o ocidente, pelo menos no curto prazo, pode ter uma vantagem porque por nós termos um maior acordo até cultural em torno do modelo da democracia liberal, tanto nos Estados Unidos como na Europa, o que permite criar essa... Sim,
Lívia Franco
mas olha que eu também não sei se esse consenso continua a existir assim dessa maneira sobre o Ocidente. Eu acho que também há um grande questionamento do Ocidente sobre o próprio Ocidente, não é? E eu sei que gravou agora o último programa sobre os populismos com Miguel Paiares Maduro e eu acho que essa é a manifestação. E uma grande crise de confiança do Ocidente sobre o próprio Ocidente. Eu estive agora a dar aulas no semestre passado nos Estados Unidos e das coisas que mais me fizeram impressão, eu tinha estado a viver nos Estados Unidos há 20 anos, das coisas que mais me fizeram impressão eu acho que é uma crise de confiança nos americanos sobre o próprio papel dos Estados Unidos no mundo e sobre a proposta, digamos assim, dos Estados Unidos, quer do ponto de vista da liderança, quer do ponto de vista da sua organização política e económica. Portanto, também há um grande questionamento.
José Maria Pimentel
Isso é verdade, absolutamente. E as democracias estão sob ameaças internas precisamente vindas do populismo e outros tipos de radicalismos. Mas eu diria que a invasão da Ucrânia mostrou que quando é preciso, ou seja, quando é sério, as pessoas apoiam uma reação unida. Sim,
Lívia Franco
mas também pergunto se em 2014 não tinha sido a sério. E em 2014 tendo sido a sério, foi a ocupação e a anexação da Crimea e foi a invasão do Dombás ainda, tivemos ali muita complacência, muita hesitação. Sim, sim, foi muito. E não querer reconhecer o que é que estava a passar ali, um bocadinho olhar para o lado, olhar para o lado, olhar para o lado. Mas
José Maria Pimentel
aí não chegou à opinião pública. Se calhar devia ter chegado, mas não chegou à opinião pública. Mas porquê que não chegou? Ah,
Lívia Franco
está bem, mas porquê?
José Maria Pimentel
Porque não foi invasão do país até à capital, quer dizer, na prática é isso, e não foi tão gráfico. Ah,
Lívia Franco
não sei se foi isso ou se, entretanto, foi os dois anos da pandemia e foi a história da crise migratória e quer dizer, os sinais são evidentes de que convém nós pensarmos que este paraíso de paz kantiano que se vive aqui em particular na União Europeia, não é? Que isto não é uma coisa adquirida.
José Maria Pimentel
Ah, claro, isso sem dúvida. O meu ponto, embora tenha algum receio de ser complacente com a própria raciocínio, ao estar a partir do ponto de vista ocidental, mas diria que neste outro polo, no polo dominado pela China, essa união pode não ser tão fácil, não só por não existir essa amálgama cultural, não é? Mas
Lívia Franco
também não sei que é proposta de ordem. Chinesa se necessita de uma amálgama cultural.
José Maria Pimentel
Não só por não ter essa amálgama cultural mas também por ter uma geografia muito mais complicada. Porque a Rússia e a China têm territórios contíguos onde existem até disputas. Andia e a China têm aquela zona bastante complicada na fronteira. E portanto, têm eles próprios tensões que podem dificultar essa... Sim, sim, absolutamente. Claro que na prática depois podem precisar de deliberar isso. Também,
Lívia Franco
mas isso também era o que nós estávamos a dizer quando estávamos a falar sobre a arquitetura de segurança europeia, a dizer, ah, pois é, mas a geografia está lá. Bem, é verdade, a geografia também está lá. Mas isso então leva-nos a outra questão, que é a questão, digamos assim, mais filosófica de saber. Mas é verdadeiramente possível existir uma ordem internacional? Porque muitas vezes, e isso também eu acho que é um aviso à navegação, muitas vezes quando nós estamos a falar sobre política internacional, a pensar, a discutir os processos e os fenómenos da política internacional, nós estamos a pensar na política internacional um bocado como se pensa sobre política a nível interno. Só que nós não nos podemos esquecer que o pano de fundo onde ocorre a política internacional é completamente diferente, não há nenhum contrato social. Quer dizer, é basicamente um contexto, digamos assim, de anarquia, não é? E de poderes que são funcionalmente equivalentes, mas que são muito diferentes do ponto de vista da sua capacidade. Pronto, então é para dizer isso, não é? É para dizer... Sim, sim, sim. Então, ok, em última análise, se nós queremos chegar a essa grande reflexão, que é a reflexão de mas é possível uma ordem internacional? Isto
José Maria Pimentel
foi a exceção ou é a regra, no fundo, neste período que vivemos?
Lívia Franco
Foi absolutamente uma exceção.
José Maria Pimentel
Quer dizer, faça a história que é claro...
Lívia Franco
Claro, faça a história que é absolutamente uma exceção. Mas isso é importante dizer, porque sendo uma exceção, então para nós ocidentais, e também convém nós pensamos a partir de nós, uma vez que isto não é uma coisa teórica e abstrata, é dizer assim, E não vale a pena defender, apesar de tudo, esta tentativa de ordem que se baseia numa série de princípios que nos permitem ter este modo de vida? Eu
José Maria Pimentel
acho que sim. Sim, claro, aí eu d'acordo. Pronto.
Lívia Franco
Mas isso também exige resiliência, exige custos. Pois,
José Maria Pimentel
exato, sim, sim. Que nos habituámos a não ter que pagar. Existe
Lívia Franco
sobretudo a não ter uma coisa que foi um luxo, exatamente desta excecionalidade ou desta anomalia histórica, que foi esta complacência de achar que a história está no nosso lado. E portanto também não é preciso fazer grande coisa porque a história está no nosso lado. Está tudo bem encaminhado. Está, tudo é. Isso é uma autostrada, é sempre em frente.
José Maria Pimentel
Exato, exato. Olha, nós falámos aqui, bem, falámos das razões da guerra, falámos do que pode ser a nova ordem. Houve alguma coisa que eu não tenha perguntado, relevante?
Lívia Franco
Eu diria só que o que eu acho que é preciso ter um bocado de cuidado. A linguagem traduz muito a maneira como nós pensamos. Não é indiferente usar esta expressão da lógica do alargamento da NATO ou do alargamento da União Europeia ou dizer que é a expansão da NATO e a expansão da União Europeia. O ponto é que não é expansão nenhuma, não há aqui nenhuma estratégia de cerco organizada e orquestrada e pensado frente à Rússia. Isso é a maneira como se conviver as coisas. Também, se nós olharmos para a geografia e nos deposemos do Kremlin a olhar para fora, é isso que sugere a própria geografia.
José Maria Pimentel
Mas não é neutro, quer dizer, entrar a Finlandia-Suécia…
Lívia Franco
Sim, mas em política nada
José Maria Pimentel
é neutro. Pois claro, sim.
Lívia Franco
O ponto é esse que eu estou aqui a querer dizer desde o princípio. Mas nesta situação é particularmente… Bem, se é neutro, então é… não sei, a vida humana, se é neutra, então, bom, não é neutra. O ponto que eu quero dizer é, parece-me a mim que o princípio razoável é que os países independentes tenham a liberdade, antes de mais, de estabelecer os relacionamentos que acham que devem estabelecer e, em particular, os mais importantes que são entrar nas alianças a que devem querer pertencer, não é? Quer dizer, vamos lá ver, não é os Estados Unidos, não é Washington nem Bruxelas que estão a fazer uma pressão enorme sobre Helsinqui e sobre Estocolmo para virem aderir à Nato, são estes países que, faço ao que aconteceu em 24 de Fevereiro de 2022, vieram pedir para entrar. Ok? Pronto. Parece-me que este ponto também é um ponto aqui que é muito, muito, muito importante sublinhar. Porque eu acho que também há uma certa mistificação em relação a essa questão de dizer que horror, a NATO está mesmo a avançar. A NATO é uma aliança defensiva, a NATO não é uma aliança ofensiva. A NATO é uma aliança de um conjunto de países que se comprometem a proteger uns aos outros, de preferência de modos pacíficos, dizendo que essencialmente o artigo 5º, que é o tal cláusula de assistência mútua, serve para isto, para dissuadir os outros de nos atacarem. A lógica principal é a lógica da dissuasão. Quer dizer, porquê é que nós fazemos esta aliança? Para convencer os outros de que não é nada bom atacar-nos. É por isso. Ora, é normal que os países possam fazer esta escolha versus uma outra escolha de estarem sozinhos ou de andarem constantemente cheios de medo de que sejam atacados ou ter que estar preocupados constantemente em atacar
José Maria Pimentel
os outros. Não, eu estou completamente de acordo com a bondade, ou a legitimidade da vontade da Latina e da Suécia. Agora, uma aliança defensiva pode funcionar, se não diretamente como uma aliança atacante, pelo menos como um meio para gerar uma coligação, como na invasão do Iraque, por exemplo. Percebe-se que do ponto de vista da Rússia isso não seja.
Lívia Franco
Bom, ok, mas a base é do Iraque, o ponto é exatamente que não houve um acordo, nem um consenso na NATO sobre
José Maria Pimentel
isso. Mas não deixaram de ser países dessa... Uns e outros não. Quais é que não eram?
Lívia Franco
Claro, a intervenção no Iraque em 2003, a coligação, houve outros países até da região que também participaram na intervenção e que não era necessariamente... Mas que não foi uma intervenção da NATO, mas uma coligação internacional liderada pelos Estados Unidos com o apoio de alguns países da NATO. Aliás, a razão, por exemplo, da presença da NATO no Afeganistão foi porque houve um pedido expresso do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. Ok? Portanto, também temos que pôr um bocado essas coisas em perspectiva e desmistificar. Há lugar a excessos? Claro que há. Temos que dizer que há.
José Maria Pimentel
É óbvio. Sim, sim, sim. Boa, estou a ver já aí o livro na mesa que encaixa que nem uma luva naquilo que nós falamos.
Lívia Franco
Sim. Bom, então, julgo que ainda não está publicado em Portugal, não sei se vai haver alguma tradução, na sua versão original, que é uma edição, portanto, americana, chama-se Putin's World, o mundo de Putin, e tem o subtítulo Russia against the West and with the rest. A Rússia contra o Ocidente e com o resto do mundo, que aliás tem muito a ver com
José Maria Pimentel
o que estamos
Lívia Franco
a falar. E, portanto, é no fundo tentar compreender a proposta deste estudo, que é fruto de uma longa carreira de ensino de Angela Stent, que é uma professora de estudos russos e euroasiáticos na Universidade de Georgetown. É o produto da reflexão que ela desenvolveu durante larguíssimas décadas, quatro décadas de carreira, digamos, de ensino, portanto carreira académica, mas também ela teve também uma experiência de policymaking, não é? Portanto, foi assessora e colaboradora em algumas das administrações norte-americanas e portanto não é apenas pensamento que vem da Torre de Marfim, que eu reconheço que tem sempre limites, mas também de quem de facto ajudou a deliberar e a tomar decisões. E alguém que conhece muito bem a Rússia por dentro e que trabalha exatamente sobre a tal narrativa e a tal leitura e sobretudo esta visão que a Rússia tem sobre si própria e sobre o resto do mundo. O que compreendo o tal subtítulo que é um subtítulo que aparece aqui muito nessa lógica a partir do Kremlin que é a Rússia de facto contra o Ocidente e com o resto do mundo. Eu acho que é uma reflexão de grande folgo, uma reflexão de quem vem há mais de 40 anos a trabalhar, mais até de 40 anos, a trabalhar sobre estas matérias, a refletir, a ensinar, a discutir e a participar em processos deliberativos do ponto de vista policy e com grandes conversas com grandes interlocutores, inclusive é russos também, não é? Grandes especialistas e que eu acho que nos ajuda a compreender muito bem estas várias dimensões que nós fomos aflorando aqui na nossa conversa. E o livro é de 2019? O livro foi publicado em 2019, tem uma enorme atualidade. Aliás, ele foi publicado, não tenho a certeza qual é o mês, mas foi publicado pouco antes da pandemia. Aliás, esta edição que eu tenho, por acaso, é até 2020, mas poucos meses antes da pandemia cair. Portanto, nós sabemos que a pandemia também introduziu aí algum elemento, digamos assim, de stand-by do ponto de vista da produção científica. Portanto, para dizer que coisas atuais e com a qualidade que este livro tem ainda não começaram a aparecer muito. Acho que vai haver aí com certeza uma avalanche de coisas, não tarda nada, mas ainda não começaram a aparecer e portanto eu recomendo absolutamente a
José Maria Pimentel
leitura. Excelente, excelente. Lívia, muito obrigado. Obrigada. Até à próxima. Obrigada. Este episódio foi editado por Hugo Oliveira. Visitem o site 45graus.parafuso.net barra apoiar para ver como podem contribuir para o 45 Graus, através do Patreon ou diretamente, bem como os vários benefícios associados a cada modalidade de apoio. Se não puderem apoiar financeiramente, podem sempre contribuir para a continuidade do 45 Graus avaliando-o nas principais plataformas de podcasts e divulgando-o entre amigos e familiares. O 45 Graus é um projeto tornado possível pela comunidade de mecenas que o apoia e cujos nomes encontram na descrição deste episódio.