#120 Miguel Poiares Maduro - Populistas, autocratas e soluções para reformar a democracia

Click on a part of the transcription, to jump to its video, and get an anchor to it in the address bar

José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45°. Como vos disse no último episódio, é já esta semana que é apresentado oficialmente o livro Política a 45° em três cidades do país. Por isso faz todo o sentido dedicar este episódio a alguns dos temas que aborda no livro, como a ascensão do populismo, a vaga autoritária mais abrangente a nível mundial em que podemos enquadrá-lo e algumas reformas possíveis para reconciliar os cidadãos com a democracia liberal. Para uma conversa desse tipo, nesta altura, dificilmente poderia pedir alguém melhor do que Miguel Poeiras Maduro. O convidado tem-se dedicado a estudar e a pensar estes desafios, especialmente nos tempos mais recentes, enquanto diretor do Fórum Futuro da Fundação Gulbenkian, uma iniciativa que visa precisamente discutir temas importantes para o futuro do mundo e do país. O Miguel publicou também recentemente, juntamente com o professor da Universidade de Yale, Paul Kahn, o livro Democracia em Tempo de Pandemia, em que reflete sobre alguns dos desafios que as democracias vivem atualmente e que a pandemia veio tornar especialmente nítidos. No episódio que vão ouvir conversamos sobre os desafios que o populismo e o autoritarismo criam no mundo atual, em particular nas democracias, e sobre algumas soluções possíveis para os resolver. Embora eu no podcast tente fugir da atualidade, A verdade é que esta é uma altura especialmente importante para ter esta discussão, uma vez que passam já dois meses desde o início da guerra da Ucrânia, um exemplo bem nítido dos efeitos da tomada de poder por líderes autoritários, e além disso, gravamos a nossa conversa também na semana da segunda volta das eleições presidenciais em França. E se é verdade que Marine Le Pen veio a perder de forma clara, também é verdade que teve um resultado bem superior a 2017 e, sobretudo, que o conseguiu, o que é se calhar o ponto mais importante, já depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, a qual expôs claramente o perigo das associações entre Le Pen e outros populistas a Vladimir Putin. Mas França não é caso único, o mesmo aconteceu semanas antes com Viktor Orban na Hungria, que conseguiu ser reeleito com uma clara maioria. A ameaça do populismo e do autoritarismo está por isso para ficar, seja nas suas implicações geopolíticas, seja nos desafios que cria dentro das democracias. A popularidade do populismo, para ser redundância, vem, já se sabe, em grande medida, da insatisfação de muitos cidadãos com o funcionamento do sistema. Por isso, discutimos também algumas soluções possíveis para tornar as democracias mais inclusivas e funcionais. As ideias que vão ouvir são, como não poderia deixar de ser, as ideias do convidado. Mas quem ler o Política a 45° vai provavelmente achar, pelo menos, parte do diagnóstico familiar. Porque, no fundo, a solução para reconciliar os cidadãos com a democracia terá sempre de passar por duas vias que são complementares. Por um lado, criar mecanismos para maior e mais próxima participação das pessoas no processo democrático, mas por outro lado, também criar regras e instituições que assegurem que os políticos se comportam bem e governam para o bem comum. E com isto deixo-vos com este episódio com Miguel Poiares Maduro, como de costume, um agradecimento aos novos mecenas do 45 Graus, neste caso Ana Pina e J.C. Pacheco, e, claro, renovo o convite para aparecerem nas sessões de apresentação do livro, esta semana, em Lisboa, já hoje, dia 26, no Porto, dia 29, sexta-feira, e em Coimbra, dia 30. Sigam o 45 Graus nas redes sociais para mais informações sobre hora, locais e quem vão ser os apresentadores e espero ver-vos lá, caso contrário, até ao próximo episódio. Miguel Paiolos Maduro, muito bem-vindo ao 45 Graus. Muito obrigado pelo convite. Eu ainda Agora estava a dizer em off que eu no 45° fujo sempre a 7 pés da atualidade para tentar que os episódios possam ser ouvidos daqui a 1, 2, 3, sei lá, 10 anos daqui. Mas podemos dizer, sem arriscar muito, que há um assunto da atualidade que não é espuma dos dias, que vai estar aqui para ficar e que se junta à outra tendência que já
Miguel Poiares Maduro
havia. Infelizmente, provavelmente, não é espuma dos dias. Exato, exato. Se
José Maria Pimentel
fosse, era bom sinal. Ou se for, ou se acabar por ser, é porque as coisas correram bem. E nós, não sei se concorda comigo, acho que nós temos duas tendências que demoliram um bocadinho aquilo que era o sentimento que se vivia no início do século, gerado com a queda do Muro de Berlim, com o fim da União Soviética, que se vivia basicamente na viragem do século e no início do século. Um deles já tem sido amplamente referido, que era a crença que se gerou de que basicamente o modelo da democracia liberal tinha vencido-se a espalhar por todo o mundo e, sobretudo, estava implícito o pressuposto de que ela estava mais do que garantido nos países ocidentais e isso tem sido ameaçado essencialmente pela expansão do populismo. E agora, este ano, tivemos outra surpresa negativa que tem a ver com o componente externo disto, em que se assumia implicitamente que vivíamos numa ordem global marcada pela globalização, marcada pelo fim da guerra, enfim, pelo menos no Ocidente, e que de repente estamos por nós com a invasão do país europeu, com uma série de tensões, com uma Rússia agressiva, com uma série de países com uma postura mais ou menos ambivalente, a começar pela Rússia, mas também andia, até a própria Turquia em certo sentido. E portanto, o que nós vemos é que esta crença que existia ali na viragem do século parecia ser altamente otimista. Qual é a sua perspectiva em relação a
Miguel Poiares Maduro
isto? E sobretudo em relação ao que podemos esperar nos próximos anos. Eu acho que esses dois fenómenos, ou essas duas evoluções a que temos assistido, provavelmente estão mais intimamente relacionadas do que aquilo que tem sido discutido. Porquê que eu digo isto? No fundo, a primeira tem a ver com o crescimento do populismo e de regimes autoritários. E há uma relação entre os dois, as duas coisas não são idênticas, não é? Porque nós assistimos a movimentos populistas mesmo dentro de democracias, mas o populismo, por definição, tende a conduzir ao autoritarismo. Porquê? Basicamente o populismo apresenta uma concepção da sociedade que contrapõe a vontade do povo a uma elite que é apresentada como controlando o poder contra a vontade desse povo. E os populistas arrogam-se ser ele os representantes da vontade do povo, que ainda por cima é uma vontade como vista como homogénea e como tal não dependente do pluralismo político. O que é que isto conduz? Conduz que quando os populistas chegam ao poder, e nós vimos isso na Turquia, por exemplo, estava a falar, vemos isso também na Europa, onde o populismo tem crescido em países como na Hungria, por exemplo, os populistas têm uma noção do poder que é uma noção de uma democracia não liberal e liberal, no sentido em que a concepção da democracia que se tinha tornado dominante é uma democracia que não era meramente eleitoral, como eu costumo dizer não é um mero contar de cabeças, inclui todo um conjunto de instituições, de mecanismos de freios e contrapesos para limitar a concentração de poderes. Ora, os populistas, por definição, ou rugarem-se como representantes de uma vontade do povo, que é única, que é homogénea, e pelo contrário, ou verem essas instituições como tribunais, como autoridades independentes, como contrárias, como capturadas pelas elites, como representante de elites, que colocam limites a que eles possam concretizar a vontade popular, automaticamente conduzem ao autoritarismo. E portanto essa é a primeira relação, Ou seja, o populismo tem uma relação com os regimes autoritários. E em que é que isto tem relação com aquilo a que assistimos agora geopoliticamente e em particular com as intervenções da Rússia? É que, ao contrário de outros, eu acho que aquilo que explica as posições russas não é uma questão de receio, não é uma questão de segurança, ou melhor, é uma questão de receio, mas não é de receio de intervenções militares. Que a NATO invadiça algum Estado que nunca invadiu, que os vizinhos da Rússia invadissem a Rússia que nunca invadiram. O que temo o senhor Putin é a expansão das democracias e, portanto, aquilo que mais o assustou na Ucrânia é a substituição de um regime fantoche por um regime democrático, com falhas, com problemas, mas que era uma democracia. E o que ele teme mais, através da adesão, ele teme se calhar mais a adesão à União Europeia e à democracia do que propriamente questões de segurança. Se nós virmos historicamente... Deixe-me só dizer o seguinte. Se nós virmos historicamente, as democracias nunca fazem guerras com outras democracias e, portanto, é ao contrário. São regimes autoritários que invadem outros países e é, aliás, o que as temos agora. E, portanto, há uma relação maior entre isso, ou seja, entre o crescimento do populismo e crescimentos de regimes autoritários e de novo receios de conflitos e maior instabilidade e insegurança a nível internacional.
José Maria Pimentel
Seria uma coincidência muito grande se estes dois fenómenos, um populismo com uma tendência claramente autoritária e um autoritarismo emergente em vários países, dos quais a Rússia é um exemplo, estivessem a ocorrer ao mesmo tempo sem ter relação entre si. Mas ainda assim, fazendo um bocado de advogado do diabo, as tensões e as fragilidades nas democracias ocidentais não deviam dar mais segurança, não deviam pelo contrário dar mais segurança a alguém como Putin, porque basicamente a onda democrática que existia na viragem do século parece ter perdido vigor.
Miguel Poiares Maduro
Não, Mas o que acontece é que ao mesmo tempo, próximo do seu território, aconteceram evoluções democráticas. E ao mesmo tempo ele viu nas democracias fragilidades que não via antes, que lhe permitiu agir de forma mais agressiva. Ou seja, ele provavelmente fez leituras de que este era o momento, uma Europa mais dependente energeticamente da Rússia, uns Estados Unidos da América que pareciam afastar-se do mundo, mais isolacionistas, mesmo com Biden, não é? Na sequência era talvez uma interpretação que ele fez daquilo que se passou no Afeganistão. Portanto, é a conjugação desses dois elementos que provavelmente o induziu à intervenção que ele fez e à invasão da Ucrânia. E
José Maria Pimentel
haverá causas comuns? Porque nós ao olhar para o populismo, há uma série de causas que são avançadas, desde alterações na esfera da economia, como a globalização, que em muitos casos levaram a perdas de emprego, a perdas de rendimento, alterações na esfera cultural, sociedades terem se tornado mais heterogêneas, o próprio surgimento das redes sociais, há uma série de tendências que são avançadas para a ascensão do populismo nos últimos anos. Mas isto é dentro das democracias. Olhando para os outros países nós vemos também uma tendência de crescimento, ou pelo menos de surgimento de líderes mais autoritários. Putin é um caso óbvio, embora o seja no poder ainda desde Salvador 99, mas o Xi Jinping por exemplo provocou uma mudança grande na China e podemos falar até do próprio Modi, o Erdogan também já está há imenso tempo, mas claramente com tendências mais autoritárias. Existem causas comuns nesta leva autoritária? Porque nós podemos também chamar a...
Miguel Poiares Maduro
Nalguns eu acho que Existem. Sobretudo, eu acho que existem na mudança de regimes democráticos, ainda que democracias frágeis, para regimes mais autoritários, como é o caso dandia ou da Turquia. Outros provavelmente são fenómenos diferentes. Aquilo que se passou na China é realmente um reforço também da componente autoritária. A China não era uma democracia, mas era um regime político que não sendo uma democracia assegurava alguma alternância no poder e portanto combatia muita personalização do regime, desde as mudanças introduzidas por Deng Xiaoping, não é? Nenhum presidente da China, até o Xi Jinping, podia ser renovado e, portanto, havia alternância no poder dentro do próprio Partido Comunista Chinês. O poder era, de certa forma, limitado internamente dentro do Partido Político. Não era uma democracia, mas tinha mecanismos internos de controle do poder e de alguma alternância. E esta personalização do regime, sem dúvida, que é uma evolução preocupante e que reforça a componente mais autoritária do regime chinês. Mas eu acho que é diferente daquilo que se passou em regimes de democracias frágeis, podemos chamar assim, como era a Turquia ou andia, ou de outras democracias que têm assistido a fenómenos populistas. E isso deve nos levar a repensar, não é repensar, mas a refletir sobre o estado das nossas democracias. Eu tenho escrito bastante sobre isso e eu acho que fundamentalmente há dois aspectos que são relevantes e que explicam, desde logo, a perda de confiança dos cidadãos nas democracias. Nós temos estudos que indicam que os cidadãos, as pessoas, continuam a preferir o regime democrático a qualquer outro regime político, mas que os níveis de satisfação com a democracia têm vindo a diminuir e, portanto, isso desde logo é preocupante. E eu acho que a explicação para isso tem a ver com uma perda de legitimidade dos regimes democráticos a dois níveis, que são os níveis normais de legitimação de qualquer regime político. Um é aquilo que se chama legitimidade procedimental, input legítimo assim em inglês, que é a legitimidade através dos mecanismos de participação e representação que as pessoas sentem que aquele regime político lhes oferece, a voz que esse regime político lhes oferece. E nas democracias é uma das coisas que replica o crescimento dos populistas, as pessoas se sentem-se cada vez menos representadas pelo sistema político tradicional. Já podemos daqui a pouco, se quiser, discutir porquê. Quer dizer, eu costumo dizer isto há as causas e depois há as causas das causas. E portanto já podemos discutir daqui a pouco se quiser porquê, mas isso é, claro, parece que as pessoas se sentem menos representadas pelo sistema político atual. E portanto há uma perda da legitimidade das democracias através do input por natureza procedimental, através da participação e representação que elas é suposto assegurarem. E depois uma outra perda também ao nível da legitimidade pelos resultados, ou seja, a correlação tradicional que era estabelecida entre regimes democráticos e maior crescimento e desenvolvimento económico, tem vindo a ser afetada, quer por estagnação económica e, em alguns casos, maior desigualdade em sociedades democráticas, a que se assiste, e por outro, pelo crescimento económico significativo que alguns regimes políticos, como a China, por exemplo, conseguiu não sendo uma democracia. Portanto, isso coloca em causa essa relação quase de causalidade que era estabelecida entre democracia e crescimento e desenvolvimento económico.
José Maria Pimentel
E porquê que não... Agora não resisto a perguntar. Porquê que as pessoas se sentem menos representadas? Há um conjunto de variáveis
Miguel Poiares Maduro
que podem ajudar a explicar isso. Eu acho que há uma transformação na natureza do sistema político, eu costumo dizer que há uma transformação no espaço, no tempo e no modo da política, que está a perturbar seriamente o funcionamento da democracia e não necessariamente para melhor. Quer dizer, isto é muito lento, mas eu vou tentar ser breve. A transformação no espaço tem a ver com o seguinte, há um número crescente de matérias em que nós somos interdependentes, não já dentro dos nossos estados, mas para lá dos nossos estados, por exemplo. A nossa economia depende em larga medida da relação com outras economias, no nosso caso com o espaço europeu, mas também para lá do espaço europeu, mas sobretudo do espaço europeu. O nível de interdependência é aquilo que gera conflitos sociais, é aquilo que gera a necessidade de regularmos bens comuns e é aquilo que, portanto, gera a necessidade política. E Nós não temos ainda instrumentos de política a nível, para lá dos nossos Estados, suficientemente eficazes. Isso cria dois problemas. Primeiro, é a velha questão, como é que nós legitimamos politicamente aquilo que está a acontecer para lá dos nossos Estados. Mas a outra questão é que esta interdependência também afeta a nossa capacidade de juízo democrático dentro do nosso Estado. Nós muitas vezes já não sabemos se o que se passa aqui é consequência da política interna ou da interação entre a nossa política interna e essa interdependência com outros Estados, com outros espaços políticos, como a União Europeia. Portanto, altera os mecanismos de responsabilização política e de participação política. Essa é a primeira dificuldade. Pois a segunda tem a ver com o tempo e com a circunstância de cada vez mais a política estar dependente de uma lógica de incentivos de curto prazo. E portanto isso cria dificuldades muito grandes, é aquilo que o Daniel Linares, conhecido filósofo político espanhol e um bom amigo, chama de curto termismo. A política é determinada por isso e se quiser gera também uma forma de déficit democrático diferente. Nós falamos muito do déficit democrático europeu, mas é um outro déficit democrático, porque é o déficit democrático, não representação de gerações de tudo. Digamos que uma política que é determinada apenas pelo curto prazo está a excluir muitos efeitos positivos e negativos, muitos interesses da sua representação e participação. E o terceiro aspecto tem a ver com o modo da política, tem a ver com as redes sociais, da forma como isso altera o nosso espaço público, como isso altera aquilo que eu chamo da edição da democracia, ou seja, os temas que nós debatemos ou não debatemos, como altera e coloca em causa as velhas formas de intermediação da política, desde os partidos políticos aos sindicatos a movimentos sociais tradicionais, e o substitui por formas intermediadas da política, mas que, ao serem formas novas, também alteram a forma da política. Então ao conduzir a política, por exemplo, num sentido muito mais emocional do que racional. E a política necessita de um equilíbrio, necessita de emoção e razão. E quando um desses fatores ganha excessiva prevalência sobre o outro, isso cria dificuldades também. Portanto, Estas alterações no espaço, no tempo e no modo da política estão a causar perturbações da democracia, aquilo que explica, pois manifesta em termos concretos, por exemplo em Portugal, uma das questões, e não é apenas em Portugal, mas em Portugal, é uma desconfiança enorme sobre as elites políticas, sobre a classe política, que a classe política não tem sabido conduzir, porque a forma de responder a isso era tentar reconstituir esses vínculos e essas relações de confiança. E pelo contrário, a nossa classe política, do meu ponto de vista, tem-se ainda afastado mais e, portanto, diminuído essa conexão, diminuído essa perceção de que representação ou participação, pelo contrário, as pessoas sentem que não são participadas. Mas isso é o nível do modo, por exemplo, mas penso no tempo. Os jovens, hoje, claramente sentem-se menos representados, porque a política é tão determinada pelo curto prazo, e os jovens que são uma parcela cada vez menor em termos relativos do eleitorado da nossa sociedade, que a política tende a conduzir a soluções de políticas públicas que, no fundo, se quiser, tratam pior os jovens que outras gerações. E é isso que leva os jovens, por exemplo, a votarem de forma muito diferente, a colocarem em causa os partidos políticos tradicionais ou a saírem do sistema político como através da abstenção.
José Maria Pimentel
Sim. Em relação a isto, por acaso, isto é um fenómeno interessante porque o que nós reparamos, acho eu, em vários países, Portugal incluído, mas lembro por exemplo do caso do Brasil, eu gravei alguns episódios com convidados brasileiros a propósito da eleição de Bolsonaro em 2018 e é muito interessante como lá aconteceu um fenómeno idêntico ao que eu acho que nós vivemos aqui, em que houve sempre ou tinha havido sempre uma grande desconfiança da população em relação à classe política. Ou seja, no fundo as pessoas, a maioria das pessoas, tendiam a não confiar nos políticos e Eu acho que isso é o mesmo que nós vivemos em Portugal. Mas de repente parece que houve uma descontinuidade em que essa desconfiança, que era uma desconfiança larvar mas que não era suficiente, no fundo, para minar completamente o processo político, se transformou numa rejeição total. E essa descontinuidade para mim é que é muito difícil de medir. Perceber o momento em que isso acontece.
Miguel Poiares Maduro
Eu acho, por exemplo, que está a acontecer em Portugal e há poucos dias quando falava no meu espaço em que eu debato com o João Soares na RTP sobre a eleição francesa, eu dizia que nós devíamos prestar atenção àquilo que se passou em França com a implosão dos partidos tradicionais, porque aquilo não acontece por acaso. E eu tenho dito isso quando as pessoas dizem que Portugal era um regime. Diziam! Portugal era uma ilha na Europa de estabilidade política, de estabilidade do sistema político. Eu dizia, não é verdade. Basta olhar para o nível da abstenção para ter percepção que há uma enorme insatisfação com o sistema político. Apenas não houve ainda quem fosse capaz de canalizar essa insatisfação com o sistema político para lá da abstenção para novas formas políticas. E é isso que fez o Chega. No fundo, a abstenção é resultado das pessoas sentirem que aquela classe política, aquele sistema político, aqueles partidos, não os representam. Os seus interesses não se entendem. E, portanto, deixam de votar. Se de repente aparece um partido político que lhes transforma isso numa mensagem e lhes diz vocês têm razão, estes tipos estão ali, não vos representam. É uma elite que está a controlar para vantagens deles o poder contra os vossos interesses, pois isso é uma mensagem política que é muito facilmente atrativa e, portanto, esse salto de que estava a falar acontece dessa forma. Aconteceu noutros Estados e está a acontecer no nosso. E continuará a reforçar-se se a nossa classe política e se os partidos políticos tradicionais, eu tenho dito isso ao meu, mas sem grande efeito até agora, não tiverem percepção da gravidade e da seriedade do desafio que nós enfrentamos.
José Maria Pimentel
É que nós podemos olhar para isto, ou seja, para a ascensão do populismo, como um problema de oferta ou de procura. E nós, eu acho que tendemos, por razões lógicas e também por existirem dados nesse sentido, tendemos a olhar para ele como um problema de procura. As pessoas estão mais insatisfeitas com a democracia ou com o funcionamento geral da democracia, seja aquelas causas mais imediatas, seja as outras causas mais profundas a que o Miguel aludia. Mas também podemos olhar para isto, e estava mais ou menos implícita agora no seu comentário anterior, como um problema de oferta. Um problema no sentido de uma questão de oferta, ou seja, de ter passado a haver partidos e representantes políticos que começaram a ativar essa insatisfação de uma maneira que não acontecia anteriormente.
Miguel Poiares Maduro
Por isso é que eu dizia, o que os níveis de abstenção que nós tínhamos em Portugal nos diziam é que nós tínhamos um problema de oferta, de inexistência de oferta, faça uma procura muito grande de pessoas que não se sentiam representadas pelo sistema político. E quando subitamente apareceram partidos populistas ou não populistas a defender coisas diferentes, as pessoas subitamente começaram a manifestar-se isso e a transferir o seu voto, em muitos casos da abstenção, em outros casos de outros partidos políticos em que votavam mas sem grande convicção, para essas novas forças políticas. O que eu acho é que isso é preocupante quando a oferta que acaba por ser atrativa para as pessoas é uma oferta populista, pelas razões que eu disse, porque o populismo é tendencialmente... É, por um lado, uma ideologia política, se quiser, que exclui o pluralismo, e isso é extraordinariamente perigoso... Daí o penduro autoritário, sim. Claro, e que automaticamente depois conduz a tendências autoritárias. E eu acho que a resposta tem de partir, deveria partir, dos partidos políticos tradicionais e de reformas de capacidade de reformar o sistema político para gerar de novo confiança
José Maria Pimentel
junto dos cidadãos com esses partidos políticos. Então, Miguel, antes de passarmos às respostas, àquilo que os partidos podem fazer, eu queria só voltar a uma das causas que falou há pouco, do curto termismo, dessa tendência para o curto prazo. Essa tendência tem aumentado de facto, ou seja, isso não é uma tendência inevitável das democracias, pela necessidade que tem de ser legitimadas eleitoralmente a cada 3, 4, 5 anos.
Miguel Poiares Maduro
Tem aumentado porquê? Eu vou explicar porquê. Tem aumentado na medida em que a democracia, ao perder aquela lógica de intermediação com a desvalorização da democracia representativa, perde espaço em termos temporal. Ou seja, quando a democracia está sujeita a uma pressão e a incentivos políticos muito imediatos, quando um líder político está a medir o que faz em termos do sucesso hoje porque está preocupado com o que a sondagem de amanhã vai trazer sobre esse líder político, ele vai estar mais dependente desses incentivos políticos do imediato. E é natural. Ou
José Maria Pimentel
seja, é um problema de informação, de certa forma.
Miguel Poiares Maduro
Sim, é um problema de dois níveis. O primeiro nível é que nenhum de nós tem literacia de políticas públicas. Portanto, como nós não temos literacia de políticas públicas, não podemos esperar que todos os cidadãos conheçam em detalhe quais são os detalhes de todas as políticas públicas, incluindo dos efeitos de segunda ordem, que os costumas é que vão ter a médio e longo prazo e efeitos da outra natureza, em termos de benefícios e custos, como não podemos esperar isso, As pessoas votam com base em quê? No que sentem, no imediato, em princípio. Ou nisso, ou então têm muita confiança nos líderes políticos e dão-lhes tempo para eles resolver os problemas. Num sistema político em que os políticos estão muito preocupados em responder a isso imediatamente, ou em que a democracia representativa é muito mais substituída por uma democracia direta, e em que as pessoas vão votar muito mais pelo que sentem naquele instante do que por essa capacidade que não têm de literacia política de médio e longo prazo, nós tendemos a acentuar os incentivos de curto prazo. Na medida em que se perdeu confiança nos órgãos de intermediação política, que tinham uma função de dar algum espaço temporal, neste caso, para se poder decidir e poder pensar as coisas a mais longo prazo, que permitiam aos partidos políticos ter mais margem para compromissos em termos de políticas de médio e longo prazo, na medida em que se perdeu isso, na medida em que se perdeu confiança nos políticos e, portanto, capacidade de aceitar coisas que parecem não ter um resultado imediato, mas que podem funcionar a médio e longo prazo. E na medida em que os próprios políticos, cada vez mais, nem sequer já pensam nas eleições há quatro anos, pensam na sondagem que vai sair no final dessa semana, tudo isso tem acentuado e reforçado ainda mais a componente do curto prazo. Portanto, ela já existia, mas eu costumo dizer, as teorias da escolha pública foram as primeiras a introduzir essa dimensão temporal na avaliação política dos ciclos políticos. Mas aí eram ciclos legislativos, agora é ciclos semanais, são ciclos mediáticos de 24 horas. E portanto o curto termismo reforçou-se cada vez mais.
José Maria Pimentel
Eu lembro até de falar com o Pedro Magalhães, quando não se confia no processo, é-se muito menos tolerante com medidas que tenham um impacto que não é imediato. Porque o único impacto que nós conseguimos medir é o imediato. O outro depende da nossa confiança. É
Miguel Poiares Maduro
aquilo que sentimos. O outro só conseguiríamos medir, é o que eu digo, se as pessoas fossem especialistas de políticas públicas. E
José Maria Pimentel
mesmo aí há muita incerteza.
Miguel Poiares Maduro
Há alguma incerteza. É a mesma coisa como um médico que nos tem de fazer um diagnóstico e que em primeiro lugar nos diz você vai ter de fazer uma dieta, não vai poder comer nada que goste nos próximos tempos e etc. Nós não gostamos disso, mas não é aquilo que nos vai trazer... Pelo contrário, vai-nos trazer maiores dificuldades no imediato. Nós gostávamos era de comer bem, não é? Mas confiamos no médico que aquilo vai ter a médio e longo prazo e feito. Se nós não confiarmos no médico e que ele nos diz, não, você agora até se vai sentir pior, não vai desfrutar tanta vida, mas isto vai-lhe fazer melhor a médio e longo prazo. E passamos a decidir só com aquilo que nos faz efeito logo imediatamente, nós continuamos a comer aquilo que gostamos, não é? Pronto,
José Maria Pimentel
só. E é um bocadinho isso. Na verdade a analogia com os médicos não é tão exagerada como possa parecer.
Miguel Poiares Maduro
Não é isso, é uma relação de confiança.
José Maria Pimentel
E é outra relação de confiança que também está a ser afetada, enfim, menos, mas também está a ser afetada atualmente.
Miguel Poiares Maduro
Sim, eu aliás dou o exemplo aí ao nível da transformação do modo de funcionamento da política, porque as redes sociais, uma das coisas que estão a transformar e a acentuar tudo isto também, é a confusão entre informação e conhecimento. Ter acesso a informação não quer dizer conhecimento, porque nós podemos não ter a capacidade de analisar essa informação de forma a transformar conhecimento. E antes nós íamos ao médico e aceitávamos o diagnóstico dos médicos. E hoje em dia as pessoas vão ao médico e depois chegam a casa ao Google e estão no fundo, second guess, a reavaliar no Google o diagnóstico do médico. Portanto, mesmo em relação aos médicos, essa relação de confiança já não é assim tão grande. E já não é assim tão grande porquê? Porque a facilidade de acesso à informação leva-nos a confundir a informação com o conhecimento e, portanto, a colocar em causa aquilo que o médico nos diz.
José Maria Pimentel
Sim, exatamente. E o que é que os partidos, enfim, o que é que a democracia, mas o Miguel ali há um bocado em particular aos partidos, o que é que os partidos podem fazer, como é que os partidos do sistema, digamos assim, se podem transformar para se adaptar a este mundo novo?
Miguel Poiares Maduro
Eles têm um desafio de dois tipos. Um, o mais complicado, vamos falar agora, que é esta sociedade também é uma sociedade mais fragmentada em termos de interesses, não é? Portanto, mais difícil de conjugar as pessoas e, portanto, Como é que os partidos tradicionais... Aqueles capsule parties antigos já não... Como é que eles vão conseguir fazer isso? Eu acho que só o conseguem com agendas muito ambiciosas e lideranças bastante carismáticas. Há o Obama, por exemplo. O Obama foi um dos últimos políticos que conseguiu isso, ganhar umas eleições na base não de propostas. Eu costumo dizer há duas alternativas. Ou uma queda aritmética eleitoral, deixa-me aqui somar os grupos sociais através dos quais eu posso ter maioria e vou tentar desenhar uma micro-proposta que reflita o interesse de cada um deles, dar-lhes um caramelo a cada um deles no meu programa eleitoral para somar o coiso, que é uma desalternativa, mas que eu acho que é bastante problemática porque acentua ainda mais a fragmentação da sociedade, e eu acho que a democracia apreciamenta a ideia de reconciliar os interesses divergentes e, portanto, necessita desse espaço comum e dessa dimensão de projeto comum também, é problemático, portanto, isso vai acentuar a fragmentação em vez de quando os partidos políticos iam tentar juntar as pessoas, construir uma agenda comum, mas a alternativa é a outra, é a primeira mas é bastante difícil. Segundo aspecto, que é aquele da reconstituição da confiança, de uma relação de confiança com os eleitores, com os cidadãos, passa por reformas internas de abertura, O contrário, os partidos políticos têm vindo a cada vez mais a fechar-se sobre si próprios, a não ser representativos. Repare, os nossos candidatos a primeiro-ministro são cada vez escolhidos mais de um grupo mais pequeno de pessoas, não é? Nos universos eleitorais os partidos políticos são muito reduzidos, portanto uma das questões pode passar por primárias abertas, algo desse género. Não é uma solução. Nada disto são soluções por si só. O segundo lugar eu acho que tem de ter mecanismos de controlo, de integridade e de ética e de conflitos de interesses muito maior. Nós temos de reformar a nossa cultura política de forma muito acentuada a esse nível, sobretudo na prevenção dos conflitos de interesse, períodos de nojo quando se sai da política, tudo isso, ou quando se entra e de onde se entra para a política. Portanto, são necessárias um conjunto de reformas que leve os cidadãos a confiar nos partidos políticos e na classe política dos partidos políticos. Devo dizer que do meu ponto de vista aí Portugal está pior que outros estados porque a nossa cultura política é uma cultura política, eu direi, muito frágil e as nossas instituições são instituições, do meu ponto de vista, muito problemáticas tradicionalmente, porque são instituições muito facilmente capturadas pelos partidos que estão no poder. Nós temos uma cultura política que facilita, ao contrário de outros estados que têm administrações públicas com muito mais autonomia, muito menos partidarizadas e que portanto leva as pessoas a confiar nessas administrações públicas. E depois o outro lado dessa confiança dos cidadãos na administração pública é a própria administração pública poder ter confiança nos cidadãos, essa confiança é mútua, no nosso caso é exatamente o contrário. E já agora, isso é uma das razões em que depois este problema, que é um problema de instituições e de qualidade das nossas instituições, se transforma depois num problema de crescimento e desenvolvimento económico e social. Mas isso já nos levaria a outra discussão.
José Maria Pimentel
Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no site 45graus.parafuso.net barra apoiar. Veja os benefícios associados a cada modalidade e como pode contribuir diretamente ou através do Patreon. Obrigado. Eu, por acaso, não resisto a perguntar-lhe isso porque o Miguel viveu em Itália e Itália é, muitas vezes, dado como exemplo precisamente disso, De um país que tem uma política, enfim, das piores da Europa, eu acho que seguramente a mais instável da Europa Ocidental, mas que tem uma boa administração pública. Que é uma espécie de paradoxo. Administração pública. E não sei se é verdade. Não sei se
Miguel Poiares Maduro
é verdade. Não sei se a administração pública é assim tão boa como isso. Tem áreas da administração pública que funcionam bem e é um país que curiosamente desenvolveu um mecanismo, se quiser, para lidar com essa partidarização e com essa péssima cultura política que é regularmente a própria democracia suspende a sua partidarização e atribui a uma liderança técnica, digamos que um período de dieta partidária, chamemos-lhe assim. Porque se reparar, nas últimas décadas, a Itália tem regularmente, quase uma vez por década, um momento em que tem um governo tecnocrático, como é agora o caso do Draghi, que não é de nenhum partido político, e que são normalmente os governos que fazem as reformas que depois permitem ao país ir aguentando nos anos seguintes. Tiveram isso com o Monti também e tiveram com outros casos também. Mas o Monti foi muito
José Maria Pimentel
pouco popular, não foi? Eu tenho a ideia que ele
Miguel Poiares Maduro
saiu com muito baixa popularidade. Sim, mas entrou com bastante popularidade, saiu com baixa popularidade porque fez reformas difíceis mas são reformas que ainda hoje ajudaram a Itália. A Itália não teve um problema financeiro por causa disso, não é? Por causa do... Não entrou, a Itália estava em risco de... Aliás, foi por isso que o Berlusconi saiu e entrou ao Monti, a Itália estava em risco de entrar também em banca rota, como Portugal esteve. E quem salvou foi o Monti, claro. Claro que esse processo deixou o Monti bastante impopular, mas hoje em dia já se começa a fazer uma reavaliação desse período e, independentemente da avaliação de coraçes políticas, aqui o que eu estou a dizer é esta lógica que tem o sistema italiano, que é interessante, de regularmente suspender. Não é uma suspensão da democracia, porque todos os partidos políticos, o Parlamento continua a funcionar. E estes governos tecnocráticos dependem do apoio dos diferentes partidos políticos. Mas são digamos que há um acordo entre os partidos políticos para dar margem a que um governo tecnocrático, governo durante algum período, faça no fundo aquilo que os partidos políticos acham que eles não podem fazer e depois eles votam de novo à política tradicional. E será assim provavelmente também com Draghi dentro de pouco tempo. Mas
José Maria Pimentel
acho que o acordo tá cito é esse. Eles reconhecem que há determinadas medidas que é preciso tomar mas nenhum tem... A minha
Miguel Poiares Maduro
leitura é essa do próprio sistema. É uma válvula de escape do sistema que os próprios partidos encontraram através destes governos tecnocráticos regulares. Sim, bem, nós também temos a nossa versão disso com assistência externa, não é? Pois, é, num certo sentido, nós fazemos isso através de... Não tinha pensado dessa forma, mas é uma forma mas está bem visto eles fazem através de governos tecnocráticos nós fazemos através de... Acho pior preferia o método italiano preferia o método italiano que ainda assim nos dava um bocadinho mais de autocontrole.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim, sim. Verdade.
Miguel Poiares Maduro
E mais conhecimento da nossa realidade, porque quem vem de fora, e eu que interajo
José Maria Pimentel
com a troika percebi
Miguel Poiares Maduro
isso, às vezes não, eles veem as consequências dos problemas, mas não sabem fazer um diagnóstico correto dos problemas, porque não conhecem a nossa cultura, não conhecem a nossa sociedade. E esse é um problema de quem vem de fora.
José Maria Pimentel
E eles vêm... Por acaso é interessante falar dessa sua experiência, porque a impressão que eu tenho é que esse tipo de missões, como são normalmente constituídas por pessoas, enfim, ou de origem ou pelo menos de educação, ou seja, de formação de países ou do Norte da Europa, ou da Europa Central ou até dos Estados Unidos, tende a escapar-nos muitas vezes a infraestrutura cultural por trás das coisas, ou seja, eles têm uma lógica instrumental de regras, que é uma lógica que nesse tipo de países cuja cultura é muito baseada em regras funciona, mas que depois em países que têm um substrato cultural mais forte que segue menos essas regras e é mais baseado em relações ou tradições, enfim, coisas mais imateriais, depois não funciona na prática, porque nada serve instituir uma determinada regra, um determinado procedimento, se depois ele só é cumprido de facto, mas não é cumprido na realidade. É difícil
Miguel Poiares Maduro
fazer uma única leitura. Essa é uma componente, seguramente. Não é única, porquê? Porque, em primeiro lugar, varia consoante as pessoas e desde logo a inteligência delas. Eu costumo dizer, as pessoas mais inteligentes e os melhores líderes, por exemplo, são aqueles que sabem que uma das suas primeiras prioridades é perceber aquilo que eles não sabem e portanto que necessitam de buscar competências para saber ou alguém que os complemente. Enquanto muitas vezes são as pessoas menos inteligentes que têm a arrogância de pensar que sabem tudo, independentemente de ouvirem, de irem tentar buscar essas competências. Portanto, desde logo, varia consoante as pessoas e a qualidade desses funcionários. Por outro lado, é verdade que muitos desses funcionários vêm de alguns desses tipos de cultura, de países com esse tipo de cultura, mas há muitos, por exemplo, há muitos italianos que normalmente são pessoas muito preparadas tecnicamente e depois vão para instituições internacionais. Lembro-me de um dos da Troca de Bem em Portugal, ele era indiano, muitas vezes com indicações nas melhores instituições, é verdade, anglo-saxónicas, americanas e etc. Mas também há uma componente muito grande no funcionamento, por exemplo, do FMI, tem muito a ver, é muito determinado, não é apenas por quadros de leitura intelectual, é muito determinado também pelos interesses dos países do FMI, que basicamente os países que emprestam o que querem é o retorno o mais imediato possível do dinheiro. E, portanto, isso, quando se pretende o retorno… Não
José Maria Pimentel
se conduna com mudanças graduais, meu.
Miguel Poiares Maduro
É, não se conduna muito com mudanças graduais, nem se conduna com... E significa que certo tipo de reformas estruturais são compatíveis com isso. Aquelas podem exigir frontloading de medidas, medidas imediatas, mas outras que até poderiam exigir um investimento a médio e longo prazo e poderiam ter mais efeito, perdão, a médio e longo prazo, mas que inicialmente até não poderiam gerar poupança de dinheiro, é mais difícil de fazer isso. Eu dou-lhe dois exemplos, só para ter uma percepção das dificuldades, dos dilemas que se causa bem diferentes. Primeiro tem a ver com a administração pública. No caso da nossa administração pública nós temos uma pirâmide invertida ao nível salarial, que é não ganhando bem, aqueles que ganham na base da administração pública ganham melhor que aqueles que no setor privado, onde nós sabemos que os salários em Portugal são muito baixos, exercem funções semelhantes. E portanto, a nível das funções mais básicas da administração pública, as remunerações até são em termos competitivos com o mercado, comparados com o sistema privado, em termos relativos melhores. Em termos de quadros médios e mais qualificados é o contrário, à medida que sobe na qualificação da administração pública, a administração pública paga pior que o sistema privado. Ora, quando tem de fazer subitamente cortes na massa salarial completa da administração pública, por razões de justiça e equidade social, não vai poder dizer, ah, eu vou cortar aos que ganham menos e vou pagar mais aos que ganham mais, porque é aí que a nossa administração está desqualificada. Este tipo de medidas de consolidação arsemental são incompatíveis com aquilo que é necessário ao nível da reforma estrutural da nossa administração pública, que é exatamente o contrário, que era pagar melhor os que ganham melhores. E portanto desde logo tem aí uma tensão entre dois objetivos. Mas podia-lhe dar outro exemplo? Há quem defenda, eu sou alguém que tem simpatia por esse modelo, uma lógica de funcionamento de financiamento do assínio superior diferente, em que o Estado paga a todos os estudantes, mas paga sobre a forma de um empréstimo que eles devolvem à medida que entrarem na vida profissional e em proporção do que ganharem na sua vida profissional. Portanto, não há risco financeiro para os estudantes, eles só pagarão quando puderem pagar e na sua vida profissional, mas pagarão nessa altura. E agora nem sequer pagariam de todo as propinas que pagam. Portanto era tudo financiado pelo Estado como uma espécie de empréstimo. É um modelo que a Austrália tem, este modelo. O Reino Unido evoluiu para um modelo semelhante a este, mas não é exatamente o mesmo. Este modelo, que podia fazer muito mais sentido, É um modelo que gera mais sustentabilidade no ensino superior no futuro e uma maior relação com o mercado, trabalho, por exemplo, mas que no imediato também iria exigir mais recursos, não menos recursos. Isto para dar um exemplo da dificuldade desse tipo de incentivos. Mas outra coisa, quando eu há pouco falava, também tem a ver com questões culturais de não perceber o que é que numa determinada sociedade vai funcionar ou não funcionar. Eu aos meus alunos dou muitas vezes um exemplo engraçado da Colômbia. Eu até tenho um vídeo que mostra sobre isso, de um presidente da Câmara em Bogotá. A Colômbia tinha um problema enorme de trânsito. Este é um exemplo até que é dado curiosamente na Árvore Business School em Políticas Públicas, lá é um dos casos estúdios que eles mostram. Tinha um problema enorme de congestão de trânsito e durante muito tempo tentaram as medidas tradicionais que se tenta nesse caso, que é fazer pagar mais multas porque os carros não respeitavam os sinais vermelhos, verdes e etc. E portanto isso criava imenso problema, penalizar mais os carros, tudo isso e nada disso funcionava, curiosamente. Nada disso parecia funcionar. Não funcionava porque não andava para cobrar as multas
José Maria Pimentel
ou porque as pessoas...
Miguel Poiares Maduro
Porque não tinha efeito dissuasivo, ao contrário, o custo não estava a causar efeito dissuasivo, até porque era difícil fazer pagar as multas, tudo isso, o sistema de enforcement. Veio um presidente da Câmara, que até era um filósofo, que percebeu, em primeiro lugar, qual era a cultura dos cidadãos de Bogotá. E o que é que ele fez? Colocou palhaços a ridicularizar comportamento das pessoas, em vez de polícias chinaleiros no trânsito, colocou palhaços a fazer parar as pessoas e a ridicularizar os que se comportavam mal e etc. E melhorou em 30% a fluidez do trânsito. É uma coisa extraordinária. Porque ele percebeu aquilo que interagia com a população da sua cidade. E, portanto, é um caso muito curioso que demonstra como é que transpor uma medida de um determinado contexto para o outro não funciona. Aliás, a ciência de comportamento também nos ensina isso. Por isso é que há um exemplo muito engraçado da ciência de comportamento que eu também uso, que é um exemplo retirado de uma creche em Israel, em que os pais chegavam com frequência atrasados para ir buscar os filhos, no final. E então decidiram, bem, vamos começar a multar os pais. Sempre que eles chegarem atrasados, nós multamos que é para ver se eles deixam de chegar atrasados. Os atrasos aumentaram. Porquê? As pessoas passaram a entender aquilo não como uma obrigação moral, mas como um serviço, um preço que pagavam por poderem chegar atrasados. E então decidiram pagar a multa e chegavam atrasados. Aquilo que passou de uma obrigação moral, transformou-se em algo transacionável. E ao ser transacionável as pessoas passaram a achar que eu pago e está bem. É muito curioso. Mostra-nos o cuidado que nós temos de ter a desenhar medidas públicas, porque depende muito daquilo que funciona num determinado contexto ou noutro. E também outra coisa, que é ter a percepção de que qualquer política pública que nós decidamos, por muito bem pensada que está, pode não funcionar e, portanto, um dos aspectos mais fundamentais das políticas públicas é ter um mecanismo de autocorreção. Deve ter um mecanismo de avaliação e de autocorreção por maneira. Porque por muito bem pensada, bem desenhada e bem intencionada, as intenções não fazem boas políticas públicas.
José Maria Pimentel
Sim. E experimentar, já agora, que é uma coisa que em Portugal muitas vezes é mal vista, mas que ajuda precisamente a testar vários modelos e a perceber qual deles é que funciona. Por
Miguel Poiares Maduro
exemplo, a nível... Eu tenho defendido muito isso. Acho que um erro brutal do atual processo de centralização é não ser feito através de projetos pilotos, aliás, como eu tentei fazer. Exatamente. É um absurdo. E aliás, há já esta
José Maria Pimentel
discussão. Até porque podemos fazê-lo, não é? Exatamente. A nossa geografia é suficientemente ampla para precisar de tudo para permitir
Miguel Poiares Maduro
fazer isso. E temos municípios muito diferentes. Achar que podemos centralizar as mesmas competências para municípios com massa crítica ou com realidades totalmente diferentes, é absurdo. Estar a medir qual é o volume financeiro de forma idêntica e uniforme é absurdo. E portanto isto ia ser feito através de projetos-piloto, diz muito da forma como se pensam e fazem políticas públicas em Portugal. Sim, sim.
José Maria Pimentel
Miguel, já agora voltando à do palhaço, eu não percebi exatamente porque é que aquilo funcionava. Porquê é que as pessoas ficavam...? Porque ele percebia que mais do
Miguel Poiares Maduro
que o incentivo financeiro da penalização da multa, que ainda por cima era difícil eles depois executarem e fazerem enforcement, porque andar atrás das pessoas, fazer cumprir, tudo isso, provavelmente tinha um sistema também de polícia e de tribunais difícil que levava às multas, como nós também temos em Portugal, tornava aquilo dificilmente credível, não é? As multas. O efeito de ridicularização do comportamento de pessoas, no momento, levava as pessoas a induzir a aceitarem. Portanto, o trânsito era gerido... Eu tenho esse vídeo que mostra os alunos no fundo as pessoas tinham mais respeito dos palhaços do que dos polícias chineleiros porque por causa da cultura em que a polícia tinha perdido a autoridade naquele domínio do trânsito mas é que o ridículo de serem expostos naqueles comportamentos dos palhaços, já
José Maria Pimentel
não. Sim. Depois já agora vi, se puder, esse vídeo que eu ponho aqui depois nas referências do episódio. Tá bem. Mas esse por acaso é um exemplo interessante, até porque o próprio trânsito é uma arena interessante pelo comportamento humano. É verdade. Há uma série de comportamentos que a pessoa não teria se tivesse que sair do carro para o justificar a seguir. Há coisas um bocado bizarras. Aliás, eu lembro-me do episódio que gravei com o Pedro Magalhães, que foi logo no início do podcast. Falávamos do capital social, ou confiança interpessoal do Putman, Exatamente. E ele dava como exemplo em Portugal precisamente o trânsito. Ele falava, por exemplo, daqueles cruzamentos que têm aquela grelha pintada amarelo para as pessoas não pararem no meio e as pessoas param todas no meio porque basicamente pensam se eu não avançar o tipo que está à minha direita vai avançar ou à minha esquerda e portanto tira-me um lugar a mim ou o exemplo de... Que eu acho que é mais relevante para esse caso que é o de paragem em segunda fila. Sim,
Miguel Poiares Maduro
é um problema que nós temos de falta de confiança interpessoal. E há-de estar quando eu dizia há pouco que o vício, o ciclo vicioso da falta de confiança dos cidadãos do Estado e depois do Estado nos cidadãos era muito responsável pelos nossos problemas de desenvolvimento e de crescimento, tem a ver com isso. Por essa falta de capital social que determina.
José Maria Pimentel
Ou seja, o capital social é uma coisa que comprovadamente evolui muito lentamente, muito mais lentamente do que nós quereríamos. Aliás, Itália, é um caso de conhecidos, tudo por causa disso, do sul verso o norte. A sua tese é que atualmente o capital social está... Que já não era excelente.
Miguel Poiares Maduro
Está a diminuir. Isso até o próprio Putman tem dito. Ele próprio tem. Ele tem dito isso, eu vi numa conferência, Agora já está com uma idade muito avançada, mas a última vez... Eu já ia dizer isto, parece tudo tão próprio. Já foi antes, eu já estive no governo há 7 anos, foi para aí há 10 anos. Já não foi assim tão recentemente, mas já foi bem depois do Boling Alone. Já depois disso ele continuava a achar que o capital social estava a diminuir bastante. E é normal, porque... Mas, embora se calhar estão-se a criar novas formas de capital social nas redes sociais, não é? Mas, por exemplo, o Paul Kahn, que é o outro grande filósofo político americano e que é meu co-autor do livro, ele tem uma visão ainda mais catastrófica do que eu, não é? Ele acha que a internet está a destruir essas instituições de intermediação e que criavam capital social. Para ele é criação de virtudes cívicas. Exato. Ele acha que as virtudes cívicas são fundamentais ao funcionamento, e eu também concordo em boa parte com ele, da democracia. E acha que essas organizações, não necessariamente que ele seja religioso, por exemplo, mas como a religião funcionava, mas os sindicatos, as associações civis, tudo isso, o desaparecimento disso, no fundo, está a diminuir essas organizações cívicas e o desaparecimento dessas organizações é o desaparecimento de capital social também.
José Maria Pimentel
E os Estados Unidos são, aliás, um caso em que essa diminuição do capital social está mais ou menos comprovada nos números. E a tese dele de certeza que é muito influenciada por isso. Ele diz, aliás, que não estou a errar, que se vive uma guerra civil nos Estados Unidos, só que é uma guerra
Miguel Poiares Maduro
civil que não se manifesta em armas, mas que se manifesta em intenções culturais. E que depois se manifesta também na incapacidade das instituições políticas desempenharem as suas funções. Eu diria, incapacidade das instituições políticas reconciliarem os interesses diferentes e conseguirem cozer, digamos, um interesse comum. É aquilo que eu falava há pouco, que é muito importante que as democracias consigam. As democracias não podem ser apenas um fator de fragmentação, não podem assentar apenas na fragmentação. Têm de ter capacidade também de transformar esses interesses diferentes em algo comum, se não existir isso, a polarização e a radicalização. Esse é um bom ponto, sim, sim.
José Maria Pimentel
Sim, porque a democracia, e as democracias liberais em particular, são a maneira de gerir uma sociedade com essa fragmentação. Mas funcionam tanto melhor quanto dentro dessa fragmentação consigam criar pontos comuns. É uma boa maneira de resumir. Miguel, estamos a aproximar do final da conversa, vou fechando os parênteses que nós abrimos no sentido inverso para tentar organizar isso. Acho que isso é um bocado otimista esperar que vamos fechar os parênteses todos, mas tudo bem. Alguns, pelo menos. Um ou dois. Voltando às soluções em relação aos partidos, ou seja, à maneira como os partidos podem reconfigurar, nós não estamos de certa forma a tentar quadrar um circo, porque o que nós vemos agora é uma espécie de tensão entre o sistema e a população, podemos dizer. Há um livro muito interessante do Yasha Monk que se chama precisamente The People Against Democracy, porque é a população contra as instituições. E se nós estamos a tornar os partidos mais próximos ainda dos cidadãos, pelo menos no curto prazo, um cínico dirá que isso ainda vai produzir efeitos piores. Porque o que nós vamos ter é algo como aconteceu nos Estados Unidos, em que foi precisamente a existência de primárias que permitiu ao Trump controlar aquela eleição, contornando a vontade das fias do partido.
Miguel Poiares Maduro
Não necessariamente Depende da natureza das primárias e como estão organizadas, do meu ponto de vista. E de novo, nós não podemos importar uma solução de um país para o outro. Podemos dizer que a realidade do que não funciona cá em Portugal é diferente do que não está a funcionar nos Estados Unidos da América. Sim, bom ponto. E desde logo o nosso problema fundamental aqui é uma atrofia dos partidos políticos com uma base de participação dentro dos partidos políticos que é muito pequena. Eu costumo dizer, se o meu partido conseguisse ter uma base de militância ativa muito maior do que aquela que tem, eu estaria muito mais à vontade sem primárias abertas. Eu acho que as primárias abertas, nós temos de ponderar as primárias abertas porque a base de participação militante se tornou tão pequena e, portanto, a partir do momento em que se torna tão pequena, isto tem duas consequências. A primeira é que o partido tem uma base de representação muito limitada e, em segundo lugar, os riscos de captura do processo eleitoral são muito grandes. Se a participação eleitoral é muito pequena, o risco de ser controlado por sindicato de votos torna-se exponencialmente maior. Portanto, nós não podemos ignorar que esse é o problema que nós temos. Se esse é o problema, quais são as soluções que nós podemos ignorar? Isto não quer dizer que as primárias, por isso é que eu disse logo, nenhuma destas soluções é milagrosa. As primárias, pois, trazem outro tipo de problemas e nós temos de tentar mitigar esses problemas. Mas o segundo aspecto fundamental é que eu acho que o trazer mais próximo das pessoas é sobretudo ser suscetível de gerar confiança, de repor a confiança perdida na classe política. E aí tem muito a ver com os tais testes de integridade, com a prevenção de conflitos de interesse, com a prevenção da partidarização do Estado, tudo isso. A
José Maria Pimentel
minha pressão é precisamente essa, é que nós temos que atuar dos dois lados. Por um lado, aproximar as pessoas da política. Aproximaste, elas já estão próximas. Dar-lhes maneiras de participar mais e, por outro lado, criar mecanismos que assegurem que a classe política é idónea, digamos assim.
Miguel Poiares Maduro
Aliás, há um aspecto interessante que falou agora, que é sobre a questão da participação política das pessoas. Nós, num dos estudos que fizemos na Gulbenkian, aliás, um dos coordenadores, não era o único, mas um dos coordenadores era o Pedro Magalhães, do que tem falado, sobre a participação política dos jovens. O
José Maria Pimentel
Pedro vai gostar de ouvir este episódio, já. A gente vai ser mesmo pela mestreira.
Miguel Poiares Maduro
Eu gosto muito do Pedro e acho que é um excelente investigador. E uma das conclusões a que eles chegaram, muito interessante, é que ao contrário do que muita gente julga, os jovens querem participar politicamente mais e estão a participar mais politicamente no sentido em que se interessam mais por temas políticos e se mobilizam mais em torno de questões políticas e cívicas. O que acontece é que eles estão a participar muito menos através dos partidos políticos, porque não confiam nos partidos políticos. Portanto, isto confirma aquilo que eu digo, não é? Há procura. Essa procura não é satisfeita pelos partidos políticos tradicionais, não é? Portanto, eles ou vão para novos movimentos políticos, por exemplo, acho que a iniciativa liberal aí, claramente, para os jovens é um mecanismo de participação, porque eles sentem que eles representam interesses. No fundo sentem que os partidos tradicionais são os partidos do Estado Social que existe, mas que esse Estado Social é um Estado Social a que eles não têm acesso. E portanto a indecisiva liberal é o que defende os que estão excluídos desse Estado social, que são os jovens fundamentalmente. Ou, quando não encontram partidos políticos, vão para novas formas, para novos movimentos de organização social, novas formas de participação social.
José Maria Pimentel
É, E as redes sociais têm tido um efeito que eu acho que se fala pouco de aumentar o interesse das pessoas, inclusive é dos jovens pela política, nem sempre da melhor forma no curto prazo, mas têm tido esse efeito.
Miguel Poiares Maduro
Mas também têm tido, e eu sou muito cético, não sou tão catastrofista como o Paul Kahn, mas também sou muito cético e identifico muitos riscos na internet, mas também já apresentei soluções como pluralismo de algoritmos, tudo isso, para tentar mudar a forma de funcionamento das redes sociais, Mas mesmo hoje em dia também não podemos escolher. Uma das coisas interessantes que as redes sociais trouxeram é o encontro lá, incluindo a nível de jovens, vozes que antes não encontrava, não conhecia e que vai de redes jovens inteligentes, bem preparados e com interesse político e que vão buscar. Eu tive durante um período muito breve agora recentemente uma responsabilidade perena de tentar trabalhar num programa político de um candidato do meu partido, sabe isso, não é? Quando foram as diretas do PSD e o Paulo Angela, eu era coordenador do programa eleitoral, e comecei a ver aí, a começar a entrar em contato e estava a ver vários jovens que eu desconhecia de todos e que foi através muitas vezes de redes sociais e através depois de outros jovens encontrados aí com ideias muito interessantes e muito bem preparadas em áreas de políticas públicas que eu desconhecia. E portanto, se os partidos políticos forem inteligentes, têm aí um campo de recrutamento muito interessante também. Sim.
José Maria Pimentel
Eu infelizmente já estou a deixar de ser jovem, portanto não corro risco de falar em causa própria. Posso confirmar isso. Miguel, última pergunta, e para ver que acho que vou conseguir o objetivo de fechar pelo menos os grandes parênteses. Voltando ao início, ao outro lado deste fenómeno que é o aumento do autoritarismo. É engraçado porque quando começou a guerra na Ucrânia, ou a invasão da Ucrânia, houve uma série destes efeitos que pareceram funcionar de maneira oposta. O Ocidente se tornou mais unido, se tornou mais operante, os partidos do sistema, se nós quisermos, que estão no poder na maioria dos países, se tornaram mais operantes do que tinha acontecido até ali. As redes sociais, de que se fala na maioria das vezes dos efeitos negativos, funcionaram bem e foram essenciais para, não só para as pessoas se unirem mas para transmitirem informação, neste caso não em fake news mas em actual news daqueles países. Por outro lado os efeitos negativos do autoritarismo tornaram-se altamente visíveis, Que melhor manifestação concreta que nós poderíamos ter do que um líder autoritário tomar conta de um país para invadir outro. E no entanto, pouco tempo evoluído, nós tivemos Vítor Orbán a conseguir ser eleito outra vez na Hungria e temos Marina Pena a morder os calcanhares de Macron e aliás eu devo dizer que quando este episódio for publicado nós já se vai saber o resultado das eleições, portanto não sabemos. À partida Macron consegue ganhar a mesma, mas é possível que não, não é? E portanto aquilo que pareceria ser uma vacina não foi, não é? Temos
Miguel Poiares Maduro
que ter cuidado com isso à partida. Pois, pois, pois. Eu espero bem que sim, mas Eu tenho lembrado várias pessoas recentemente, atenção que nós não podemos confundir aquilo que nós desejamos tanto, alguma coisa, que depois lemos a sociedade e aquilo que está a acontecer em nosso redor em função daquilo que nós desejamos. E leva-nos a conceber como inconcebível certas coisas. E foi assim com o Brexit. A eleição de Trump era muito menos provável. Exato, eu ia dizer isso. Foi assim com o Brexit, foi assim com o Trump. Ninguém achava que era concebível. Ah, eles estão a crescer e tal. E depois foi o que foi. E portanto, vamos ver, espero bem que sim, mas
José Maria Pimentel
vamos ver. Temos de ter preocupação com isso. Mas porquê que acha que isto não foi um reality check para o seu aglicismo para os eleitores de França, por exemplo? Primeiro
Miguel Poiares Maduro
temos de ter cautela com como lemos as redes sociais, porque nós os dois estamos a ler uma parte das redes sociais. Tem a ver, desde logo, com os algoritmos que nos tendem a dar aquilo que nós gostamos de ouvir e de ver. E, desde logo, em termos geográficos, mas não só, Há um estudo muito interessante que demonstra que os russos basicamente têm promovido contas falsas e a disseminação das suas teses e da sua desinformação em regiões do globo que não são a Europa, porque no fundo eles acharam que não iam conseguir combater a nível europeu com os canais tradicionais e portanto onde as contas russas falsas e a disseminação de informação falsa com as teses russas mais está a progredir nandia, no sul da África, na América do Sul, e é aí que eles estão a apostar. E, portanto, nós estamos a ler aquilo, quando há pouco dizia, porque se tornou visível, isto e isto assim. Atenção, para nós, na nossa bolha das redes sociais. Não, eu acho
José Maria Pimentel
que houve uma união em torno da condenação da invasão da Rússia nos países europeus, entre a população.
Miguel Poiares Maduro
Se calhar não. Se calhar
José Maria Pimentel
nós temos de achar que
Miguel Poiares Maduro
houve mais do que foi na realidade. Eu acho que houve uma grande união, mas não foi assim tão grande como se calhar nós achamos que foi. Eu vou a Itália ainda regularmente e a Itália que sempre é um país que tem uma relação de alguma proximidade com a Rússia e de uma elite muito próxima da Rússia. E nós vemos isso mesmo na elite em Portugal, que começam a aparecer. Quer dizer, Jaime Nogueira Pinto, Miguel Souza Tavares. Quer dizer, pessoas em Itália maior com outro tipo de leitura. Portanto, aquilo que nos parece tão óbvio não é assim tão óbvio como isso. E em segundo lugar, aquilo que explica a eventual vitória do Orbán e o crescimento da Marine Le Pen são também variáveis nacionais que são sempre mais importantes que as variáveis de política internacional. Em última análise as eleições decidem-se por circunstâncias internas e não por circunstâncias internacionais. Eu penso que no caso do Orbán, quer dizer, não podemos ignorar o crescimento económico que a Hungria tem tido durante o seu período no governo. Portanto, as pessoas sentem-se satisfeitas, ponto. Estão-se pouco a importar com os outros limites e em segundo lugar o controle do espaço comunicacional que ele tem, não é? Atenção. Com o regime dele a Hungria é uma democracia já com muitas falhas, e falhas significativas ao nível do controle da opinião pública e do espaço comunicacional. E isso não deixa de ser relevante. E em França temos o crescimento daquilo que eu dizia, de camadas muito substanciais da população, tal como se assistiu nos Estados da América com o Trump, que entendem que não são representadas pelo sistema político tradicional. E Macron, num certo sentido, beneficiou disso. Porquê? Porque Macron ultrapassou os partidos tradicionais e transformou o sistema francês numa luta entre os moderados versus os radicalizados. Mas essa transformação política criou um problema, que é a ausência de programas políticos alternativos dentro daquilo que era um espaço de grande moderação e facilitou a Le Pen a parecer como do outro lado está a elite, deste lado está o povo. E a dicotomia é essa e não passa a ser uma dicotomia entre dois programas políticos, um mais à esquerda e outro à direita. Portanto, o grande problema transformou-se nisso e isso facilita o crescimento da Le Pen.
José Maria Pimentel
É um bom ponto. Miguel, vamos terminar. Que livro é que recomenda? Que livro é que nos traz?
Miguel Poiares Maduro
Eu estou aqui a hesitar entre dois.
José Maria Pimentel
Pode ser os dois. Um que ainda
Miguel Poiares Maduro
por cima não existe uma tradução, uma das dificuldades também é que não existe uma tradução em português e que é de um outro professor americano com quem eu trabalhei bastante e fui até inicialmente um discípulo e depois escrevi com ele, que é Neil Comezard, que acentua muito a importância... Os dois têm um ponto em comum, os livros, embora de forma diferente, sobre as instituições e a importância das instituições. O Comesar acentuou muito a ideia de que as escolhas principais que nós fazemos em termos de políticas públicas não têm a ver com as finalidades das políticas públicas, mas sim com os processos de decisão e as instituições que vão determinar se nós atingimos ou não essas finalidades. No fundo, o Comensal alertou para o risco de grande parte das nossas discussões centrarem nos fins. Quando os fins é o mais consensual e na realidade aquilo que nós estamos a escolher é entre diferentes processos de decisão para atingir essas mesmas finalidades. E nós devíamos estar a discutir esses processos de decisão. E o segundo aspecto que ele acentua e que eu digo muitas vezes às pessoas que trabalham comigo é que esses processos de decisão, essas instituições, são todos eles imperfeitos. Nenhum deles vai funcionar de forma perfeita. Todos têm problemas e, portanto, nós temos de ter a percepção, quando estamos a escolher entre políticas públicas e quando estamos a desenhar instituições para implementar ou promover políticas públicas, temos de ter a percepção que estamos a escolher entre alternativas imperfeitas. E o livro dele aliás chama-se, esse primeiro livro chama-se Imperfect Alternatives. E esse é O primeiro ponto que eu digo sempre às pessoas que trabalham comigo, não se esqueçam, as escolhas que nós fazemos são entre alternativas imperfeitas e é um equívoco. Quer olharmos para a alternativa atual e ver nela problemas e achar que isso é uma justificação para a substituir por outra, não é em si mesmo, não é. Porque só será se a outra for menos imperfeita. Mas a outra também será seguramente imperfeita. E em segundo lugar, é o risco de nós concebermos as alternativas sempre de forma idealizada. E portanto, desenvolvemos políticas públicas, lá está muito terminados pela finalidade que queremos atingir, esquecendo que essa finalidade não é aquilo a que nós vamos chegar. Nós podemos aproximarmos ou não disso, dependendo do processo de decisão e das instituições que vão conduzir a isso. E o segundo livro, também tem muito a ver com a questão das instituições, Esse já existe uma tradução em português que é, penso que... Em inglês é Why Nations Fail, em português penso é Porque Falham as Nações, do Acemaglo e do Robinson. E é um livro, para mim, particularmente importante para Portugal, Porque eu acho que o problema principal de Portugal é a fraca qualidade das instituições e que as nossas instituições entram precisamente dentro da categoria daquilo que eles chamam de instituições extrativas. Exatamente. De uma sociedade em que as pessoas votam mais energia a tentar obter uma renda dos poucos recursos existentes, e neste caso distribuídos e concentrados no Estado, do que em criar mais recursos. E acho que é muito importante, se eu pudesse, aconselhar a todas as pessoas... Sim, sim,
José Maria Pimentel
sim. Porque em Portugal... D-me muitas vezes esse livro,
Miguel Poiares Maduro
sim. E estes dois livros têm algo em comum, que é acentuar a importância das instituições ao que em Portugal nós quase não discutimos. Então no debate político praticamente ignora-se isso. Acho que discutimos um pouco mais já, o que não é mau. Um bocadinho, mas calhar é numa elite. Pois talvez, talvez. No debate político isso não existe. For ver nas eleições, ninguém discutiu isso, a qualidade das instituições, ninguém discutisse. Eu costumava dizer mesmo que quando estava no governo, foi das coisas a que eu devotei mais atenção, a importância foi o desenho das instituições, Ninguém valorizou isso. Um político que... Quer dizer, o único caso em que as pessoas hoje em dia mais notam foi a mudança do modelo de governo da RTP, por exemplo. Mas na altura, por exemplo, quando eu fiz isso, tive imensa oposição, incluindo dentro do meu próprio partido. E em geral na nossa classe política as pessoas achavam inconcebível a ideia de um modelo institucional que tirasse o poder do governo. Porque é que eu ia abdicar eu de decidir o que é que a RTP devia fazer.
José Maria Pimentel
É uma questão de mentalidade também, não é? Não perceber que isso é a causa última de tudo, não é? De
Miguel Poiares Maduro
tudo o resto. É a causa das causas.
José Maria Pimentel
É a causa das causas. Exato. Bom, Miguel, terminamos e já agora, por falar em instituições, o Miguel está agora ligado à Gulbenkian onde é presidente da Comissão Científica do Fórum Futuro que tem feito uma série de trabalhos nesta área, tanto a pensar o mundo como a pensar o país. Não sei, se quiser fazer um product placement no final, esteja
Miguel Poiares Maduro
a votar. Sim, eu logo aconselhava as pessoas a irem ao site da Gubenkian e do Fórum Futuro na Gubenkian, que abaixo se escreve em Fórum Futuro Gubenkian, e a partir de lá têm acesso a um conjunto enorme de estudos. Eu assento em que precisamente estudos de relação a políticas públicas sobre as nossas instituições, procurando fazer esse trabalho de capacitação, se quiser, do nosso espaço público. Não são recomendações de políticas públicas, são diagnósticos e pontos de partida para termos uma melhor qualidade no debate público sobre as nossas políticas públicas e uma maior capacidade de transferência de informação para aqueles que são os decisores públicos, para aqueles que depois vão decidir sobre políticas públicas. E aconselhava, em particular, dois conjuntos de estudos. Um, que é os projetos da justiça interracional, lá está que tem precisamente a ver, que demonstram como as gerações mais jovens hoje em dia estão a ser, não sei dizer, prejudicadas no acesso à habitação, no mercado de trabalho, em muitos aspectos. Mas o segundo, talvez aquele de interesse mais geral para todos, é o exercício que nós fizemos ao longo de dois anos, que é um exercício de cenarização do país, o Foresight Portugal 2030. Vários países lá estão, têm instituições públicas que fazem esse trabalho, nós não temos em Portugal e quisemos nós fazer isso, que é discutir quais são as grandes tendências do país, quais têm sido as grandes tendências do país e do mundo à nossa volta. Porque percebendo quais são as nossas grandes tendências e quais são as grandes tendências do mundo à nossa volta, que nós estamos em melhor condição para decidir o que devemos fazer. E nós desenvolvemos três grandes cenários, como eu já disse, são modelos heurísticos, no sentido em que nenhum deles é um cenário daquilo, não é uma previsão do que vai acontecer, nem sequer é uma proposta do que deve acontecer. São formas de conhecer, quer aquilo que é o país hoje em dia, quer os desafios com que o país se confronta para o futuro, cenários mais ambiciosos, outros menos ambiciosos, em relação à forma como nós podemos lidar com esse futuro.
José Maria Pimentel
Boa, excelente. Miguel, muito obrigado. Muito
Miguel Poiares Maduro
obrigado, eu. Até à próxima.
José Maria Pimentel
Este episódio foi editado por Hugo Oliveira. Visitem o site 45graus.parafuso.net barra apoiar para ver como podem contribuir para o 45 Graus, através do Patreon ou diretamente, bem como os vários benefícios associados a cada modalidade de apoio. Se não puderem apoiar financeiramente, podem sempre contribuir para a continuidade do 45 Graus avaliando-o nas principais plataformas de podcasts e divulgando-o entre amigos e familiares. O 45 Graus é um projeto tornado possível pela comunidade de mecenas que o apoia e cujos nomes encontram na descrição deste episódio. Agradeço em particular a Ana Raquel Guimarães, Júlia Pichini, Família Galaró, José Luís Malaquias, Francisco Hermano Gildo, Nuno Costa, Abílio Silva, Salvador Cunha, Bruno Heleno, António Lima, Helena Monteiro, Pedro Lima Ferreira, Miguel Van de Mouden, João Ribeiro, Nuno Pinheiro, João Baltazar, Miguel Marques, Corto Lemos, Carlos Martins e Tiago Leite.
Miguel Poiares Maduro
Legendas pela comunidade Amara.org