#118 Caetano Reis e Sousa - O que faz do sistema imunitário o mais complexo a seguir ao cérebro?

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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45 Graus. Este é um episódio muito especial para mim. Finalmente posso anunciar-vos que o livro que escrevi a partir do podcast, Política a 45 graus, já tem data oficial de publicação. Vai para as livrarias no próximo dia 21 de abril. E mais, a partir de hoje o livro já está em pré-venda online. Já está no site da Bertram e nos próximos dias há de aparecer também noutras livrarias. Por isso, embora o livro só chegue às prateleiras das livrarias físicas no dia 21, podem já comprá-lo online para garantir que são os primeiros a recebê-lo. Deixo o link na descrição do episódio. Para ficarem a saber em mais detalhe aquilo de que trata este Política a 45°, sugiro que leiam a sinopse e, caso não tenham feito, que ouçam a introdução do episódio 116, com Pedro Gomes, em que eu explico com algum detalhe o conceito do livro e aquilo de que trata cada uma das duas partes. Ao longo dos próximos episódios vou-vos também mantendo a par de novidades e esclarecendo dúvidas que me vão enviando entretanto. Se gostaram dos episódios do 45 Graus, da série de orientações políticas e, em geral, dos vários episódios que discuti com diferentes convidados, tendências políticas atuais como o populismo e a polarização, posso dizer-vos com alguma confiança que irão gostar ainda mais deste livro. Porque no livro, partindo dos excertos de algumas dessas conversas, exploro em maior profundidade esses temas e desenvolvo algumas das ideias dos convidados e minhas que ouviram nesses episódios. Quando comecei a escrever o livro, o meu objetivo inicial era, na verdade, cobrir um leque de temas mais abrangente, mais próximo do que acontece aqui no podcast, em que falo tanto de política como economia, educação, ciência ou filosofia. Mas rapidamente percebi que só havia duas maneiras de conseguir fazê-lo e nenhuma delas era ideal. Ou isso implicaria escrever um livro gigantesco, de maneira a conseguir abordar com o mínimo de profundidade estas várias áreas, ou então pelo contrário iria resultar num livro demasiado superficial. Este Política a 45° foca-se então em temas da esfera da política, mas fala com o estilo habitual do 45°, tal como este podcast é por isso um livro para pessoas de mente aberta, com vontade de ser desafiados e com interesse e disponibilidade em olhar para cada tema, sob vários ângulos e em ouvir e tentar compreender diferentes pontos de vista. Portanto, se gostam do 45°, estou convicto que também gostarão deste Política a 45°. Como disse, podem comprá-lo online já a partir de hoje, O lançamento oficial será dia 21 e na semana a seguir haverá três sessões de apresentação, uma em Lisboa, outra no Porto e outra em Coimbra. No próximo episódio partilho convosco as datas ao certo destas sessões e quem serão os apresentadores de cada uma delas. E agora vamos ao episódio de hoje que trata, como dizia o outro, de um tema completamente diferente, neste caso, imunologia. A biologia é de uma complexidade incrível e o corpo humano é bom exemplo disso. A combinação de órgãos, tecidos, células, moléculas, entre várias outras componentes que constituem o nosso corpo, não só conseguem a prueza de produzir um organismo funcional, como, para a maioria de nós, tirando um ou outro percalço em que precisamos de ir à oficina, o nosso corpo é capaz de desempenhar todas as funções necessárias à vida durante 7, 8 ou mesmo mais décadas. Isto é algo que não se pode dizer propriamente da maioria dos eletrodomésticos, carros ou mesmo computadores. É por isso que, mesmo com os avanços da ciência, há ainda muitos mistérios que persistem sobre a biologia. E da mesma forma, mesmo com os enormes progressos que têm havido na tecnologia, aquilo que podemos chamar a engenharia natural, continua a estar, na maioria das áreas, muito à frente daquilo que conseguiríamos criar artificialmente. Um exemplo óbvio disso é o cérebro, onde apesar dos progressos enormes na computação, Continuamos muito longe de criar algo que se assemelhe a uma inteligência artificial tão abrangente como a mente humana. E a seguir ao cérebro, o sistema biológico mais complexo que conhecemos é precisamente o sistema imunitário. O sistema imunitário é composto por uma rede vasta e intrincada de órgãos, células e moléculas que agem de forma coordenada em todo o corpo para nos protegerem de todo tipo de agressões, sejam elas vírus, bactérias, fungos ou mesmo lesões. A forma como todas as componentes deste sistema interagem entre si, e também com outros órgãos e células do nosso corpo, é tão complexa que ainda hoje não a compreendemos completamente. Ao mesmo tempo, a centralidade do sistema imunitário no corpo de organismos vertebrados como nós implica que, para respondermos à maioria dessas dúvidas, temos também de conseguir responder a questões ainda mais vastas da biologia como um todo e de perceber como é que a própria evolução, e a evolução também das próprias bactérias e dos vírus, determinou a forma e o funcionamento do sistema imunitário. O convidado de hoje é quase a pessoa ideal para discutir este tema. Caetano Reis e Sousa é doutorado em Imunologia pela Universidade de Oxford e é atualmente diretor assistente para a investigação no Francis Creek Institute em Londres, onde há também senior group leader do Laboratório de Investigação em Imunologia. A investigação do convidado centra-se especificamente nos mecanismos celulares e moleculares envolvidos na detecção de infeções, cancro e outras lesões pelo sistema imunitário. Durante a nossa conversa comecei por pedir ao convidado para explicar em traços gerais como funciona o sistema imunitário. Como veremos, o sistema imunitário dos vertebrados tem duas componentes distintas que atuam em momentos diferentes da infecção. No momento inicial, quando o agente patogénico entra no corpo ou sofremos uma lesão, a primeira resposta é dada pelo chamado sistema inato. Só que as armas deste sistema são, digamos, pouco diferenciadas e por isso, por vezes, não são suficientes para develar a infeção. Quando isso acontece, entra em funcionamento o outro sistema que tem uma resposta mais potente e específica para aquela bactéria, vírus ou fungo. É neste segundo sistema, da chamada imunidade adquirida, que pensamos quando pensamos na resposta imunitária do corpo, por exemplo, aos vírus da gripe ou da covid-19. E este segundo sistema da imunidade adquirida tem ele próprio duas vertentes que atuam em paralelo para combater a infecção. Uma através das células B, que produzem os conhecidos anticorpos, para atacar diretamente os patogénios, e outra através das células T, que atuam diretamente sobre as células já infetadas por aquela bactéria ou vírus. Embora o sistema imunitário seja, de facto, extremamente eficaz, ele tem, como todos os sistemas biológicos, limitações e falhas, que também discutimos neste episódio. São casos dissas alergias, mas também doenças auto-imunes e mesmo o facto, que ainda não compreendemos totalmente, de irmos perdendo ao longo do tempo a imunidade que adquirimos ao vírus da covid-19, seja por termos tido já a doença, seja por termos sido vacinados. Para além de nos proteger de infecções causadas por agentes externos, o sistema imunitário tem também a capacidade de destruir células cancerígenas. Esta é uma vertente que ainda não é totalmente compreendida, mas está na base de uma das áreas de ciência de ponta da atualidade que também discutimos no episódio. Hoje em dia há vários laboratórios onde se tenta desenvolver as chamadas vacinas terapêuticas contra o cancro. Estas são vacinas que tentam, basicamente, direcionar o sistema imunitário das pessoas doentes para colocar o seu sistema imunitário a combater o cancro no seu organismo de forma mais direcionada e a maior escala. Esta foi por isso uma conversa muito rica, boa para quem, como eu, se interessa por temas muito diferentes, mas é também uma conversa com alguns ensinamentos muito práticos. Durante a conversa vão ficar a saber, por exemplo, se devemos lavar zelosamente as nossas mãos várias vezes ao dia, ou se pelo contrário, isso não é bom porque nos impede de ganhar imunidade, vão perceber se é possível ou não estimular o nosso sistema imunitário e finalmente vão ficar a perceber se a febre é só uma chatice que devemos tentar baixar o mais rapidamente possível através de medicamentos ou se tem alguma função no nosso organismo em melhorar a resposta às infecções. Deixo-vos então agora com Caetano Reis e Sousa, mas antes disso, como de costume, queria agradecer aos novos mecenas do 45 Graus, Isabel Moita, Dário Rodrigues, Tati Lima, Carla Bosco, Pedro On The Road e João Alves. Muito obrigado a todos e até ao próximo episódio. Então, muito bem-vindo ao 45 Graus, Obrigado por ter aceitado o meu convite. Um prazer, muito obrigado pelo convite. Neste tema tenho que começar com uma pergunta aberta e é uma pergunta que eu sei que traz sueira. Traz sueira isto é, ingrata, é a minha palavra melhor. Sendo o sistema imunitário como às vezes é descrito o segundo sistema biológico mais complexo a seguir ao cérebro humano Eu sei que é uma pergunta ingrata, é ingrato começar assim a conversa, mas tem que ser. O que é o nosso sistema imunitário, como é que ele funciona, a que é que ele reage e como é que ele funciona assim em traços gerais, para depois podermos começar a partir pedra a partir daí? Ora
Caetano Reis e Sousa
bem, o sistema imunitário é um sistema de defesa contra infecção e outros tipos de insultos, tais como o cancro e às vezes também a destruição dos tecidos. E É um sistema que deteta estes desvios da homeostase e que tenta reagir de maneira a restabelecer essa homeostase. No caso da infecção, isso manifesta-se como a eliminação do patogénio. No caso do cancro, seria o controlo do crescimento dos tumores e no caso de tecidos que tenham sido destruídos é a reparação desses tecidos. É um sistema complexo, construído à base de células brancas que estão espalhadas pelo corpo fora e por isso nós normalmente não consideramos o sistema imunitário como um órgão, mas se essas células brancas estivessem todas em conjunto, ocupariam uma massa equivalente àquela do cérebro humano, portanto É um órgão, digamos, substancial, mas um órgão disperso pelo corpo fora. Para além dessas células brancas, e há vários tipos de células brancas, glóbulos brancos, que têm funções específicas na resposta imunitária, todos os tecidos em si, as células dos tecidos, podem desempenhar funções também na resposta imunitária e podem reagir contra a infecção e podem também fazer parte do sistema que deteta o crescimento, por exemplo, de um tumor ou alguma ferida que tenha levado a uma distribuição de células no local. E, portanto, é um sistema que, como todos os sistemas biológicos, funciona muito à parte de sensores, detectores, que desencadeiam uma resposta e, portanto, Há todo um processo de transdução do sinal, portanto, da detecção até desencadear o tipo de resposta apropriada àquele tipo de insulto e depois há a resposta em si e no fim dessa resposta imunitária há a parte toda que tem a ver com o voltar à base, digamos, e desativar os processos todos que foram ativados, até porque muitos deles, eles próprios, causam destruição dos tecidos e, portanto, tem que ser um sistema muito bem controlado, que tem que reagir quando é necessário, mas tem que ser desativado rapidamente quando já deixa de ser necessário. Exato. E então vamos começar no
José Maria Pimentel
início desse processo. Uma dúvida que me surge logo a pensar neste processo de resposta do sistema imunitário é como é que as nossas células, e aqui presumo que sejam tanto as de tritamento do sistema imunitário como o resto das nossas células espalhadas pelo corpo, que também tem esse papel na detecção, como é que elas se distinguem entre, por exemplo, as bactérias boas e as bactérias más? Aquilo que são agentes invasores, de facto, nocivos, patogénios, e aquilo que são uma série de bactérias que nós temos espalhadas pelo nosso corpo e que têm benefício?
Caetano Reis e Sousa
Isso é uma pergunta que nós próprios nos fazemos todos os dias, porque é uma pergunta à qual não temos ainda uma resposta adequada. Mas acho que vale a pena voltar talvez um passo atrás e mesmo antes de falar entre a distinção entre, por exemplo, as bactérias boas e as bactérias más, os comensais e os patogénios, temos já um processo de como é que uma pessoa distingue a presença de uma infeção, digamos, e o facto de não haver infeção. E quando eu aprendi imunologia, a noção prevalente nessa altura é que o sistema imunitário distingue o que se chama self e non-self, portanto, o próprio e o não próprio. E a ideia aí seria que as células do sistema imunitário, quando se desenvolvem, aprendem o que é a constituição normal do nosso corpo, todas as moléculas que fazem parte do nosso ser, e no fundo reagem contra tudo aquilo que não é definido como o ser. Nós sabemos que isso, de certo modo, é verdade, no sentido que, por exemplo, as células T desenvolvem-se no timo onde têm um processo de seleção que elimina aquelas que têm uma reação contra o próprio. Portanto, essas células são eliminadas deixando... Um filtro. Exato, um filtro que deixa depois um grande número de células T que têm depois uma especificidade em princípio contra coisas que não fazem parte do nosso corpo. Daí surge a noção de que podem, nesse caso, desencadear a resposta. Só que o que nós aprendemos desde aí é que talvez o non-self seja necessário para desencadear a resposta mas não é suficiente. E, aliás, todos nós sabemos isso, obviamente, porque todos nós entramos sempre em contacto com uma série de non-self contra a qual não reagimos E o exemplo máximo disso é a gravidez, em que durante nove meses transportamos um ser que é non-self dentro do nosso corpo, contra o qual não reagimos. Portanto, logo aí à partida tem que haver qualquer coisa um bocadinho mais complicada. E então o que se chegou à conclusão, há cerca de 25 anos atrás, é que o que o sistema imunitário reage não é tanto contra non-self, mas contra moléculas ou contra organismos que apresentam moléculas que estão associadas com patógenos. E, portanto, os patógenos seriam, digamos, parte do reino das bactérias, dos fungos e dos vírus. E a ideia aí seria que todos esses organismos têm à partida uma série de moléculas que os distinguem do hospedeiro, de nós, e que fazem parte da sua própria entidade. Portanto, todas as bactérias são bactérias porque hão de ter qualquer assinatura molecular do facto de serem bactérias. Isso é verdade, nós sabemos que, por exemplo, as bactérias têm na sua superfície moléculas tais como o lipopolisacarídeo, assim como moléculas chamadas em inglês peptidoglycans, eu não sei o termo em português, e outras, lipoticoic acid. Todas essas moléculas fazem, no fundo, parte do metabolismo das bactérias, mas não são produzidas pelo nosso próprio metabolismo. E os fungos, da mesma maneira, vão ter vitaglucans, manans e outro tipo de estruturas nas suas cápsulas que não são produzidas pelas nossas células, não são produzidas pelo nosso metabolismo. E daí deu-se conta que, no fundo, algumas das células do sistema imunitário possuem receptores que se ligam precisamente a estas entidades moleculares e, portanto, logo aí à partida, se houver ligação, isso produz um sinal através do receptor para dentro da célula, mas isso quer dizer que obviamente esses organismos têm que estar presentes, porque não há outra maneira de se ligarem a esses receptores. E Isso levou a uma evolução da nossa maneira de pensar, do nosso pensamento, que no fundo transformou a imunologia e que nos levou a perceber que, no fundo, uma resposta imunitária é desencadeada por estas moléculas que, no fundo, são um sinal da presença daqueles organismos, que houve uma invasão dos organismos. O que nos leva, então, isto é uma maneira muito longa de chegar à sua própria pergunta, mas calma, todas essas bactérias, sejam comensais ou sejam patogénias, hão de ter estas moléculas. E mais uma vez chegamos a tal conceito do que é que é necessário e do que é que é o suficiente. E, portanto, aí, logo à partida, não sabemos muito bem exatamente como é que é feita essa discriminação, digamos, entre os comensais e os patogénios. E há várias maneiras de pensar no assunto, uma das quais é que os comensais respeitam as barreiras, digamos. Portanto, nós todos sabemos que Temos uma quantidade enorme de bactérias no nosso intestino grosso. Temos, aliás, mais células de bactérias, ou pelo menos tantas células de bactéria como temos células humanas no nosso próprio corpo. Mas a verdade é que há ali uma no-go zone entre a mucosa, a superfície do intestino e as bactérias, que é respeitada. No fundo há ali uma barreira de muco e de outras substâncias e as bactérias não penetram e o hospedeiro, no fundo, não tem oportunidade sequer de detectar a presença delas. Portanto, é o que se chama, talvez, o demilitarized zone. E, desde que seja respeitada por ambos os lados, há uma maneira, no fundo, de manter o equilíbrio. E
José Maria Pimentel
quando não é, corre mal, não é? Por outras razões, não
Caetano Reis e Sousa
é? Exatamente. E quando não é, corre mal e exatamente é isso que acontece com os patógenos, que não respeitam essas barreiras, portanto, invadem a parte toda aí da superfície epitilial, neste caso, neste exemplo do indestino, mas pode-se pensar também em outras barreiras, nos pulmões ou na pele. Mas, portanto, há um processo de invasão e, portanto, aí há depois a detecção da presença destes organismos pelos receptores que, apesar das bactérias terem estado lá, os comensais terem estado lá, não estavam a ser ligados e a desencadear uma resposta. E isto é talvez parte daquilo que nos permite discriminar comensais e patógenos, mas mais recentemente tem-se dado conta que não é bem assim. A verdade é que estamos em um diálogo constante com os nossos comensais. Apesar desta demilitarized zone, nós sabemos muito bem que eles estão ali e temos maneiras de os respeitar, desde que eles nos respeitem a nós, e essas maneiras, do ponto de vista molecular e do ponto de vista em termos do que se passa propriamente a nível dos tais glóbulos brancos que possuem estes receptores e possuem essa capacidade de resposta, mas que acabam por entrar neste equilíbrio, é uma das áreas de imunologia onde há, talvez, uma investigação muito ativa hoje em dia porque é uma daquelas perguntas que nós nos pomos a nós próprios. E sabemos que, para Além disso, há realmente outros sensores, outros detectores, que detectam especificamente não só a presença, mas a invasão. Portanto, parte da resposta à sua pergunta é que, mais uma vez usando o exemplo das células epitiligais do intestino, que tem uma maneira de saber se o patogénio ou a bactéria está fora ou penetrou para dentro do citoplasma da célula. E se penetrou para dentro do citoplasma da célula, quer dizer que, muito provavelmente, é um patogénio. Uma shigella ou uma listeria ou um patogénio desse tipo, salmonella. Portanto, há certas maneiras...
José Maria Pimentel
Tem a ver com o comportamento da própria bactéria, não é?
Caetano Reis e Sousa
Tem a ver com o comportamento da própria bactéria e no fundo é isso que defina o patogénio. Aliás, um comensal pode transformar-se em patogénio. E, aliás, nós sabemos muito bem isso no caso da sida. Em que, no caso da sida, uma das infecções que pode levar à doença é a infecção por fungo. Portanto, há uma micose e que no fundo são comensais, que normalmente existem na pele e na superfície de nós todos, mas em que há este equilíbrio, no Arms Race atingiu-se ali um equilíbrio que no caso das pessoas infectadas pelo vírus da SIDA como há ali um déficit de resposta imunitária o comensal aproveita, invade e deixa de ser comensal e passa a ser patogénico.
José Maria Pimentel
Esse eu não fazia ideia disso, mas faz sentido, havia ali um equilíbrio e depois baixando a resposta imunitária ele passa a estar em vantagem. E isto de certa forma leva-nos a um ponto que não cobrimos há bocadinho, mas que é parte essencial do nosso sistema imunitário, que é a diferença entre o sistema inato e o sistema adquirido, não é? Eu acho que é assim que se diz em português, não é? Exato. Em que é que eles se distinguem e qual é o papel que ambos têm na nossa resposta imunitária? Seja, nós falamos, pode ser a bactérias, pode ser a vírus, fungos e até o cancro, não é? Até células cancerígenas.
Caetano Reis e Sousa
Exatamente. Ora, bem, sim, nós temos a tendência a dividir a resposta imunitária em duas fases. Há uma fase de imunidade inata e há uma fase de imunidade adquirida. A parte de fase de imunidade Inata é também aquilo que às vezes é referido como inflamação. E é uma resposta imediata. E digamos, é uma resposta que tem a ver com o tentar conter, no caso a infeção, o patogénio de maneira a não se lastrar, ao mesmo tempo que uma pessoa desencadeia uma resposta mais específica e é por isso que se chama também adquirida, que tem a ver com as nossas células T e as nossas células B. As células B são aquelas que produzem os anticorpos, que visam neutralizar o patogénio e as células T coordenam a resposta e, em muitos casos, podem participar ativamente, por exemplo, matando células infectadas por vírus. Aí já invadidas. Aí já invadidas. Mas aí há uma especificidade muito grande porque cada uma dessas células B e dessas células T tem a capacidade de reconhecer uma pequena parte de qualquer patogénio, mas têm que ter uma instrução da imunidade inata para o fazer. E, portanto, aquilo que falávamos há pouco, que é estes receptores que detectam os componentes de bactérias, fungos ou vírus, essa parte da detecção é o que nós chamaríamos de imunidade inata e que permite a células tais como as células dendríticas, que são um tipo de glóbulo branco, transmitir depois informação às células T e às células B de que aqui está um antigênio, que é a parte do patogénio que vai ser depois reconhecida pela célula B ou pela célula T. Aqui está um antigênio. Mas, meus senhores, reparem que este antigênio foi adquirido por mim num contexto em que os meus receptores que detectam bactérias e fungos também foram desencadeados. E, portanto, provavelmente este antigênio é de origem bacteriana ou de origem fungal ou viral. E aí o que podíamos fazer, talvez o contraste que falávamos há pouco, no contexto da gravidez, por exemplo, em que podíamos apresentar antigénios às células da neurítica, e depois poderiam apresentar antigénios também do feto, mas não haveria aí nenhum contexto, nenhuma marcação desse efeito como um patogénico, como uma bactéria, ou um vírus, ou um fungo. E portanto, esses receptores das células líticas não teriam sido desencadeados, não teria havido um sinal que significaria que esses antigénios tinham a ver com uma infeção. E portanto, o resultado era a apresentação desse antigénio às salas de T.E. Mas num contexto em que se diz, repara, este antigénio não tem nada a ver com a infecção e vamos respeitá-lo em vez de atacá-lo. E isso permitiria fazer talvez uma discriminação entre o self e non-self e mais do que uma discriminação, uma tolerância ao self.
José Maria Pimentel
O que a gente disse há bocadinho que nós temos memória imunitária para todos os patogénios, É todos os patogénios com que o nosso corpo já entrou em contacto, ou não?
Caetano Reis e Sousa
Exatamente, exatamente. Portanto, o sistema das células B e das células T, que é o sistema que leva à memória imunitária, a porcentagem de células que pode detectar qualquer patogénio é infima. Portanto, digamos que vamos apresentar um caso concreto, digamos que houve uma infecção por vírus, sei lá, o vírus da gripe. Vamos ter uma célula T em 100 mil que tem a capacidade de reconhecer um antigênio vindo desse vírus da gripe. E, portanto, a resposta dessa célula T, o processo de infecção alerta as células dendríticas, as células dendríticas estão presentes, no caso deste vírus, estariam presentes, por exemplo, nos pulmões. Há uma infecção local, há uma ativação destas células dendríticas, que através dos receptores que reconhecem estes componentes do vírus, que é o vírus, ao mesmo tempo adquirem parte do vírus, os tais antigénios, e saem dos marcadores e saem dos pulmões em direção aos gânglios linfáticos. Nos gânglios linfáticos é onde se acumulam as células T, estão ali calminhas à espera de instrução, digamos, e aparece a célula endorítica e há uma em 100 mil dessas células T que vai dizer ah, mas eu reconheço essa antigênica.
José Maria Pimentel
Mas reconhece porque a pessoa já teve gripe, ou não? Não. Ah, pronto, pronto. Neste caso,
Caetano Reis e Sousa
que é a primeira resposta, digamos, portanto, da primeira vez que uma pessoa encontrou este vírus, estamos a falar do caso em que não há qualquer memória, portanto, é o primeiro encontro, digamos. E esse primeiro encontro leva a essa uma célula em 100 mil a multiplicar-se num frenezinho muito grande durante os primeiros dias da infecção. Aliás, é isso que leva àquilo que uma pessoa se sente. Às vezes dos gânglios linfáticos estarem inflamados e maiores do que é o normal e causarem um certo desconforto. Mas há uma grande proliferação dessas células T, dessa parte de células T que reconhece esse antigênio, de maneira que agora essa frequência passa de 1 em 100 mil, digamos a 1 em 100 ou até 1 em 20 em casos extremos. E portanto, essa amplificação leva a que haja agora uma série de células T que estão em posição de lutar contra os vírus, que entretanto se multiplicou também. Portanto, agora há aí um exército que está de certo modo matched em termos de quantidade em relação ao número de células infectadas por vírus. E depois dessa resposta imunitária e da haver essa eliminação do patogénio o que acontece é que algumas dessas células T ou muitas dessas células T morrem, desaparecem, volta tudo a como era antes, só que não volta tudo a como era antes. O que acontece é que agora algumas dessas células sobrevivem e entram neste estado de memória. Então o que é que é o estado de memória? É que logo à partida a frequência dessas células já não é 1 em 100 mil, pode ser 1 em 1000. E, portanto, da próxima vez que encontrar esse vírus, você já tem
José Maria Pimentel
uma resposta
Caetano Reis e Sousa
muito mais rápida, mais acelerada, muito mais maciça, porque o tempo que leva à proliferação dessas células para voltarem a serem 1 em 20 é muito menor do que quando eram 1 em 100 mil. Portanto, agora são 1 em 100 para chegarem a 1 em 20 é muito mais fácil, é muito mais rápido. E o estímulo que eu dei em relação às células T aplica-se também às células B. Portanto, as células B é exatamente a mesma coisa, só que as células B têm a vantagem de produzirem, para além disso, anticorpos que segregam e que depois circulam no sangue e, portanto, atingem todos os tecidos e esses anticorpos podem neutralizar o vírus. Portanto, a próxima vez que encontrar esse vírus da gripe, tem a vantagem, para além das células T, das células B. E as células B, mais uma vez, voltam a proliferar, mas já têm uma frequência muito maior. Mas, para além disso, muitas vezes, e em muitos casos, há já um nível de anticorpo no sangue, porque essas células que sobreviveram, continuaram a produzir anticorpos, agora, logo à partida, pode haver ali uma proteção. E isto é exatamente o que acontece no caso da gripe. Uma pessoa, quando é infectada pela gripe, não pode voltar a ser infectada pela mesma estirpe da gripe. Porque esses anticorpos sobrevivem muito tempo no sangue e, portanto, assim que o vírus voltar a infectar, é eliminado. O que é que acontece no caso do Covid que todos nós... Que
José Maria Pimentel
é o que está na cabeça de toda a gente, exatamente.
Caetano Reis e Sousa
Exatamente a mesma coisa. Exatamente a mesma coisa. Há um nível de anticorpo que é produzido em resposta ao vírus, por ter o primeiro encontro e esse nível de anticorpo e essa expansão das células B e das células T está ali em reserva à próxima vez que voltamos a encontrar o mesmo vírus. E é por isso que, em geral, a reinfecção pelo vírus do Covid não leva a uma doença tão grave como a primeira. E é da mesma maneira que funcionam as vacinas.
José Maria Pimentel
Porque as vacinas,
Caetano Reis e Sousa
no fundo, funcionam exatamente da mesma maneira. As vacinas é uma maneira de tentar, sem produzir uma infecção, levar a esta resposta que leva depois a esta memória e a este estado de proteção contínuo. No caso do vírus do Covid, o que é engraçado e nós não percebemos bem porque é que há uma diferença em relação ao vírus do Covid ou a relação ao RSV, Respiratory Sensitive Virus, uma diferença em relação, por exemplo, ao vírus da gripe, que é que no caso desses vírus, do SARS CoV-2 e RSV, em que Ao longo do tempo o nível de anticorpo vai baixando, de maneira que aquela proteção não dura tanto como a proteção em relação ao vírus da gripe.
José Maria Pimentel
Daí as doses de reforço da vacina.
Caetano Reis e Sousa
Daí as doses de reforço. Enquanto que as doses de reforço do vírus da vacina da gripe Não é porque haja uma baixa do nível de anticorpo. É porque há mutações, todos os anos há uma stirpe diferente e, portanto, a vacina todos os anos é mudada para tomar em conta, adaptar-se a estas mutações.
José Maria Pimentel
Então, boa, mas isso é muito interessante. Isso suscita-me logo duas dúvidas. Se calhar a melhor maneira de olhar para isto é pensar, não tanto para já nas pessoas que já tiveram a doença ou nas pessoas vacinadas, mas na resposta das pessoas infectadas inicialmente, portanto, no primeiro contacto que têm com a doença e que sobreviveram. O que acontece nessas pessoas, portanto, é que há esta resposta imunitária que vai procurar a célula T que tem aquela... Que reconhece aquele antigênio, só que esse processo demora muito tempo, E depois o processo de expansão do exército, não é? Para usar a sua analogia de há bocadinho, demora tempo e portanto o que acontece é, houve pessoas, em muitos casos pela idade, que esse processo já não foi a tempo e portanto o vírus tinha ganho demasiado terreno e venceu, digamos assim, e em pessoas mais novas, quando se é imunitária melhor, apesar de tudo, apesar dos sintomas, apesar de muitas terem passado mal, o corpo consegue reagir e consegue vencer, digamos assim, o patogénio. No fundo é isso que acontece.
Caetano Reis e Sousa
Ora bem, isso é exatamente uma das razões pela qual tem havido muito maior doença e mortalidade entre os mais idosos. No caso do Covid é um bocadinho mais complicado e tem a ver depois com aquilo que falávamos ao princípio que é tudo isto tem que ter um certo equilíbrio porque A resposta imunitária é tão poderosa que às vezes pode não só eliminar o patogénio, mas durante essa luta contra o patogénio causar, mais uma vez usando estas analogias de exército, o collateral damage. Ou seja, que no fundo há uma chamada imunopatologia, que é o facto de a resposta imunitária em si, na luta contra o patogénio, levar também a uma certa destruição dos tecidos. Portanto, se isso tudo for contido e acontecer durante um período breve e não atingir umas proporções demasiado altas, há depois uma reparação do tecido e volta tudo a como era antes. Mas em certos casos isso não acontece e sobretudo se há uma desregulação da resposta imunitária, uma pessoa pode entrar num positive feedback loop em que as coisas vão piorando. E isso tem a ver também com essa primeira fase inicial, que é a tal fase da inflamação, que é a tal fase da resposta inata. Portanto, essa detecção dos patogénios por estes receptores inatos, digamos, não estamos a falar agora da especificidade da célula T ou da célula B, mas sim da tal especificidade que têm as células dendriticas, que não é especificidade em termos de que tipo de vírus é que é, mas é um vírus ou não é um vírus,
José Maria Pimentel
ou é uma bactéria ou não é uma bactéria. No fundo, desculpe interromper só para quem está a ouvir. No fundo nós temos aqui uma espécie de sistema 1 e sistema 2. Temos o sistema inato que é a reação inicial e que é uma reação genérica antipatogénica E depois temos o sistema 2 que entra em ação se o sistema 1 não tivesse sido suficiente. Corrija-me quando eu dizer alguma coisa que não está certa. Portanto, há partida, eu diria, provavelmente na maioria dos casos o sistema 1 é suficiente, numa minoria em que o patogénio é especialmente potente e ele não é suficiente, e aí entra o sistema 2 que depois tem esses dois braços das células B, que são as que produzem anticorpos e que agem diretamente sobre o patogénio, e depois as células T, informadas via células dendríticas, que agem já sobre as células infectadas.
Caetano Reis e Sousa
Exatamente. E essa parte da resposta 1, digamos, tem que ser controlada, não é? De maneira a dar, a conter o patogénio antes da resposta B entrar em ação e, de certo modo, está a instruir a resposta B, mas ao mesmo tempo tem que ser contida de maneira a não causar demasiada destruição dos tecidos ao ponto em que depois a resposta imunológica acaba por ser pior do que a infecção. Mas
José Maria Pimentel
no caso do Covid isso acontece, por exemplo, a destruição decidos ocorre nos pulmões e as pessoas ficam com mais dificuldades em respirar depois de terem tido a doença, no fundo é isso?
Caetano Reis e Sousa
Durante a doença, digamos. Portanto, em muitos dos casos, durante a doença
José Maria Pimentel
em si... Ok, ok. Eu tinha entendido que era algo que persistia depois da doença.
Caetano Reis e Sousa
Não, isso também... Em certos doentes tem havido, aliás, aquilo que se chama longue COVID, em certos casos, tem a ver com destruição dos tecidos e depois uma falta de reparação. Mas nos casos agudos, e que às vezes levam à morte, no caso do Covid, é talvez uma resposta inflamatória demasiado exuberante. E aliás foi por isso que se fez uns ensaios clínicos logo no princípio da pandemia que mostraram que o uso de anti-inflamatórios, como a dexametasona, tinha um efeito clínico bastante profundo em termos de aliviar estas crises.
José Maria Pimentel
Ou seja, conter essa resposta exagerada, no fundo.
Caetano Reis e Sousa
Exato. Porque às vezes as coisas entram um bocadinho... Porque tudo isto é baseado em feedback loops. Portanto, se eu ver ali há qualquer coisa que não está bem regulada, uma pessoa pode chegar a um ponto em que estas respostas levam...
José Maria Pimentel
Sim, e depois vai escalando nesse feedback loop.
Caetano Reis e Sousa
Exato, exato. E no caso da autoimunidade, portanto é outro caso em que há uma desregulação, digamos, da resposta imunitária, é um bocadinho a mesma coisa, só que em vez de ser uma coisa aguda torna-se uma coisa crónica. Ou seja, que...
José Maria Pimentel
Estamos a falar das doenças autoimunas.
Caetano Reis e Sousa
Exato. Portanto, nessas doenças autoimunas há, ao longo do tempo, a desregulação do sistema imunitário leva a uma resposta, talvez não aquela resposta exuberante, imediata, que se tem visto em alguns casos do Covid, mas uma resposta crónica a longo prazo que leva também à mesma distribuição de tecidos e que tem efeitos muito graves.
José Maria Pimentel
Interessante. Eu à bocado disse que tinha duas perguntas, falei da primeira não falei da segunda. Diga, diga. Imaginemos o exemplo da, bem, isto dá para ver tanto para o vírus da gripe como para o SARS-CoV-2, em que a pessoa foi infectada ou foi vacinada, isso produziu memória imunitária, mas depois há uma mutação do vírus, a pessoa é infectada por um vírus já mutado. Qual é o impacto dessa mutação na capacidade do nosso corpo reconhecer? É 100%? Ou seja, é um modelo probabilístico ou uma simples mutação faz com que o corpo perca a totalidade da memória, ou seja, é o suficiente para ver aquilo algum problema de despisto, não é? E perdermos essa... Ou seja, as células T que nós tínhamos produzido, portanto aquele excedente, não é? Que nós já tínhamos sido capazes de produzir um excedente, é completamente inútil porque houve uma mutação do vírus ou isto é uma coisa mais tendencial e depende do tipo de mutação?
Caetano Reis e Sousa
É mais tendencial e depende do tipo de mutação. No fundo, em cada um de nós, o vírus adquire umas mutações de maneira que, mesmo que tínhamos sido infectados por exatamente o mesmo vírus, a partir de poucos ciclos de reprodução depois...
José Maria Pimentel
Depois que o multiplica-se tão rápido e tantos. Exatamente.
Caetano Reis e Sousa
Portanto, não é tanto... São as mutações que às vezes afetam a estrutura de algumas das proteínas que são reconhecidas... Mais as estruturas das proteínas são reconhecidas pelos anticorpos. Portanto, não há tanta fuga à resposta T, há mais fuga à resposta B e aí é um processo de seleção, no fundo é um processo de evolução do vírus que, se houver algum vírus que por acaso tenha tido uma mutação, sobretudo naquela proteína spike, que é o alvo principal dos anticorpos que neutralizam o vírus. Aliás, que é a proteína contra a qual os anticorpos são desencadeados pelas vacinas. Portanto, o alvo das vacinas é esta spike, a proteína spike do vírus e os anticorpos ligam-se a essa proteína spike e essa proteína spike no fundo é a chave que permite ao vírus infectar o hospedeiro. Portanto, se o anticorpo está lá ligado, essa chave não vai entrar na fechadura. Mas se a chave mudar um bocadinho de formato, de tal maneira que o anticorpo já não se consiga ligar a ela, tem uma oportunidade de entrar na fechadura. O que é que acontece? Se tiver 100 vírus, cada um deles com uma mutação nessa proteína spike, talvez 99 deles não mudem o formato da chave de tal maneira que os anticorpos deixam de ter efeito. Mas pode haver aquele 1 em 100. E esse 1 em 100, depois, no fundo, é o único que pode infectar e, portanto, é o único que se pode amplificar e, portanto, há um processo de seleção a nível da população. E é por isso que surgem estes variantes que escapam aos anticorpos. Agora, Aí é que eu tenho uma grande fé nas vacinas já desenvolvidas, porque mesmo que o vírus consiga escapar a resposta B dos anticorpos, tem mais dificuldade em escapar também à resposta T. Exato. E, portanto, como Estava a dizer, temos ali um grande arsenal de células com especificidades diferentes, em altas frequências e, portanto, é muito pouco provável que um vírus consiga escapar a tudo. E, portanto, eu acho que num segundo encontro nós vamos ter sempre uma vantagem em relação ao primeiro encontro. Por muito que o vírus tenha mudado, e tenha mutado, vamos ter sempre uma certa vantagem em relação ao primeiro encontro, como não tínhamos qualquer resposta imunitária contra esse vírus. E à medida que tivemos mais e mais infecções, acho que essa resposta vai ser cada vez mais robusta e mais difícil de ser comprometida pelo vírus.
José Maria Pimentel
Porque é que não... O que o António já explicou há bocadinho e eu não estou recordado. Porque é que a resposta das células T é menos afetada pelas mutações do vírus? As células T, portanto, aquelas que agem diretamente na célula infetada.
Caetano Reis e Sousa
Não, exatamente, exatamente. E isso tem a ver com os detalhes moleculares do sistema. Podemos falar um bocadinho sobre eles. É um bocadinho complicado porque é assim. As células B, os anticorpos, ligam-se, como eu dizei há pouco, a proteínas expostas na superfície do vírus, digamos. Portanto, proteína spike. As células T não têm a capacidade de reconhecer proteínas intactas nos vírus. O que eles reconhecem são peptídeos, são fragmentos dessas proteínas e, portanto, o que as células dendríticas fazem, e outras células também, mas vamos usar como exemplo as células dendríticas, quando elas adquirem o vírus para apresentação às células T, o que elas fazem é que destroem o vírus e, no fundo, quebram essas proteínas em peptídeos, que são estruturas muito pequenas, com a sequência da proteína, mas só uma parte da proteína, que depois entram dentro, digamos, de uma bolsa. São umas proteínas chamadas MHC, que fazem parte do nosso sistema imunitário e que funcionam no fundo, não sei bem qual seria a analogia, mas vamos pensar que a analogia seria talvez uma bandeja em que é apresentada aquele bocadinho do vírus e a ver se há alguma célula T que possa reconhecer aquele bocadinho do vírus. E aí é um bocadinho mais difícil que os vírus mudem de tal maneira que evitem essas estruturas lineares que fazem parte das suas próprias proteínas, tinham que ter uma taxa de mutação de tal maneira grande que provavelmente eliminavam qualquer
José Maria Pimentel
eficácia. E a pessoa não o vejo diferente. E portanto
Caetano Reis e Sousa
é um bocadinho mais difícil eles poderem fugir a toda esta estrutura. Sim,
José Maria Pimentel
faz todo sentido essa explicação. Porque, enquanto no caso dos anticorpos, basta que exista uma mutação que altera essa proteína spike de forma a que o anticorpo deixe de funcionar, enquanto aqui tínhamos que ter uma mutação... Ao
Caetano Reis e Sousa
longo da proteína toda, não
José Maria Pimentel
é? Exatamente, sim, sim. Exatamente. Então me surgiram várias dúvidas relacionadas com isto, mas eu acho que isto é um tema interessante e que nos permite depois... É um aponte para outros aspectos da resposta imunitária. Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no site 45graus.parafuso.net barra apoiar. Veja os benefícios associados a cada modalidade e como pode contribuir diretamente ou através do Patreon. Obrigado. Eu estava a me lembrar que o Keita na bocada disse que nós tínhamos, aliás, voltando até ao exemplo que deu, que era o exemplo da gripe, antes de nós sermos, pela primeira vez, infectados pelo vírus da gripe, nós temos lá uma célula com memória, com memória isto é, com informação correspondente àquele vírus, não é? Só que é só uma em 100 mil, ao contrário do que acontecerá depois de termos sido infectados, em que essa concentração aumenta. Ora, isto está-me a fazer lembrar de um episódio recente que eu gravei com a Luisa Pereira, que é da área da genética populacional. E como acontece sempre nestas conversas, fomos parar ao Covid, como acontece sempre hoje em dia, e como aconteceu connosco, E ela disse uma coisa que faz todo sentido, mas pode parecer contra-intuitiva, que é que as populações asiáticas, parece contra-intuitiva porque a pandemia começou lá, não é enquanto epidemia, as populações asiáticas têm maior imunidade aos coronavírus, porque são vírus mais comuns lá. Ora, esta imunidade que eles têm é uma imunidade então apenas resultante do facto das pessoas que vivem naquelas geografias terem contactado ao longo da vida mais com diversos tipos de coronavírus, não com o facto de ter havido uma seleção a nível genético que tenha gravado no genoma
Caetano Reis e Sousa
das pessoas uma maior imunidade. Exatamente, isto tem a ver com uma faceta do sistema imunitário, de que não falámos ainda, que é assim, Temos estado a falar desta especificidade magnífica das células T e das células B. Mas essa especificidade, no fundo, é baseada em conjuntos de aminoácidos, em proteínas, que são detectados pelos anticorpos ou que são detectados pelos receptores das células T. Às vezes, há uma reatividade cruzada, há uma reação cruzada. E, obviamente, essa reação cruzada é mais provável entre vírus que estejam, do ponto de vista evolutivo, mais perto uns dos outros. E, portanto, É possível que, aliás, sabemos que um coronavírus pode ter umas proteínas muito semelhantes às proteínas do SARS-CoV-2. Se uma pessoa tivesse sido exposta a esses vírus, pode já haver aí uma imunidade contra esses vírus que agora, por chance, algumas dessas células T ou dessas células B que estão agora presentes a uma frequência 1 em 100, podem ter uma reação cruzada com algumas das proteínas. Talvez não sejam todas as células B ou as células C, mas algumas delas. E nesse caso temos já, e à partida, como dizíamos há pouco, um bocadinho de vantagem em relação à resposta imunitária. Mas
José Maria Pimentel
é adquirida, ou seja, não estava...
Caetano Reis e Sousa
É adquirida. Não é genético. Não é genético,
José Maria Pimentel
não.
Caetano Reis e Sousa
Aliás, há um estudo engraçado feito no nosso instituto no princípio da pandemia por um dos meus colegas que mostrou exatamente isso, que havia anticorpos à partida, antes já da pandemia, podiam-se identificar anticorpos em amostras de sangue que tinham sido tiradas antes de 2019 e que tinham anticorpos contra os coronavírus que circulavam pelo mundo fora. Há quatro coronavírus que causam o tipo de constipações
José Maria Pimentel
e aquelas
Caetano Reis e Sousa
doenças de inverno que circulam todos os anos e as pessoas que tinham sido expostas tinham anticorpos contra esses vírus e algumas dessas amostras mostravam uma reação cruzada com o SARS-CoV-2. E isso tinha que vir daqueles anticorpos que tinham sido desencadeados pela resposta contra os outros coronavírus. E aliás, esse meu colega também propôs que é possível até que esses anticorpos circulem ou tenham uma taxa ou um nível mais alto em crianças que apanham estas constipações na escola e os pais das crianças que depois apanham as constipações quando elas vêm para casa. E que isso talvez tenha explicado porque é que no princípio da pandemia havia uma maior proteção, notou-se logo, uma maior proteção entre as crianças e muitas vezes até entre os pais das crianças.
José Maria Pimentel
Sim, curioso isso. Nunca tinha pensado nessa. Nós até aqui temos estado a falar mais de, sobretudo, patogénios, portanto, de bactérias inicialmente, agora tivemos mais a falar de vírus e de fungos. Mas o sistema imunitário, como nós falámos no início, também age em resposta ao cancro, que é obviamente um tema, até provavelmente, eu diria, estou aqui a arriscar-me, mas até deve ser uma das áreas mais pujantes de investigação nesta área, porque precisamente é um dos problemas da atualidade com o envelhecimento de população. O que é que há de diferente a dizer na resposta ao sistema imunitário ao cancro, face ao que nós estivemos a dizer até aqui. Se é que há alguma coisa
Caetano Reis e Sousa
da relevância. Ah, e é uma área de investigação, como disse, muito importante e hoje em dia tem havido muitos avanços nessa área. É uma resposta sobre a qual Nós não temos ainda um grande conhecimento em termos de quais são os princípios fundamentais que levam ao desencadenamento dessa resposta. Ora bem, porquê? Porque como dizíamos há pouco, parece que a evolução, no fundo, favoreceu um sistema de detetores em células dendríticas e outras células do mesmo tipo que permitem detectar estes padrões que são comuns entre as bactérias ou entre os fungos ou entre os vírus. Mas, obviamente, as células tumorigênicas não têm nada... As células tumorais não apresentam nenhum desses padrões. São células tais como as nossas. Portanto, não há uma grande diferença entre uma célula tumoral e uma célula, digamos, de um embrião ou de um feto. E há sempre essa questão de como é que pode desencadear uma resposta contra um tumor quando não tem nenhum desses sinais de infecção. Uma das hipóteses é que muitas vezes não se desencadeia uma resposta e a verdade é que há provavelmente muitos casos em que não há uma grande resposta imunitária contra o cancro. E talvez seja por isso. E daí também a ideia de que uma pessoa pode talvez criar vacinas contra o cancro. E essas vacinas não são as que falámos há pouco, não são vacinas de prevenção, são vacinas terapêuticas, que seriam administradas a pessoas que já têm cancro, mas que visam a desencadear uma resposta que talvez não seja desencadeada pelo cancro e como é que se poderia fazer isso? Bom, talvez tentando uma vacina em que esses antigénios do cancro sejam agora associados artificialmente a estas moléculas de bactérias ou vírus que permitam desencadear aquilo contra o qual o sistema imunitário tende a reagir. Mas a verdade é que há certos doentes em que há respostas contra o keke. Portanto, isso requer uma explicação e a explicação tem que ser dada a nível de o que é que foi detetado que levou a essa resposta, quando não tem nada a ver com a infecção. E há uma série de hipóteses sobre o assunto. Nós próprios no meu laboratório estamos interessados nessa ideia e, portanto, Uma das ideias é que há vários outros desvios do funcionamento normal do corpo que podem ser detectados pelo sistema imunitário. E estamos a dar-nos conta hoje em dia que isso é verdade. O sistema imunitário Não reage só contra organismos que têm estes padrões moleculares que os distinguem do hospedal, mas podem reagir também contra mudanças do metabolismo, que às vezes têm a ver com a infecção. Talvez em termos evolutivos essa tenha sido a força que levou a ter sistemas que detectam mudanças em metabolismo e podem ter sido tumores que levaram a essa posição em termos de evolução de um sistema que permita detectar mudanças de metabolismo. E uma das mudanças que nos interessa a nós e a outros é a possibilidade de que todas as patologias estejam associadas com a morte celular. Então, há sempre morte celular, mas é uma morte celular programada que tem a ver com o turnover dos tecidos. Portanto, as células epiteliais, digamos, do nosso esófago, por exemplo, ou dos nossos intestinos, todos os dias têm um tempo de vida de mais ou menos 24 horas e depois são sempre substituídas. E isso tem a ver com a morte celular, mas é uma morte celular programada, normal e leva a essa regeneração. Mas, no caso de patologias, tais como o cancro, há um tipo de morte abnormal. E uma das hipóteses é que quando essa morte não é programada, tem a ver com a patologia, há talvez uma exposição do esqueleto celular ou de outros componentes do citoplasma das células que normalmente não são visíveis, porque há sempre a membrana plasmática que se separa do meio exterior. E será que o sistema imunitário tem capacidade de, para além dos receptores que detectam padrões nas bactérias ou moléculas de bactérias, podem ter receptores também que detectam esses componentes do citoplasma quando são expostos ao exterior. E, por exemplo, no nosso caso, nós identificámos um desses receptores há uma dezena de anos, que tem exatamente essa função, que é um receptor que é expressado na superfície de uma célula dendrítica e que reconhece, precisamente, componentes de outras células, mas são componentes do citoplasma, do esqueleto celular, que nunca são expostos, a não ser que haja uma morte celular. E o que acontece no caso de um cancro? À medida que um cancro vai crescendo, sobretudo porque os tumores crescem rapidamente, às vezes não têm oxigénio suficiente, não têm nutrientes suficientes, há uma morte celular e de repente há uma exposição destas moléculas que normalmente nunca são expostas e há aí uma ativação das células dendríticas. E esse é exatamente o caso, ou pode ser um dos casos, nós temos vários estudos que mostram que isso é uma das possibilidades, que esse receptor, por exemplo, das células dendríticas tem uma função no desencadeamento das respostas antitumorais e há provavelmente outros sistemas que detetam outras alterações do tecido que representam um crescimento abnormal do tecido que provavelmente tem a ver com o processo tumoral.
José Maria Pimentel
É muito interessante, ou seja, se eu percebo bem, este é um tipo de resposta que existe no nosso sistema imunitário, mas que não tem uma escala suficiente para prevenir muitos cancros e, portanto, a ideia com essas vacinas, no fundo, é aumentar a potência desse mecanismo natural que já existe, mas a aumentá-lo, eu presumo, por exemplo, através dessas vacinas, eu tenho a ideia que seriam muitas elas baseadas nas células dendríticas, em que a pessoa seria injetada com essas células já com, e aqui já estou a ir um pouco para fora de pé, mas com células com características, quer dizer, programadas, se assim quisermos, para detectar o tumor, seja através dessa espécie de células-ventrada do tumor, seja através de outras características.
Caetano Reis e Sousa
Sim, não, no caso das vacinas das células dendríticas, e diga-se passagem, não têm tido assim um grande sucesso. A ideia é retirar as células dendríticas dos doentes e, no laboratório, expor as células dendríticas às células tumorais, ao mesmo tempo que se põe na cultura das células algumas dessas moléculas, normalmente associadas com bactérias, de maneira a ativar as células dendríticas e depois fazer uma infusão no doente e esperar que isso desencadeia a resposta contra os tumores. E aqui a resposta, estamos
José Maria Pimentel
a falar de células T. Células
Caetano Reis e Sousa
T, exatamente. Aliás, no caso dos tumores é sobretudo as células T. As células B não
José Maria Pimentel
têm a tentação.
Caetano Reis e Sousa
Não faz tanto sentido, exatamente.
José Maria Pimentel
Catarina, eu esqueci-me há um bocado, ainda de uma outra pergunta relacionada com o que estávamos a falar há bocadinho, que me ocorreu agora, ou seja, a propósito da nossa memória imunitária, que foi um puzzle que me surgiu quando estava a preparar esta conversa. Nós sabemos, como falamos há bocadinho, que somos, por exemplo, no caso da gripe, vamos sendo infectados várias vezes ao longo da vida, porque há mutações no vírus, enfim, por aquilo que falámos há bocadinho, a mesma coisa se aplica ao coronavírus. No entanto, há outros casos de infecções virais, como por exemplo a varicela, em que isso não acontece, um tipo tem varicela em miúdo e, que eu saiba, não volta a ter, ou pelo menos é raríssimo ao ponto de... E no entanto é um vírus também, o que acontece? A mutação é mais... É mais lenta... Enfim, o que é que explica isto? Não é que é uma diferença abissal, não? Tipo, pode apanhar gripe todos os anos e varicélula apanha uma vez na vida.
Caetano Reis e Sousa
Não, isso é verdade. No caso da varicélula, com fraqueza Não sei qual é a taxa de mutação, mas penso que é exatamente parte disso. É que não há uma grande, grande taxa de mutação. No caso do vírus da gripe, é complicado porque há uma taxa de mutação muito alta, mas não é só pelo processo de mutação normal. É porque o vírus é composto de 8 moléculas de RNA, portanto o genoma do vírus, e tem a capacidade de trocar algumas dessas oito moléculas e fazer ali uma troca com outros vírus da gripe, sobretudo quando dois vírus da gripe com moléculas diferentes infectam hospedeiros, tais como o porco ou as galinhas, ou patos, em que há ali depois uma mistura e que de repente surge um vírus que tem uns segmentos de RNA que vieram de um pai e uns que vieram de uma mãe de vírus e é um tipo de vírus muito diferente do que era de antes. E isso não acontece no caso da varicel. E é
José Maria Pimentel
muito mais potente do que o simples ritmo de mutação que é uma a uma, não é? Exato,
Caetano Reis e Sousa
exato. E é por isso que todos os anos a vacina contra a gripe tem de ser modificada. Portanto, parte da resposta à sua pergunta tem a ver, talvez, com a taxa de mutação, mas outra parte da resposta tem a ver com Porquê que há respostas imunitárias que duram durante 40 anos e outras que não duram tanto tempo? Um dos casos é que temos uma resposta que não dá uma proteção que dura assim tanto tempo com isso, não tem grande longevidade, é o vírus que falávamos há pouco, o Respiratory Sensitive Virus, que é um vírus que é uma grande causa de mortalidade entre as crianças, os menores de 2 anos, Até ao Covid era a maior causa de hospitalização entre os idosos e as crianças, em termos de vírus respiratórios. E aí é sempre o mesmo vírus, mais ou menos. É mais ou menos a mesma estípula de vírus que circula, mas todos os anos as pessoas, apesar de terem sido infectadas no ano anterior, perdem a proteção e voltam a ser infectadas e podem ficar doentes. Portanto, há ainda muitos aspectos da resposta imunitária que nós não compreendemos e não sabemos bem porquê que as coisas funcionam de uma maneira ou de outra. Portanto, ainda há muitos estudos a fazer sobre esse assunto.
José Maria Pimentel
Isso tem a ver com aquilo que o Catan dizia à propósito do SARS-CoV-2, não é? De, por algum motivo, a própria produção de anticorpos baixar com o passar do tempo e portanto ser necessária aquela... O booster, não
Caetano Reis e Sousa
é? Aquela dose de reforço. Exato. Exato. Uma
José Maria Pimentel
dúvida que eu tenho e que eu sou capaz de arriscar, que a maior parte das pessoas que estão a ouvir esta conversa teve em algum momento da vida e sobretudo quem tem filhos pequenos passa muito por este dilema. Afinal, é boa ideia ou não é aquela lógica de expor os miúdos para eles alcançarem imunidade. Porque há aqui um jogo de por um lado a pessoa quer que eles não sejam contagiados, por outro lado, à partida é bom apanhar determinada doença para ganhar imunidade.
Caetano Reis e Sousa
Ora, é assim, quando a pessoa tem um vírus tal como o SARS-CoV-2, que pode levar a doença grave, mesmo que seja em raríssimos casos entre os miúdos, e que pode, além do mais, levar ao tal long-COVID, sobre o qual não temos um grande conhecimento. E o caso em que temos uma vacina, não há qualquer racional, penso eu, para expor
José Maria Pimentel
um miúdo a um vírus. Mas a minha pergunta, desculpe interromper, a minha pergunta é, eu se calhar não a formulei bem, esta dúvida surge é quando as pessoas têm miúdos pequenos, por exemplo, ou mesmo em relação aos novos papéis. Ah, eles devem estar sempre a lavar as mãos ou não estão a lavar as mãos? É bom lavar as mãos para não ficarem infectados, mas depois alguém do outro lado diz não, não, é bom eles serem expostos para ganhar imunidade. É neste debate que esta dúvida me surgiu várias vezes.
Caetano Reis e Sousa
Para as doenças de miúdos, para as quais não temos vacinas e que não são graves, provavelmente de serem expostos em miúdos, dais uma proteção que talvez até seja boa ideia em relação a serem depois expostos em adultos. Aliás, alguns destes vírus dão uma reação muito maior em adultos, uma doença mais grave é adulto. Exato, é um abariceado que falámos há pouco. E outros, e portanto, de certo modo, há uma vantagem em serem expostos em miúdos. Desde que não voltemos à ideia, aliás, como a primeira vacina que foi administrada pelo Jenner, em que pegou no fio do jardineiro que tinha 8 anos e inoculou com o vírus que tinha tirado de uma vaca. Exato. Não estamos a falar provavelmente nisso, mas o racional dessa pergunta eu acho que tem a ver realmente com o facto de, Em qualquer caso, em que haja uma vacina, acho que é sempre preferível, seja como for, ter a primeira o encontro com esse patogénico, seja através da vacina. Depois, talvez um encontro secundário até possa reforçar a imunidade que é oferida pela vacina. E, no fundo, temos de ter sempre cuidado porque às vezes uma pessoa nunca sabe se há, não pode haver crianças com um déficit imunitário e que às vezes pode dar complicações graves.
José Maria Pimentel
Boa, ainda bem que disse isso porque isso liga a outra pergunta que eu queria fazer que é a pessoa ouve muitas vezes falar de maneiras de aumentar a resposta imunitária, seja determinadas comidas, fazer exercício físico, enfim, uma série de coisas. É de facto possível a pessoa aumentar a resistência imunitária? Ou seja, existe de facto, para lá, disto que nós estamos a falar, que é, por exemplo, ter que ser exposto a um determinado patogénio, existe uma forma de potenciar o nosso sistema imunitário através da alimentação, do exercício, da ausência de stress ou há aqui francos exageros na pop science, digamos assim?
Caetano Reis e Sousa
Não, há francos exageros. E eu acho que há uma coisa que nós temos que distinguir, que é, às vezes uma pessoa pode ter deficiências de alimentação ou nutrientes e que podem levar, talvez, a uma menor resistência à doença e, obviamente, corrigir esses defeitos, esses déficits de alimentação é importante. No meu caso, português de pele relativamente escura, a viver no Reino Unido, eu tenho um déficit de vitamina D e, portanto, tomo um suplemento de vitamina D. Mas não é. Não tomo vitamina D para reforçar o meu sistema imunitário. Tomo vitamina D para corrigir um deficit e voltar ao ponto em que devia estar. Portanto, A diferença é que há realmente...
José Maria Pimentel
É para baixo e não para cima,
Caetano Reis e Sousa
no fim. Exatamente. Portanto, o facto de haver estudos que mostram que se uma pessoa tem um déficit de vitamina X ou de nutriente Y pode ter um problema imunitário, não quer dizer que se tomar essa vitamina X ou esse nutriente Y para além da dose normal, vai ter um reforço. E aí é que as pessoas, eu acho, que se enganam. Sim, sim. E não há nada que eu tenha conhecimento que mostre que haja uma qualquer intervenção que possa aumentar a resposta imunitária. E mais, e se houvesse, eu acho que era melhor ter cuidado, porque como nós falávamos há pouco, o sistema de resposta imunitária está muito bem equilibrado. E se uma pessoa vai para além de X, pode ter grandes problemas. Portanto, mesmo que houvesse uma maneira de aumentar a nossa imunidade... Provavelmente
José Maria Pimentel
o preço a pagar era demasiado alto. O
Caetano Reis e Sousa
preço a pagar era demasiado alto, exatamente. E
José Maria Pimentel
já agora, qual é o papel das vitaminas neste processo?
Caetano Reis e Sousa
Ah, agora, exatamente como é que as vitaminas ou outros nutrientes afetam o nosso sistema imunitário é uma área da qual temos um grande conhecimento. Podem afetar a muitos níveis. Por exemplo, há muitos vegetais, sobretudo vegetais verdes, tipo bróculos, que têm moléculas de origem vegetal que se podem ligar a um receptor chamado Aryl Hydrocarbon receptor, que é um receptor que desempenha um papel importante nas células epitiliais do nosso intestino e também em células do sistema imunitário de glóbulos brancos. E, portanto, aí temos já um conhecimento molecular, digamos, do mecanismo pelo qual determinados alimentos podem influenciar o sistema imunitário. Mais uma vez não estamos a falar em reforço, estamos a falar de termos um nível suficiente de corrigir o déficit, mas digamos que há ali uma relação entre um produto vegetal e um receptor molecular e há ali uma ligação e desde que uma pessoa mantenha aquilo a um nível normal, tem um funcionamento do sistema imunitário normal e se tiver um déficit pode ter um problema. Portanto, em termos de outros nutrientes, vitaminas, não há tanto conhecimento. E em certos casos podem até afetar não exatamente o sistema imunitário diretamente, mas podem afetar as colónias de micróbios que habitam os nossos intestinos e, aliás, nós sabemos que isso é verdade, portanto, a alimentação afeta de modo muito profundo o ecossistema. O microbioma, não é? O microbioma, exatamente. E, por seu lado, o microbioma tem impacto sobre o sistema imunitário, portanto há aí também uma relação, digamos, mecanística entre a alimentação e o sistema imunitário.
José Maria Pimentel
Há outra área, ou por outra, há outro tema, digamos assim, para que a imunologia é relevante e que eu creio, por exemplo, que aquelas vacinas baseadas, chamemos assim, baseadas nas células dendríticas podem também ser relevantes, que é a questão dos transplantes. E Nós sabemos que os transplantes são difíceis de seres humanos para seres humanos, precisamente, mais uma vez corrijo-me se não disser alguma coisa errada, por estarmos a transferir um órgão para outro corpo e gerar potencialmente uma resposta imunitária, e por isso é que por exemplo, sei lá, aqueles primeiros, sobretudo aqueles transplantes mais ousados, transplantes de mãos, por exemplo, são ultra difíceis por causa disso, porque há uma resposta explosiva do corpo do destino. E esta reação ainda será maior em alguns tipos de transplantes que se tem falado cada vez mais, como de órgãos de outros animais, como de porcos, por exemplo. Porcos, é verdade. Como é que é que se pode formular esta pergunta? O que é que está a ser feito nesta área? O que é que se pode fazer, por outras palavras, para minimizar essa reação imunitária, que é uma reação correta, mas que nós não queremos que aconteça nestes casos? Pois,
Caetano Reis e Sousa
aliás, a imunossupressão é a única maneira de, no momento, de permitir fazer estes transplantes. É por isso que as pessoas que recebem transplantes estão sujeitos a uma maior taxa de infecção e têm que ter protegidos. Exatamente porque a maneira até agora de tentar evitar a rejeição dos órgãos é de tentar inibir a resposta das células T. Mas à medida que nós nos damos conta de como funciona o sistema imunitário e, para dizer com fraqueza, não temos ainda um grande conhecimento sobre exatamente porquê que os transplantes desencadeiam uma resposta tão poderosa, mas à medida que vamos aprender mais sobre o assunto, talvez venha a haver estratégias que nos permitam controlar esse sistema e inibir de maneira um bocadinho mais precisa, mais seletiva estas respostas.
José Maria Pimentel
Pois, se isto já é um problema, muitas vezes entre as plantas e entre os seres humanos, quando falamos de coisas mais ousadas como transplantes a partir de animais, a coisa torna-se muito mais difícil.
Caetano Reis e Sousa
Mais difícil, mas por outro lado também há a possibilidade de hoje em dia, com as técnicas todas que há, manipulação genética. Há talvez uma oportunidade, se uma pessoa tiver o conhecimento quais são as moléculas que seriam importantes nesses sistemas de criar animais com modificações genéticas que depois permitam que este orgão seja ou seja. Temos graus de liberdade que não existem no universo humano. Exato. Há toda a parte ética, que não é disso que estamos a falar agora, estou a falar puramente do ponto de vista científico. Há essa oportunidade de o fazer, quer dizer, se nós tivermos realmente o conhecimento de todas as moléculas que desencadem a resposta imunitária contra os transplantes, talvez haja maneira de manipular em animais de maneira a permitir depois de transplantar esses órgãos e depois há a parte toda de que teríamos que falar do ponto de vista ético, o que é fazível, o que não é fazível e o que se deveria fazer e o que não se deveria fazer.
José Maria Pimentel
Sim, mas ainda assim, provavelmente, quer dizer, haverá sempre ou provavelmente mais graus de liberdade com animais do que com seres humanos, não é? Portanto, permite mesmo com restrições fazer esse tipo de coisa. Exato.
Caetano Reis e Sousa
Claro, claro. E está-se a fazer, não é? Houve há pouco até um transplante de um órgão de porco para um ser humano.
José Maria Pimentel
Pois é, esta pergunta foi-me sugerida por um amigo meu médico e francamente não me tinha ocorrido, mas eu acho que foi precisamente por causa disso. E outro meu amigo médico sugeriu-me outra questão interessante desta área, que esta de todo não me tinha ocorrido, e moro já tivesse apanhado, eu creio isso em tempos, que é a ligação entre as doenças, ou a alegada ligação, eu francamente não sei até que ponto isto está comprovado, entre as doenças autoimunas e fenómenos como a depressão, por exemplo. E eu creio que a lógica é que as doenças autoimunas geram uma resposta do sistema imunitário e que essa resposta interage também com o próprio sistema neuronal, com o próprio cérebro e, portanto, pode provocar em pessoas que têm doenças autoimunas, não só aquelas manifestações de que o Catrón falava há bocadinho, mas também outro tipo de consequências desagradáveis, digamos assim, como por exemplo depressão e eu creio que obesidade também se tem falado. Isto é verdade? Ou seja, está mais ou menos provado? Parece-me fazer algum sentido em teoria, mas não sei se na prática terá comprovado.
Caetano Reis e Sousa
Não sei se chegaria ao ponto de dizer que está comprovado, Mas é certo que há vários estudos que apontam nessa direção. Aliás, um livro engraçado chamado The Inflamed Mind é exatamente sobre isso. E então a ideia aí seria que os processos inflamatórios, portanto processos do sistema imunitário, entre os quais há uma grande produção de uma série de hormonas do sistema imunitário, chamadas citocinas, que podem agir não só em células do sistema imunitário, mas que podem agir também sobre o cérebro e neurónios que têm receptores para essas moléculas. E há uma série de estudos que começam a mostrar que há. Aliás, o caso é que há uma relação muito mais estreita entre o sistema nervoso e o sistema imunitário do que se pensava até à pouca. Isto é uma área em que tem havido muito progresso na última década, digamos, e se dá conta que o sistema imunitário pode influenciar o sistema nervoso e o cérebro. E vice-versa, se calhar. E vice-versa, exatamente. E, portanto, há todo ali um diálogo sobre o qual nós ainda temos muito pouco conhecimento, mas que é certamente uma área em que vamos ter muito progresso nas próximas décadas, penso
José Maria Pimentel
eu. E no caso das doenças auto-imunas, eu tenho a ideia, por exemplo, que as mulheres são mais afetadas do que os homens. Nós sabemos porque é que isto acontece?
Caetano Reis e Sousa
Em algumas doenças auto-imunas isso é verdade, porque é que há uma maior prevalência entre as mulheres do que os homens. E não sabemos porque acontece. Há várias hipóteses, todo o tipo de hipóteses. Há hipóteses que têm a ver com o sistema hormonal e o impacto do sistema hormonal no sistema imunitário. Até há hipóteses que têm a ver com a menstruação, que leva a uma grande carga de morte celular. Estávamos a falar como é que a morte celular pode às vezes ser detectada pelo sistema imunitário como uma coisa que pode significar um processo que necessite intervenção do sistema imunitário. Portanto, tudo isso são hipóteses, não há nada provado, mas há certamente muito trabalho ainda a fazer nesta área. E as doenças autoimunas. É importante lembrarmos que a autorreatividade é quase inevitável, no sentido em que temos um sistema imunitário que tem a capacidade de reagir contra tudo aquilo que temos estado a falar até agora, mas que obviamente esses sistemas não têm uma discriminação absoluta e portanto há sempre a haver situações em que o sistema imunitário se vira contra o corpo.
José Maria Pimentel
E eu diria até, em termos evolutivos, há provavelmente uma seleção que favorece um sistema com mais falsos positivos do que falsos negativos. Ora bem. Porque um falso negativo era uma chatice porque podia matar-nos. Um falso positivo pode produzir estas doenças, mas a pessoa, na maioria
Caetano Reis e Sousa
dos casos, não a vê. Ora bem, mas aquilo que eu queria dizer, Jean Maria, é que a autoreatividade não leva necessariamente à doença, porque a doença autoimunidade, o que é que é? A doença autoimunidade é uma doença em que a auto-reatividade se tornou crónica e se foi perpetuando. Portanto, é possível em qualquer resposta imunitária contra um patógeno, uma pessoa tem um período de autoreatividade, dê cabo dos tecidos de certo modo, mata algumas células que não estão sequer infectadas. Mas quando a infecção é eliminada e o sistema volta ao estado inicial, há uma regeneração do tecido e volta a comer a danos. No caso da autoimmunidade isso parece não acontecer. O que acontece é que o processo que pode ter desencadeado a resposta pode ter sido eliminado, mas a resposta agora perpetua-se e torna-se uma doença crónica. E isso é que é realmente a doença autoimmune. Não é em si a autorreatividade.
José Maria Pimentel
Claro, claro. Isso é de facto uma distinção importante. É relevante, não é? Outro caso, por acaso, que nós ainda não falamos do sistema imunitário funcionar mal, digamos assim, é o caso das alergias. Em que, é um caso menos grave, mas é um caso em que o nosso sistema no fundo está a reagir a algo que não é um patogénio, nem a nada negativo, digamos assim.
Caetano Reis e Sousa
Uma coisa inocula. Inocula. O que
José Maria Pimentel
acontece aqui? E sobretudo, porque é que, eu não tenho a certeza disto que vou dizer, mas tenho a ideia que as alergias são mais comuns hoje do que antigamente, não é? Isso... Se calhar até... Não sei se são cada vez mais comuns, se analisarmos as últimas décadas, mas seguramente os últimos séculos ou milénios provavelmente têm um peso que não tinham antes, não é?
Caetano Reis e Sousa
Ah sim, não, não. São muito mais comuns agora do que eram de antes, mas isto é uma coisa das últimas décadas, não é? No é sequer que estamos a falar de séculos. Tem havido um aumento grande da alergia, sobretudo nas populações ocidentais. E, mais uma vez, não temos uma grande explicação, não damos um grande conhecimento do que levou a isso. Mais uma vez, temos uma série de hipóteses, que têm a ver com o facto de quando há cada vez menos infecções, sobretudo infecções por organismos com os quais nós temos uma coexistência há milénios, desde as microbactérias a outros, e que hoje em dia com o tipo de vida em sociedade ocidental em que nós já não vivemos ao lado dos animais, numa situação, num ambiente rural... E lavamos
José Maria Pimentel
muitas mãos, não é? Não estamos a falar do
Caetano Reis e Sousa
caso. Não é tanto lavar as mãos... Eu sei, eu sei, estava a brincar. Mas isso é uma das hipóteses também, a hipótese da higiene, de demasiada higiene. Mas eu acho que a hipótese da demasiada higiene tem que ser vista sob o ponto de vista evolutivo, que é, No fundo, as populações humanas, desde há 300 mil anos, coevoluíram com os animais e num ambiente rural e, de certo modo, o nosso sistema imunitário evoluiu da mesma maneira. E A ideia aí seria que, durante os primeiros anos de vida, nós temos um sistema imunitário que tem de ser, de certo modo, educado. Nós temos o sistema de imunidade das crianças ainda não está completamente desenvolvido, há um processo de educação, digamos, E que esse processo de educação, em termos de tolerância dos comensais, reações contra os patógenos, isso tem, de certo modo, está ligado, na história da nossa evolução, ao contato com os animais, que tem vindo a diminuir. Isso é uma das hipóteses que é posta hoje em dia para explicar tanto a maior incidência de alergia e também das doenças autoimunas de que falávamos
José Maria Pimentel
há pouco. Pois, porque elas acabam por ter alguma aproximação, ou seja, ter alguma interseção em termos de reações.
Caetano Reis e Sousa
Não, a interseção e em termos de incidência também têm as duas estado a aumentar em paralelo. E
José Maria Pimentel
está correlacionado provavelmente, se nós fizermos até uma análise mais fina, em termos de populações mais afetadas por uma e por outra, não é? Provavelmente isso acontece.
Caetano Reis e Sousa
Pois não, por exemplo, Esta ideia das populações rurais e das populações urbanas tem a ver também com o facto de haver estudos epidemiológicos que mostram que a incidência de alergias em crianças é menor entre as crianças que crescem numa quinta do que as crianças que crescem num apartamento em Lisboa.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. O estudo não foi feito em Lisboa, mas... Certo, certo. Mas daria ao mesmo, não é? Mas daria ao mesmo, penso eu. E esse ponto que teve assim um bocado... Foi um bocado transversal a nossa conversa do equilíbrio do sistema, eu acho um ponto muito interessante, porque é relevante até em termos ecológicos, de facto nós evoluímos para um determinado ambiente e nos últimos dois séculos, sobretudo, houve uma série de mudanças que nos levaram para um ambiente completamente diferente E depois há aqui também um fenómeno interessante que gera, lá está, outra vez uma espécie de feedback loop em que nós... Ou um processo que se autoalimenta em que, por exemplo, agora é muito comum os miúdos terem alergia a amendoins, está a ver? E o que acontece? Depois os pais pensam, se o meu filho ainda pode ter alergia a amendoins, eu não lhe vou dar amendoins. E portanto eles não comem amendoins enquanto crianças, o que significa que é precisamente nessa fase em que o sistema estava a regular-se e portanto a probabilidade de eles serem de facto alérgicos a amendoins ainda é maior. E sobretudo na população como um todo. Depois isto vai propagando essa alergia. Aliás, isso era outra pergunta que eu queria fazer. Qual é a diferença entre... Eu sei que é diferente, mas francamente não sei a diferença em termos daquilo que estamos a falar entre alergias de um lado e intolerâncias alimentares do outro.
Caetano Reis e Sousa
Bom, fazem toda parte de um espectro em que, no fundo, digamos, o elo entre elas é que há uma reação inapropriada do sistema imunitário contra uma substância inóqua. Hoje em dia há um bocadinho a moda das intolerâncias alimentares e eu devo dizer que algumas delas são capazes de não ter uma grande base fisiológica
José Maria Pimentel
que às vezes pode ser
Caetano Reis e Sousa
uma coisa mais psicológica. Mas, se usássemos essas de lado, sem dúvida que há intolerâncias alimentares muito sérias causadas pelo sistema imunitário, assim como há alergias causadas pelo sistema imunitário. E eu acho que no fundo tudo tem a ver, mais uma vez, voltamos sempre ao mesmo, que tem a ver com o equilíbrio. Isto é um sistema que, como dizia há pouco, tem que fazer uma distinção entre os positivos e os negativos e há sempre uma taxa de falsos positivos, uma taxa de falsos negativos e todo esse sistema de equilíbrio É um processo evolutivo, portanto isso faz parte do nosso genoma da maneira como está tudo organizado, mas no caso do sistema imunitário há também um processo de aprendizagem em cada um dos indivíduos que leva a determinar para onde vai apontar a aguilha. Isso pode mudar e ser afetado por todo o tipo de agentes externos. Desde a alimentação, desde o tipo de infecções às quais estamos expostos, desde o facto de termos ou não termos animais em casa ou até, sei lá, a poluição, porque
José Maria Pimentel
há uma série de
Caetano Reis e Sousa
fatores externos, todos os quais podem afetar o sistema imunitário.
José Maria Pimentel
Pois, uma coisa que já deu para perceber ao longo da nossa conversa é que o sistema imunitário é extremamente complexo, não só é em si mesmo extremamente complexo, como depois interages com uma série de outros fatores, o que torna isto tudo ainda mais difícil, e daí haver uma série de coisas que nós vamos descobrindo, que no fundo ainda há muitos pontos de interrogação para esclarecer. Até então, estamos aproximados, o fim da conversa. Eu queria só perguntar mais uma coisa que me esqueci há bocado e que é também, acho que é um tema relevante para pessoas como eu que têm miúdos pequenos, que é a questão da febre. A febre é um tema interessante porque, por um lado, é uma chatice, não é? Tipo, não gosta de ter febre e quase que gosta ainda menos de ter miúdos em casa com febre. Por outro lado, a febre é um processo biológico natural, há aqui algum indício de que ele tem alguma razão de ser e de facto há razões para, há benefícios que a febre pode ter, e essa é a minha pergunta, mas por outro lado ela também pode ter malefícios ao ponto de matar a própria pessoa, ou seja, a febre pode correr mal. Qual é o propósito da febre, sobretudo do ponto de vista de facilitar a reação do sistema imunológico, em teoria, quando não há um
Caetano Reis e Sousa
exagero? É uma ótima pergunta e mais uma vez uma pergunta à qual não temos uma resposta certa, digamos. Uma das funções da febre é levar a temperatura, tem a ver com o inibir, de certo modo, a replicação do patogénio e a elevação da temperatura é uma reação normal à infecção, mesmo entre os animais co-equilotérmicos, não têm capacidade regular a ser de temperatura, por exemplo, iguanas ou animais de sangue frio, quando infectados, tendem a ir para lugares acelerados onde podem aumentar a temperatura. Portanto, há aí um processo, obviamente, de evolução. Agora, porquê? Ninguém sabe bem. Como eu dizia há pouco, pode ser de certo modo para inibir a replicação. Há uma outra ideia que tem a ver com a resistência ao tal collateral damage que falávamos há pouco. Dizíamos que uma resposta imunitária é uma coisa importante mas tem que ser altamente regulada porque leva sempre a danos ao hospedeiro. E há uma ideia que aumentando a temperatura uma pessoa pode pôr os nossos tecidos num ponto de de stress response, em que tem uma capacidade maior de resistir aos danos da resposta imunitária ou, pelo menos, de reparar os tecidos de uma melhor forma. Mas tudo isto são, de certo modo, hipóteses e ninguém tem, assim, uma grande explicação sobre o assunto. E a verdade é que todos nós tentamos diminuir a febre nas nossas cariáticas
José Maria Pimentel
quando é infectadas. E elas não
Caetano Reis e Sousa
deixam de conseguir responder à infecção.
José Maria Pimentel
É que eu Tenho esta angústia sempre que dou um b no Nó. Tenho sempre essa dúvida, estou sempre a pensar, será que estou a ajudar ou a desajudar?
Caetano Reis e Sousa
É uma boa pergunta. E aliás, porquê nós temos esta resposta em que nos sentimos mal, queremos ficar em casa, queremos estar sossegados e isolados?
José Maria Pimentel
Também pode fazer parte da resposta, não é? Faz parte da resposta, certamente.
Caetano Reis e Sousa
E tem a ver com as citocinas e essas coisas que falávamos há pouco e que têm efeitos exatamente sobre o cérebro e que levam a uma mudança do comportamento. Portanto, sem dúvida que isso tem a ver com a resposta imunitária. Agora, a questão é qual foi o processo evolutivo que levou a isso e aí, mais uma vez, não temos respostas, mas temos hipóteses e uma das hipóteses seria que, talvez, como com todos os animais que vivem em sociedade, é uma maneira de evitar, talvez, a transmissão.
José Maria Pimentel
Transmissão, exato. E eu me esqueci de perguntar, qual é a relação entre o aumento da temperatura e a diminuição da velocidade de replicação das bactérias, por exemplo?
Caetano Reis e Sousa
Ah, portanto, todos estes organismos têm uma série de motores moleculares, digamos, que... Enzimas que estão envolvidas no metabolismo, na replicação do DNA ou do RNA e, portanto, na reprodução do organismo. E todas essas enzimas têm uma temperatura ideal e, portanto, desde que uma pessoa desvida essa temperatura, em princípio, pode talvez diminuir a taxa de replicação, digamos.
José Maria Pimentel
Ok, boa. Bom, nós descobrimos uma série de temas, mas há alguma coisa que eu não tenha perguntado? Alguma área da imunologia que se esteja a avançar muito, quer dizer, que seja uma fronteira atual ou que pelo contrário ainda haja muito por saber e que não tenhamos coberto?
Caetano Reis e Sousa
Bom, eu acho que, como nos demos conta ao longo desta conversa, há ainda muito que saber sobre a imunologia e, aliás, quanto mais estudamos a imunologia mais nos damos conta que, no fundo, tudo é imunologia e a imunologia é tudo. Exato. E, aliás, no fundo, isso é a verdade em relação à biologia. Todos estes sistemas são integrados. Nós falamos do sistema nervoso, do sistema imunitário, mas isso é a nossa maneira de tentar impor uma certa ordem sobre os nossos processos mentais. Na verdade, são sistemas integrados que, ao longo da evolução, foram optimizados para funcionar como funcionam. E, portanto, hoje em dia nós damos conta que a imunologia, que foi sempre estudada sob o ponto de vista de defesa contra a infecção participa também na homeostase e no funcionamento normal de todos os sistemas, desde o sistema nervoso até ao sistema digestivo e vice-versa, todos esses sistemas também de certo modo controlam o funcionamento do sistema imunitário. Portanto, há ainda muito que saber, mas há muito que saber sobre a biologia em geral e eu acho que à medida que nós formos tomando mais conhecimentos sobre o assunto de mais nos vamos dar conta é que tudo isto, no fundo, está altamente integrado. Sim,
José Maria Pimentel
sim, sim. É engraçado dizer isso porque fez-me lembrar de uma entrevista que eu vi aqui há uns tempos do António Coutinho, que é heimelogista também, que foi o... Não sei se ele foi o fundador do Instituto do Globo em Cadeciência ou pelo menos a pessoa que o lançou. E ele dizia uma coisa... O que transformou. Transformou, exatamente. E ele transformou no que é atualmente. E ele dizia uma coisa que é exatamente nesse sentido, de que aquilo que há por saber em imunologia é essencialmente aquilo que há por saber em biologia, ou seja, são as questões maiores de quem é que levou a que as coisas sejam como são e como é que tudo isso se integra. Boa, boa, boa, boa. Excelente maneira, é uma excelente maneira de terminarmos. Caetano, foi uma conversa incrivelmente interessante, descobrimos aqui uma série de temas E eu diria que é uma conversa que tem, o que nem sempre acontece, uma componente intelectual, chamemos de assim, uma componente prática, não é uma componente de conhecimento por pura curiosidade intelectual e outra parte, o que eu acho, muito prática, sobretudo para quem, como eu, tem filhos miúdos, pelo menos já vou sentir menos culpado ao dar o bem no Nuno. Portanto, muito obrigado por ter alinhado.
Caetano Reis e Sousa
Muito obrigado José Maria, foi um prazer.
José Maria Pimentel
Este episódio foi editado por Hugo Oliveira. Visitem o site 45graus.parafuso.net barra apoiar para ver como podem contribuir para o 45graus, através do Patreon ou diretamente, bem como os vários benefícios associados a cada modalidade de apoio. Se não puderem apoiar financeiramente, podem sempre contribuir para a continuidade do 45 Graus avaliando-o nas principais plataformas de podcasts e divulgando-o entre amigos e familiares. O 45 Graus é um projeto tornado possível pela comunidade de mecenas que o apoia e cujos nomes encontram na descrição deste episódio. Agradeço em particular a Ivan Udan, João Ribeiro, Nuno Pinheiro, João Baltazar, Miguel Marques, Corto Lemos, Carlos Martins e Tiago Leite.