#113 Magda Nico - Mitos e simplificações no modo como olhamos para os jovens
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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o
45 Graus. A convidada deste episódio é Magda Nico, socióloga, atualmente investigadora
e docente no ISCTE, Instituto Universitário de Lisboa. A investigação da convidada
segue uma perspectiva crítica ao longo do tempo e das gerações e
dedica-se sobretudo a estudar as transições para a vida adulta dos jovens.
Conheci a Magda recentemente no Encontro Juventudes que foi organizado pela Fundação
Francisco Manuel dos Santos, onde eu estive a moderar um painel de
debate. O encontro serviu, como o nome indica, para debater os jovens
e a juventude, e a convidada foi consultora do evento. Aproveitando a
oportunidade, e uma vez que a Magda é uma das principais investigadoras
nesta área em Portugal, convidei-a para o 45 Graus para conversarmos um
pouco sobre estes temas. Na nossa conversa, discutimos vários aspectos do modo
como a sociologia olha e estuda os jovens e a juventude. Falámos
sobre como têm evoluído as trajetórias de transição para a vida adulta
e os desafios associados ao emprego, por exemplo, ou à saída de
casa, discutimos também o que é diferente na condição dos jovens atuais,
mas também a nossa tendência para exagerar um pouco este aspecto e
desvalorizar aqueles aspectos, muitas vezes mais relevantes, que são comuns aos jovens
desde sempre. Mesmo com este advertenciamento, não deixámos claro de falar de
algumas características distintivas das gerações atuais, como por exemplo a maior sensibilização
para causas globais, como as alterações climáticas ou os efeitos do uso
das redes sociais. E falámos também, claro, da realidade portuguesa, em particular,
de porquê é que os jovens portugueses são entre os países europeus
daqueles que saem mais tarde de casa dos pais. A convidada tem
em relação a este tópico, como vão ver, uma opinião original. Como
de costume queria agradecer aos novos mecenas do 45 Graus, Cristina Flores,
Diogo Sampaio Viana, Gonçalo Castro e Tiago Pedroso e queria também, aproveitando
esta altura mais calma das festas, pedir-vos para gastarem 2 minutos a
preencher um inquérito rápido de feedback em relação ao 45 Coraos. Neste
inquérito, o que vos peço é que avalie numa escala de 1
a 5 os episódios que publiquei desde o verão até aqui. Tenho
também uma caixa de comentários onde podem deixar feedback mais qualitativo, sugestões
de temas, sugestões de convidados, enfim, tudo aquilo que quiserem. Como disse,
prometo que não demora mais dois minutos, deixo-vos o link para o
inquérito na descrição deste episódio. E com isto, desejo-vos boas festas e
deixo-vos com Magda Nico. Magda, bem-vinda ao 45°. Olha, estava a pensar
há bocadinho e embora já tenha, não seja a primeira vez que
falo com alguém de Sociologia no podcast, acho que nunca fiz isto
de tentar perceber o que é característico da abordagem da filosofia, da
filosofia, nós estávamos a falar de filosofia em off, mas é que
eu disse isto, da sociologia, sobretudo face às outras ciências sociais. O
que é que é característico da sociologia, do olhar da sociologia? Se
é que há alguma coisa.
Magda Nico
É uma grande responsabilidade começar esta conversa logo a falar. Representante oficial.
Representante oficial da sociologia e peço já desculpa antecipadamente por não conseguir
resumir o papel desta disciplina tão nobre. Mas eu acho que aquilo
que começou por diferenciar a Sociologia de outras ciências sociais, e nomeadamente
nos primórdios da própria filosofia e de outras ciências ou de outras
abordagens mais humanistas à sociedade e ao comportamento humano foi sobretudo o
método científico. Portanto, foi a ideia de que para estudar a sociedade,
o comportamento humano em coletivo, portanto as dinâmicas interpessoais, era também necessário,
não só por uma questão de legitimidade da própria disciplina, mas também
realmente para chegar a conhecimento dito científico, seguir um método científico que
pudesse ser posta à prova por pares, que seguisse uma terminada lógica,
fosse ela quantitativa ou qualitativa, inicialmente mais quantitativa do que qualitativa, mas
é a ideia de seguir as regras do método científico para chegar
ao entendimento, a uma compreensão. Os primeiros fisiólogos mais importantes eram mais
na ótica da compreensão, não tanto na ótica da explicação, ou da
aplicabilidade desse conhecimento, como se calhar hoje é o caso. Essa ideia
do método científico, enquanto missão é de facto compreender como é que
As sociedades evoluem, parte do princípio básico que nem sequer o planeta
se desenvolve de forma natural, que a intervenção humana e interpessoal é
muito forte e que isso determina a forma como as sociedades diferem
umas das outras, criam desigualdades, criam tensões e vão crescendo e vão
se complexificando.
Magda Nico
Sim, mas há um lado muito qualitativo da sociologia, que se pode
quase resumir no biografia e sociedade, e que tem essa dialética sempre
muito presente,
que
é a ideia de que o indivíduo é uma espécie de microcosmos
da sociedade, não é? Nós ao compreendermos as ações do indivíduo no
seu contexto, vamos conseguir perceber como é que o contexto implicou determinadas
ações, determinados sentimentos até, posicionamentos políticos, cívicos, familiares e vamos conseguir a
partir do indivíduo perceber o contexto que o rodeia melhor do que
se analisarmos o contexto como se ele existisse em vácuo. O contexto
existe porque existem pessoas, porque senão não existia.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. E muitas vezes não consegues. Os indicadores quantitativos têm
limitações, porque só te levam até certo ponto. Depois há outra informação
que para tu obter tens que perceber o que vai dentro da
cabeça das pessoas, como é que elas olham para a vida delas,
que decisões é que tomaram, que valores é que têm. Por exemplo,
uma das limitações daqueles inquéritos aos valores das pessoas ou às opiniões
é que dependem da resposta que a pessoa deu de milhares de
pessoas, não é? Portanto, só com esse inquérito não tens a possibilidade
de perceber porque é que a pessoa respondeu aquilo ou se ela
de facto acredita naquilo, como é que aquilo se enquadra na vida
dela, não é? Ter uma visão, ter no fundo mais certezas em
relação ao que está, àquilo que a pessoa respondeu, não é? Eu
Magda Nico
exatamente que não acho que é complementar. Sim, sim, complementar, exato. E
eu acho mesmo, eu estava aí precisamente nessa linha, que é, de
facto, eles dão-nos coisas diferentes, os inquéritos multipessoais, digamos assim, grandes, com
grandes amostras, permitem-nos compreender de forma muito mais panorâmica as grandes diferenças
e desigualdades a variedíssimos níveis, depois varia consoante as temáticas abordadas no
próprio inquérito e dar-nos uma visão panorâmica que muitas vezes é necessária,
é urgente, de facto, para detectar bolsas de desigualdades muito fortes ou
novas áreas que devem ser exploradas e devem ser entendidas, mesmo que
subsequentemente de forma mais qualitativa. Portanto, vejo isso como muito importante. Agora,
há de facto cruzinhas e números que não nos conseguem dar a
entender qual é que foi o sentido que as pessoas às vezes
deram à própria pergunta, quanto mais à própria cruz que é a
resposta que deram. Portanto, quando nós resumimos a informação perdemos sempre grande
parte da compreensão dos fenómenos, mas ganhamos também bastante em resumir essa
informação quando trabalhamos com populações muito grandes ou com universos comparativos. Quando
temos mais do que uma população e queremos comparar, às vezes tem
mesmo que ser dessa forma e acho bem que assim seja também.
José Maria Pimentel
Sim, sim. Olha, uma área sobre a qual tu tens trabalhado muito
e pensado muito, e aliás a tua tese doutoramente é sobre isso,
é a chamada transição para a vida adulta, não é? Portanto, no
fundo, a ponta entre a juventude e a vida adulta. E ao
mesmo tempo é um tema que está muito na cabeça das pessoas,
não é? Toda a gente... Ou porque passou recentemente por essa fase,
como é o nosso caso, ou porque tem filhos... E
Magda Nico
Eu se calhar, pegando na primeira parte da tua pergunta, eu se
calhar até vou descrever um bocadinho o campo da Sociologia da Juventude
em
Portugal, mas que até é bastante exemplificativo de outros países, para abordar
esse primeiro tema. A sociologia da juventude em Portugal é um tema
daqueles clássicos e duradores, não só se por estudar os movimentos estudantis,
a população estudantil e depois, claro, cresceu para a cultura juvenil, com
o pessoal machado de pais, com outro tipo de estudos mais quase
de inspiração demográfica, esta ideia da transição para a vida adulta, quando
é que as pessoas casam, quando é que as pessoas têm filhos,
quando é que as pessoas começam a trabalhar, uma coisa quase de
contabilização da sequência da trajetória das pessoas, que é muito útil também,
mas que de facto lá está naquela ótica da conciliação entre métodos
mais quantitativos e panorâmicos e mais qualitativos e compreensivos, as coisas aconteciam
muito em paralelo. Mas a questão é que quando há uns tempos
já, também se calhar valentes, fiz uma análise de quem eram os
sociólogos da juventude e as teses que estavam a ser feitas e
os doutoramentos que estavam a ser feitos, uma coisa muito interessante é
que é daquelas áreas em que há mais teses de mestrado sobre
elas. Isto quero muito dizer, isto é muito aquela ideia de que,
dentro da psicologia, de que é um tema que desperta a curiosidade
dos psicólogos enquanto eles próprios ainda são jovens e devo dizer que
esse também foi o meu caso, não é? Eu quando comecei a
ser socióloga da juventude, se é que sou socióloga da juventude, mas
quando comecei a interessar-me por estes temas, eu próprio também era jovem
e foi de inspiração até bastante biográfica. São os problemas que a
pessoa sente, não é? Não poder ajudar. Sim, Foi sair do meu
próprio senso comum, o senso comum que me era dado pela minha
própria biografia e tentar ir um bocadinho mais além, ou seja, ir
vá da minha posicionalidade juvenil e ir abordar este tema mais enquanto
socióloga, lá está, com o método
Magda Nico
é? Logo na altura falou-se de não esto a... Ah é? Ah,
ok, ok. Mas depois, realmente, muitos anos depois, a grande manifestação da
geração Arrasca, que não era geração coisa nenhuma, era no fundo toda
a gente que tinha, que estava... Era uma experiência já multigeracional. Mas
isto para dizer que quem passa um bocadinho por esse processo, no
meu caso foi científico, mas imagino que existam outros por esse processo
de reflexão e de tentar posicionar a sua própria vida por oposição
ou por proximidade aos rótulos que nos colocam, abre-nos muito os olhos
para essa homogeneização um bocadinho forçada que se faz de determinadas gerações
e que é muito comum cada geração encarar a sua própria vivência,
os seus obstáculos específicos como únicos e são. Ninguém nos retira. Não
posso dizer que enquanto cresci na adolescência fui submetida aos desafios de
ter ou não redes sociais. Não fui, quer dizer, são desafios de
facto novos. Agora, a novidade traz muitas vezes para setores não científicos
uma equivalência de excecionalidade, de especificidade extrema, de mais complexidade, que é
uma coisa um bocadinho até condescendente com a complexidade de sociedades e
de vivências anteriores, que passaram por períodos de guerra, só para simplificar.
E aí eu acho que é onde nós temos que nos tornar
um bocadinho mais críticos, não é? No fundo, muito bem, comparar as
gerações de uma forma mais grosseira, nós vamos encontrar estas especificidades decorrentes
da própria mudança social. Há uns tempos falava-se da globalização, agora já
é da digitalização, mais tarde outros fenómenos do contexto histórico marca certamente
a experiência daquela geração, mas há algo que os sociólogos mesmo do
curso de vida nunca conseguiram resolver, que é destrinçar aquilo que é
o efeito da idade, daquilo que é o efeito da geração ou
da coorte, daquilo que é o efeito do período histórico. Nós não
conseguimos nunca destrinçar, é uma discussão muito interessante, mas é a discussão
que se tem que continuar a ter, não se pode decidir que
o efeito idade é mais forte que o efeito geração ou vice-versa,
ou do período, porque de facto eles confluem muito e o interesse
de facto é perceber o que há de comum num determinado período
para as várias gerações, numa determinada idade ao longo de vários períodos
e, portanto, fazer sempre este zig-zag entre estas três linhas de análise,
digamos assim. Desculpa,
José Maria Pimentel
Sim, a pandemia é um bom pretexto para... É um bom ângulo
para analisar uma série de desefeitos. Eu estava a ouvir-te e estava
a pensar, de facto, acho que nós também temos um viés, que
não se sente só aqui, sente-se numa série de coisas, nós temos
um viés de atenção para reparar naquilo que muda e que muitas
vezes está ligado por exemplo a um certo pessimismo que é mais
ou menos universal, pelo menos é universal na modernidade em relação à...
Não, aliás, desculpa, corrijo, é mesmo universal, há relatos disso na Grécia
Antiga, sobre as gerações novas, porque nós reparamos naquilo que muda e
por repararmos naquilo que muda, isso salta mais à vista, portanto parece
que as novas gerações são diferentes das anteriores e normalmente para pior.
Normalmente tem qualquer coisa que é... No caso é para agarrares ao
telemóvel ou uma coisa de qualquer género. Mas antes de ter esse
efeito de conduzir a esse juízo negativo, conduzem uma atenção, esse viés
de atenção sobre aquilo que mudou. Então parece que são muito diferentes
daquilo que veio antes, se calhar não são assim tão diferentes. Se
calhar há muitas coisas que são comuns. Sim.
Magda Nico
Eu uso esta frase na minha tese, que não tem muito académico,
mas acho que e depois acabo por usá-la várias vezes quando converso
sobre estas coisas, que é uma frase do Charlie Chaplin, que ele
diz, a vida vista de perto é uma tragédia e vista de
longe é uma comédia. E isto de facto também se aplica às
escalas da observação da própria psicologia. Quando nos sentamos com alguém e
falamos sobre a sua biografia e percebemos todos os detalhes da história
que essa pessoa viveu, é muito diferente de olhar simplesmente para a
sequência dos acontecimentos. E essa frase do Chaplin é muito interessante porque
também nos lembra que nós podemos, talvez e devemos, ter esse duplo
olhar. Quando estamos interessados em diagnosticar problemas sociais, desigualdades sociais, devemos ter
essa urgência, não é? Não vale a pena estarmos aqui só para
ver o que é que acontece com toda a lentidão dos fenómenos.
A PCP parece muito rápida, mas não é. Com toda a lentidão
dos fenómenos, a ver o que é que acontece quando precisarmos de
produzir políticas públicas já não vão a tempo. Portanto, essa urgência é
necessária. Também é normal que essa urgência exista do próprio discurso geracional
dos próprios jovens, por exemplo. Esta ideia de pertença, de fazer parte
de algo diferente, de estar a marcar a diferença do dia da
geração deles serem falada nos livros. É uma maneira também de deixar
rastro, digamos assim, da sua própria história de vida. Pessoas sentem-se confortáveis
de alguma maneira que a sua vida anónima possa ser contada a
partir da história de uma geração. Há um certo conforto, tal como
eu há uns minutos atrás disse, que fazia parte do grupo de
pessoas que se manifestou naquele dia contra as provas globais e, portanto,
há um certo conforto em sabermos que a nossa vida individual, anónima,
minúscula, pode ser contada a partir de uma história criativa. Tem um
Magda Nico
anos 60 para ter ideia... Eu já agora aproveito os anos 60
para falar um pouco sobre isso. Eu acho que não é de
facto aleatório o facto de se ter escolhido os anos 60 ou
o facto de se escolher os anos 50, 60, porque de facto
continua a ser a referência para se estar sempre a dizer, quando
se diz que os jovens não são como os jovens do passado,
geralmente é isso que está mais ou menos na nossa cabeça. Só
que o problema é que essa é que foi uma geração muito
excepcional, a todos os níveis. Por se encontrar num determinado período histórico
de recuperação, mais nos anos 50, mas que se arrastou até os
60, de recuperação do pós-guerra e de se encontrarem ali nessa fase
e de poderem usufruir de todo esse crescimento, de facto a transição
para a vida de todas essas pessoas foi radicalmente diferente do que
era antes e do que veio a ser depois. Se nós virmos
um pouco gráficos sobre a idade média, por exemplo, a que as
pessoas saíam de casa e que cumpriam todas
Magda Nico
é isso? Exatamente, exatamente. A pergunta do A Conquidada é que as
pessoas saíam de casa dos pais. Nós pensarmos nos anos 20 ou
30 é um bocado absurdo, não é? Porque as famílias eram multigeracionais,
as pessoas
não necessariamente saiam do caso dos pais, simplesmente as gerações acumulavam-se em
casas. Sim, havia ali uma... As coisas fundiam-se. E depois houve ali
aquele período de facto mais central do século em que se reificou
um bocado a ideia da família nuclear mais tradicional, em que de
facto as transições eram muito mais lineares, portanto com o crescimento económico
as pessoas realmente avançaram um bocadinho mais nos estudos, mas não muito.
Saíam de casa depois disso, havia diferenças de género ainda muito acentuadas,
mas os josuícios de facto cumpriam uma determinada sequência. Saíam de casa
para começar a trabalhar, conjugalidade, geralmente através do casamento, depois filho 1,
filho 2, filho 3, aqueles que fossem e, portanto, depois mais tarde
entrava-se na reforma. Nessa altura até nem se usava tanta expressão do
curso de vida, usava-se mais do ciclo de vida, porque era uma
coisa tão biologicamente marcada, até aquela idade, era a infância, depois quase
que não havia juventude, passava-se para a idade adulta com estas transições
todas muito certinhas e depois, mais tarde, a velhice, que geralmente era
bastante curta, não é? Com a esperança média de vida mais curta
do que é hoje. E portanto, essa é que foi realmente a
exceção. Se nós olharmos para aí, de facto as diferenças são muito
grandes. Mas podemos olhar para o copo meio cheio ou para o
copo meio vazio. O copo meio cheio é... São muito grandes porque
as pessoas prolongaram e muito, e ainda bem, os seus percursos educativos.
Primeiro até a 4 classe, depois até ao 9º, depois até a
12. Pensarmos em Portugal e hoje em dia já há uma grande
camada de pessoas que de facto inicie e conclui o ensino superior.
Também se pensarmos em Portugal temos que falar da transição democrática, não
é? E, portanto, também isso... Sim,
Magda Nico
porque... Não foi bem aí, mas, na verdade, se nós compararmos, bem
com 60, mas se compararmos com gerações, se calhar, falo dos meus
pais, talvez, que passaram a sua juventude nessa transição democrática, obviamente que,
ainda que tenha sido de uma forma lenta, se foram sentindo mais
soltos das amarras que um sistema mais normativo e autoritário lhes impunha
relativamente àquilo que eram as suas biografias. Vou pôr aqui entre aspas,
vou ter que dizer entre aspas, biografias normais, que é mesmo um
termo que nós utilizamos em psicologia, que era essa ideia da biografia
previsível, normativa, bem aceite, mas que escondia muitas contrariedades identitárias, muitos segredos
e muitas... De estandardização do curso de vida, envergonhada, não é? Porque
simplesmente numa altura em que os grandes inquéritos tentavam marcar como é
que as pessoas transitavam para a vida adulta, de facto as cruzinhas
iam para os sítios em que era suposto irem e essas histórias
depois não se contavam tanto. Eu acho que é essa conjugação entre
uma sociologia, não só em Portugal, mas noutros países, que se centrava
muito em inquéritos e que escondeu, muitíssimo, toda a angústia, a ansiedade,
a incerteza, a precariedade. Que
Magda Nico
Que era diferente da norma, que não foi recolhida, que não foi
sujeita à mesma massificação de recolha de dados do que aquela que
foi recolhida a partir de inquéritos e que hoje em dia são
pequenos Tesouros que se encontram, e que o Jó de Gonduíne falava
no outro dia, pequenos tesouros que se encontram às vezes em arquivos
de entrevistas que foram transcritas e que nós conseguimos perceber que o
discurso que pauta a condição juvenil é muito, muito idêntico ao longo
dos tempos. Porque qualquer que sejam os desafios que a sociedade, que
o contexto e que a estrutura de então lhes esteja a impor,
a forma como as pessoas olham para esses desafios é muito idêntica
e essa é capaz de ser a única continuidade que realmente nós
conseguimos dizer tem a ver com o efeito de idade, tem a
ver com o efeito das pessoas se confrontarem com uma motoridade diferente
daquela que tinham na infância, sobre as suas possibilidades de vida, sobre
os seus obstáculos e isso causa uma grande tensão ao nível da
tomada de decisão, o que é que eu faço, continuo a estudar,
não continuo, vou trabalhar, não vou, e também ao nível da pessoa
perceber ou tentar diagnosticar qual é que é o limite da sua
ação, até onde é que ela vai conseguir ir e identificar os
obstáculos que estão à sua frente. E isso é um processo identitário
muito forte e os jovens do passado não lidavam com ele com
facilidade, lidavam com a mesma dificuldade, angústia e às vezes tristeza e
outras vezes euforia que lidam os dois. O contexto é que era
diferente e os obstáculos é que eram diferentes.
Magda Nico
é? Tem que seguir a estrada, não é? Sim, tens que seguir
alguma estrada, mas também decides onde é que viras, onde é que
fazes uma inversão de marcha, onde é que voltas para trás, onde
é que… e há muito essa ideia e é de certa forma
correta. Digo correta seguindo um bocadinho uma lógica de uma famosa frase
também de um sociólogo que diz, que é o termo de Thomas,
que diz que as consequências são reais se forem reais para o
indivíduo. Por isso é que eu estou a dizer que é verdade.
É verdade que assim é porque eu acho que os jovens de
hoje de facto sentem a sua vida como, a certa altura, como
uma tela em branco e sentem mais dificuldade de perceber por onde
começar. Agora, quando analisamos mesmo os dados, isso não é tão verdade
como à partida parece, porque mesmo em países ditos mais desestandardizados e
com estados de previdência mais atentos e mais robustos, com mais apoio
à transição para a vida adulta, etc. Mesmo nesses, apesar de muitas
das transições acontecerem mais cedo e portanto também comprovarem que muitas delas
ocorrem mais tarde por falta de possibilidade de acontecerem mais cedo e
não necessariamente por uma escolha, mas apesar de elas acontecerem mais cedo,
elas acabam por ocorrer muito dessa forma muito linear. Quando eu usei
dados do European Social Survey, eram dados que não eram longitudinais, mas
perguntavam às pessoas com que idade é que elas tinham feito várias
transições para a vida adulta e podíamos comparar entre gerações e entre
países, Notava-se claramente que a diferença ao longo dos tempos, se nós
pegássemos naqueles países europeus todos e comparássemos simplesmente gerações, a diferença, mesmo
da idade média e por exemplo de saída de casa dos pais,
ao longo dos tempos, era menor e menos significativa do que as
diferenças entre os países. Isso é muito interessante. As diferenças sociais são
maiores do que as diferenças geracionais. Ou
Magda Nico
Quando nós olhamos para as diferenças entre os países, nós estamos a
falar para as diferenças entre estruturas sociais. Quando nós comparávamos, eu pegava
muito só para simplificar na Suécia e Portugal, só para fazer assim
uma comparação rápida. E o que é que nós tínhamos? Tínhamos jovens
a sair muito mais cedo de casa dos pais, a entrar mais
cedo no mercado de trabalho, a fazer todas essas transições mais cedo
do que, por exemplo, os portugueses, mas quando nós olhávamos para as
diferenças na Suécia ao longo das gerações e nas diferenças em Portugal
ao longo das gerações, elas quase não existiam. Portanto, a diferença realmente
tem a ver muito com o contexto, o tal contexto, neste caso
do welfare states e tudo mais, que realmente providenciavam e providenciam ou
não apoios à autonomia dos jovens, muito diferenciados entre estes dois países,
como podia pegar, noutros também. Portugal também não tem que ser sempre
visto como extremo e a Suécia como outro, mas foi um pouco
para
José Maria Pimentel
simplificar. Não, mas são dois bons exemplos. Isso é um bom ponto
para outra coisa que eu queria falar, que tem a ver com
um artigo que tu até publicaste no público e que fala precisamente
da idade de saída de casa e do facto que Portugal saiu
dos países onde as pessoas saem de casa mais tarde da Europa
e de muitas vezes isso ser apontado como um fator cultural e
tu tinhas uma perspectiva interessante porque dizias que não era cultural, era
económico entre outros fatores, no fundo, ou seja, não era porque as
pessoas não quisessem à partida sair de casa, não é porque tivessem
um apego à família ou ficassem confortáveis por não terem que pagar
a renda de casa, era porque no fundo não tinham, Por exemplo,
esse Estado Social Nórdico que lhes dava essa autonomia. Sei lá, eu
estudei na Holanda, por exemplo, e lembro que os meus colegas lá
tinham um estipéndio mensal qualquer e todos eles viviam. Depois arrendavam um
quarto ou uma coisa de qualquer género e viviam lá impecavelmente porque
eles não tinham nenhuma necessidade de ficar em casa dos pais. E
comigo não seria o mesmo. Eu, por acaso, como mudei de cidade,
nem tive escolha, mas se tivesse ficado na cidade em que nasci,
tinha tido uma decisão difícil a tomar. Sim, e
Magda Nico
trabalho ou sem ter um Estado a subsidiar a sua saída de
casa dos pais. E nós olhamos para Portugal e a primeira transição
para a idade adulta, na grande maioria, é a entrada para o
mercado de trabalho. E só por esta primeira transição nós percebemos logo
radicalmente do que é que os portugueses estão à espera, os jovens
portugueses, do que é que eles estão à espera, porque é que
esperam tanto tempo a ter filhos, esperam aqui entre aspas, porque é
que acontece tão tarde, comparativamente, ter filhos, porque é que acontece tão
tarde sair de casa dos pais, porque é que acontece tão tarde
a conjugalidade? Porque para eles a primeira e mais importante transição, a
pré-condição, é terem rendimento próprio. E por aí se percebe logo que
é uma questão de ter condições para, não é necessariamente... Cultural. Cultural.
E também a minha crítica a essa questão cultural é porque quando
fiz o doutoramento queria de facto tentar encontrar dados que me permitissem
concordar com essa conclusão de que era cultural. Lá está. Eu também
tinha uma determinada idade quando comecei a estudar estas coisas ainda no
mestrado e, portanto, eu própria também me queria desafiar, porque eu não
olhava para a minha vida e achava que eles não tinham razão,
mas queria encontrar dados científicos então que me pudessem convencer que de
facto era cultural e que eu é que não me tinha percebido
da minha própria, no fundo, identidade cultural portuguesa ou de sul. E
a verdade é que por muitos artigos que eu tenha lido e
livros que eu tenha lido, de facto a explicação cultural é de
longe a mais apontada quando se quer explicar porque é que nos
países do sul as pessoas saem tarde de casa dos pais, entre
outras coisas, mas eu não encontrei dados empíricos que provassem essa explicação
cultural. Que provassem em que sentido? Que provassem a origem dela? Como
é que se mede a cultura? Para já. Como é que se
mede a questão cultural, não é?
Magda Nico
Cristaliza um determinado leque de possibilidades e é como se normalizasse que
de facto eu para sair de casa dos pais vou ter que
ter um pé de meio, vou ter que ter um trabalho mais
ou menos estável, eu não me vou meter num compromisso, ainda para
mais Portugal, que é muito mais virado do que uma Suécia ou
outros países, muito mais virado para o mercado da propriedade habitacional e
não para o mercado de arrendamento e, portanto, ficamos logo mais limitados,
os jovens ficam logo mais limitados no formato
da
sua saída de casa. Quem é que consegue obter empréstimos bancários para
comprar casa se não tiver um trabalho estável bem remunerado ou então
mal remunerado, mas juntar-se com uma outra pessoa, geralmente em casal, para
poderem unir esforços e obter esse... Não se consegue. E, portanto, se
essa normalização funciona numa espécie de cultura, aí posso ser levada a
concordar, ok, é cultural. Mas é cultural porque se tornou cultural. Não
é cultural no sentido que falavas há pouco de, nos países do
Sul, as redes familiares serem mais fortes e de as pessoas serem,
noutros países nórdicos, serem mais individualistas e mais autónomas. Isso a cultura
pratica-se, não é? E portanto não existe em vácuo. Nesse sentido eu
posso ser levada a concordar que é cultural. Em qualquer outro sentido,
não. Porque eu acho que aquilo que impede, quando eu falei mesmo
e entrevistei jovens, porque é que saís de casa desta idade, etc,
devo dizer que nenhum dos, e eu ainda falei com 52, entrevistas
aprofundadas, e nenhum deles me referia às tarefas domésticas ou à proteção
dos pais, etc. Como se deve imaginar, a maior parte dos jovens
quer viver a sua vida, a sua noite, a sua sexualidade com
muito menos amarras do que estar agora a viver em casa dos
pais. A preferência é sempre essa. Ainda agora, num inquérito que foi
feito a propósito do Plano Nacional de Juventude, que está a ser
desenhado no final deste ano, a maior parte dos jovens que ainda
vivem em casa dos pais, não vivem em casa dos pais por
opção. Não quer dizer que viva mal e que as dinâmicas sejam
desfuncionais e que estejam mal com a família, mas não vive por
opção. Vive porque ainda não tem os rendimentos necessários para sair ou
porque tem mas acha que seriam todos desviados para pagar essa renda
ou essa habitação e, portanto, optam, não é de opções que eles
consideram limitado, ficar em casa dos pais, mas não é a sua
preferência, digamos assim. Mas
José Maria Pimentel
tu não achas que as duas explicações não só podem ser verdade,
como se podem alimentar mutuamente? Porque, neste caso, é fácil perceber porque
é que esses constrangimentos económicos alimentam a cultura, porque a cultura no
fundo é uma resposta, e isso era o meu ponto há bocadinho,
a cultura não nasce do vácuo, a cultura é uma espécie do
equilíbrio que se gera numa determinada comunidade, comunidade aqui no sentido lato,
em resposta às condições do meio ambiente, que podem ser econômicas mas
também podem ser do clima, por exemplo, pode ser do sítio mais
quente ou mais frio, ou com o... Até historicamente, talvez está relacionado
com o tipo de agricultura que existia e uma série de coisas.
As duas coisas podem se alimentar mutuamente. Esses constrangimentos económicos alimentarem uma
resposta cultural, mas também a cultura implicar que não haja uma pressão,
por exemplo, para ter um tipo de Estado Social com essas características.
Que não existe, porque essa maneira de ser mais nórdica também não
se calhar não seria muito bem aceita e portanto não existe uma
pressão para, por exemplo, ter uma espécie de rendimento dado pelo Estado
aos 18 anos. E tu, diria-me, às vezes podes dizer, ah mas
o Estado não tem dinheiro para isso. Pá, talvez não tenha para
dar uma
Magda Nico
coisa à holandesa ou à sueco, mas daria para... É uma questão
de configuração, não é? Sim, e certamente é um discurso diferente dizer
que o Estado não tem dinheiro para isso, mas que gostaria de
o fazer e que acredita que isso deve ser feito. E portanto
começa um processo... É um discurso completamente diferente e acho que também
legitima a própria juventude de uma maneira diferente. Mas eu acho que
é o ponto, é que é o perigo, e que eu senti
na altura, o perigo de alimentar e mesmo na academia, esta ideia
do cultural, sempre que se quer explicar porque é que os países
de sul têm uma média diferente, é cultural. E isso é muito
perigoso porque se é cultural facilmente resvala para a ideia de...
Magda Nico
condições que eu tive para fazer ou não, discutir a existência de
políticas, e no caso da habitação já houve políticas de incentivo ao
arrendamento jovem, por exemplo, não é preciso discuti-las, não é preciso melhorá-las
porque os jovens não saem de casa porque não querem. É um
bocadinho como aquele discurso da pobreza, não é? Se vincularmos aos indivíduos
que vivem nessas condições a responsabilidade dessas mesmas condições, é como se
nos estivéssemos todos enquanto contribuintes, enquanto comunidade, lá está também mais vasta,
a desresponsabilidade dessas mesmas condições de vida. E, portanto, é tal falácia
de atribuir ao indivíduo a responsabilidade de um desfecho da sua vida,
é verdade, mas que não depende só da sua ação e da
sua resiliência e da
José Maria Pimentel
sua cultura. Depende das condições à sua volta. Mas tu não achas,
por exemplo, que o facto de não ser discutida essa possibilidade a
outros do género que minurassem esse problema, não achas que isso é
em certo sentido a prova de que isto também é cultural? Percebes
o que eu quero dizer? Ou seja, porque isso não é discutido,
vou dar um exemplo. Eu ainda recentemente estava a falar com o
meu irmão e ele tirou arquitetura e não sei que propósito é
que isto veio, mas eu de repente estava a pensar, e Imagino
que saibas que a arquitetura é uma daquelas profissões que têm salários
muito baixos no início. Eles estão a trabalhar, a receber muito pouco
em ateliês, é estrutural, quer dizer, meio conjuntural, meio estrutural do mercado.
Talvez seja das áreas de licenciatura em que isto acontece mais. O
que é que isso significa? Significa que para tu te iniciares em
arquitetura, com a perspetiva de depois vires a ter um rendimento decente,
tu tens de ter um background familiar, senão não tens hipótese. Porque
tens de conseguir passar aqueles anos a ser subsidiado por alguém, não
é? Como não é o Estado, são os teus pais ou a
tua família, não sei. E isto aqui provoca, mas este tipo de
coisas não são discutidas, e por isso é que eu digo que
isto é um bocadinho cultural. Isto cria uma injustiça social gigante, não
é? Porque ao contrário de outras áreas, se tu não tiveres este
background familiar, não tens hipótese, vais para um atelier, pagam-te 500 euros,
700
Magda Nico
Pois. Não, a reprodução social em determinados cursos é conhecida, não é?
Há determinados cursos que são vistos como tendo uma transição mais rápida
e mais assegurada, sobretudo, para o mercado de trabalho e é por
isso que ainda existe muito aquele discurso de classes médias, médias baixas,
que quando os seus filhos de facto conseguem ingressar no ensino superior
se tem a preocupação de eles não irem para cursos em que
depois as saídas profissionais não estão tão garantidas. Há arquitetura, direito também
e há outras profissões que acabam, continuam a reproduzir um bocadinho socialmente,
porque só mesmo quem tem essa vontade, mas também essa possibilidade, é
que acaba por ir para determinados cursos. Portanto, é uma dupla reprodução.
Para já, A próprio interesse por áreas como direito ou arquitetura já
reflete em si mesmo um determinado contexto, talvez familiar, no sentido em
que são áreas criativas e de uma determinada seriedade. Mas isso é
mais ou menos incontornável. Isso já existe à partida. E Depois a
própria transição para o mercado de trabalho ser muito menos rápida e
assegurada afasta completamente as pessoas que gostam de tirar um curso, precisamente
para garantirem o mais rapidamente possível a reposição do investimento que foi
feito, a partir das propinas e a partir muitas vezes da deslocação
de casa. A maior parte dos jovens que andam nas universidades vêm
de outros sítios do país e, portanto, o esforço para frequentar universidades
é muito grande, não tão grande como noutros países em que as
universidades estão, de facto, muito mais concentradas em determinados sítios, como, por
exemplo, na Finlândia, ou mesmo, a Suécia é mais pequenina, mas mesmo
na Filândia tem mesmo que mudar de casa. É uma condição obrigatória.
José Maria Pimentel
Sim, exato, tem a ver com isso também. E a causalidade vai
nos dois sentidos, porque Esta questão da rede familiar também explica isso,
como de facto existe essa rede familiar que ampara muitos choques, viu-se
até agora na pandemia, depois isso não cria a percepção de uma
necessidade que existe, que é estrutural e existe a longo prazo, e,
determinante para muitos casos individuais, mas que não são a maioria, ou
pelo menos não são vistos como a maioria, não gera a percepção
dessa necessidade de intervir para resolver a coisa, porque a rede familiar
vai amparando em muitos casos, não é? Então tu não chegas a
ter a necessidade de corrigir este tipo de problemas e muitas injustiças
dessas que se vão prolongando ao longo do tempo mas não dão
tanto nas vistas, não
Magda Nico
é? Exatamente. Eu acho que tu casta um ponto importante que é
a invisibilidade da maioria. Geralmente a maioria é mais audível, mais visível.
Falamos sempre de, noutros casos com muita razão, de como as minorias
são mais silenciosas e não têm voz. Mas muitas vezes na área
da juventude o que se fala é que é precisamente a maioria
que acaba por ser mais invisível e mais silenciosa. Porquê? Porque de
facto são problemas que acabam por ser colmatados a nível familiar. Lhes
é retirado muitas vezes a legitimidade de falarem sobre essas dificuldades de
forma digna e séria, não é? De lembrar de há uns anos
atrás da ideia da piaguice, não é? Da piaguice, parem lá de
se queixar, pronto, tudo bem, têm que sair da zona de conforto.
Lembro-me muito dessa frase, é uma frase que ficou e que é
muito forte, mas há muitas outras, não é? Frases ditas no nosso
seio familiar, nos cafés, em todo o lado, nos jornais, às vezes,
pequenos comentários, que é muito essa ideia do... São problemas de classe
média, não é? Como às vezes a
citismo. Não
é problema de classe média, mas são problemas de classe média, são
problemas reais na mesma, não é? E a ideia de que muitos
destes jovens que só conseguem frequentar, Por exemplo, o ensino superior, e
já estou a falar daqueles que conseguem frequentar o ensino superior, já
estou a falar daqueles que, faça outro, já estão numa posição mais
privilegiada. Aqueles que conseguem, à custa de serem trabalhadores, estudantes, com grandes
dificuldades para frequentar as aulas, à custa de grande investimento financeiro por
parte dos pais, muitas vezes com grande sacrifício e isso tudo desaparece
quando sai um relatório que compara a idade média de saída de
casos dos pais na Europa e a notícia é que os jovens
portugueses são aqueles que saem mais tarde de casa os pais. E
coloca mais uma camada a ofuscar o verdadeiro problema. E era nesse
sentido que eu também escrevia esse artigo e outros um bocadinho para
tirar essas camadas que no fundo continuam a desfocar aquilo que são
os verdadeiros problemas que são muito mais estruturais, como estavas a dizer,
são socioeconómicos e são continuados no tempo. Mas como às vezes estamos
a olhar muito para os problemas mais presentes e estamos a tentar
arranjar essas explicações mais rápidas, é cultural, é isto, Os jovens de
hoje em dia não querem ser de casa, os pais... E pronto,
está resolvido o problema, está explicado. Vamos a outro, partimos para o
próximo. Vamos
Magda Nico
Sim, eu acho que há uma determinada linha mais conservadora talvez de
sociólogos, talvez eu me inclua aí na maior parte das vezes que
de facto segue uma corrente muito mais estruturalista, não é? Muito mais
não determinística, não é? Não no sentido de, pronto, nasce-se num treinado
o seio familiar e o destino social daquela pessoa está traçado. Não,
há sempre um leque e uma abertura, não é? Mas há sempre
uma tendência para um treinado, rumo para uma treinada de mobilidade social,
ela tem limites. Geralmente é aquela ideia de que a maçã nunca
cai muito, muito longe da árvore. Pode cair um bocadinho mais longe
do que aquilo que caía no passado, não é? Os futuros estão
mais em aberto, mas não vai cair ao pé de uma outra
árvore, digamos assim. Nunca vai muito longe, nesse sentido. Mas esse determinismo
não é total. O peso das estruturas é importante. O que é
preciso ter em conta é que as estruturas também podem mudar e,
portanto, se nós nos apercebermos que as estruturas estão a puxar as
pessoas para baixo, também podemos criar novas estruturas, novas estruturas políticas, sociais,
que tentem atenuar isso. Agora, na Sociologia da Juventude, como em muitas
outras áreas, esta ideia da agência, do dar a voz, do é
importante perceber o que é que as próprias pessoas sentem e como
é que elas vêem a sua própria vida, na Sociologia da Juventude
é muito importante. E portanto há uma divisão, também com as teorias
mais pós-modernas e tudo, há uma divisão muito, muito clara, que eu
acho que nos últimos tempos já se começa a esbater, felizmente, mas
há uma divisão muito clara entre aqueles que puxam a corda para
o lado de não, são as estruturas e o outro que puxam
não, não, os jovens têm resiliência, os jovens têm vontades, têm agência,
têm possibilidades de com a sua ação mudar as suas condições de
vida. E eu acho que o discurso muitas vezes polariza e se
perde, mais uma vez, porque no meio está a vir tudo do
debate. Porque a ideia é perceber até que ponto é que é
estrutura, até que ponto é que é agência e perceber se as
duas coisas estão, de facto, equilibradas, digamos assim. Digamos que só quando
a agência do indivíduo e a estrutura ou o contexto em que
o indivíduo vive se conseguem realmente tocar é que o indivíduo vai
conseguir alterá-los ou a estrutura vai poder fazer o seu efeito. Quando
nós temos um entendimento de alguém que está a tentar mudar a
sua vida com expectativas completamente erradas sobre o contexto que a rodeia,
cai numa certa falácia, que alguns autores chamam de falácia epistemológica da
modernidade tardia, um nome muito longo, mas que se entende muito bem,
que é aquela ideia de se uma pessoa acreditar, vou dizer totalmente,
obviamente nunca é totalmente, mas uma pessoa acreditar quase totalmente que tudo
aquilo que lhe acontece na vida e tudo aquilo que ela passa
na vida é única e exclusivamente sua responsabilidade, aconteceu porque ela fez
ou não fez uma tonada coisa. Aconteceu porque ela teve força de
vontade ou porque não teve. Portanto, se ela atribuir a ela própria
a responsabilidade de todos os desfechos da sua trajetória de vida, será
uma pessoa, agora não me ocorre a palavra em português, mas delusional,
não é? E isso tem dois efeitos que eu considero igualmente perigosos.
Um é a pessoa ter uma trajetória de vida bem sucedida e
viver na ilusão de que isso foi inteiramente do seu mérito e
que não teve as condições à partida, durante, à chegada, seja como
for, que permitiram que a pessoa tivesse esse determinado percurso. Ter uma
ideia egocentrada da sua própria trajetória de vida. E isso contribui muito
para um discurso de que não é preciso políticas públicas, não é
preciso identificar as desigualdades, as desigualdades pertencem aos indivíduos, a eles que
resolvam. E quando são as próprias pessoas a ter este tipo de
discurso é muito perigoso porque legitima um pouco essa ideia. Por outro
lado, e bastante mais trágico, o outro lado dessa falácia é que
as pessoas cuja trajetória de vida passa por imensos obstáculos que elas
não conseguem ultrapassar. Não conseguem porque muitas vezes não têm os recursos
sociais, educativos, culturais, lá está, cognitivos, seja o que for, muitas vezes
também estão encerrados em determinadas categorias de género ou de étnico-raciais ou
outras que de facto as empurram para determinadas oportunidades de vida e
ficarem convencidas que isso foi por sua culpa, por sua responsabilidade. E
isso é um peso muito grande para se carregar durante uma vida
e quando os jovens começam a carregar esse peso quando têm 20,
21, 22 anos, é um peso muito grande para se livrarem mais
tarde. Nós falamos muito, por exemplo, das pessoas que sofrem do desemprego
e sobretudo do desemprego de longa duração, da forma
como
se começam a responsabilizar elas próprias pela sua condição e começam a
ficar cada vez mais desmotivados e do efeito longitudinal que tem o
facto da pessoa estar desempregada. A pessoa começa a se aculpar ela
própria, sou eu que não tenho um bom currículo, fui eu que
não fiz nada com a minha vida, por isso é que eu
não estou conseguindo encontrar trabalho. É um ciclo vicioso. É um ciclo
vicioso, por isso é que o desemprego de longa duração se tornou
um indicador diferente do desemprego por omissão de curta duração. Porque, de
facto, o emprego de longa duração encerra as pessoas neste ciclo vicioso
e as pessoas começam a responsabilizar elas próprias pela condição em que
se encontram. Se nós pensarmos que a precariedade de longa duração também,
ou a incapacidade de entrar no mercado de trabalho, ou a incapacidade
de conseguir um bom emprego e com isso um bom rendimento ou
de fazer frente ao seu patrão, seja o que for. Se as
pessoas começam a atribuir única e exclusivamente a elas próprias a responsabilidade
dessa condição é realmente um cancro para as suas trajetórias de vida,
para as suas expectativas, para a sua resiliência. E, portanto, eu acho
que a ciência deve ajudar a combater esta falácia em que as
pessoas muitas vezes se encerram, porque aí sim elas estarão a contribuir
involuntariamente para o fracasso, é uma palavra forte, mas assim que as
pessoas sentem muitas vezes que é, para o fracasso da sua própria
trajetória de vida, que não vai tão além como elas gostariam
José Maria Pimentel
que fosse. Mas isso é um tema engraçado, isso não é uma
consequência inevitável da modernidade, precisamente Porque a modernidade trouxe-nos uma individualização que
não existia antes, ou pelo menos não existia desta forma. Era nós
olharmos para nós enquanto agentes da nossa própria vida e pensarmos em
desenhar a nossa vida de uma maneira que existia muito menos antigamente.
A tua vida estava mais ou menos pré-programada, depois também se cria
às vezes uma caricatura sobre isso. Mas é verdade que era bastante
mais do que agora, que tu tinhas uma vida pré-programada, muito mais
encaixada no modo social e a partir do momento em que tu
queres pensar a tua vida, depois é impossível fugires à noção de
que tu és agente dessa vida e facilmente cais nessa ilusão de
que és um agente total dessa vida, não é? Mas por outro
lado, se tu não pensares assim, é difícil teres duas coisas ao
mesmo tempo. É difícil tu quereres tomar ações para levar a tua
vida num sentido que tu entendes e não é só profissional, é
em todos os sentidos, de intimidade, de tudo o que for, e
ao mesmo tempo achares que estás presa pelo sistema. Porque se achares
que estás presa pelo sistema, então também não fazes nada, não é?
Entras numa espécie de... Sim,
Magda Nico
e é por isso que o debate polarizado é desinteressante. Porque aquilo
que interessa é de facto as próprias pessoas, mas depois também estudos
empíricos, sociológicos e outros validarem isso, que o interessante é as pessoas
perceberem como é que as duas coisas se tocam. Porque, de facto,
as pessoas acharem que, pronto, nasci nesta família, nasci neste contexto, nasci
neste bairro, não há nada que eu possa fazer. É uma tragédia
e está errada porque hoje em dia, de facto, Existem, através da
escola, através do efeito escola, através do efeito políticas públicas, através do
efeito da própria família e da resiliência, muitas vezes a família com
parques de recursos educacionais ou financeiros consegue, a partir de uma ética
de trabalho, a partir de outros instrumentos, de facto alavancar a vida
de uma pessoa. Portanto, é errado a pessoa pensar que o seu
destino social está completamente marcado pela estrutura e que não há nada
a fazer, mas também é errado, a meu ver, e na sociologia
da juventude, eu acho que é mais necessário lembrar que é errado
esta segunda parte pelos vícios da tal falácia de que falei, também
é errado convencer, digamos assim, os próprios jovens de que a única
e total responsabilidade dos fechos das suas vidas é a sua. Dão
o exemplo do trabalho feito pelos chamados youth workers e pelas políticas
de juventude europeias. Ao longo dos últimos anos tem contactado um pouco
com o universo mais do Conselho da Europa sobre esse assunto e
eles de facto têm estruturas muito completas de debate e nos seus
eventos científicos porque eles têm sempre muitos youth workers, aqueles chamamos técnicos
de juventude, não é uma tradução muito feliz, mas é trabalhadores para
a juventude, digamos assim, pessoas que trabalham para os jovens. O Youth
Workers, não consigo arranjar uma tradução melhor. Tem esses, tem as pessoas
que decidem politicamente, portanto, decisores políticos e pessoas que de facto têm
essa capacidade, incluem também os próprios jovens e incluem investigadores. Portanto, é
uma coisa bastante completa e de facto há ali um crash de
visões às vezes porque já tive discussões, isto é só um micro
exemplo, mas já tive discussões sobre alguém considerar que havia uma atividade
que poderia ser considerada um programa para os jovens, pronto, desenvolvido pelos
youth workers, que era ensiná-los a fazer os seus currículos bem, motivá-los
a fazer currículos por vídeo, portanto mais criativos, portanto muito à volta
do como construir um currículo, como convencer o empregador, como chamar a
atenção do empregador, assim uma coisa muito performativa, era mesmo a partir
dos vídeos. Lá está a agência. Lá está, tu és capaz, portanto
tu tens de produzir uma treinada performance, um treinado CV, tens de
convencer as pessoas que és um espetáculo, se não convenceres, pronto, falhaste.
E eu perguntei, eu na altura perguntei a esse rapaz, eu disse
mas como é que é a estrutura do mercado de trabalho nesse
país, no país de onde ele vinha, já não me recordo qual
era, mas penso que até era um país de leste. Qual é
que é a estrutura do mercado de trabalho? Qual é que é
a procura por trabalhos desqualificados, por trabalhos mais técnicos e como é
que é, por outro lado, a estrutura educativa desse país. Se não
interessa, o que interessa é empoderar os jovens e ajudá-los a construir
o seu currículo. E eu pensava, interessa não é porque podemos estar
a empurrá-los para um beco sem fundo em que, para além de
todo o esforço que farão, e que obviamente o saber não ocupa
lugar e obviamente que a própria aprendizagem de construir um currículo pode
ser bastante empoderadora, digamos assim, e para eles se autovalorizarem mais, mas
estamos a convencê-los que o obter ou não emprego é fruto do
currículo TARGIR ou não, estamos a enganá-los. E, portanto, eu acho que
não devemos desviar nos discursos sobre os planos nacionais de juventude ou
outras coisas, desviar demasiado a ideia para que estar nas mãos deles,
também está, mas não está só nas mãos deles fazer isso. Porque
muito facilmente essas pessoas vão sentir que falharam nessa missão, vão ter
esse sentimento muito injustamente e muito erradamente e ele provavelmente vai acompanhá-los
durante os anos que se seguem. Portanto, é perigoso.
José Maria Pimentel
Esse é um bocadinho o defeito, ou o reverso da medalha, do
liberalismo. Liberalismo aqui no sentido lato, no sentido da tradição europeia de
pôr o indivíduo em primeiro lugar e te dar agência e dizer
que tu tens a autonomia para escolher a tua vida. Mas isso
depois implica que... Que também tenham os recursos para o fazerem. Exato,
e ignora todo o contexto. Antigamente antes disso estava lá, era o
contexto que determinava, a tua vida seguia o sítio onde tu encaixavas
naquele contexto, de repente é-te dada uma oportunidade, mas depois não dá
para toda a gente ser tudo, ou não dá para toda a
gente ser... Se tiver muita gente a querer ser o mesmo, por
definição não vai dar.
Magda Nico
Para já não foi de repente. A ideia de que é um
processo e ainda continua. A maior parte dos jovens continua a não
ir para o ensino superior, continua a sentir que ou que não...
E agora vou voltar a referir, porque são dados que são bastante
recentes e que estou a trabalhar, do Inquérito Feito para o Plano
Nacional da Juventude, a maior parte dos jovens que não seguiu para
os graus académicos ou graus de qualificação que gostaria de ter seguido.
A justificação que dá, os conjuntos de razões que são dadas, são
dois. Um é financeira, não posso agora continuar a estudar, Tive que
ir trabalhar, tenho contas para pagar, não tinha possibilidade para pagar as
propinas, precisava do dinheiro. Falámos há bocadinho, não é? Preciso do dinheiro.
Magda Nico
outra opção. Não consigo prolongar o meu trajeto educativo, preciso ir trabalhar.
E o outro era muito, lá está, não tenho capacidades para isso,
não gosto de estudar, não sou boa, não tenho boas notas, não
sou capaz. E, portanto, era a necessidade e a crença de que
não se está à altura. Eu acho que se tem que trabalhar
esta ideia de não estar à altura, todos estão à altura, tem
que se criar, de facto, essa linha, o denominador comum, uma igualdade
de oportunidades para que todos possam chegar a esse patamar, mas não
nos convencermos, ou nós próprios, e sobretudo não convencermos os jovens, de
que o esforço para chegar a esse patamar é igual para todos,
porque uns vão ter que se esforçar mais que outros, infelizmente. Mas,
pelo menos, se tiverem consciência disso, eu acho que não se sentirão
tão enganados e aí se enteram a motivos muito válidos para se
sentir orgulhosos do seu percurso.
José Maria Pimentel
E a igualdade de oportunidades, mesmo essa não bastaria, não é? Porque,
primeiro, terias sempre diferenças genéticas, portanto, tens sempre diferenças de mais ou
menos jeito para terminar das coisas que a pessoa não tem culpa
e depois tens a sorte. Mesmo por cima disso tens a sorte.
Portanto, podes simplesmente ter azar. Mas eu acho este tema giro porque
é um tema que toca na questão da meritocracia, por exemplo, que
é um tema difícil de gerir socialmente, porque por um lado é
evidente que é completamente miúdo tu achares que a meritocracia determina as
coisas a 100%, eu não acho que determine sequer perto 100%, mas
por outro lado, se tu passas a ter uma explicação completamente estrutural,
não é, completamente de contexto, depois
Magda Nico
tiras a agência toda... Tiras a agência e perdes a ética de
trabalho e a ética relacional,
não
é? Se achares que tens que apostar noutros cavalos, que na meritocracia
não vão ser cavalos muito corretos, de certeza, não é? É isso,
é isso. Mas é esse equilíbrio que eu acho que muitas vezes
não é mantido e aqui eu acho que distribuo, faço a maior
culpa da academia, porque acho que continua, eu acho que menos nos
tempos que correm, mas acho que ainda não suficientemente esta ponta entre
agência e estrutura, dizer e concordar sempre que é uma questão de
grau e não uma questão de dicotomia. Mas também depois, lá está.
Estes discursos depois aparecem com outra linguagem, mas aparecem muito escondidos por
trás dos discursos políticos e das direções políticas que vão sendo tomadas,
não apenas para a juventude, mas
José Maria Pimentel
para a sociedade como um todo. E em certo sentido, há aqui
um jogo de soma positiva, porque o conjunto da agência também influencia
a estrutura, ou seja, a sociedade também não evoluiu por acaso, é
porque há movimentos de... Por exemplo, se os jovens se posicionarem num
determinado sentido, por exemplo, alterações climáticas, por exemplo, essa agência individual toda
somada produz alterações na estrutura, ou várias questões relacionadas com o estado
social, aquilo que falávamos há bocadinho de criar mecanismos que permitam que
os jovens tenham autonomia mais cedo. Para isso acontecer também é preciso
que exista essa agência a nível individual no sentido de alterar essa
estrutura. Ou seja, a prazo há um jogo de soma positiva.
José Maria Pimentel
Olha, uma coisa que eu te queria perguntar, voltando até aquilo que
falávamos há bocadinho das gerações atuais, até porque acho que para quem
nos está a ouvir é um tema interessante, não é? Porque é
o mundo que nós vivemos, não é? E eu até estava a
pensar nisso e é interessante olhar, até relacionado com aquilo que tu
falavas há bocadinho, há aqui uma confluência de tendências porque tu tens,
olhando para os jovens de hoje, tu tens aquilo que falavas no
início que é o facto de serem jovens ou seja, o facto
de terem aquela idade, de estarem naquela fase da vida, que tem
essa componente que é universal e tu depois tens, a somar a
isto, tens tendências que vêm de bastante mais de trás, que vêm,
lá está, vamos colocar a coisa aí desde os anos 60, mas
até muito mais de trás e nós já falámos de algumas delas,
de individualismo, de individualismo no sentido, sem o lado pejorativo, individualismo No
sentido da valorização do indivíduo acima do...
José Maria Pimentel
Uma certa laicização, urbanização, sei lá, uma série de coisas que são
tendências que vêm muito atrás e que têm continuado, paulatinamente, a fazer
o seu efeito ao longo das últimas décadas. E depois tens tendências
mais específicas agora, tens a digitalização, tens as redes sociais, tens uma
certa... No fundo do corpo em sitter, assumir um papel que não
tinha antes, até identitário, não é? Sei lá, da maneira como te
vestes, ou se tens piercings ou não tens, ou whatever, tudo o
que for. Como é que é a corporalidade, não é?
José Maria Pimentel
Tens também, embora isto esteja relacionado, tens também uma espécie de, eu
diria, uma globalização cultural, ou seja, o jovem, até mais do que
na minha geração, Os jovens de hoje em dia vivem, sobretudo dos
países desenvolvidos, digamos assim, vivem numa espécie de cultura que não deixa
obviamente ter as suas especificidades de país, mas é uma espécie de
cultura que se globalizou, não é? E por exemplo, no meu tempo,
que não foi assim há tanto tempo, não era tanto assim. Obviamente
havia vídeos e a pessoa consumia muita música estrangeira, mas não era
a mesma coisa, né? E portanto é uma confluência engraçada entre este
lado mais estrutural, estas tendências que vinham de trás e continuam e
depois tendências que são muito mais específicas de agora, não é? Que
não existiam, pelo menos há 10, 15 anos não existiam. Qual é
o retrato que tu traças da geração atual, chamemos-lhe assim, com esta
simplificação, perante estas tendências todas? Pergunta fácil, não é?
José Maria Pimentel
Se calhar é melhor pôr isso de outra forma. Na conjugação destas
tendências todas, o que é que no retrato que está no senso
comum, que está na cabeça da pessoa geral, da pessoa média, se
nós a perguntarmos na rua, está errado. Eu tenho a ideia que,
por exemplo, uma coisa que está muito na cabeça das pessoas é
a questão da digitalização e das redes sociais. Tu falas com uma
pessoa, é muito comum as pessoas queixarem-se, os miúdos hoje em dia
estão sempre ao telemóvel, já nem interagem, já nem socializam, não sei
disso. Portanto, há um grande enfoque aí.
José Maria Pimentel
Pod, eu queria era perceber a tua visão de socióloga sobre isto,
sobre o que é que tu achas, no fundo, que se perde
na visão do senso comum sobre estas coisas. Eu acho que uma
coisa claramente é essa, ou seja, eu já tive essa discussão várias
vezes, nós somos animais ultra-sociais, portanto é evidente que as pessoas vão
sempre querer socializar, parece-me que há um grande exagero de achar que
os miúdos, de repente, não querem, deixaram de socializar.
José Maria Pimentel
que nesse sentido faz, não é? Porque, sei lá, de repente, por
exemplo, ainda no outro dia falava sobre isso num episódio, estiveste nos
anos 80, 90 à crise das drogas porque de facto houve um
influxo de drogas para que as pessoas não estavam preparadas. Percebe-se porque
é que isso pode causar um problema. Agora, antissocialização é... Tirando alguns
nichos, e de facto existem alguns nichos, no Japão, por exemplo, há
muito isso, tipo, miúdos que não saem de casa e não sei
o quê, mas do ponto de vista da média é evidente que
as pessoas continuam a ter uma poluição socializante grande. Mas pronto, este
era só um exemplo. Sim,
Magda Nico
mas é um bom exemplo. Podemos pegar por aí, é uma pontinha
do iceberg, mas podemos pegar por aí. Não me parece que as
pessoas, desde que existem telemóveis e internet, tenham deixado de sair à
noite ou tenham deixado... Se pensarmos por aí, às vezes essa equivalência,
essa ideia de uma visão sempre de crise catastrófica e muito pessimista
do rumo desta geração é sempre um bocadinho exagerada e tal como
vem com muita potência desaparece e passamos para o próximo drama. Por
exemplo, se estamos realmente preocupados sobre os jovens de hoje em dia
passarem demasiado tempo ao telemóvel, então vamos continuar a estudar estes jovens
até eles terem 40 ou 50 anos para perceber se isto vai
ter influência na rede de amigos e da rede de apoio que
eles têm nessa altura. Mas não. Quando eles começam a aproximar-se dos
40, deixam de ter interesse e voltamos a estudar os jovens que
têm 25 a 30 anos e arranjamos outro problema novo. Estou a
falar na primeira pessoa também enquanto académica. Mas andamos sempre um pouco
à procura disso. Estamos sempre a dizer que os efeitos vão ser
longos, duradouros, estruturais, que a identidade desta geração vai ser completamente diferente,
porque vão ser assim ou assado. Mas depois, quando chegamos à altura
de começar a confirmar se temos razão, pronto, já partimos para outro
problema e vamos restaurar os jovens outra vez.
Magda Nico
acho que é característico de alguma sociologia, não da maioria e em
Portugal não da maioria. Eu Acho que a parte dos sociólogos em
Portugal tem uma visão bastante equilibrada, mas também não me cabe a
mim agora falar do próprio campo, mas eu acho que de uma
maneira geral existe muito isto da academia, sem falar da Sociologia, muito
isto da academia, De ir à procura com muita pressa de uma
explicação, de um rótulo e dar-se o caso por terminado e arrumar
a coisa e vai para o outro. E, portanto, eu acho que
esta ideia de uma ciência mais lenta, mais longitudinal, mais – eu
ainda não sei qual é o desfecho, vou ter que esperar mais
um bocadinho e vou ter que ter paciência e resiliência para esperar
mais um bocadinho e ver qual é que é o verdadeiro desfecho
ou o desfecho mais tardio que eu acho que às vezes falta
na academia de hoje, também falta, lá está, pela estrutura, a estrutura
do sistema científico também muitas vezes não colabora para que nós tenhamos
tempo para amadurecer as nossas opiniões, os nossos estudos. A ideia do
fast science também nos coloca aqui alguma pressão, mas eu acho que
devemos ceder à pressão sempre que for possível. Quando nós analisamos dados,
por exemplo, que aspetes é que os jovens dão prioridade nas suas
vidas, nomeadamente que aspetes é que acham que são mais urgentes para
serem trabalhados em políticas públicas, nomeadamente pela Nacional de Juventude ou outros,
são sempre os mesmos. Em primeiro, segundo e terceiro lugar, emprego, saúde,
habitação e família. É um bocadinho... Parece um bocadinho amassador a dizer
isto, mas isto é o que é importante. Agora, os contornos que
cada uma destas coisas toma é que é diferente, não é? O
emprego de que eles estão a falar
Magda Nico
emprego que uma pessoa há 30 anos atrás falaria. Mas a ambição
é a mesma, é de que aquilo é muito importante para o
seu bem-estar, para o seu futuro e no caso de Portugal ainda
mais importante é para poderem concretizar todas as outras transições. O que
nós vemos hoje, ou eu acho que podemos estar a começar a
ver hoje, de uma forma mais marcada e até do ponto de
vista da recolha de dados já se começa a ver isso um
pouco, mesmo nos dados quantitativos, é de que forma é que a
igualdade de oportunidades, problemas mais globais, para tocar também no assunto que
estavas a falar, no qual podemos incluir, obviamente, as alterações climáticas, começam
a ser também muito importantes, começam a ser uma prioridade para a
vida deles e o que é uma coisa muito interessante que é
uma ideia muito próxima das suas próprias vidas, não é? Eu tenho
que começar a trabalhar, eu quero sair de casa, portanto estas são
as minhas prioridades e eu assumo que estas são as prioridades para
os jovens, para as outras pessoas que têm a minha idade, mas
parece-me, tenho alguns indícios, não posso afirmar com toda a certeza, mas
mesmo em Portugal tenho alguns indícios a partir destes dados que estou
a trabalhar, que o nível de preocupações e de prioridades dos jovens
passou a um nível mais macro. Esta ideia de não estarem só
preocupados consigo e com aquilo que consigo e com a sua geração,
mas olharem um bocadinho mais além.
Magda Nico
Sim, e que eu acho que com a gravidade dos problemas também
e com a rapidez com que esses problemas também são muitas vezes
denunciados e disseminados pelos mídias que aí fazem o seu trabalho muito
bem, não é? Como estavas a dizer há pouco, às vezes há
certas organizações mais orgânicas que podem começar um certo trabalho mais do
campo, bottom up, e não têm a visibilidade que precisam. Ora, com
as redes sociais hoje em dia, com os mídias, poderão ter essa...
A Greta não nasceu nesta geração por acaso, não é conhecida nesta
geração por acaso. Terão havido outras, mas geralmente eram as celebridades que
advogavam, por exemplo, uma Jane Fonda ou assim, celebridades de outras gerações
que tinham estas bandeiras que aproveitavam o seu papel de celebridade para
dar visibilidade a um problema social. Hoje em dia já pode ser
um bocadinho ao contrário e isso também é uma... É um ponto
interessante isso.
Magda Nico
um ponto a favor, é um instrumento que esta juventude tem e
que pode ser de facto um ponto a favor. Portanto, para pegar
no ponto da APCAD ainda bem que existem redes sociais, ainda bem
que existe esse processo e essa democratização, democratização ainda por completar, mas
mais acesso a essas redes e a esse mundo digital, porque isso
dá-lhes um instrumento que de outra forma, não estando, obviamente sem entrar
aqui muito nesse debate, mas não estando tão representados noutras estruturas de
poder, dá-lhes um outro mecanismo para poderem participar e para poderem ter
voz e para poderem lá está, influenciar a tal estrutura. E o
que se nota hoje é que, não sei o que foi primeiro,
se foi o ovo ou se foi a galinha, mas de facto,
a partir desses processos mais digitais de participação, outros jovens começaram a
ter essa consciência da importância dos problemas mais globais, não só das
alterações climáticas como outros. Nós vimos, entraram-nos imagens adentro, agora durante o
primeiro confinamento global, digamos assim, entraram-nos imagens pela televisão que eu acho
que foram incontornáveis e que são elas próprias também factos sociais totais,
de facto, de George Floyd e de outros que de facto, no
fundo, criam um denominador comum para o debate. Nem todos concordarão com
os vários lados desse debate, mas criam de facto uma agenda e
eu acho que os jovens estão bastante atentos a essa mesma agenda.
Criam
José Maria Pimentel
Eu estava a ouvir-te falar e há aqui uma tendência macrointeressante, porque
me parece que se tu olhares desde o início que surgiram os
meios de massa, começaram a surgir os meios de massa, eles foram
trazendo os jovens, ou dando um protagonismo aos jovens que a estrutura
social normal não dá por várias razões, não por uma espécie de
má vontade, mas porque a estrutura social está feita para os adultos,
não é? Tu vais crescendo e, portanto, os órgãos que existiam de
representação, de discussão, eram órgãos de adultos, maioritariamente masculinos, não é? Mas
mesmo retirando isso, não deixaria de ser de adultos. E com os
meios de massa e com a cultura popular isso foi trazendo e
até depois com efeitos nos adultos, até vai tornando mais jovem, mais
jovem isto é, obtendo algumas características vindas dos jovens nos adultos e
hoje em dia até se nota isto. E as redes sociais de
certa forma são mais um passo nesse percurso porque ao desintermediarem completamente
a circulação de informação, portanto deixa de estar nas mãos dos médias
tradicionais e dos jornais e das televisões, de repente podem surgir figuras
como a Greta, por exemplo, que tu dizias há bocado, que para
as redes sociais seria muito difícil, simplesmente porque ela não teria esse
palco.
Magda Nico
a conversar com nós. Sim, estava a concordar precisamente que é de
facto naquelas condições em que falámos, em que existe democracia e existem
os recursos digitais de uma maneira mais geral nesses países, de facto
podem ser usados enquanto instrumento de participação, não só para os jovens
como para outras camadas da população que, por outros motivos, acabam por
estar um bocadinho mais afastadas desses mecanismos. Relativamente à questão dos jovens
também haver um lado menos positivo do facto de os jovens participarem
nas redes, etc, eu acho que esse lado menos positivo é transversal,
talvez a todas as idades, Porque muitas vezes essa participação por via
digital, falávamos há pouco, não é de que uma cruzinha às vezes
não nos diz o suficiente, um like também não, uma assinatura numa
petição às vezes também não. E Às vezes podemos perder um bocadinho
a noção, para quem está a ver de uma forma mais externa,
podemos perder um bocadinho a noção do significado, não tanto da quantidade,
não tanto da visibilidade, mas do significado mesmo dessas micro participações. Ainda
há pouco tempo tivemos ouvir falar sobre esses novos modos de participação
dos jovens e há sempre aquela pergunta, não sei se é da
última semana, se é do último mês, mas há sempre uma pergunta
que diz se no último X tempo assinou alguma petição e é
enorme a porcentagem comparada com outros escolões etários, é enorme a porcentagem
de pessoas mais jovens e tanto para essas mais jovens como para
as outras eu faria uma outra pergunta logo a seguir. Qual foi
essa petição? E perceber quantas pessoas se lembravam qual foi a petição
que assinaram. Porque às vezes nós temos esta ideia de medir a
participação e de medir os valores e de medir, no fundo, quão
engajadas as pessoas estão na sociedade por coisas que quantificam próxios disso
e não necessariamente aquilo que estamos a querer medir. E, portanto, a
mim preocupa-me um bocadinho usar às vezes esses indicadores, seja para os
mais jovens, seja para os mais velhos, mas sabemos que são os
mais jovens a usar, usar esses indicadores como evidência empírica de que
participam, de que se interessam. Para mim participar é interessar-me, não é
necessariamente tornar esse meu interesse visível ou de alguma maneira perfumatizar, digamos
assim, esse meu interesse. E portanto acho que às vezes confundimos um
pouco e acho que as prioridades às vezes não estão inteiramente corretas
entre a participação e engajamento, porque uma pessoa para participar deverá de
facto ter uma opinião, ter tido tempo para formar essa opinião, ter
tido informação para formar essa opinião, acredito que
José Maria Pimentel
sim. E esses dados são limitados nesse sentido, porque só te dão
tanto aquele data point da pessoa fez ou não fez, mas não
te mostram em que contexto é que aquilo aconteceu. Se aquilo foi
resultado de muito tempo a pensar sobre aquele assunto ou foi uma
coisa meio por impulso, porque por acaso era só carregar no botão
e não reflete propriamente o interesse mais aprofundado sobre isso. Eu estava
a falar há bocadinho, até estava a fazer aquela analogia com o
problema da droga para dizer que me parece estranho, e nós concordamos
nesse aspecto, que a preocupação das pessoas com uma espécie de poluição
associal, ou seja, antissocial se quisermos, dos jovens atuais, porque isso claramente
contra a natureza humana e portanto nesse aspecto as redes sociais preocupam
bastante pouco, salvo alguns casos de franja que aí de facto pode
haver problemas. Agora, há outro lado das redes sociais que pode ser
mais comparável à questão das drogas, no sentido de nós não estarmos
preparados para ele. E aí tem a ver com, precisamente, outros aspectos
da natureza humana que são sobreestimulados pelas redes sociais. E há vários
efeitos nesse caso e há alguns que têm a ver precisamente com
os jovens. Eu lembro, por exemplo, de apanhar um estudo, foi muito
recentemente, uma semana, do efeito das redes sociais, sobretudo o Instagram, Snapchat
e já não sei quais eram as outras, sobretudo nas raparigas, na
saúde mental. Por causa de toda aquela lógica de... Tem um bocadinho
a ver com aquilo da agência, até que falávamos há bocadinho, não
é? Tu construíres a tua personagem de uma espécie de persona online
e, portanto, coloca uma tónica muito grande na questão do aspecto físico
e da vida que tu tentas projetar e depois aquilo cria. Isso
agora que tu vou falar, tu pensaste que isto tinha muito a
ver com aquilo que falávamos há bocadinho da questão da agência, não
é? Depois se tu não és bem sucedido aquilo cria uma pressão
gigantesca e nos Estados Unidos isto também tem a ver com o
outro ponto que levantavas há bocadinho também é provável que precisássemos de
mais tempo para perceber exatamente o que isto é, porque podemos estar
a sobrevalorizar mas há ali um efeito nos dados que aparentemente é
bastante grande, ou seja, de vários indicadores de saúde mental que se
medem, com depressões, pensamentos de suicídio, ou eventuais tentativas de suicídio, não
sei o quê, tu notas que o gráfico estava ali num determinado
nível, que nunca é zero, como é óbvio, e de repente tem
ali a partir do surgimento destas redes, que é Salve-Veia-Ralipa, ali em
torno de 2013, a coisa começa a ter ali uma subida muito
rápida que aparentemente tem alguma coisa a ver com isto. Como é
que tu olhas para isto?
Magda Nico
Os meus comentários vão ser muito, talvez, superficiais porque de facto não
é uma área que eu me tenha debruçado, talvez sobre o bem-estar
um pouco, mas não sobre essa perspectiva do género e não necessariamente
relativo a essa ideia, no fundo, da identificação com o corpo que
se tem e com o impacto da pressão sobre o corpo que
se deve ter, etc. A imagem. Agora, as mulheres sempre foram mais
sujeitas ao longo do século já a ideais de beleza que deveriam
responder de alguma forma. Não me espanta que as redes sociais tenham
exacerbado isso, mas aquilo que eu vejo como pessoa que não tem
redes sociais, mas aquilo que eu vejo... E
Magda Nico
não podia estar. Não, mas aquilo que eu, pronto, não tenho redes
sociais mas leio jornais e leio estúdios, mas aquilo que eu vejo
é que, de facto, se esse efeito aumentou, também aumentou muitíssimo o
debate sobre esse mesmo efeito. Quer dizer, nós vemos celebridades a prestarem
fotografias e a fazerem questão de mostrar a sua celulite e avisarem
que aquela fotografia não foi manipulada e, portanto, se existe esse impacto
negativo, também existe já um contra-movimento de pessoas se calhar melhor posicionadas
para criarem uma certa influência, de pessoas que podem de facto mostrar
que a vida real não é assim e que isso não deve
ser um
objetivo
de vida. Portanto, mais uma vez eu não ficaria com o sentimento
de, obviamente, que é uma questão preocupante, as pessoas devem se sentir
bem, devem haver altos níveis de bem-estar e não deve ser mais
um indicador de desigualdade de género, obviamente, mas, por outro lado, também
vejo que existe das próprias mulheres e não só um contra-movimento, não
é?
Relativamente
a isso. Portanto, acho que
só
posso esperar que esses dois movimentos se encontrem e que ganhe o
do equilíbrio e do bom senso.
José Maria Pimentel
Os maiores problemas são aqueles que são discutidos de uma maneira insuficiente,
como alguns de nós que falávamos aqui hoje. Porque se tu socialmente
já estás a discutir o problema, então é provável que ele seja
resolvido até de uma maneira orgânica, porque depois a cultura readapta-se. Eu
acho que aqui o desafio das redes sociais é ter introduzido uma
mudança muito rápida para que nós culturalmente não estávamos preparados. A vários
níveis, não só este nível. O populismo é outro sintoma de um
efeito também das redes sociais. Mas o facto de tu discutires, não
quer dizer que significa que imediatamente ele vai ser resolvido, mas ajuda
a resolvê-lo, porque depois tu vais gerando essa adaptação cultural, social, que
é necessária para depois resolver o problema. E aqui eu também tenho
muito essa percepção, não querendo desvalorizar. Sim,
José Maria Pimentel
Olha, uma última coisa antes de passarmos ao livro. Tu à bocado
estavas a aludir à questão dos estudos longitudinales e eu tenho a
ideia que é precisamente aí que está uma grande fonte de conhecimento
para perceber várias destas dinâmicas que nós falamos aqui. E tenho a
impressão que, sobretudo na Europa, até comparativamente com os Estados Unidos, nós
temos uma tradição insuficiente a esse nível, se calhar, ou a incapacidade
de fazer estudos desse tipo de longitudinais, ou seja, as mesmas pessoas,
no fundo, corrijo-me se eu estiver a explicar isto de maneira errada,
são as mesmas pessoas que são seguidas ao longo de, se for
preciso, décadas para perceber estes efeitos de uma maneira continuada, em vez
de tirar simplesmente uma fotografia com todas as conclusões erradas que podes
estar a tirar. E de facto o manancial de informação que pode
estar aqui é não só mais vasto como muito mais útil do
que simplesmente olhar para uma fotografia de um momento. Falta-nos investir aqui
ou eu estou enganado nesta percepção? Falta,
Magda Nico
falta. Falta, mas eu diria que a Europa é muito heterogênea desse
ponto de vista, porque não só os Estados Unidos, mas depois também
Holanda, Alemanha, Reino Unido. Sim, pois, eu estava a falar da Europa
continental, mas sim, tem uns países mais agrários. Sim, tem muita tradição
para desenvolver estudos longitudinais, para desenvolver uma sociologia mais histórica, mais de
arquivos e, portanto, conseguem ir mais atrás e começar a fazer os
inquéritos e ainda ir buscar a informação anterior e, portanto, fazer mesmo
uma observação com uma janela de observação bastante aberta. Mas isso requer,
para já, um reconhecimento de que isso é necessário e de que
isso traz essa utilidade extra àquilo de fazer, no fundo, fotografias a
determinados momentos do tempo, que às vezes são momentos do tempo que
não têm nada de interesse do ponto de vista histórico. Calhou haver
recursos, um projeto que foi ganho naquele ano e de repente vai
ser um inquérito naquele ano. É uma escolha de ano completamente aleatório
e de repente estamos a tentar destrinçar efeitos idade, período e coorte
etária a partir de um ano que não tem nenhuma justificação teórica,
digamos assim. Cria essa aleatoriedade que depois é desvantajosa porque não só
temos só uma imagem, como temos imagem num ano que até pode
não ter sido nada de importante. Mas, de facto, não há ainda
essa tradição, não há essa imagem positiva que os estudos longitudinales podem
trazer e depois também não há, não sei se é resultado disto
ou como causa disto, o investimento necessário para isso acontecer. O nosso
sistema científico funciona muito à base de projetos que são completamente interrompidos,
ou seja, ideias e entendimentos e compreensões de fenómenos que são interrompidas
porque o projeto chega ao fim, o dinheiro chega ao fim. E,
portanto, os estudos longitudinales são, no fundo, o melhor símbolo daquilo que
é a essência da ciência, que é a acumulação de conhecimento, a
continuidade, não necessidade de rotura constante e, portanto, esta ideia de continuar
sempre a acumular conhecimento, a unir os pontinhos desse conhecimento. Nem todas
as ciências, obviamente, necessitam de estudos longitudinales, mas em ciências sociais e
de psicologia em particular, se nós estamos constantemente a interromper esse conhecimento,
De facto, a perda de informação é enorme. Agora, para isso é
preciso recursos, é preciso um reconhecimento da importância de fazer este tipo
de estudos. Nós, por exemplo, só para te dar um exemplo, nós
temos um projeto a decorrer que recolhe histórias de família. Recolheu histórias
de família em 2011, portanto entrevistámos 15 famílias, vários membros dessas, todos
os membros maiores de idade dessas famílias, para saber, no fundo, cada
um contou as suas biografias mas também contaram na sua versão a
história da sua própria família, com árvores genealógicas, uma coisa mesmo muito
completa no fundo, pôr as pessoas a falar sobre elas próprias por
relação às pessoas da sua família. E isto foi feito em 2019
e em 2020, dispensa de apresentações, com o projeto a decorrer, aquelas
entrevistas para analisar, nós decidimos voltar a entrevistar essas pessoas e não
entrevistámos, fizemos questionários qualitativos, ou seja, a resposta era por questionário mas
as perguntas eram bastante mais qualitativas do que cruzes, digamos assim, ou
do que apenas cruzes, muitas respostas abertas e então inquirimos as pessoas
várias vezes, quatro vezes em 2020, abril a julho. E mesmo nesse
espaço de tempo, de 4 meses, abril, maio, junho, julho, exato, 4
meses, mesmo nesse espaço de tempo as respostas oscilaram bastante. Portanto, a
ideia de nós acompanharmos a evolução também realmente foi um momento muito
denso economicamente, emocionalmente, etc. Sim,
Magda Nico
Foi, nós ficámos preocupadas com aquelas famílias que já conhecíamos e portanto
também decidimos manter o contato numa vertente também mais humanística, se quisermos,
não só da parte da recolha de dados, mas o que eu
queria dizer é que mesmo durante esses quatro meses em que nós
acompanhámos essas pessoas, de forma longitudinal, digamos assim, apesar de ser um
período curto de tempo, Nós conseguimos perceber como é que o bem-estar
das pessoas, a relação entre as pessoas foi oscilando à medida que
as medidas também de confinamento e desconfinamento foram entrando e saindo. Portanto,
conseguimos fazer essa relação. Teríamos perdido essa oscilação no bem-estar das pessoas
e na forma como viam com bons olhos ou com menos bons
olhos algumas das medidas estavam a ser tomadas e o impacto objetivo
que as medidas estavam a ter nas suas vidas, se tivéssemos feito
um questionário em Abril e outro questionário em Julho e teríamos que
tentar unir aqueles dois pontinhos como se tivesse uma reta a se
tratar. E não é uma reta. Nós quando não percebemos as oscilações
perdemos bastante informação.
Magda Nico
Já falámos mais ou menos, mas para além desse tinha aqui um
que eu acho que fica aqui muito bem na continuidade desta nossa
conversa, que é um livro que se chama Children of the Great
Depression, que é de
Glenn Elder
Jr. Que ele é considerado, assim, de forma bastante consensual, o pai
da perspectiva do curso de vida. E então foi precisamente, já que
estamos a falar de estudos longitudinais, foi precisamente isso que ele fez.
Tinha sido feito um estudo, já está nos Estados Unidos, um estudo
de recolha por inquérito aos jovens que tinham passado a sua juventude
durante os anos 30, portanto daí serem jovens ou crianças da grande
depressão, e recolheram de forma longitudinal durante 30 anos, recolheram informação sobre
essas mesmas pessoas. São cerca de 170 pré-adolescentes que começaram a ser
entrevistados então nos anos 30 e foram entrevistados nos anos 40 e
foram entrevistados nos anos 50 e sempre com uma recolha bastante vasta
de informação que vai desde indicadores mais psicológicos a coisas mais sociológicas
ou sociais, digamos. O manancial de informação é brutal, é preciso uma
equipa muito grande para tratar desses dados e ele mais tarde retomou
e, portanto, acabou por entrevistar essas pessoas quando elas já tinham uns
50 anos e, portanto, conseguiu, a partir daí, perceber o que é
que viver a pré-adolescência, neste caso, num contexto de depressão, lá lá,
de um período histórico, que consequências é que isso teve ao longo,
quase inteiro, da vida destas pessoas. E é um estudo de referência
e que pode ser revisitado muitas vezes, quanto mais não seja para
valorizar a importância de esperarmos mais um pouco, perguntarmos outra vez, esperarmos
mais um pouco, perguntarmos outra vez e fazer uma ciência mais lenta,
mais útil. O outro livro que vou então optar, poderia falar então
dos autores também que já falámos, do Andy Furlong e Fred Cartmel,
de autores do livro onde a falácia epistemológica da modernidade tardia foi
muito discutida, ou discutida pela primeira vez, mas se calhar para chamar
a atenção para uma outra forma de olhar sociologicamente para a realidade
dos jovens de hoje e de outrora, talvez mais leve do que
esta obra de referência que eu acabei de referir, é o livro
de ficção de Sally Rooney que se chama Normal People, que também
tem adaptação televisiva, de série televisiva, e que eu recomendo que vejam,
não como uma ode aos millennials, mas como uma ode aos problemas
reais dos jovens de hoje e de outrora. E do impacto das
variáveis de género, de classe social e de contexto político que impacto
é que têm essas variáveis na vida das pessoas jovens. E da
pessoa comum, não é? Em certo sentido. E da pessoa comum. E
somos todas pessoas comuns. Acho que é a mensagem do livro, é
um pouco essa.
José Maria Pimentel
Este episódio foi editado por Hugo Oliveira. Visitem o site 45graus.parafuso.net barra
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de apoio. Se não puderem apoiar financeiramente, podem sempre contribuir para a
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entre amigos e familiares. O 45 Graus é um projeto tornado possível
pela comunidade de mecenas que o apoia e cujos nomes encontram na
descrição deste episódio. Agradeço em particular a Miguel Van Uden, José Luís
Malaquias, João Ribeiro, Francisco Hermes Gildo, Família Galaró, Nuno e Ana, Nuno
Costa, Salvador Cunha, João Baltazar, Miguel Marques, Corto Lemos, Carlos Martins, Tiago
Leite e Abília Silva.