#110 João Goulão - Como a estratégia portuguesa contra a droga se tornou uma referência mundial

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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45 Graus. Há poucos assuntos em que Portugal seja uma referência a nível mundial e provavelmente não há nenhum em que o sejamos de forma tão notória e transversal como no caso da estratégia de luta contra a droga que Portugal implementou a partir do ano 2000, quando o país enfrentava um enorme problema de droga, visível, por exemplo, no facto de ter na altura o índice de infecções por HIV mais alto de toda a União Europeia. Essa nova abordagem, que acabou por ficar conhecida internacionalmente como a Estratégia Portuguesa contra a Droga, foi à época muito arrojada, com medidas como a descriminalização das drogas, na altura sem paralelo a nenhum outro país do mundo, mas os resultados dessa estratégia foram claros e visíveis. Por isso, esta estratégia portuguesa é hoje frequentemente citada nos médiuns internacionais como modelo e serve de referência aos mais variados países que se têm deparado com problemas idênticos. O convidado deste episódio, João Golão, é considerado o principal arquiteto e o implementador dessa abordagem. Depois de ter integrado a comissão que definiu a estratégia, João Golão presidiu o principal órgão responsável pela gestão da política contra a droga, o Instituto da Droga e da Toxicodependência. Atualmente é diretor-geral do sucessor desse organismo, o CICAD, Serviço de Intervenção nos comportamentos aditivos e nas dependências. A medida mais radical da estratégia portuguesa contra a droga foi a decisão de descriminalizar o uso de drogas. Mas a estratégia foi muito mais ampla do que isso e são talvez ainda mais as outras medidas que explicam o seu sucesso. Com esta estratégia houve sobretudo uma mudança radical na atitude em relação ao problema da droga, que passou a ser visto menos como um problema moral e um crime, e mais como algo que era essencialmente um problema de saúde pública. Assim, foram lançadas uma série de medidas com a finalidade de trazer os consumidores de drogas para dentro do sistema de saúde, minimizar a transmissão da sida e disponibilizar substâncias substitutas para quem não conseguia alargar o vício. Esta estratégia provocou uma diminuição quase imediata em vários indicadores, sobretudo no número de mortes associada às drogas e no número de infecções por HIV. A prazo levou também a uma diminuição no próprio consumo de drogas, sobretudo da heroína. Quando decidi convidar João Golão para o 45° para falar sobre este tema, filo desde logo porque o tema da droga e da saúde pública é em si mesmo interessante, mas a minha principal motivação foi perceber como foi possível conseguir apoio político para uma estratégia tão arrojada e logo num tema tão sensível e que lições podemos tirar daí para conseguir implementar melhores políticas noutras áreas. A nossa conversa começa, como não poderia deixar de ser, com um pouco de história, para perceber o que é que fez com que Portugal chegasse ao final dos anos 90 com um problema tão sério de drogas. Isso levou-nos a discutir em mais detalhe a estratégia adotada e as razões do seu sucesso. De seguida, falamos também daquilo que falta fazer e dos desafios da política nesta área ainda hoje. Primeiro, apesar deste sucesso, este é um problema que nunca está verdadeiramente resolvido e há medidas muito discutidas, como as eternas salas de chute. Depois há a questão incontornável da legalização da cannabis, que está hoje em dia em discussão. Depois há ainda a questão do álcool, que por razões culturais é algo que nós tendemos a ver de uma forma benigna em comparação com outras substâncias, mas que na verdade tem uma série de paralelos com as drogas. E finalmente aproveitei para perguntar também ao convidado o que é que ele acha sobre os psicadélicos, um tema ao qual, se bem se lembra, dediquei um episódio inteiro com o Pedro Teixeira. Finalmente, como de costume, queria agradecer aos mecenas do 45 Graus da última quinzena, Miguel Jacinto, Geoffrey Marcelino, Hugo Ramos e António Loureiro. E com isto deixo-vos com João Golão. João Golão, muito bem-vindo ao 45 Graus. Muito obrigado, obrigado pelo convite. Olha, eu imagino que esta pergunta já lhe tenha sido feita provavelmente uma centena de vezes, mas acho que é muito melhor isto ser explicado por si do que por mim, que vai ser uma explicação muito mais débil. O seu nome tornou-se conhecido, e até internacionalmente, aliás é o caso porque nós somos mais vezes e de maneira mais sustentável referidos positivamente lá fora, a questão da nova estratégia de combate às drogas implementada ali na viragem do século, entre 2000 e 2001, e portanto faz sentido que comecemos por aí. Qual era o desafio que se vivia na altura, o que é que foi feito e que resultados é que
João Goulão
se atingiu com aquela estratégia, que fez agora 20 anos, não é? Eu acho que é importante percebermos um bocado como é que as coisas em termos de, enfim, problemas relacionados
João Goulão
com o uso de drogas, como é que as coisas evoluíram aqui, porque nós vivemos um pouco protegidos, chamemos-lhe assim, das questões das drogas durante o regime de Salazar e Caetano. É evidente que havia algumas bolsas de utilizadores de substâncias ilícitas, mas estava longe de ser um fenómeno de massas como veio a tornar-se depois. Mas o que é facto é que, por exemplo, o movimento hippie, o movimento ostentil em França, enfim, fenómenos desse tipo tiveram pouco impacto na nossa realidade. Passaram-nos um bocado, tínhamos ecos distantes, mas passaram-nos um bocado ao lado. E esses movimentos culturais e sociais tinham associado algumas substâncias, em alguns casos. Mas o que é facto é que também nos últimos anos do regime nós vivíamos a guerra colonial, onde a esmagadora maioria da população masculina, jovem, era enviada e também em grande medida a contra gosto. E depois aconteceu um fenómeno semelhante àquilo que aconteceu no Vietnã, o uso de substâncias psicoativas era tolerado ou mesmo incentivado para manter as pessoas... Para alienar. Para alienar. E claro que as pessoas desenvolveram hábitos de viver nesse estado de, Sei lá, isso que era mais barato que água, em alguns casos, e o canábis era facilmente acessível naqueles países e perfeitamente tolerado pela hierarquia militar, por esse motivo. Portanto, De repente, temos o 25 de Abril, temos uma série de alterações muito rápidas na sociedade portuguesa e pouco depois o fenómeno da descolonização, regresso de quase um milhão de pessoas, entre soldados e colonos, muitos deles com alguns hábitos de utilização também, e que quando vieram em grande medida também trouxeram verdadeiramente toneladas de canábis, que depois deram, distribuíram para os seus amigos, para grandes festas. Eu tinha 20 anos na altura, portanto, desistia a isto em pessoa e houve muita gente que associava também a presença das substâncias à ideia de liberdade e havia uma, digamos, uma atração muito forte por essa experimentação. E houve verdadeiramente um boom de experimentação, nessa altura, perfeitamente transversal, toda a sociedade portuguesa, toda a gente na minha geração experimentou seguramente. Mas pouco depois começa a haver a introdução também no mercado português, no mercado emergente, a introdução por organizações, aí vamos falar já em organizações criminosas, de todas as outras e de repente tínhamos tudo disponível. Quer dizer, havia canábis com fartura, mas havia heroína, cocaína, LSD, o que se quisesse. E enquanto outras sociedades de outros países tiveram a possibilidade de se adequando paulatinamente à presença das substâncias e a aprender a lidar com elas, nós não tivemos tempo para isso. De maneira que de repente era facílimo saltar de umas para as outras. E, enfim, muitos, um grupo de amigos, um joint circular, toda a minha gente a dar uma passa de canábis, e alguém se lembrou a dizer, eh pá, tenho aqui uma coisa nova, bora lá experimentar. E as pessoas experimentavam alegremente, sem terem propriamente também a noção de que eram de facto coisas diferentes. A heroína tornou-se extremamente popular em Portugal e há aqui um aspecto que eu costumo enaltecer que é o facto disto ter acontecido de uma forma completamente transversal à sociedade portuguesa. Não era a panágio exclusivo, pelo menos exclusivo, de grupos mais vulneráveis, marginalizados, comunidades mais pobres, de outras etnias. Evidentemente, teve maior expressão eventualmente nessas comunidades, mas aconteceu. Classe média, classe alta, classe política. E em poucos anos era quase impossível encontrar uma família portuguesa que não tivesse algum tipo de problema relacionado com o uso de drogas. E quando digo transversal e ocorrer também na classe política, por exemplo, as primeiras respostas que foram instaladas em Portugal para tentar fazer face a isto, respostas de saúde, prevenção, tratamento, etc, foram paradigmaticamente instaladas no Ministério da Justiça e por a ação direta do doutor Almeida Santos, que tinha tido um problema familiar grave também e que tinha uma sensibilidade especial para esta questão. Há ainda nos anos 70 a instalação das primeiras respostas, os chamados CEPDs, Centros de Estudos e Profilaxia da Droga, no Ministério da Justiça. Depois há ali uma temporada durante a qual florescem as respostas privadas, de uma forma completamente desordenada e desregulada, digamos assim, com algumas coisas muito boas que ainda hoje subsistem e outras muito más e muito problemáticas até do ponto de vista do respeito pelos direitos humanos. E há aqui um período razoavelmente longo, até ao final dos anos 80, quando é finalmente criada a primeira resposta no âmbito do Ministério da Saúde, que foi o Centro das Taipas, aqui em Lisboa. E depois a partir daí começa-se a construir, um pouco pôs a ação direta da equipa do Centro das Taipas, uma rede cobrindo os capitais de distrito e algumas outras cidades, começamos a conseguir suster um pouco e oferecer respostas sem as pessoas terem que vir diretamente ao centro das taipas e à única resposta sólida, verdadeiramente, que existia, que era aqui em Lisboa. Depois constituiu-se um serviço que coordenava tudo isto, que era o SPTT, o Serviço de Prevenção e Tratamento da Toxicodependência, no Ministério da Saúde, que englobou também os tais serviços anteriormente pertencentes ao Ministério da Justiça e fomos oferecendo cada vez mais capacidade de resposta. Primeiro, a primeira grande preocupação e dificuldade era dar resposta a todos aqueles que pretendiam tratar-se, sobretudo heroinómenos. Estamos a falar aqui de uma população que chegou a ser 1% da população portuguesa. Chegamos a ter estimativas, não temos grandes estatísticas da altura, mas a estimativa aponta para a existência de 100 mil pessoas a usarem heroína, sobretudo por via injetável. É muita gente, é uma cidade grande. É uma cidade grande e depois estamos a falar também num período em que aparece a sida, começa a agraçar. Sim,
José Maria Pimentel
é uma tempestade
João Goulão
perfeita. Exatamente, é mesmo uma tempestade perfeita. E as respostas foram sendo instaladas ao nível da prevenção, com conceitos bem diferentes dos que temos hoje, mas pronto, havia trabalho preventivo, havia, e é justo aqui uma palavra também de recordação, em relação ao padre Vítor Feitor Pinto, que foi o coordenador do Projeto Vida nessa altura e era um homem com as suas idiosincrasias, mas com um espírito aberto para ideias novas e que foi importante, quanto mais não fosse, por proporcionar alguma aceitação a grupos mais conservadores relativamente a algumas das opções que então tomamos. Por exemplo, em 93, e isto é muito cedo, no Panorama Internacional, foi instalado o programa de troca de seringas pela professora Odete Ferreira, o que não era uma ideia fácil de passar, nem de aceitar, sobretudo por espíritos mais... Enfim, menos para a frente nesse tipo de temáticas.
José Maria Pimentel
Sim, por vários motivos, não é? Por um lado encorajar, por outro, estar a
João Goulão
gastar dinheiros públicos. Era mesmo isso, era a questão de trocar seringas, é incentivar, é fornecer o utensílio com que se pratica um crime, não nos esqueçamos que era um crime à altura, e em nome do mesmo Estado que criminaliza estamos a fornecer o tal utensílio. Havia aqui algumas questões um tanto complicadas. Bom, o que é facto é que fomos desenvolvendo respostas, prevenção, tratamento, redução de danos, como essa da troca de seringas, reinserção social, alguns programas de reinserção, quer ao nível das famílias, quer ao nível do próprio emprego, cria-se preparação. Em muitos casos não era propriamente uma reinserção, era uma inserção, porque muitas das pessoas tinham desbaratado muitos anos da sua vida, durante os quais não se prepararam para uma vida profissional, portanto era preciso começar quase do zero. E as coisas foram sendo feitas, mas a determinada altura começou a sentir-se, por um lado, as incongruências do desenvolvimento de algumas políticas num quadro de criminalização dos utilizadores. Esta de troca de seringas é um bom exemplo. E, por outro lado, havia algumas medidas que alguns de nós, profissionais dessa área, advogávamos e que defendíamos, como, por exemplo, a utilização de terapêuticas de substituição opiácea, como o metadono, ou como outras. Alguns de nós éramos favoráveis e outros eram perfeitamente puristas e diziam, não, isso é substituir uma dependência por outra, não é legítimo, não sei o quê. Portanto, para além da discussão técnica que subsistiu e que durou durante muito tempo, era importante haver algum envolvimento também do poder político nisto e na definição de caminhos ou no fixar a legitimidade, ou aferir ou não, da legitimidade de certos caminhos. E em 97, o presidente Sampaio promoveu aqui em Lisboa uma grande conferência em que pela primeira vez se discutiu aprofundadamente o Estatuto Legal das Drogas. Foi a primeira vez que claramente
José Maria Pimentel
se pôs em cima da possibilidade
João Goulão
de legalização, de regulação versus descriminalização, etc. E no ano seguinte o governo, então com Guterres e Sócrates, que era o responsável pela pasta da juventude, decidiram então convocar um grupo de pessoas a quem encomendaram uma estratégia, enfim, a definição de linhas de rumo. Foi convocado um grupo de nove pessoas, entre as quais eu tive a felicidade de ser incluído, e que foi coordenado pelo professor Alexandre Quintanilha, que era o único que dizia que não percebia nada de droga, mas percebia da condução de grupos de trabalho. E foi verdadeiramente efetivo nesse papel. Mas com pessoas extremamente interessantes. Eu devo dizer que foi das grandes experiências profissionais que tive na vida foi exatamente pertencer a esse grupo. Julio Machado Vaz, Daniel Sampaio, Candida Agra, uma série de gente com muito pensamento envolvido em torno destas questões. E sistematizamos, então, o que entendíamos ser a forma mais adequada de abordar algumas das áreas de missão, prevenção, tratamento, tal questão das terapêuticas de substituição foi claramente abordada e assumida como uma possibilidade que era legítimo prosseguir. Reinserção pensando em esquemas de discriminação positiva para dependentes em recuperação ou para pessoas que precisavam de facto criar ligações em alternativa à ligação que tinham estabelecido com substâncias, a redução de risco e minimização de danos, portanto, assumindo que mesmo quando uma pessoa não consegue, em última análise, não quer parar de consumir, ainda assim merece o investimento por parte do Estado no sentido de ter uma melhor esperança de vida e uma melhor qualidade de vida. Isto foram coisas que há 20 e tal anos eram verdadeiramente... Relacionárias. Relacionárias. E é o que esses substitutos, a
José Maria Pimentel
metadona e o... Há outros que agora
João Goulão
nos chamamos... Buclanofina.
José Maria Pimentel
Exatamente. O que eles fazem é no fundo isso, é... Provocam o mesmo efeito no corpo, não é, provocam o mesmo efeito químico de compensação, mas sem os efeitos negativos.
João Goulão
Exatamente. Ou pelo menos, sim, parte deles. Ocupam os receptores dos
João Goulão
opiáceos, evitam que a pessoa tenha a chamada ressaca, que tenha o síndrome de privação, mas, por outro lado, e também para usar uma linguagem mais, não batem, não provocam.
José Maria Pimentel
Ah, não? Ah, ok, não sabia.
João Goulão
Portanto, a metadona, por exemplo, a pessoa não sofre por ausência do opiácio, mas não tem as reações... Não tem o lado positivo. Não tem o lado positivo, mas que é perfeitamente compatível com uma vida perfeitamente integrada e a vários níveis, a nível social, laboral, familiar e por aí fora.
José Maria Pimentel
Ou seja, de certa forma, ele resolve o problema do vício fisiológico, mas não do vício psicológico. Ou pode não resolver o vício psicológico?
João Goulão
Pode não resolver, por isso é que há pessoas que, apesar de estarem compensadas do ponto de vista físico, fisiológico, apesar disso sentem necessidade de concebir alguma coisa em cima para fazer bater. E que pode ser, em alguns casos, pode ser um opiáceo ainda. Há pessoas que estão medicadas com metadona, mas ainda assim vão consumir heroína para tentar obter, pelo menos, sendo certo que a metadona também limita essa capacidade de bater por parte da heroína. E a buprenorfina muito mais ainda. Mas procuram outras substâncias, podem procurar a coca, por exemplo, tem o seu problema dos opiáceos mais ou menos resolvido, mas vão à procura das sensações que outras substâncias podem provocar. Desculpe que
José Maria Pimentel
eu interrompi-o há bocado.
João Goulão
Não, mas é isso mesmo, é importante que se perceba que a metadona, as terapêuticas de substituição, resolvem uma parte do problema, não é a bala mágica que resolve tudo, mas o que é facto é que nos permitiu obter uma série de ganhos em termos de saúde pública, porque era disso que se tratava. Volto a insistir, se de agraçada nessa altura tivemos um contingente enorme de pessoas que eram utilizadoras de drogas injetáveis e que eram de longe a via de contaminação mais frequente, hoje, curiosamente, se considerarmos apenas três grupos, heterossexuais, homo ou bissexuais e utilizadores de drogas injetáveis, os utilizadores de drogas são os que menos contribuem para os números atualmente. Portanto, isto foi uma mudança extraordinária no panorama nacional. Nós tínhamos, será, tínhamos pelo menos uma overdose mortal por dia, 360 e tal por ano no país inteiro durante os anos 90. Atualmente temos 60, 70 e estamos preocupados com isso e é evidente que cada vida conta. Mas também a esse nível foi um progresso enorme. Mas a tal estratégia que propusemos, que preconizava novas formas de abordagem de áreas de missão clássicas, ou seja, por um lado, na redução da oferta, a cargo das forças policiais e de baneiras e tal, mas sobretudo na redução da procura, prevenção, tratamento, redução de danos, reinserção social, tudo isto assentava no pressuposto de que estávamos a lidar, sobretudo, com uma questão de saúde e da área do social, mais do que uma questão da justiça e criminal. A única baliza que o governo nos tinha colocado no início foi, meus senhores podem propor aquilo que quiserem, mas temos que nos ater às convenções internacionais de que Portugal é signatário no âmbito ONU e que preconizam um paradigma proibicionista. Não se diz em lado nenhum que consumir drogas tem de ser considerado crime, mas diz-se que deve ser proibido e como tal punido. Uma proibição ainda que administrativa pressupõe uma punição. E aquilo que Nós encontramos na altura, com ajuda, obviamente, de juristas que nos garantiram, se mantivermos sanções administrativas, nós continuamos dentro do quadro das convenções da ONU. E foi essa finura, digamos assim, essa habilidade que nos permitiu, de facto, fazer passar a proposta de descriminalização. Portanto, usar drogas deixou de ser crime, mas continua a ser punido com uma contraordenação, alguma coisa comparável ao uso do cinto de segurança. Se eu não usar o cinto de segurança, a polícia ainda me para, pode-me aplicar uma multa ali e em tese pode-me forçar, obrigar a frequentar um curso de treino de condutores, de reciclagem de condutores, mas não fico com o registro criminal, que me vai estigmatizar para o resto da vida, nem vou parar à cadeia pelo simples facto de consumir.
José Maria Pimentel
No fundo era uma solução idêntica àquela que o atual presidente Marcelo sugeria em relação ao aborto e que na altura foi bastante gozada e eu acho que com razão, porque ali não se teria o mesmo efeito, o problema era um pouco diferente, mas era uma solução idêntica, não
João Goulão
era? Sim, era do mesmo tipo, constituía contra a ordenação. Aquilo depois acabou por ser aprovado. A estratégia foi aprovada como um pacote completo pelo governo, mas a questão da descriminalização, porque altera o código penal, teve que ser discutido na Assembleia da República, o que só aconteceu um ano depois. A estratégia foi aprovada em 1999 e a lei da descriminalização, que no fundo altera apenas um artigo da lei da droga anterior, que era de 1993, é o artigo que tem a ver com consumo, uso pessoal e posse para uso pessoal. Tudo o resto continua vigente ainda hoje. Ao fazer esta alteração houve claramente também uma mudança de atitude até dos próprios utilizadores que passaram a sentir-se muito mais à vontade e muito mais soltos para se aproximar dos serviços de saúde, sem qualquer receio de serem referidos. Era uma fantasia, mas se calhar ainda a reminiscência de outros tempos, em que as pessoas temiam serem referenciadas para a polícia e tudo passou a ser muito mais coerente neste quadro. Na Assembleia da República, quando isto foi discutido, havia alguns receios que foram manifestados, daí que houve uma divisão entre as várias forças partidárias, os partidos mais à esquerda a apoiarem a ideia e os mais conservadores a oporem-se, com argumentos que tinham a ver. Por um lado, os tratados da ONU. A ONU vai exercer represálios, vai condenar esta… Mas
José Maria Pimentel
esse não seria o argumento de fundo, provavelmente.
João Goulão
Não, não era, não era, seguramente, o de fundo, mas era, digamos que se acenava com isso e com alguma razão, vamos ver. Se bem que a discriminalização, como com este modelo que estava preconizado, cabia perfeitamente no espírito dos tratados. Mas depois era o narcoturismo, vamos ter aviões a virem todos os dias com pessoas para usarem drogas livremente, sem qualquer tipo de represália.
José Maria Pimentel
Também não era absurdo. Pelo menos parece-me que não aconteceu. Sim, mas não
João Goulão
aconteceu. Não aconteceu. Quer dizer, realidades que nós vemos noutros países em que existe verdadeiramente um narcoturismo, mas nós não tivemos e continuamos a não ter. Também nós
José Maria Pimentel
não tivemos uma legalização, lá está a descriminalização. E
João Goulão
outra coisa era o consumo precoce. As nossas criancinhas vão começar a usar drogas com o biberon, o que não aconteceu de todo, pelo contrário, nos primeiros anos, imediatamente a seguir à descriminalização, assistimos a um retardar da experimentação e do início dos consumos entre os mais jovens. Portanto, tudo isto resultou, este pacote completo, e É evidente que tentamos contrariar a ideia e temos muitas visitas, delegações dos mais variados pontos do mundo. As pessoas vêm ver, perceber como é que funciona a descriminalização e nós insistimos muito na ideia de que Não é a descriminalização que é a bala mágica que resolve isto tudo. Se querem fazer e ter progressos na situação nos vossos países têm que fazer muito mais. Prevenção, tratamento,
João Goulão
redução de danos, reunição social, tudo isto. É uma política muito mais ampla do que
João Goulão
simplesmente descriminalizar. Exatamente. E tentamos contrariar a ideia de que, de facto, a descriminalização resolveu toda... É evidente, facilitou, ajudou, mas não é todo o cerne da questão.
José Maria Pimentel
O João dizia que no imediato, ou seja, nos anos imediatamente subsequentes, tinha baixado o consumo
João Goulão
entre os jovens. Como é que isso aconteceu? Retardou. Retardou
João Goulão
o início da experimentação. Mas chegamos a ter experimentação em média a acontecer por volta dos 10 anos de idade. É sério? Em média? Em média. E depois começou a retardar. Entre os utilizadores, quando inquiríamos. Então, e quando é que começaste a experimentar? Dez anos, por aí. Dez anos é extraordinário, porque é a
João Goulão
média, não é? É a média, sim, exatamente, aos oito.
João Goulão
E depois, gradualmente, a coisa foi retardando e hoje está bastante mais tarde.
José Maria Pimentel
Mas qual é a relação causa-efeito entre uma coisa e outra? Não estabeleço
João Goulão
uma relação de causa-efeito entre a descriminalização e o
João Goulão
colocar em marcha todas as áreas de intervenção que tínhamos. Em termos de tratamento, por exemplo, a grande preocupação que tínhamos era oferecer a todos aqueles que queriam tratar-se a possibilidade de o fazer. E isso demorou algum tempo, tardou, mas o que é facto é que, chamemos assim, isso parece um bocado cru, mas a toxicodependência, em alguma medida, comporta-se quase como uma doença contagiosa. E é fundamental tratar o vetor, quer dizer, é reduzir o número de pessoas, agora com o Covid estamos a ver isto, é fundamental criar a imunidade do grupo e isso faz-se através de estratégias de prevenção, mas também tratando quem está doente. E isso teve de facto um efeito extremamente notório entre os miúdos, entre as crianças. O efeito de haver menos pessoas com a doença ativa, digamos assim, teve também um efeito protetor, digamos assim, para as camadas mais jovens. E
José Maria Pimentel
as pessoas provavelmente também deixavam de estar nos mesmos sítios, passavam... O facto de existirem tratamentos também significava que as pessoas... Estou eu aqui a conjeturar, que provavelmente deixava os círculos de socialização, e a maneira como o vício se propagava socialmente também acabava por sofrer ali um curto circuito em algumas áreas. Exatamente,
João Goulão
estas cadeias de transmissão eram quebradas.
José Maria Pimentel
Esta medida é interessante por várias razões. Primeiro, como foi possível, já lá vamos. É interessante porque Eu acho que esta é uma das áreas em que o nosso instinto moral, digamos assim, nos trai, de certa forma. Ou seja, há uma série de instintos morais que nós temos e que não precisamos ser especialmente conservadores. Quer dizer, é um instinto que todos nós temos, sobretudo se tivermos filhos, em relação às drogas, mas que podem ser traiçoeiras aqui porque ignoram efeitos de segunda ordem para os quais um instinto prohibicionista, por exemplo, pode ser muito pernicioso e pelo contrário, uma solução deste género pode ser muito benéfica. Porque o que me parece é que grande parte dos efeitos benéficos até são de segunda ordem. No sentido em que, como o João dizia, diminui o estigma, que era uma coisa que provavelmente vocês até não tinham completa consciência disso quando lançaram a estratégia, de repente percebem que havia muita gente que tinha medo de que por estarem a cometer um crime não tivessem, por exemplo, acesso ao SNS, depois os próprios custos até das prisões, a diminuição da criminalidade, imagino eu, porque O consumo de drogas está muito associado à criminalidade. Se nós conseguirmos prestar cuidados de saúde aos toxicodependentes, mesmo que não eliminemos o vício, estamos a eliminar uma série de... Quase certeza a diminuir a probabilidade de que vários crimes sejam cometidos, não é? Em busca de dinheiro, não é?
João Goulão
De fundos para comprar droga. Exatamente. E o que é facto é que a criminalidade... Nós felizmente nunca tivemos uma grande criminalidade conexa com...
José Maria Pimentel
Ah não? Ah, que é uma coisa
João Goulão
dos tiros e dos... Aquilo que vemos nos filmes e nas connections. Ah, não é que falava mais de furtos, não é? Não, foi sempre uma pequena criminalidade aquisitiva, portanto os furtos ou roubos, o roubo de esticão, o partir o vidro do carro para roubar na altura, o autorrádio, o que mais é que seja. Exato,
José Maria Pimentel
isso é um negócio que
João Goulão
desapareceu. Mas o que é facto é que aquelas coisas dos tiros e das mortandades nunca foi de facto o panagio nosso. Mas o que é facto é que essa pequena criminalidade aquisitiva também baixou, a partir do momento em que o tratamento passa a estar mais disponível, passa a haver as tais terapêuticas de substituição disponíveis, quer em alta limiar, ou seja, em alta exigência, exigindo-se a abstinência total relativamente a outras drogas, quer em políticas de redução de danos, em que essa abstinência não é exigida da mesma forma. Há, digamos, uma flexibilidade muito maior, uma compreensão em relação às circunstâncias de vida daquela pessoa, e a pessoa não é excluída de um programa pelo facto de haver uma interrupção de vez em quando. E isto permite, de facto, uma adequação da resposta com aquela pessoa em concreto às suas necessidades reais. E isto teve tradução na diminuição da criminalidade, como teve tradução na melhoria das condições de saúde também em geral. Como é que isto foi aceito, como é que isto passou? Já vimos que ao nível da Assembleia da República houve, de facto, uma bipolarização de posições. Mas o que é facto é que, como lhe dizia há pouco, a estratégia foi aprovada em 1999 e a discussão na Assembleia da República aconteceu no ano 2000. Nós aproveitamos esse interim para organizar uma série de sessões públicas de discussão com a população. Posso lhe dizer que fomos verdadeiramente super concorridas em cinemas, com gente sentada no chão, com famílias inteiras, com um grande enusiasmo em torno dessa discussão. Interessantíssimo. E o que eu guardo nessa altura, vão lá 20 e tal anos, é apoio quase generalizado ou quase unânime à ideia de descriminalizar. E do meu ponto de vista, isto tem muito a ver com o facto de ser um fenómeno, como dizia há pouco, completamente transversal a toda a sociedade. Não era uma coisa só dos outros, não era uma coisa da favela, não era uma coisa do bairro de lata, mas sim lá de casa.
José Maria Pimentel
Tenho meu filho, tenho meu sobrinho, tenho meu vizinho. Conhecia alguém que estivesse na família. Toda a
João Goulão
gente. E nós podemos também imaginar o diálogo de uma senhora de classe média, de meia idade, falar com o padre. O meu filho não é um criminoso, meu filho é um doente que precisa de ajuda. Esta ideia fez o seu caminho na sociedade portuguesa e também teve a cumplicidade, chamemos-lhe assim, de entidades potencialmente mais conservadoras como a Igreja Católica. E, mais uma vez, já temos o padre Vítor a aderir também um bocado à ideia. Portanto, foi de facto um movimento social interessante e que permitiu uma aceitação muito, diria que muito tranquila desta decisão em termos sociais. Em termos políticos, é interessante também que pouco depois disto ser aprovado houve mudança de governo. Foi um governo PSD-CDS, Durão Barroso, um novo dirigente para esta área, curiosamente um juiz que anteriormente tinha sido diretor da Polícia Judiciária,
José Maria Pimentel
o Dr. Fernando de Grau, foi
João Goulão
o primeiro presidente do IDT, do Instituto de Droga e Tóxica e Independência, e nessa altura os órgãos, os guardiões das convenções das Nações Unidas fizeram uma investida junto do governo português, no sentido de reverter a decisão que acabava de ter sido tomada. E, curiosamente, o governo, as forças que integravam o governo e que tinham votado contra, tiveram a verticalidade de dizer, não, nós acabámos de aprovar isto, vamos implementar e depois logo se vê. Isso é muito curioso. É um aspecto que muito pouca gente conhece,
José Maria Pimentel
eu acho que é
João Goulão
toda a justiça que seja divulgada que se passou assim. Demorou tempo, os órgãos, o órgão internacional de controles subfacientes, enfim, os órgãos da ONU fizeram fim capé, fizeram muita pressão e tal, mas passado alguns anos, em 2009, pela primeira vez no relatório mundial sobre drogas, reconhecem. Portugal é um país que, apesar de ter descriminalizado o uso de drogas, parece ter uma evolução positiva e manter-se dentro do espírito dos tratados. E depois passam mais uma série de anos, até 2016, quando o presidente do órgão de controle de estufaços das Nações Unidas, na Assembleia Geral Especial das Nações Unidas, em Nova Iorque, diz que Portugal é um exemplo de boas práticas dentro do espírito das convenções. Portanto, aqui, em meio a ilusão, isso parece muito, parece muitos anos,
José Maria Pimentel
mas
João Goulão
A dimensão de como estas coisas acontecem na arena internacional foi rapidíssima, penso eu. E hoje todos os países que o quiserem fazer têm o caminho aberto. Nós fomos um bocado limpa-neves, que permite que os países vão por aí sem temerem as tais represálias ou as tais condenações relativamente aos tratados que são signatários.
José Maria Pimentel
E é interessante porque parece-me, a minha intuição é que não é nada despiciante para isto o facto de, como o João referia, o problema ser transversal à sociedade. Eu não me lembro, quer dizer, era miúdo nessa altura, mas lembro, fui apanhando uns ecos disso. Não houve, pelo menos que eu saiba, problemas desses já na minha família. Não, minto, por acaso até houve, mas agora estou a me lembrar, na família mais distante.
João Goulão
A ver, que era uma
José Maria Pimentel
exceção muito excepcional. É curioso, agora o que está a fazer é que me lembrei. E embora já tenha apanhado isso mais tarde, mas depois a pessoa vai sempre apanhando documentários, o filho ou avó ou filha de não sei quem, ou do tio não sei quem, quer dizer, e a pessoa apanha documentários e de facto percebe que aquilo era absolutamente transversal. E a minha intuição é que terá sido fundamental para isto o facto da própria classe política ser ela nas suas famílias, não é? E nós sabemos, houve casos até de políticos depois mais tarde, não é mais tarde, não sei se foi contemporâneo, mas aquele que me estou a lembrar foi mais tarde, que veio contar essa história, e isso significa que era um problema que eles próprios viviam nos seus círculos de socialização. E isso é interessante porque contrasta, por exemplo, com o que acontece no caso da educação. E uma crítica até que foi feita agora na altura do Covid e que me parece fazer sentido, pelo menos, é que tinha havido até inicialmente uma grande insensibilidade da classe política em relação ao impacto do fecho das escolas, precisamente porque, na sua maioria, as pessoas, fossem de esquerda ou de direita, tinham os filhos em escolas privadas, ou então em escolas públicas com mais recurso. E, portanto, de certa forma, aquilo para eles era um problema menor, porque as escolas privadas tinham maior capacidade de manter aulas à distância, mesmo que não tivessem, tinham explicações, uma coisa qualquer, e portanto não sentiam aquilo da pele da mesma forma. E neste caso é curioso que a minha intuição é que isso terá tido um peso grande provavelmente, o facto de mesmo à direita, no caso que seria politicamente quem teria o instinto mais contra este tipo de medidas, o problema ser sentido e, portanto, no fundo, perceber-se que tinha que ser tomada alguma medida. Sim,
João Goulão
eu penso que sim, francamente, nos raciocínios que faço em torno desta questão e das explicações que tentei encontrar Para mim mesmo, eu acho que esta é fundamental. E, tanto assim, é que também temos tido agora algumas investidas em alguns países. No próprio Brasil, pré-Bolsonaro, houve uma tentativa de passar políticas semelhantes a esta que esbarraram um bocado no facto de os problemas de drogas serem identificados com a favela, com a marginalidade e não com o acontecer ou pelo menos não ser assumido por outros grupos sociais. Portanto, penso que esta é... Sim,
José Maria Pimentel
no fundo é o contrafactual, o Brasil aqui é um bocado contrafactual. Mas, pronto, este apesar de tudo é a visão um bocadinho cínica, não é? Agora, pondo isso de parte e admitindo que isso mesmo ter tido efeito não foi tão grande assim, uma coisa que, em relação ao qual eu tenho muita curiosidade é a sua opinião sobre que lições é que se podem tomar para outras áreas, para outras áreas de políticas públicas, a partir deste exemplo. O que
João Goulão
é que aqui funcionou bem que pode ser replicado noutras áreas para gerar consensos mais alargados, no fundo? Eu acho que nós vemos e ouvimos com demasiada frequência, provavelmente, a história
João Goulão
dos relatórios dos grupos especialistas que são feitos e depois que são completamente arquivados e deixados...
João Goulão
Exatamente, eu Estava a lembrar disso há um bocadinho. E voltados ao esquecimento.
João Goulão
Este não foi, efetivamente não foi. Não foi, foi valorizado, foi adotado pelo governo quase ipsis verbis, em relação àquilo que tinha sido produzido pelo Grupo de Trabalho. E depois houve um esforço de implementação francamente mantido. Houve a criação de estruturas de coordenação nacional e interministariais que verdadeiramente responsabilizam o governo quase todo. Neste momento Eu sou, por inerência, enquanto diretor-geral do SICAD, sou coordenador nacional para os problemas da droga, da toxicodependência e do uso nocivo do álcool. E nessa capacidade eu trabalho diretamente com representantes pessoais de 11 ministros, é quase o governo todo. Mas funcionamos numa base de grande regularidade e de efetividade de atuação. Produzimos em conjunto os documentos estratégicos, a estratégia de 99 já lá vai, tivemos já vários planos e vários planos nacionais e tal, que são construídos pelos diversos ministérios e que depois fazemos o follow up do que é que está a ser feito. O que é que aconteceu? O que é que está a acontecer no meio laboral? Como é que é? Como é que se faz o trabalho de detecção precoce, encaminhamento para tratamento, os trabalhadores que têm problemas de... Ok? E vamos ver e fazemos um forço enquanto percebemos que alguma coisa está a ficar para trás, que não está verdadeiramente a ser feita, porque Os planos estratégicos são muito bonitos e são extremamente úteis, mas é preciso implementá-los. E esta estrutura de coordenação nacional é verdadeiramente do mais efetivo e eu penso que esta é uma das componentes da nossa política na área das drogas, muito pouco falada, mas que é talvez das mais profícuas em termos de resultados práticos.
José Maria Pimentel
E como é que isso se passa para outras áreas?
João Goulão
Eu penso que não é muito difícil. Quer dizer, olha, aqui há tempos...
José Maria Pimentel
É que aqui, desculpe-me, Torobello, é que nós em democracia temos um equilíbrio ténue, porque nós temos, por um lado reconhecemos que é necessária a política e por outro lado uma democracia liberal funciona bem quando consegue despolitizar determinadas áreas. E esse equilíbrio é muito difícil de gerir. E neste caso, por exemplo, se tivesse politizado, estaríamos provavelmente ainda num... Não teríamos provavelmente o mesmo problema, porque entretanto a epidemia da SIDA, mesmo a nível global, abateu, mas de certeza que no nível de consumo de drogas tínhamos um problema muito idêntico.
João Goulão
Sim, provavelmente, mas o que eu penso é que é importante ter pessoas que estão empoderadas, digamos assim, para fazer determinadas coisas. Por exemplo, o CICAD, tem este nome meio arrevesado, Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências. É um serviço do Ministério da Saúde. Entre os comportamentos aditivos e as dependências estão as drogas e o álcool, por exemplo, mas não está o tabaco, nem está o jogo. Quer dizer, no CICAD está, mas na Coordenação Nacional ainda não está. Então, só para lhe dar um exemplo, eu enquanto Coordenador Nacional tenho toda a legitimidade e estou legitimado por diplomas legais para pedir dados à polícia judiciária sobre a atividade na área da droga e da toxicodependência, mas não tem a mesma legitimidade para pedir dados aos casinhos ou para pedir à Santa Casa a propósito do jogo. Quando eu pretendo dados sobre esses temas, vou um bocadinho pedir por favor enviem lá. E eu penso que isto acontece em muitas outras áreas de governação. É importante que haja alguém... Em relação à judiciária, por exemplo, não prestanejam, entregam de bom grado e partilham e discutimos e fazem parte das discussões que se travam a partir dos resultados obtidos. Em relação ao jogo as coisas são bem mais complicadas e muito mais em relação a áreas novas como seja agora uma das grandes preocupações que temos, que tem a ver com a dependência de ecrã, também um bocado fruto desta riscal panemia, mas é em relação aos quais não temos mecanismos de pedir aos operadores que nos deem dados sobre o tráfico, tráfico de dados, enfim, há uma série de informação que não estamos legitimados para obter. E isso é importante que aconteça, como é importante que aconteça na educação, que haja alguém que verdadeiramente esteja empoderado para coordenar as atividades, concitando as participações de diversos ministérios, quando necessário. Portanto, penso
João Goulão
que esta história da coordenação
João Goulão
internacional é importante e é um aspecto básico do sucesso que obtivemos nestas
José Maria Pimentel
áreas. E é preciso que vá acompanhando os desafios novos que vão surgindo. A questão do jogo, por exemplo, do jogo online, que hoje em dia se fala muito, tem a ver com isso. Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no site 45graus.parafuso.net barra apoiar. Veja os benefícios associados a cada modalidade e como pode contribuir diretamente ou através do Patreon. Obrigado. Singindo-nos ainda às drogas, o que é que ainda falta fazer? Há uma série de coisas que se discutem. Há as salas de chute que se falam há muito tempo como um mecanismo importante para evitar, creio que sobretudo para evitar overdoses, para conter o risco de overdoses, há quem, por outro lado, critique, que já é, no fundo, é uma versão diferente do mesmo debate original, mas aqui é que já é ir longe demais, que no fundo já é estar a patrocinar o consumo, não apenas minimizar os danos, mas
João Goulão
estar, de certa forma, ativamente a incentivar o vício. O que é que acham sobre isso? Eu acho que não. Acho que medidas como os espaços de consumo vigiado, ou as
João Goulão
salas de chute, como vulgarmente são conhecidas, já temos, já temos duas em Lisboa neste momento.
José Maria Pimentel
Pois que foi Em 2019, não é? Foi muito
João Goulão
recente. Temos uma móvel que, em 2019 ou antes mesmo, mas com uma capacidade muito reduzida de atendimento, mas há neste momento uma fixa na Quinta do Lavrado, está a funcionar desde maio, e que, pelo que vai sendo a experiência ali colhida, corresponde exatamente àquilo que se pretendia que é. Para já um ponto onde é possível lhe tocar e informar as pessoas sobre os riscos e a forma mais segura de consumir. Por outro lado, intervir se sobreviver a alguma situação mais dramática, como seja uma overdose, e depois facultar uma série de serviços de apoio social, que são uma forma também de motivar as pessoas para a mudança. É curioso que na sala de consumo vigiado, que abriu em maio, o primeiro serviço que as pessoas pretendem utilizar quando lá chegam é tomar um banho. É curioso,
José Maria Pimentel
quer dizer...
João Goulão
E isso é fundamental para que os técnicos depois ganhem a confiança das pessoas, para que socializem, para que criem ligações que são fundamentais para que haja alguma motivação para a mudança. De novo
José Maria Pimentel
mostra que há muitas variáveis para lá da questão do consumo da droga. Exatamente.
João Goulão
Nós temos, digamos que os instrumentos fundamentais para o desenvolvimento das políticas estão criados. Agora há coisas que merecem desenvolvimento. Estes espaços de consumo vigiado, estamos a preparar a abertura de um também no Porto e eventualmente outras cidades também o merecerão, mas, enfim, vai com calma. Mas também criou-se já um precedente com uma boa experiência nacional, o que é fundamental também para depois poder ser replicado. Depois, respostas como o drug checking, possibilidade de as pessoas fazerem analisar as substâncias que adquirem antes de as consumirem. Por exemplo, como sabe, um dos grandes problemas que estão a devastar a sociedade norte-americana, nos Estados Unidos e Canadá, é a presença de fentanil, ou opiáceos sintéticos, que são consumidos em vez de heroína, ou misturados com a heroína clássica e que têm uma potência e uma margem de segurança muito mais baixa. Teme-se, e já vai aparecendo, já vai aflorando em alguns países europeus, também o tal fentanil misturado com os opiáceos clássicos aqui consumidos. Durante a epidemia, durante a pandemia, aliás, tememos que fosse introduzido de uma forma mais massiva no mercado português também. E por isso era importante testar o que é que circulava verdadeiramente no mercado.
José Maria Pimentel
Mas São as pessoas que levam a droga lá?
João Goulão
São as pessoas que vão a uma resposta, neste momento assegurada por uma organização não governamental, que é a Cosmicare, onde levam substâncias, tiram uma pequenina amostra que analisam e a partir daí informam, também sem uma atitude moralista
José Maria Pimentel
ou paternalista, informam o que é que está ali presente. Isso parece-me fazer todo o sentido, mas a minha reação imediata é pensar que isso exige uma ponderação e planeamento que eu normalmente não esperaria de quem está a consumir drogas. Quer dizer, já o uso de preservativo, por exemplo, para comparar, tem essa dificuldade. Agora imaginemos o número de horas de... Repara uma coisa,
João Goulão
nós estamos a falar num estereótipo que já não corresponde àquilo que acontece hoje. Nós temos, sobretudo com as novas substâncias psicoativas, usadas em meio recreativo, Temos uma panóplia tão vasta de substâncias que quem as usa tem também uma literacia inesperada. E o
José Maria Pimentel
público-alvo se calhar é diferente das salas de chute. É completamente diferente, claro, Claro que sim.
João Goulão
Se bem que também nos faz sentido que nas imediações da sala de chute existe a possibilidade de estar a droga que se vai consumir.
José Maria Pimentel
Aí já lá estão, aí já tem essa vantagem, aí já este problema desaparece. É interessante, eu não conhecia isso, essa questão do drug checking. E o tema incontornável da legalização, o que é que acha? Porque nós, no fundo, há 20 anos demos o passo da descriminalização, mas não legalizámos ao contrário do que existe em alguns países, não tanto quanto isso, mas é um tema que está sempre presente.
João Goulão
Não, isto está neste momento
José Maria Pimentel
em discussão.
João Goulão
Está neste momento em discussão, exatamente. Eu penso que quando nós descriminalizámos não tínhamos nenhuma evidência científica de que aquilo ia ser eficaz. Sim,
José Maria Pimentel
foi mais uma medida de desespero, em certo sentido, não é? Exatamente.
João Goulão
E a evidência viemos nós a produzir. Podemos agora partilhar com outros. Olha, nós fizemos isto e deu resultado, mas, fazendo sempre a ressalta, esta é uma medida, enfim, a somar a todas as outras. Relativamente à legalização, que verdadeiramente só está em velocidade de cruzeiro em países como o Uruguai ou o Canadá e os Estados Unidos, mas com idiosincrasias
João Goulão
também muito especiais. Alguns estados, não é?
João Goulão
Alguns estados e com características francamente diferentes. Porque enquanto nós aqui fizemos uma distrinça muito clara entre a aceitação do uso terapêutico, o uso da canábis para fins terapêuticos. Foi aprovada e entra nas competências do Infarmed e entra numa fileira que não tem nada a ver com o uso para fins não terapêuticos. E agora a discussão é o uso para fins recreativos ou não médicos. Esta só está verdadeiramente em vigor no Uruguai e no Canadá. E são experiências com muito pouco tempo de evolução, em relação aos quais continuamos a encontrar
João Goulão
na produção científica estudos para todos os gostos. Exato, é a sensação que tenho também.
João Goulão
Depende do ponto de partida ideológico de que se sai, quer dizer, há um viés brutal na literatura. E eu penso que isto exige alguma seriedade para que nós hoje não estamos na situação desesperada que vivíamos no ano 2000. Portanto, penso que temos aqui a possibilidade de ter algo...
João Goulão
E a motivação é outra também. Exatamente.
José Maria Pimentel
Tem económica em muitos casos.
João Goulão
Exatamente. E importa ter muito claro o que é que se pretende quando se parte para uma alteração legislativa deste cariz. Porque, para mim, e enquanto dirigente de um serviço de saúde, a preocupação é como é que eu contribuo de forma mais eficaz para que o uso de canábis, que existe e vai continuar a existir, tenha menos impactos negativos na vida dos meus concidadãos. E esta é a minha preocupação, mas há outras forças. E agora esta história da pandemia também nos veio a cicatar relativamente ao que são, o que é o jogo da corda entre a economia e a saúde. Ficou muito evidente. É importante que se saiba a partir do que é que se pretende. Pretendendo eu que os impactos negativos para a saúde dos portugueses sejam o menor possível, não tenho evidência científica que comprove, quer num contexto de legalização que melhor contribua para isso do que naquilo que temos agora porventura aperfeiçoado. Correndo o risco, e acredito que já me incomoda de alguma forma. Quando a felicidade de ser reconhecido como o líder da implementação de decisões importantes foram tomadas, agora parece-me o bota de elástico que está a travar o... Mas, francamente, não me sentiria confortável com a minha consciência. Se eu precisasse agora empunhar a bandeira da legalização em que não
José Maria Pimentel
acredito genuinamente, ainda pode ser que me venham a convencer. O que é que está na raiz da questão relativamente à canábis? Porque a canábis é muitas vezes referida como tendo potencial terapêutico, que alguns estudos validam, lá está, sobretudo, creio que ligada até à questão das dores, não é? De alívio das dores, não é? Mas depois, por outro lado, é muito associada, sobretudo, a psicólogos, não é? Que é o exemplo... E eu, de resto, se me lembrar, até conheço pelo menos um caso de alguém que teve justamente esse efeito. Por outro lado, eu lembro de encontrar em tempos uma questão que no fundo tentava de certa forma quadrar este círculo entre os efeitos positivos e os negativos e que dizia que, precisamente por a canábis não ser legal, tinha havido uma evolução da canábis em circulação, que não é regulada, em que a percentagem de um dos componentes, eu confesso que já não me lembro do nome, mas a componente... DHC. DHC, exatamente. A percentagem de THC tinha aumentado brutalmente ao longo das últimas décadas e portanto a canábis era muito mais potente ao nível desse componente que tem o efeito psicótico e muito menos ao nível daquele que tem os efeitos benéficos. Isso, de certa forma, mostra que a canábis... Quer dizer, pode quadrar o círculo, porque mostra que a canábis é perigosa, mas mostra que legalizando-a se poderia tornar menos perigosa. Por outro lado, também se pode argumentar que, bom, se é isso que nós queremos, então basta isolar o componente que faz bem e distribuir o componente que faz bem, porque o outro não está lá a
João Goulão
fazer nada. Pois, mas o que acontece é que existem de facto produtos de canábis a circular atualmente com o teor brutal de THC, cujo o desenvolvimento não foi acompanhado pelo desenvolvimento de outros componentes que como que modulavam aquela atividade. Portanto, foram produzidas com técnicas de produção, técnicas hidropónicas, estirpes que têm muito THC e não têm os outros componentes. O que parece estar a acontecer nos países que regularam, que estabeleceram um limite máximo para o THC é que isto não acaba nem de longe nem de perto com o mercado negro para produtos com elevado teor de THC, porque o consumidor continua a ir à procura da moca, digamos assim, e vai encontrá-la no mercado paralelo. Isto não nos resolve. Também não nos resolve o problema do acesso a produtos de canábios pormenores. Porque aquilo que se defende e o que está em discussão em cima da mesa é o uso por maiores e o uso adulto e responsável de canábios. Mas o que é que vai acontecer ao mercado? O que é que vai acontecer em termos dos miúdos, que como lhe dizia há bocado, chegaram a começar a consumir aos 10 anos? Há aqui algumas coisas, alguns aspectos em relação aos quais nós podemos aprender com experiências efetivas que estão no terreno. Alguns sinais são positivos, outros nem por isso. Ao nível da saúde mental, ao nível do canábis e condução, como é que as coisas vão acontecer, qual é a legitimidade depois também. Nós em relação ao álcool, por exemplo, temos políticas no sentido de contrariar a condução sob o efeito álcool, com limites que estão estabelecidos. Em relação à canábis, esses limites ainda não estão claramente estabelecidos também em termos de eficácia, em termos de capacidade de condução, de operação de máquinas, ou seja, o que for.
João Goulão
Sim, ainda não temos informação, no fundo. Não temos. Portanto, há
João Goulão
aqui uma série de coisas que eu recomendaria à prudência que se dê mais algum tempo para que isto...
José Maria Pimentel
Sim, parece-me um argumento válido. Não tendo nós uma urgência, como tínhamos no caso da... Da descriminalização. Exatamente, com a situação que vivíamos e que aí tinha sobretudo que ver com a heroína, não é? No fundo não temos tanto a perder com a espera, não é? Por outro lado, eu acho que se nós compararmos com o caso do álcool, em que nós temos culturalmente uma tolerância, quer dizer, que me parece claramente exagerada, e eu bebo álcool, isto não é um julgamento do abstémio, também se pode dizer que o rei vai nu, em certo sentido, não é? Porque nós em relação ao álcool temos... O álcool é absolutamente legal, não é? Nós temos alguns limites de idade, quer dizer, temos limites de idade em relação ao álcool, temos limites em relação à condução, mas por outro lado o facto de ele ser legal permite, mesmo com esses limites de idade, que os meninos consumam mais cedo, quer dizer, eu próprio consumi álcool mais cedo do que limite legal, quer dizer, acho que todos nós temos essa experiência, e o álcool tem uma série de efeitos negativos que nós conhecemos. Há aqui dois, pés e duas
João Goulão
medidas, ou a canábis é de facto mais perigosa do que o álcool e portanto justifica-se ter uma... Isso penso que não. Penso que o álcool é francamente mais perigoso, digamos
João Goulão
assim, em termos de efeitos diretos na saúde física e mental do que a canábis. Mas isso não exime também a canábis de ter efeitos que não são despicianos. Portanto, a tal história de que falava há bocado, as psicoses relacionadas com... Não é por acaso que hoje em dia nos centros de tratamento da rede, a tal rede que foi montada sobretudo para lidar com os problemas relacionados com a heroína, a maior parte das pessoas que pedem ajuda pela primeira vez são utilizadores de canábis. Quarenta e tal por cento do total de primeiras consultas nos últimos anos é constituída por utilizadores de canábis. Alguns deles apanharam verdadeiros sustos, tiveram ataques de pânico, tiveram pessoas psicóticos, foram parar a urgência do hospital, foram encaminhados depois para um tratamento mais consequente. Há aqui uma série de fatores que importa também ponderar. Relativamente à tolerância, eu diria que há uma tolerância social relativamente ao uso do álcool, que é alguma coisa atávica também na nossa sociedade e que vem um bocado aquela ideia do Bervinha dar de primeiro a um milhão de portugueses E quase que um incentivo no meio familiar para que as pessoas... Pronto, já és um homenzinho, já apanhas umas bebedeiras, pronto...
José Maria Pimentel
Sim, sim, é um contraste total com a... E às vezes faz-me sorrir com isso, porque o... Claro que sim. Até parece bom, não é? Se a pessoa... Ou ir beber um whisky com o tio ou com o sogro, enquanto que se a pessoa aparecesse em casa com uma ganja, seria olhada de lado como...
João Goulão
Com olho vermelho.
José Maria Pimentel
Quando a diferença não é assim tão grande.
João Goulão
Não, há de facto uma atitude, uma condescendência, estou a me falhar o termo que pretendia utilizar, social, relativamente ao uso de tabaco, por comparação com
João Goulão
outras substâncias,
José Maria Pimentel
ou uso do álcool. E o tabaco é outra questão interessante também, porque o tabaco é um caso um pouco mais difícil em certo sentido, porque o grande efeito no fasto do tabaco é ao nível da saúde física, Sobretudo ligado ao câncer do pulmão e não só. Por outro lado, é evidentemente um vício. E em relação ao tabaco, nós temos uma atitude um pouco diferente, não é? Que é uma atitude mais ativamente desencorejadora do consumo, que tem algum contraste com o que nós temos em relação ao... Quer dizer, não tanto se calhar em relação ao álcool, embora seja mais
João Goulão
agressiva, mas em relação às drogas, sim. O tabaco é o produto que causa uma dependência mais severa.
João Goulão
A frequência com que o fumador tem necessidade de fumar é incomparavelmente maior do que até o irugenómano tem de consumir heroína. O fumador fuma meia meia hora ou menos, do que a fumar um cigarro, porque enfim, há uma série de automatismos também
João Goulão
relacionados com isso, mas há uma repetição do ato com muito maior frequência do que com outros. Mas como é que é na heroína? Por acaso, não sei, um viciado em
José Maria Pimentel
heroína consome...
João Goulão
Três, quatro vezes por dia.
José Maria Pimentel
Curioso, nunca tinha pensado nisso, mas de facto é bastante menos. Quer dizer, o efeito é mesmo muito maior.
João Goulão
Mas repara uma coisa, há bocado falávamos da metadona e desculpe voltar a trazer a relação a isso. Mas o utilizador de heroína tem que usar várias vezes ao longo do dia, tem um pico sério, que depois tem uma queda razoavelmente abrupta, tem que consumir novamente para voltar a pôr níveis de conforto, mesmo em termos meramente físicos. Enquanto a metadona é ativa por via oral e uma única dose cobra 24 horas, o que é de uma comodidade, digamos assim, para o dependente opiáceos que é incomparável. E, como dizia há bocado, perfeitamente compatível com uma vida organizada, uma vida de trabalho, de relação, etc.
José Maria Pimentel
É interessante isso, é muito interessante. Não sabia dessa diferença, é engraçado. E falando de outras drogas no sentido de lato, que têm tido um comeback, têm tido um ressurgir, validado até por vários tipos de investigação. Eu até fiz um episódio sobre isso, que é o caso dos psicodélicos. Até fiz o episódio com o Pedro Teixeira, que há uns meses, não, deve ter sido há um ano. É um caso interessante porque são drogas que têm tido... Drogas neste sentido do lado, mas eu acho que cabem dentro do chapéu das drogas. Hoje em dia há uma série de investigação que tem encontrado vários potenciais, sobretudo ligados à depressão, ao alívio dos sintomas da depressão e até à reversão em alguns casos. E, por outro lado, parecem não ter os mesmos efeitos nefastos das drogas normais. Ou seja, o argumento, pelo menos dos defensores dos psicodélicos, é que os efeitos ao nível neurobiológico são, creio que, não existentes, pelo menos a maioria deles, depois nem todos são iguais, mas pelo menos aqueles psicodélicos mais puros e isso de facto é um contraste grande quando nós falamos de... Quer dizer, o caso até se calhar, de certa forma, é mais evidente do reino, porque não só não tem o efeito psicótico da cannabis, como até não tem vários efeitos negativos do álcool, que nós aceitamos. Isto é assim? Qual é a sua visão?
João Goulão
Eu acho que há um potencial imenso a explorar na utilização controlada deste tipo de substâncias para abrir novos horizontes mentais, enquanto coadjuvante de psicoterapias e de exploração de caminhos da mente que estão lá para ser descobertos.
José Maria Pimentel
Mas há cuidados que devemos ter?
João Goulão
Sim, estou longe de ser um especialista nesse tipo de matéria, mas estamos perfeitamente abertos. Aliás, o próprio Pedro Teixeira já teve várias conversas nesse sentido e estamos disponíveis para apoiar o desbravar desses caminhos. Mas, como lhe digo, não sou um experto nesse tipo de utilização dessas substâncias.
José Maria Pimentel
Nós falámos há bocadinho daquilo que era a realidade. Ali na viragem do século, que vinha desde os anos 90, ou esse era o sentido, vinha desde o 25 de abril, pois entretanto já passaram 20 anos, não é? Mais ou menos falámos sobre isso, mas como é que a coisa evoluiu, não é? Eu já percebi que a heroína caiu bastante, não é? A canábis subiu
João Goulão
bastante e para além disto, o que é que outras alterações é que houve? Canábis sempre foi de longe a substância mais consumida.
José Maria Pimentel
Pois, imagino. Sempre
João Goulão
de longe. Agora, em termos de consumos problemáticos, a heroína tinha durante bastante tempo, quase duas décadas, era a motivadora da maior quantidade de problemas, perdeu alguma importância, curiosamente. Por exemplo, em Espanha, a heroína quase desapareceu do dia para a noite, quer dizer, assim abruptamente quase desapareceu do mercado e foi substituída pela cocaína. Ah, foi?
José Maria Pimentel
Mas a cocaína é uma droga mais cara, não é? É,
João Goulão
é mais cara, mas há várias formas de apresentação de cocaína, quer dizer, nem toda é aquela coca que conhecemos, coca dos ricos, com fada e tal. Há pasta base, há formas muito mais baratas e o próprio crack são outras formas de apresentação da cocaína, altamente aditivas também, e que estão a ganhar algum terreno no nosso mercado. Em Espanha, como lhe dizia, foi do dia para a noite, de repente desaparece a heroína, aparece a coca. Aqui tem sido uma coisa paulatina, vai baixando a heroína e vai subindo a coca de uma forma razoavelmente lenta.
José Maria Pimentel
E depois,
João Goulão
seremos muito tradicionalistas em relação à utilização destas
João Goulão
substâncias. Essa é boa, porque é assim.
João Goulão
Por outro lado, agora temos um mercado invadido com coisas novas, com substâncias, novas substâncias psicoativas, canabinoides sintéticos, piperasinas, enfim, uma série de grupos que todas as semanas aparece uma coisa nova no mercado e depois são comercializadas por formas novas também. Ou seja, online. Online, dark web, ou então através de novas formas de tráfico. A retalho, que é um bocado a uberização das drogas, quer dizer, o encomendar e receber em casa sem aquela chatice de ter que ir a bairros de uso. Conhecer a pessoa. Conhecer pessoas, exato. É um bocado esse o panorama, nunca houve tantas substâncias disponíveis no mercado, tanta variedade, tantas associações, às vezes, completamente disparatadas e arriscadíssimas. Misturas. Misturas, Nem os utilizadores, nem os profissionais de saúde sabem qual é o efeito combinado daquelas substâncias. Portanto, há aqui riscos envolvidos que são importantíssimos. Daí que o tal drug checking tem um papel cada vez mais importante e que pode ser salvavidas, quer dizer, por comparação com
João Goulão
aquilo que eram outras intervenções aparentemente mais heroicas que tivemos noutras alturas. E a nível do global, ou seja, Enquadrando aqui todas as drogas, nós temos ideia de como é que
José Maria Pimentel
os números evoluíram neste século, sendo certo que elas não têm todo o mesmo peso naquilo que são os efeitos mais graves, não é? De transmissões de doenças e, sobretudo, mortes, não é? Mas a nível global, põe tudo no mesmo saco, nós estamos mais abaixo ou acima?
João Goulão
Sim, em Portugal. Eu penso que em termos de consumos problemáticos, caracterizados por dependência, caracterizados por uso injetável, nós estaríamos para aí com metade daquilo que tínhamos na viragem do século. Agora, há muito consumo recreativo e muito consumo controlado, como dizia há pouco, há mais literacia em torno das drogas, há um uso que, em algumas circunstâncias, é muito utilitário. Quer dizer, eu vou sair, vou ao festival, eu sei exatamente qual é a substância que vou tomar para potenciar o prazer que vou usufruir e isto é...
José Maria Pimentel
É diferente, claro. É diferente. Não deixa de ser um problema, mas é um problema diferente.
João Goulão
Claro, é diferente E pronto, há aquelas duas grandes categorias, ou os grandes objetivos para a utilização de drogas. Potenciar o prazer ou aliviar o desprazer. E isto também depende muito. Quando chegámos à crise da dívida soberana, Nós estávamos com os estimulantes e com as drogas de festa a subir. Coca, ecstasy, etc. Drogas associadas ao festival, à discoteca. Potenciar o prazer. Potenciar o prazer. Vieram aquelas dificuldades. Tivemos um enorme número de recaídas na heroína. Pessoas que estavam bem e algumas delas tinham passado um processo de reinserção, até de obtenção de emprego, etc. E naquela altura houve um puxar de tapete que fez muitas daquelas pessoas espalharem-se completamente. Houve um grande número de recaídas na heroína e houve algumas entradas de novo na heroína também por situações... Heroína é a droga do conforto nessas circunstâncias difíceis. Agora, estávamos a recuperar, digamos assim, disso quando veio esta história da pandemia, cujos efeitos ainda não conhecemos em absoluto, ou pelo menos de forma tão detalhada, em termos de predominância das substâncias usadas.
José Maria Pimentel
Ou seja, e pelo que diz, eu entendo que, embora sejam ambas problemáticas, o uso mais problemático de todos é aquele que está relacionado com aliviar o desprazer, não é?
João Goulão
Exatamente. Porque é mais descontrolado,
José Maria Pimentel
provavelmente, não é? Tem a ver também com isso, não é?
João Goulão
Exato, e corresponde a uma necessidade profunda
João Goulão
das pessoas, enquanto a outra é uma opção, quer dizer, eu quero curtir, mas... Claro que eles devem sobrepor em alguns casos, deve haver
José Maria Pimentel
muitos casos em que um leva o outro. Eu estou-me a lembrar daquilo que falávamos no início, da gravidade do problema que nós tínhamos também ter a ver com a nossa impreparação, quando de repente há um influxo de drogas no pós 25 de abril, essa impreparação também as leva ao descontrolo, no fundo mal comparado é quase como aquelas histórias dos europeus levarem álcool para as tribos de índios e de repente eles... Não sei o que. Tem efeitos muito piores porque culturalmente não estavam preparados, enquanto os europeus lá tinham as suas churrosas e tal, que não é que não fossem problemas graves, mas apesar de tudo é diferente de dizimar uma população inteira, não é? E aqui foi um pouco o que aconteceu. E no caso do álcool, como é que tem evoluído o consumo, sobretudo com as novas gerações? Eu confesso que não sei bem, porque a ideia que eu tenho
João Goulão
é que nós olhamos sempre para as novas gerações com uma perspectiva alarmista, não é? Independentemente dos dados, portanto, não tenho a certeza do... Não, mas curiosamente não. Onde temos assistido
João Goulão
a um aumento significativo em termos percentuais é no equilíbrio de género. Tradicionalmente os homens viam muito mais do que as mulheres, havia ao nível das quantidades e da frequência e as mulheres estão a se aproximar, francamente, dos números masculinos. Provavelmente
José Maria Pimentel
aproximais também do que é a norma noutros países desenvolvidos, diga-me eu ou não. Exato.
João Goulão
Relativamente aos jovens há um certo retardar também do consumo, sobretudo do consumo problemático, consumo de vinhos, consumo intensivo, concentrado numa determinada ocasião, ocorrência de bebedeiras, tudo isso está
João Goulão
a retardar. Está a retardar? Curioso.
José Maria Pimentel
Faz ideia da causa? Sensibilização?
João Goulão
Quero acreditar que estamos a fazer alguma coisa bem. A questão da norma. A própria passagem, sabe o quê? Anteriormente, a idade para consumir álcool, idade legal, eram 16 anos. Fizemos uma primeira investida para retardar isso para os 18. E na primeira tentativa só o conseguimos para bebidas espirituosas. A cerveja e o vinho continuam nos 16 anos. Depois, 3 anos depois, voltámos e conseguimos então fazer passar legislação que impõe que a idade legal para consumir qualquer tipo de álcool, passasse para os 18 anos. Eu penso que, apesar de tudo, a norma tem algum efeito nisso. Apesar de alguma dificuldade na fiscalização prática destas questões, mas o que é facto é que a norma, até para os pais e educadores, é importante enquanto suporte de uma determinada postura e de uma determinada recomendação aos seus educantes. Portanto, penso que tem alguma tradução também nisso.
José Maria Pimentel
Não, eu, por acaso, a minha intuição nem seria essa. Provavelmente cínica, mas achar que as pessoas iam arranjar maneira, de certa forma parecido com aquilo que o João dizia em relação a canábis, que as pessoas iam arranjar maneira de consumir aquela que tem mais THC. Mas no entanto penso duas vezes, admito que possa ter um efeito, quer dizer, pode ter um efeito na margem, que não é assim tão despiciando e a verdade é que se conseguir evitar que exista oferta, quer dizer, se der muito trabalho às pessoas, a maioria das pessoas não têm esse trabalho. Há muitas que quiserem muito. Não deixam de fazer os esforços, mas se conseguirmos que uma fatia suficientemente grande não faça isso, tem um peso grande. O que eu noto na minha geração, quer dizer, já não sou propriamente jovem nesse sentido, eu noto que provavelmente existe mais esse consumo de beans, que é mais relacionado com os fins de semana. É provável que exista mais do que na geração dos meus pais, não tenho certeza, mas acho que o consumo regular existe menos. Ou seja, a ideia que eu tenho é que antigamente havia mais o hábito das pessoas beberem... Socialmente, às refeições... Inclusive bebidas brancas, naturalmente que não, na maioria dos casos acho eu, durante a semana, mas eu vejo... Se calhar há uma maior heterogeneidade. Quer dizer, há muitas pessoas que mantêm esses hábitos e se calhar até têm hábitos acima, mas há uma maior heterogeneidade, quer dizer, há muitas pessoas que são abstemias e provavelmente antigamente havia uma maior uniformidade nos hábitos de consumo. Sim, e o número de abstemios vai crescendo também. Vai crescendo, pois, pois, pois, era a ideia que eu tinha. Está bem. João, a conversa foi ótima, alguma coisa que eu não tenha perguntado quisesse dizer? Eu pergunto sempre isto porque... Francamente, nunca acho
João Goulão
que cobrimos assim... Não
José Maria Pimentel
quero deixar os ouvintes reféns da inépsia do do anfitrião.
João Goulão
Não, não era essa. Acho que foi uma conversa agradável e distendida. Agora, há milhentas formas de pegar nisto, mas acho que até a história, um bocado, do desenvolvimento e quer dos problemas, quer das respostas, acho que poderá ser de algo de interesse para os ouvintes e, francamente, gostei. Foi uma experiência agradável
José Maria Pimentel
estar aqui consigo. Obrigado. Falta-nos ainda o livro. Ah, ok. Falta-me recomendar o livro que aí está.
João Goulão
Pode parecer uma coisa um bocadinho pretensiosa trazer aqui uma recomendação de um livro. Há muitos livros técnicos, há muitos livros descritivos em torno das questões das dependências, das drogas, etc. Mas eu gosto particularmente deste, que é o Chasing the Scream, de Johan Harry, que é um tipo inglês que esteve cá em Portugal durante uma temporada, estudou em detalhe a nossa intervenção e ficou completamente fã e é um embaixador poderoso da nossa forma de intervir nestas matérias. É um livro que é constituído por vários, São capítulos mais ou menos isolados uns dos outros, com realidades diferentes. Este chasing de screen é ir à procura do grito, do grito de ajuda, do grito de alerta de utilizadores de drogas. E depois ainda por cima, isto parece de facto uma coisa muito narcísica, mas eu escrevo um capítulo em que focaliza muito em mim, conta aqui um bocado o meu percurso. Enfim, achei que era interessante trazer aqui, tem este exemplar autografado por ele. Boa, não,
José Maria Pimentel
acho uma ótima recomendação no fim desta conversa. Tem sido
João Goulão
um best-seller este, ainda hoje fui ao site para já perceber se haveria uma tradução portuguesa.
José Maria Pimentel
Ainda não. Que não. Mas... Há uma TED Talk que estava-me a dizer há bocadinho,
João Goulão
não é? Há uma TED Talk, neste. Também é um... As pessoas podem ver-se antes de comprar, não é? Sim,
João Goulão
sim. Não é propriamente a propósito do livro, é a propósito de qual é o foco para tratar uma adição, para tratar uma dependência. E, segundo ele, o grande foco é o estabelecimento da relação com o outro. Porque isto acaba por... As drogas, as substâncias, no fundo, estão a preencher um
José Maria Pimentel
espaço. Um vazio,
João Goulão
exato. Um vazio que a melhor forma de preencher é através do outro, da amizade, do amor, da relação, de alguma forma.
José Maria Pimentel
O que também tem a ver com as medidas que foram implementadas cá, em certo sentido. Aquilo que falávamos há bocadinho, a pessoa tende a pensar no problema da droga simplesmente como uma questão de vício, mas há um lado social e interpessoal e até de inserção da pessoa na sociedade, que vai muito para além disso. E essas medidas provavelmente também resultaram por esse lado humano das pessoas de repente terem alguém com quem podem falar e podem... Aquela questão que o João dizia há bocadinho das pessoas, a primeira coisa que as queriam ser é tomar um banho, é sintomático
João Goulão
disso. Deixe-me só dizer-lhe para terminar, então. Como disse já várias vezes, nós temos montes de visitas de gente de todos os cantos do mundo que vêm cá para ver como é que funciona a descriminalização. E quando se vão embora, normalmente o comentário é, descriminalização é interessante, mas aquilo que verdadeiramente os marca e que levam como take home assets é a forma humana como os profissionais e as pessoas que trabalham nesta área se relacionam com os seus utentes, com os seus clientes, mesmo do que quiserem, que é uma atitude de respeito e de saber calçar os sapatos do outro. É uma empatia que é, de uma forma geral, criada pelos profissionais que verdadeiramente marca a diferença daquilo que podemos ver noutros locais do mundo. Já tive algumas respostas noutros sítios e francamente também nunca vi o mesmo tipo de tratamento a ser dispensado aos utentes que aquilo que aqui fazemos. Pois
José Maria Pimentel
é, que a obra é mais importante.
João Goulão
É a relação, é mesmo isso. João Golão, muito obrigado. Obrigado,
João Goulão
Hugo. Foi um gosto.
José Maria Pimentel
Este episódio foi editado por Hugo Oliveira. Visitem o site 45graus.parafuso.net barra Apoiar para ver como podem contribuir para o 45 Graus, através do Patreon ou diretamente, bem como os vários benefícios associados a cada modalidade de apoio. Se não puderem apoiar financeiramente, podem sempre contribuir para a continuidade do 45 Graus avaliando-o nas principais plataformas de podcasts e divulgando-o entre amigos e familiares. O 45 Horaos é um projeto tornado possível pela comunidade de mecenas que o apoia e cujos nomes encontram na descrição deste episódio. Agradeço em particular a Miguel Van Uden, José Luís Malaquias, João Ribeiro, Francisca Nunes Gildo, Família Galeró, Nuno e Ana, Nuno Costa, Salvador Cunha, João Baltazar, Miguel Marques, Corto Lemos, Carlos Martins, Tiago Leite e Abílio Silva. Legendas pela comunidade da Amara.org