#108 Aires Almeida - Para que serve a Arte?

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José Maria Pimentel
Olá, este é o 45° e eu sou José Maria Pimentel. Desta vez estou à conversa sobre arte com Aires Almeida. O convidado é licenciado e mestre em filosofia pela Universidade de Lisboa e tem-se dedicado sobretudo à filosofia da arte. Dirige a coleção Filosofia Aberta da Gradiva e é autor de vários livros, entre os quais o Valor Cognitivo da Arte e a definição de arte, o essencial. O mote para a nossa conversa foi sobretudo este último livro, sobre o que é, afinal, a arte. Já há muito tempo que queria falar sobre arte no 45°. É um tema, obviamente, com muito pano para mangas, afinal, não há ninguém que não aprecie alguma forma de arte, seja ela a pintura, a música ou o cinema. No entanto, faltava-me encontrar um convidado que tivesse a abordagem certa. Porque a verdade é que a arte, como depende muito da nossa sensibilidade individual, é um tema que se presta muito a análises, digamos, pouco objetivas. Ou é discutido numa lógica puramente subjetiva, do tipo adoro Tarantino, ou adoro a Paula Rego, ou pelo contrário, eles não me dizem nada. Ou então é discutido de uma forma quase religiosa, com uma admiração cega por tudo aquilo que determinado artista produz, seja ele Picasso ou David Bowie. A nossa conversa começa precisamente por este ponto. Ou então, mesmo nos casos em que encontramos uma discussão acesa sobre arte, como é comum, por exemplo, na crítica de cinema, o que vemos muitas vezes, na verdade, é uma discussão com superlativos a mais e objetividade a menos. Por isso, de certa forma, pode-se dizer que estive este tempo todo à espera de um convidado como o Aires Almeida, que consegue falar sobre arte de forma cativante, mas sem peneiras nem poses. O nome dele foi-me sugerido pelo Desidério Murcho, o outro grande convidado anterior do 45 Graus, a quem agradeço. O ponto de partida para a nossa conversa foi o mais elementar de todos, o que é a arte? Que aspectos são comuns a formas tão diferentes da arte como a pintura, a música ou a literatura e que no entanto as distinguem de outras atividades humanas? E porquê que a arte é algo que consideramos valioso? Que valor é que a arte nos dá? Dá-nos prazer, claramente, mas pode também ser uma fonte de conhecimento, ou é simplesmente um tipo de experiência diferente de todos os outros. Enfim, foi uma conversa muito longa, mas cheia de substância, na qual percorremos uma série destes aspectos da natureza da arte. E apesar de termos falado de vários aspectos da arte e da nossa relação com ela, houve algumas coisas que ficaram de fora. Por exemplo, sabendo nós que a arte é algo com valor, como é que podemos avaliar determinada obra de arte? Como estabelecer o que torna uma obra melhor ou pior do que a outra? O que é que faz com que os Madredeus sejam melhores do que o Quimbarreiros? Que critérios podemos usar? Enfim, talvez volte a convidar o Ayres Almeida um dia destes para discutir as testemunhas. Finalmente, como de costume, queria agradecer aos novos mecenas do 45°, Ana Bárbara Teixeira, Ana Raquel Guimarães, Nelson Gonçalves e Ricardo Santos. E com isto, vamos à conversa com Ayres Almeida.
Aires Almeida
Ayres, muito bem-vindo ao 45
José Maria Pimentel
Grós. Olá, o
Aires Almeida
prazer é meu por estar aqui, obrigado pelo
José Maria Pimentel
convite. Nós estávamos há bocadinho em Ofa a conversar e eu decidi interromper para começarmos a gravar porque estava a ser demasiado interessante. Porque tu estavas a dizer que arte para ti não é sagrada. O que parece uma banalidade dizer, mas a verdade é que a relação que muitas vezes se tem no espaço público com a arte, sobretudo com a arte que se institucionalizou ser arte de qualidade, ou produzida por alguém que se institucionalizou ser um grande artista, é uma relação que é um bocadinho análoga a uma relação religiosa, não é? Porque é algo que deve ser admirado, mas que raramente é criticado. Criticado não no sentido de uma crítica necessariamente negativa, mas que não é discutida enquanto tal, cujos méritos já não são discutidos, já não são sequer postos em causa.
Aires Almeida
Sim, porque muitas vezes as pessoas quando pensam em arte pensam nas obras de arte paradigmáticas, naquelas obras de arte que fazem parte da grande arte tradição artística ocidental, ou não só ocidental, não é? Pensam em Leonardo da Vinci, pensam em Bach, pensam em... Sei lá, grandes nomes da...
José Maria Pimentel
Mas até mais contemporâneos, se aplica-se a nomes muito mais próximos.
Aires Almeida
Exatamente, o Picasso, ou seja lá o que for. Como reconhecem um grande valor as obras desses autores, conferem a ideia de que toda a arte, a arte em geral, é toda assim e não é. A arte tem coisas muito boas, tem coisas geniais, tem coisas péssimas, tem coisas muito más. Portanto, há boa e má arte. Eu acho até que a maior parte da arte é má. Bom, mas para mim isto é uma coisa que acontece em todas as áreas. A maior parte de tudo é má. E isto tem uma explicação até relativamente fácil, porque na arte, como na ciência, como na nossa vida cotidiana, nós tentamos resolver problemas, nós tentamos atingir objetivos, nós queremos fazer... E vamos errando. E até chegarmos onde queremos é muito difícil. Portanto, aquilo que se produz até se chegar a algo como uma coisa que nos pareça realmente valiosa, não é assim tão valiosa. Portanto, tudo o que nós fazemos é quase tentativa e erro. E portanto, muitas das coisas que estão aí à mostra são tentativas e muitas dessas tentativas, acho eu, que podem ser tentativas honestas, mas os resultados, de grande parte daquilo que se produz na arte, é má arte. E, portanto, eu diria, eu tenho a convicção, que a maior parte da música é má, a maior parte da pintura é má. Agora, quem estiver a ouvir isto vai pensar logo que eu estou a falar de Leonardo da Vinci ou de Picasso. E o Picasso também tem obras más, não é?
José Maria Pimentel
Claro, pois, dizeram o que eu ia dizer.
Aires Almeida
E todos eles têm. E, portanto, isto no fundo talvez até seja uma trivialidade, mas a ideia de que a arte é sagrada é uma coisa ainda mais forte. Eu acho que a arte não é sagrada. Para já, acho que há má arte. Há má arte
José Maria Pimentel
mesmo de bons artistas. Mesmo
Aires Almeida
de bons artistas. A mim sempre me fez um bocado de espécie, mesmo quando era relativamente novo e eu sempre gostei muito de música, e havia certos autores, até mesmo na música popular, chamada música pop rock, por exemplo. Eu lembro de haver colegas meus que gostavam de um determinado cantor, ou de um determinado músico, e então tudo o que esse cantor fazia era tudo bom. Eu lembro de haver colegas que gostavam muito do David Bowie, e então tudo que o David Bowie fazia era tudo... E eu também gostava muito, e de vez em quando ficava tremendamente decepcionado com coisas muito mais que ele fazia. E Eu sempre achei isso um bocado esquisito, uma pessoa achar que tudo que vem daquela fonte é tudo bom. De qualquer maneira, eu acho que a arte não é sagrada, até porque acho que não há nada que seja sagrado. Mas se quiser colocar as coisas de uma forma mais ligeira, o sagrado tem conotações religiosas, etc. Tirando daqui as conotações religiosas, a ideia de que a arte tem valor intrínseco, tem valor em si mesmo, que não é um valor instrumental, não é porque serve para isto, tem valor em si mesmo e por isso é nesse sentido que algumas pessoas encaram a arte como algo sagrado. Ora, eu acho que a arte não tem valor intrínseco, eu acho aliás que nenhuma coisa, nem sequer as pessoas, têm valor intrínseco. Uma pessoa que dedique toda a sua vida a um serial killer, a vida dessa pessoa não tem valor intrínseco. Acho até que nem sequer tem grande valor.
José Maria Pimentel
Isso era outra conversa, mas a justificação que nós, ou a razão para fazer sentido nós considerarmos que toda a vida tem um valor intrínseco, não acho que seja por isso ser verdade necessariamente, mas porque a alternativa podia ter consequências perversas. Agora, é evidente que isso objetivamente não é verdade, o exemplo que fizeste é um exemplo evidente, não é? Ou seja, o que eu quero dizer com isto é, o problema é que Se nós dessemos esse passo, provavelmente haveria consequências muito piores de considerar essa opção, que nem toda a vida tinha um valor intrínseco.
Aires Almeida
Mas isso é uma ideia muito corrente, que quando se pergunta alguém, então dá-me lá exemplo de algo que tenha valor intrínseco. As pessoas dão um exemplo da vida humana. Eu acho que não, é só uma questão de pensar um bocadinho. Sim, sim. Atenção, dizer que não tem valor intrínseco não é a mesma coisa dizer que não tem valor. Claro, claro. Porque há valor que não é intrínseco, não é? E outro exemplo que normalmente se dá é a da arte. Olha a arte, olha a última ceia. Mas o que
José Maria Pimentel
é a arte de ter valor intrínseco neste caso, agora, para quem nos está a ouvir?
Aires Almeida
É ter valor por si mesmo. Normalmente o poeira-se intrínseco é instrumental, neste sentido, ser instrumental
José Maria Pimentel
é um meio
Aires Almeida
para alcançar um outro fim qualquer. Esse fim pode ser dar prazer, dar satisfação estética, aprendermos com isso. Podem ser muitas coisas, não é? Criar valor, etc. Eu acho que a arte não tem valor intrínseco, porque é uma coisa muito difícil de explicar em que sentido é que a arte poderia ter valor intrínseco. É mais, às vezes, as pessoas quando dizem que a arte tem valor intrínseco, é como, e eu aqui estou a citar um outro filósofo, o Noel Carroll, é uma maneira de desistir, de explicar qual é o valor da arte. Tem valor em si mesmo.
José Maria Pimentel
Claro, é porque não é palpável, não é palpável e não é necessariamente identificável e compartimentalizável em partes, ou seja, no fundo eu presumo que o debate surge é que tu dizes uma determinada peça de arte tem este valor instrumental e uma vez identificando esse valor instrumental pergunta-se, isso esgota o valor dela? E quem continua a apreciar aquela arte e acha que ela vale mais do que simplesmente ela ser didática ou ter uma mensagem política, por exemplo, ou ter um pendor religioso, ficará descontente com essa resposta porque entende que ela não perde valor, não deixaria de ter valor mesmo que nós lhe retirássemos essa utilidade mais instrumental para um determinado fim, não é?
Aires Almeida
Sim, porque, bom, aí também podes dizer, ok, uma obra de arte não tem que suscitar o mesmo tipo de reação a todas as pessoas. Há pessoas que são insensíveis à arte, não é? E portanto, imagina que defendes uma perspectiva hedonista da arte. Que a arte tem valor porque
José Maria Pimentel
causa prazer.
Aires Almeida
Exatamente. Agora, que tipo de prazer? Ok, podes defender que é um prazer superior, como alguns filósofos defendem. Podes dizer que é um prazer não meramente perceptual, não é um prazer meramente auditivo, não é um prazer meramente visual, quando ouves uma peça musical, uma sinfonia, seja o que for, o prazer não é meramente auditivo, porque há uma interpretação daquilo que se ouve, e vês como é que as várias partes da música se conjugam, e retiras prazer disso, não é meramente perceptual, ou meramente auditivo, se quiseres. E portanto, não temos de dizer que uma obra de arte tem que gerar ou produzir esse efeito em todas as pessoas. Tem a ter a capacidade de o produzir, porque há pessoas que são insensíveis à arte, não é? Eu quando vejo... Uma vez fiz uma radiografia aos pulmões, o médico mostrou-me e disse está a ver, tem aqui uma cicatriz de uma grande gripe que teve quando era pequeno. E eu disse-lhe que não havia ali nada, havia ali manchas. Claro, claro.
José Maria Pimentel
Já estou-lhe passando por alguma dessas regras.
Aires Almeida
Não estou preparado para entender aquilo. Mas ele que está habituado aquilo, estudou e está familiarizado com isso, vê lá aquilo que eu não consigo ver. E portanto, não estou a dizer que todas as obras de arte têm que produzir nem sequer o mesmo efeito em todas as pessoas. Mas as pessoas estão... Essa é a ideia de que há certas obras de arte que são como que sagradas, querem dizer que seria um crime destruí-las, por exemplo, um crime contra a própria humanidade, contra a própria arte. E eu concordo que algumas obras de arte têm essa característica. Porquê? Porque o tipo de coisa que nós retiramos, o tipo de satisfação, seja lá esse prazer, seja satisfação estética, seja compreensão de alguma coisa, seja conhecimento de algum tipo, que retiramos dela, é algo que só ela nos pode dar. E, portanto, destruindo essa obra, se calhar deixamos de ter esse tipo de experiência da mesma maneira. E, portanto, isso seria privar as pessoas de retirar esse tipo de benefício do contato com determinada obra de arte. Mas isto é diferente de ela ter valor intrínseco. Claro, claro. Aliás, isto é mesmo o que estou a dizer, que isto é um valor instrumental.
José Maria Pimentel
É, valor propriamente instrumental, sim, sim, sim. Não queria gastar muito tempo neste debate filosófico, não tenho a certeza que este interesse a todos os ouvintes, mas ainda assim, uma última coisa em relação a esta questão é que, apesar de tudo, parece-me um pouco diferente da questão da vida. Quando se alega que a vida é um fim em si mesmo, esse argumento surge, e na maior parte das vezes com um fim meritório, para evitar determinados atos que ponham em causa a vida humana no meio de uma equação que tem um determinado objectivo. Há temas mais contenciosos, como a questão do aborto ou a questão da eutanásia, mas há outros que não, como o holocausto. Se a vida tivesse sido tomada como algo absoluto, o holocausto não teria existido. Portanto, percebe-se essa preocupação. No caso da arte parece-me um bocadinho mais obscuro, eu diria que é aí, que é esse argumento, pelo menos é a minha intuição, surge porque precisamente a arte, e daí de ser tão difícil de definir filosoficamente, e tu tens trabalhado bastante sobre isso, que não há ainda um consenso sobre qual é a definição da arte. É por isso que é um problema filosófico. Exatamente, é por isso que é um problema que sobra na filosofia, a filosofia é muito isso, são os problemas que sobram, que não são resolúveis por outras áreas, mas dizia eu, isso eu creio que isso acontece porque, não só por um lado porque a arte são várias coisas, mas também porque, embora a arte tenha esse lado instrumental, ele não é... A causa e efeito não são facilmente observáveis. Quer dizer, eu posso perguntar qual é o carro mais eficiente, no sentido de qual é o carro que consegue fazer os mesmos quilómetros com menos combustível. Isso é facilmente mesurável. Agora, perguntar qual é o melhor quadro, ou até qual é o melhor quadro do artista X, ou qual é a melhor peça musical do compositor Y, não é nada fácil, até porque não é nada fácil compartimentalizar, mesmo numa lógica instrumental, o que é que aquela peça, aquela melodia, por exemplo, traz? Porque como tu próprio dizias, há um lado de prazer, digamos assim, e mesmo esse lado de prazer pode ser subdividido em várias partes, que provavelmente sobrepõe, porque pode haver um prazer mais imediato de entretenimento, mas também pode haver uma espécie de... Um prazer diferido, não é? Um prazer diferido, mas um prazer mais sofisticado, mais intelectual, pode despertar emoções, pode despertar nos emoções específicas em nós, que até podem ser diferentes em todos nós, e portanto ser uma espécie de ferramenta de, vai ser isso, canivete suíço de emoções e portanto despertar uma série de emoções diferentes em todos nós, pode transmitir-nos as emoções autênticas do autor, mesmo que até nem sejam as nossas, pode ter uma mensagem, se for um quadro, por exemplo, ou uma instalação, pode ter uma mensagem política, quer dizer, é uma mirilha de coisas, não é? Exato. É provavelmente referencial à... É provavelmente, não, é quase certamente referencial, sobretudo nas sociedades contemporâneas, à arte que a precedeu, ou seja, é interpretável no contexto da arte que é precedeu. Portanto, são um monte de coisas que não são nada fáceis de destrinçar.
Aires Almeida
Sim, e mais que isso, há aqui vários problemas diferentes. É claro que os problemas contaminam-se uns aos outros, mas são conceitualmente diferentes. O problema de saber o que é arte, que é o problema da definição de arte, e mais, se tu me perguntares qual é o problema da definição de arte, depende da maneira como tu entendes o que... Qual
José Maria Pimentel
o problema, como assim?
Aires Almeida
Depende daquilo que tu esperas de uma definição, porque há diferentes tipos de definições. Tu podes dizer assim, definir arte é dar-te as ferramentas que te permitem distinguir aquilo que é arte do que não é arte. É permitir que tu identifiques de forma bem-subida o que é arte, quando estás perante um determinado objeto. Claro, Mas não
José Maria Pimentel
tens que claramente perceber porquê. Isto
Aires Almeida
é uma questão de identificação. Isto é saber, no fundo, se determinado objeto cai debaixo da extensão do conceito arte. É uma questão meramente semântica. Pode
José Maria Pimentel
ser um reagente como na química, não é? Tu podes ver o que é que se está a passar lá, não é? Exatamente.
Aires Almeida
Ou tu podes dizer assim, não, eu não quero saber a que coisas o termo arte se aplica. Eu quero saber o que é a arte ela própria. E aqui estás a dar outro tipo de definição. Os filósofos chamam ao primeiro tipo de definição, definições nominais, é explicar o nome, arte. É ajudar-te a usar de forma competente o nome, etiqueta, palavra, arte. Mas há outros filósofos que não querem isso. Não, eu não quero aplicar corretamente um nome, ou um termo, ou um conceito. Ou
José Maria Pimentel
não queres só isso.
Aires Almeida
Não, não quero só isso. Eu quero acima de tudo saber se há uma categoria de coisas unificada a que chamamos arte. Se há uma natureza da arte, eu quero saber o que é a arte ela própria e não apenas aplicar de forma bem decidida o conceito de arte. Então aí temos outro tipo de definição, que os filósofos normalmente chamam de uma definição real, por oposição às definiçõess nominais. Uma definição real seria uma questão essencialmente metafísica, ao passo que uma definição nominal é uma definição semântica, é mais ou menos como aquilo que fazem os dicionários, só que nenhum dicionário te vai dizer que a arte é isto e te dá lá uma definição que te deixa satisfeito, não é? E por ser um objeto de discussão entre os filósofos. Mas é uma questão definir o que é a arte. Outra questão que é normalmente confundida com a questão da definição da arte é dizer porquê é que a arte é importante, porquê é que a arte tem valor, enquanto arte, enquanto mercadoria, também tem valor de mercado, não é? Mas enquanto arte.
José Maria Pimentel
A primeira depende da segunda, ou não?
Aires Almeida
Há quem considere que a primeira depende, que A segunda depende da primeira. Ah, sim? Sim. Há quem depende que responder a uma, às duas, é a mesma coisa que responder a uma só pergunta. E há quem considera que são coisas distintas. E eu acho que são coisas distintas.
José Maria Pimentel
Eu digo que, ou pelo menos a minha intuição é que a primeira depende da segunda na medida em que aquilo que é arte depende do valor que é dado à arte, porque a arte só existe enquanto algo que é valioso ou potencialmente valioso, pelo menos o que não significa que não haja uma escala de valor e que não haja uma mirilha de tipos de valor, mas a arte é apreciada, a arte é uma criação humana, Não existe sem seres humanos, sem sociedades humanas. E é assim porque nós consideramos que é algo valioso ou pelo menos potencialmente valioso. Pode haver má arte, mas aquilo que se cria musicalmente é potencialmente valioso. Porque é que
Aires Almeida
nós persistimos ao longo de gerações e gerações em criar arte, em apreciar arte, em praticamente todas as culturas. E a tua ideia é que isto tem que ter uma explicação e isso faz parte da própria definição de arte. Quer dizer, nós continuamos a fazer arte porque damos valor a isto, portanto qualquer definição que seja informativa tem que ter lá alguma componente explicativa em relação ao valor. É isso que tu estás a dizer. Sim. Mas nem toda a gente concorda com isto. Portanto, quem defende, há um bocado falei das definições chamadas nominais, não precisa disso para nada. A ideia é esta, tu vais...
José Maria Pimentel
Sim, não precisa de resolver esse problema, mas eu estou a compreender o que queres dizer. A
Aires Almeida
ideia é só identificar. Porque hoje em dia a arte, então, normalmente dizem que este tipo de definições, as definições nominais, são muito arrastadas para responder a um problema colocado pelas vanguardas, que criam objetos.
José Maria Pimentel
Nos casos de fronteira, no fundo.
Aires Almeida
Que chamamos arte e que nós achamos, quer dizer, que sim, falas nos casos de fronteira, mas hoje praticamente tudo parece que pode ser arte. Então como é que nós distinguimos o que é arte e o que não é arte? E este é o problema colocado sobretudo pela arte moderna. E aí esse objetivo
José Maria Pimentel
de apenas conseguir categorizar o que é arte e diferenciá-lo do que não é surge nesses casos, fronteiro, ou como quisermos chamar, ou nesses casos mais exploratórios em que de repente surge a dúvida se aquilo é arte ou não porque não encaixa naquilo que intuitivamente nós chamamos arte. Por absurdo, há um pintor, um artista ou uma artista que decide expor uma tela nua, completamente branca.
Aires Almeida
E isso já aconteceu. E que imagino que já tenha acontecido.
José Maria Pimentel
Era impossível que não. E aí coloca-se a questão, aquilo é arte? É ou não é? Mas essa definição nominal da arte, filosoficamente, não é especialmente interessante, porque não vai explicar porque é que aquilo tem valor, ou pelo menos tem potencialmente valor, vai simplesmente dizer que aquilo pode ser considerado arte, porque uma das... Eu suponho que... Isto vem do teu livro que eu li, portanto daí eu estava dentro destes temas... Suponho que uma das definições que caem nesta tenda são as definições históricas ou institucionais, que diz aquilo é arte porque surge num contexto histórico ou institucional em que aquilo é tido como arte, porque foi publicado numa galeria de arte e foi apreciado...
Aires Almeida
Porque aquilo adquiriu o Estatuto de Obras de Arte. Exato. Há uma grande diferença entre as teorias mais tradicionais que procuram a natureza da arte, que procuram saber o que é que a arte tem de especial e que unifica toda aquela classe de objetos que nós classificamos como arte, essa categoria. E uma crítica que muitas pessoas fazem às teorias mais recentes, essas teorias, referiste aqui, não disseste os nomes, mas são conhecidas como a teoria institucional e como a teoria histórica ou historicista da arte, é de que para estas teorias ser ou não ser arte é uma questão de adquirir ou não adquirir um certo estatuto. Para as outras não é uma questão de adquirir ou não adquirir um certo estatuto, é Uma questão de ela própria, a obra de arte, ter determinadas qualidades, determinadas características ou determinadas propriedades, que muitas vezes se chamam de essenciais. É ir captar, ir buscar, ir à natureza, à essência da arte. Agora, depende do que tu queres de uma definição. Porque se uma pessoa diz assim, eu quero saber como é que eu sei se isto é arte ou se não é arte. Está num museu, e tudo que está dentro de um museu é arte. Tudo não, só os extintores que estão lá dentro para apagar os incêndios não são arte. Embora já tenha habido artistas que colocaram o extintor como obra de arte e as próprias cadeiras e tudo isso. Então há quem considere que estas tentativas de definição de arte estão um bocado obcecadas com uma pequena fração da arte que a arte vanguarda. Como é que nós decidimos em relação a esses casos? Como tu chamaste, muitos deles parecem casos de fronteira. Será um arte ou não será um arte? E, portanto, dar uma definição de arte obcecada, toda direcionada apenas para te ajudar a discriminar esses casos, parece que é um desperdício de recursos intelectuais. Alguns consideram isso. Porque, afinal de contas, a maior parte da arte não é assim. E os casos paradigmáticos da arte, afinal de contas, qualquer pessoa sabe distinguir perfeitamente o que é arte e o que não é arte. Não sei se conheces um sketch do Scott Futurento, que é do Lusco Fusco.
José Maria Pimentel
Sim, 5 ou 7 minutos.
Aires Almeida
5 ou 7 minutos, exatamente. Dedica-se ao Lusco Fusco. Então ele não sabe bem dizer o que é aquilo. É 5 ou 7 minutos. Esses 5 ou 7 minutos do crepúsculo, do lusco fusco, é dia ou é noite? Será que nós, já está um bocado escuro, será que é noite? Ah não, mas ainda há uma réstia de luz, ainda é dia. Nós não sabemos bem se é dia ou se é noite. É uma situação de fronteira, não é um caso de... Contudo, nós sabemos bem a distinção entre o dia e a noite, não é? Mas há lá esses 5 ou 7 minutos durante o dia em que nós não sabemos bem distinguir. E é como se, então, essas teorias estivessem com este aparato todo para explicar esses 5 ou 7 minutos, se é dia se é de noite, os tais casos de fronteira das obras de arte. E portanto, muita gente considera que é um desperdício estar demasiado obcecado com isso. O que nós precisamos saber é dar conta dos casos paradigmáticos de arte, porque é que eles são arte, E depois podemos ir para a questão porque é que eles são valiosos, não é? Sim, sim, claro. Estava a referir uma outra coisa, que há quatro perguntas que podem estar interligadas. O que é arte? O que justifica o valor da arte? Aqui estamos já a pressupor que a arte tem valor. Como avaliar obras de arte? Isto já não é uma questão de valor de arte, é um valor de avaliação.
José Maria Pimentel
E aí entram, passas de uma lógica binária, valor, vértices num valor, para uma lógica gradativa.
Aires Almeida
Exato, sim. E de critérios de avaliação. Exato, sim. E há ainda Uma outra questão, como se interpreta uma obra de arte? Qual o significado de uma obra de arte? Por exemplo, saber se a intenção do autor, quando escreveu aquele romance, é relevante ou não para uma correta compreensão do romance. Exato, exato. Por exemplo, o Ray Bradbury, quando escreveu o Fahrenheit 450... Nunca sei dizer este número certo, é a temperatura que o papel arde, queima. E quando perguntaram se aquilo era uma alusão a uma sociedade super confortável, burguesa, etc., ele achou estranho. Não, não, quando escrevi aquele livro eu estava a pensar na União Soviética. Parece que compreenderam o livro exatamente ao contrário. E a questão que se coloca é, uma correta interpretação, uma interpretação adequada do livro do Bradbury, pode ser feita uma interpretação adequada independentemente de quais as intenções do autor ao escrever o livro? Portanto, até que ponto as intenções são relevantes para a compreensão? Isso é uma questão de interpretação do significado, do conteúdo. Portanto, nós temos aqui uma questão definicional, uma questão de valor, valorativa, uma questão avaliativa e uma questão interpretativa. Todas elas se contaminam, se interceptam, mas são conceptualmente diferentes.
José Maria Pimentel
E as mais interessantes, ou por outra, o que me parece mais interessante, na verdade, é isolada é a questão da definição, porque acho que nos é menos útil, se calhar no final voltamos a ela.
Aires Almeida
Desculpa, tu disseste que é menos importante.
José Maria Pimentel
Para mim é menos interessante, enquanto questão isolada, porque a arte não é independente ou a arte está intimamente ligada ao valor que nós lhe depositamos, enquanto sociedade é argumentável que não há nada que nós valorizemos mais do que a arte, embora isto possa parecer menos óbvio, mas se nós tomarmos a arte numa seção mais lata, os artistas são as pessoas a quem nós concedemos maior admiração. Se nós incluirmos jogadores de futebol enquanto artistas, e eu acho que são num sentido lato, é concedida a um jogador de futebol, a um desportista, uma espécie de crédito, por exemplo, óbvio, do Cristiano Ronaldo, não é? Que ele pode ser milionário, pode estar associado, culpado ou não, a questões de fraude fiscal e a outro tipo de... Maus exemplos. Maus exemplos, digamos assim. Certo ou errado, a minha questão não tem a ver com ser certo ou errado, tem a ver com ser uma questão que nem sequer se discute, porque ela é de tal forma admirada que essa questão não se escuta. Não há mais ninguém com quem se passe isto. Tudo se lhe perdoa. Não passa-se o mesmo com atores, celebridades, mas de novo são artistas, artistas de massas, logicamente daí ganhar essa escala. E portanto, isto para dizer que a arte não só é algo considerado importante como é aquilo que nós consideramos mais importante. Não necessariamente mais fundamental para a sobrevivência, naturalmente, mas é lhe dado uma importância brutal e o artista é alguém que é objeto de uma admiração que não tem comparação com outro tipo de pessoas.
Aires Almeida
O Tolstói tem um livro cujo título é precisamente O que é Arte. E tu traduziste, salveu? Eu fiz a introdução ao livro, mas foi uma ex-aluna minha, russa, que traduziu de russo, com a minha revisão e o meu acompanhamento. Mas os capítulos iniciais do livro são precisamente para mostrar a importância que a arte tem. A quantidade de dinheiro que se gasta com as artes, com o fomento das artes, com a promoção das artes, com a aprendizagem das artes, a importância que os artistas têm, há nomes de ruas com artistas, os artistas são glorificados, etc. Há vidas inteiras que são desde crianças dedicadas em trégues à arte, como sempre bailarinas e bailarinos que desde têm reidade são obrigados a fazer sacrifícios incríveis para andar em pontas dos dedos dos pés que não têm outro tipo de vida a não ser os ensaios, os treinos, a serem grandes artistas que passam horas e horas a tocar piano durante o dia, adolescentes, pré-adolescentes que deviam estar a brincar, etc. E que passam horas e horas, fazem calos, não têm outro tipo de vida e depois ficam um bocadinho até um pouco malucos quando forem mais crescidos. E ele, o Tolstói, apresenta as coisas do mundo e faz cálculos até da quantidade de pessoas que se dedicam às artes, não só os artistas, como aqueles que apoiam os artistas, como aqueles que fazem os cenários, os carpinteiros, etc. A quantidade de dinheiro, de recursos, de meios, a construção de salas dedicadas só à apresentação de óperas,
José Maria Pimentel
de concertos... O próprio mecenato, filantropia... Um
Aires Almeida
mecenato, etc. E isto no tempo do Tolstói, que agora vamos multiplicar isto por muito mais...
José Maria Pimentel
Sim, claro, ele sabia...
Aires Almeida
Que dificilmente encontra uma outra atividade que requer a tantos recursos, tantos sacrifícios, inclusive ela, aliás, critica, diz que é desumano e é imoral pais forem os filhos deste crianças aprenderem uma arte, obrigá-los a aprender uma arte e a prescindir de todas as outras coisas que a vida lhes pode faculdar para um dia serem aqueles génios do piano ou andar nas pontas dos pés como bailarinos, etc. Portanto, de facto, isso mostra uma coisa, isso para ele é uma questão empírica. Nós damos, de facto, muito valor à arte e precisamos explicar isso. Fala a pena continuarmos a fazer arte, afinal de contas porquê? Como diz um psicólogo, cujo nome agora eu não me recordo, ele diz que se um marciano, um extraterrestre inteligente, mais inteligente que nós, descobrisse a Terra e decidisse estudar-nos. O que é que eles fazem, o que é que eles não fazem, porquê é que fazem isto, porquê é que fazem aquilo. A coisa mais estranha é que eles encontrariam, diz ele, ok, compreendia porque é que as pessoas trabalham, Porque é que se dedicam à ciência? Mas a arte, qual é a função que a arte tem na vida destas pessoas? Por que é que esta gente dá tanta importância à arte? Se é que nessa civilização não teriam também arte. E portanto essa é a questão mais... Eu concordo com ele, já pensei várias vezes nisso. É precisamente por a arte ser reconhecido esse valor, essa importância, que há muita gente interessada em ser artista e em produzir arte. E é por isso que há muita má arte. Esta é a razão por que há. Sim, sim, bom ponto. É como, repara, é como nesses concursos televisivos de talentos, a quantidade de rapazes e raparigas que vão lá, querem ser grandes cantores e vão para lá cantar e coitados, não fazem a mínima ideia do que é cantar, do que é a música, etc. Mas porquê ser músico, ter esse prestígio social, essa importância, esse destaque, atrai muita gente para esse tipo de atividades. E portanto, é natural que haja muito, muito, muito má arte.
José Maria Pimentel
Mas é como tu dizias no início, qualquer atividade humana tem uma curva de distribuição de qualidade e tem uma calda grande que é má, pelo menos em comparação, É bastante pior do que é muito bom, não é? Pois. E há uma falácia que muitas vezes se comete, pelo facto
Aires Almeida
de arte. Eu há pouco disse que arte não... Acho que arte não tem... Não é sagrada, nem tem valor intrínseco sequer. Mas isso não é a mesma coisa dizer que arte não tem valor, que não é uma coisa muito valiosa, claro que é. Arte, em geral, daí não segue que toda e qualquer obra de arte tenha valor. É uma falácia. Aliás, essa falácia até tem um nome, costuma-se dar um nome de falácia da divisão, que é aquilo que é a propriedade de um todo como se fosse transferida para cada elemento do trabalho, senão é falacioso.
José Maria Pimentel
E neste caso poderíamos acrescentar que também não é verdade que esse valor seja o mesmo para toda a gente. Exato. Esse valor instrumental.
Aires Almeida
Claro, mas este ponto é importante porque quer dizer que a arte pode ser uma coisa com muito valor e no entanto a maior parte das instâncias, dos casos, dos objetos de arte não terem, e eu acho que a maior parte não têm valor nenhum. Eu acho que não vejo problema nenhum em destruir certas obras de arte. Claro que algumas pessoas ficam com os cabelos em pé. Pensam logo nos talibãs que destruíram
José Maria Pimentel
as estatues do
Aires Almeida
Buda e pensam logo nessas... Mas a verdade é que já houve... Os próprios artistas muitas vezes destroem as suas obras de arte.
José Maria Pimentel
Sim, são muitas vezes os principais os principais atores
Aires Almeida
desse... Exatamente, têm consciência. Aliás, há um artista que é o Gerard Richter que uma das grandes tarefas que ele encontrou para a sua vida artística já no período final foi destruir a grande parte das coisas que ele tinha pintado, porque achava que não tinham qualidade. Pronto, imagina que ele tinha morrido antes de ele fazer esse trabalho. Elas continuavam nos museus, continuavam e o próprio artista acha que elas não têm grande qualidade. Na verdade, grande parte, como eu disse, não tem qualidade e portanto não vejo mal nenhum. Aliás, basta pensar na quantidade de recursos que são gastos para preservar a gigantesca quantidade de obras de arte que são produzidas todos os dias. Eu vou pensar só nas obras de arte, na pintura, na escultura, etc. Isto leva-me a uma questão curiosa que é da ontologia da arte, que tipo de coisa é certa obra de arte. Nas obras de arte performativas, por exemplo, uma pintura é um objeto particular, concreto, Está num lugar, num espaço, está numa parede, mas uma sinfonia não é. Onde é que está uma sinfonia? Também não está na partitura, porque partitura é papel e tinta. Nem no CD, porque há milhares de CDs iguais e está num ou no outro. Isso é outra questão. Mas o dinheiro, a quantidade de recursos que se gastam, os museus, para além daquilo que mostram, eu não sei se, por exemplo, o museu do Louvre mostra apenas, acho que nem 10% dos pontos de vento.
José Maria Pimentel
Sim, é uma fração ínfima, sim. E todos
Aires Almeida
os museus mostram. E depois, para preservarem as obras de arte, muitas delas que nunca chegam a ser expostas, nunca, talvez sejam impostas, mas algumas que não. Tem que ter armazéns com condições de climatização bastante rigorosas, bastante exigentes, pessoas lá a ter, é um rios de dinheiro que se gastam a preservar obras de arte que ninguém vê, e que estão lá a ocupar espaço e eu não vejo porque é que muitas obras de arte não podem ser destruídas. É claro que agora coloca-se quem é que decide quais são as que vão ser destruídas e as que não são. Eu acho que isso é um problema, mas não é um problema tão grande quanto isso. Mas, estávamos a falar do valor, portanto, há muitas obras de arte particulares que não têm valor nenhum. Algumas até estariam quase desvaloradas.
José Maria Pimentel
O problema aí, digo eu, tem a ver com o facto de... Bom, se for um determinado artista que seja considerado genial e que possa ter obras menos boas, essas obras não deixam de ser interessantes do ponto de vista informativo até para uma eventual biografia. Por outro lado, um dos problemas, um dos problemas, não, dos desafios que rodeia a arte e que tem que ver com, precisamente, com tudo isto de ser, com o valor da arte ser pouco palpável e, portanto, sujeito a enganos. Um dos desafios é que, muitas vezes, a nossa percepção do valor da arte muda, a nossa percepção da humanidade, da sociedade,
Aires Almeida
se nós quisermos, muda ao longo do tempo. Desculpa lá interromper-te, mas a questão é que há e há outro tipo de valor misturado. Quando tu falas de um artista que é um gênio, um artista consagrado, e que tem obras que fez, que são menores, e que ele próprio estaria até disposto a deitar fora, a questão é que isso passa a ter valor de mercado, valor comercial. Ah, claro, claro, claro. E destruí-las é destruir um valor que é um valor de mercado. Sim, sim, sim, pois já nem vou... Mas eu não estou a falar de valor da arte enquanto mercadoria, nem enquanto valor efetivo. Tu repara, tu diz assim, quanto é que me dá por aquele quadro? Eu gosto muito desse quadro que tens aí na parede. Epá, queria comprá-lo. Quanto é que me dás? E eu disse, epá, não vendo. Eu gosto dele. E ele faz-me uma oferta muito grande. Epá, 10 mil euros. E eu digo assim, olha lá, 10 mil euros? E ele diz assim, não. Este quadro foi-me oferecido pelo meu avô no dia antes de ele morrer e disse, olha, tens aqui este quadro que eu gosto muito, quero que fiques com ele, não sei o quê. Esse quadro para mim tem valor afetivo, não é valor artístico, é valor afetivo. Outra pessoa pode ter valor comercial e, portanto, nesse caso pode estar a cometer, de certa maneira, um crime ao destruir valor que há de pertencer a alguém, a não ser que seja a própria pessoa que o esteja. Ok, eu quero queimar aqui umas notas, as notas são minhas. Tem esse direito. Mas eu
José Maria Pimentel
falava de valor informativo, ou seja,
Aires Almeida
o valor... Documental.
José Maria Pimentel
A obra documental, exatamente, a obra de um artista consagrado, como dizias, pode ter esse valor documental. E depois há a questão da nossa apreciação da arte variar com o tempo e, portanto, há artistas que foram consagrados num determinado tempo e que hoje em dia...
Aires Almeida
Exato, esse é outro argumento para... Que
José Maria Pimentel
se considera que valem bastante pouco ou caíram na obscuridade e outros artistas não foram reconhecidos, muitos, e que hoje em dia são considerados de referência. Mas isto leva-nos, que é daí que eu queria ir, à questão que nós temos andado a circundar e ainda não pegámos como deve ser, do valor da arte, ou dos valores da arte. Nesta perspectiva que eu partilho contigo, da arte enquanto meio, e portanto meio para conceder, contribuir, transmitir determinado valor, que eu acho que podem ser vários, quais é que eles são, ou quais é que eles podem ser, e que desafios é que surgem aqui ao tentar, no fundo, escavar para tentar perceber o que é que a arte contribui, porque é que nós a valorizamos, enquanto, tanto a humanidade no geral, como cada sociedade no seu contexto cultural particular.
Aires Almeida
Olha, quanto ao valor, podemos ver aqui vários candidatos a justificar o valor da arte enquanto arte. Por exemplo, um dos candidatos é o Prazer. Proporciona prazer a quem aprecia a arte. Acho que é um fraco candidato. Achas? Acho. Porquê? Porque o tipo de prazer que, mesmo que a própria arte pode causar... Atenção, isto não quer dizer que a arte não proporciona prazer também. A arte proporciona prazer e o prazer que a arte proporciona contribui para aumentar o valor que uma dada obra de arte tem para nós. Portanto, pode contribuir para uma dada obra de arte, mas não justifica o valor da arte enquanto a arte com a arte em geral. Porquê? Porque, repara, se o valor da arte fosse o prazer, proporciona... Havia coisas muito mal explicadas. Porque o prazer é uma coisa muito importante para nós. Que tipo de prazer? Começamos logo por ter prazer. Pois, justamente. Então, se o sexo proporciona prazer, então os Estados deviam promover as trocas sexuais e as experiências sexuais das pessoas, isso tudo não faz muito sentido. As drogas proporcionam prazer.
José Maria Pimentel
Mas aí tem outras vantagens.
Aires Almeida
Não, inegavelmente. Mas
José Maria Pimentel
eu entendo o que tu queres dizer.
Aires Almeida
As drogas proporcionam inegavelmente prazer, é por isso que
José Maria Pimentel
as pessoas tomam drogas.
Aires Almeida
E no entanto não se promove o uso de drogas pelo Estado, nem isso é uma coisa que seja avaliada. É claro que tu podes dizer, ok, proporcionam prazer, mas à custa de um o sofrimento é dobrar, ou triplicar, etc. Podes dizer isso? Ok. Não sei se conheces uma experiência mental inventada por um filósofo, Robert Nozick, que é a chamada máquina de experiências. Conheço, mas não sei se conheces esse exemplo. Como é que é? O exemplo é, vamos imaginar que tem aqui uma máquina, e esta máquina é uma máquina, quando ligas a ela, ela proporciona todo o tipo de experiências que queres. Queres ter a experiência de estar em cima de um palco e ser aplaudido por um público. A máquina causa-te essa experiência, portanto, controla o teu cérebro, o teu sistema nervoso, tudo, e tu tens exatamente essa experiência como se estivesse a ser aplaudido. Queres ter a experiência da felicidade de escrever um romance? A máquina proporciona-te esse prazer. Enfim, proporciona-te os prazeres que queres. E se te perguntarem agora, queres te ligar à máquina? Atenção, tens a garantia que a tua vida toda vai ser uma vida recheada dos prazeres que queres, os que tu próprio queres. Só há uma condição, uma vez que te ligas à máquina não te podes desligar. Será que as pessoas, a pessoa média, digamos assim, se ligaria à máquina? Isso seria uma espécie de, entendido como uma espécie de suicídio. Ou seja, seria uma vida toda recheada de prazeres, de todos os tipos de prazeres que nós queremos. Nós daríamos valor a uma vida recheada de prazeres e só de prazeres? Não, há outras coisas importantes e talvez mais importantes do que o prazer.
José Maria Pimentel
Ah, mas ou seja, tu só terias acesso àquele tipo de experiência, ou seja, perdias o acesso à tua
Aires Almeida
experiência normal de vida, é isso? Porque a máquina te dava as experiências que tu quisesses. Não queres ter uma experiência dolorosa, não a tens. A experiência de ver um familiar
José Maria Pimentel
morrer, não a tens. Mas podias não agir, não é? Podias não...
Aires Almeida
Não, não a tens. Só tens experiências de prazer. Só experiências
José Maria Pimentel
de prazer. Ah, ok. Estou a entender. Quer
Aires Almeida
dizer, nós quereríamos uma vida assim? Não, não quereríamos. Mas, além disso, nós sabemos que, por exemplo, repara, há pessoas que fazem a diferença entre arte e entretenimento. Era
José Maria Pimentel
aí que eu ia chegar justamente por causa dessa questão do prazer. Se para ti o entretenimento é arte, ou por outra, se as duas coisas são compatíveis, claro que há entretenimento que não é arte, não é? Mas se o entretenimento pode ser arte ou se de alguma forma, e eu acho que no meio artístico muitas vezes há esse preconceito, filmes são talvez o exemplo mais óbvio, também na música, algo que entretém, algo que dá esse prazer mais imediato, falo às custas do valor artístico, se quisermos.
Aires Almeida
Não tem de ser, porquê?
José Maria Pimentel
Existe muito essa lógica no sentido em que para se dar esse prazer imediato, para ser um filme que entretém, será um filme menos profundo, por exemplo.
Aires Almeida
E o que é que é isso de um filme ser profundo?
José Maria Pimentel
Um filme cuja mensagem seja mais filosófica, se quiser. Um filme que toque emoções menos superficiais, que toque, que tenha a ver com a dor de perder um filho, ou que tenha a ver com... Então, no fundo, o que tu estás a dizer é que... Eu não estou a comprar esse argumento, estou a expor...
Aires Almeida
Se é mais profundo, quer dizer que nos dá mais conhecimento, que nos permite compreender melhor certas coisas e tu já estás a deixar o prazer. Não, não, só que
José Maria Pimentel
tudo isto é muito fugidio porque nós podemos considerar que há outras formas de prazer, ou seja, alguém que, uma apreciadora de Dostoiévski dirá que sente que o livro lhe dá várias coisas, mas também prazer. Só que não é esse tipo de prazer, é um prazer mais, diria-se, elevado, não é quanto... Sim, superior, como
Aires Almeida
diz Stuart Mill. Sim, é claro que podemos falar em diferentes tipos de prazer, mas mesmo fazendo essa distinção de diferentes tipos de prazer, eu acho que o prazer não explica tudo, não explica o valor
José Maria Pimentel
da arte.
Aires Almeida
Nós não damos o valor que damos à arte, quer dizer, a arte não tem, em geral, o valor que tem. Sim,
José Maria Pimentel
não tem o valor social que tem apenas pelo... Pelo prazer.
Aires Almeida
Agora falaste em valor social, que é curioso, que eu não introduzi a palavra social. Se fores dizer às pessoas, bom, isto é uma coisa muito importante porque dá prazer. Quer dizer, isso mesmo em termos sociais não é muito convencente.
José Maria Pimentel
Que é individual, é de outras
Aires Almeida
coisas. Exato. Aliás, porque mesmo que tu digas que a arte dá outro tipo de bens, de coisas boas, que te proporciona, sei lá, o conhecimento, etc. Mesmo aí nós podemos dizer que umas pessoas não retiram conhecimento nenhuma dela e outras retiam. O facto de dar a toda a gente, é o facto de ter capacidade de dar e conhecimento é importante. Há um texto conhecido sobre a trivialidade cognitiva da arte, que é do Stolznitz, que ele diz que a arte proporciona-nos conhecimento sobre várias coisas, mas esse conhecimento é conhecimento de trivialidades, de coisas banais, de coisas que nós já sabemos. Aquelas pessoas que dizem que vão buscar a literatura e tudo, de grandes coisas que conheceram, aos clássicos, etc. Não, vais buscar banalidades que tu já sabes, só que apresentadas de uma forma interessante. Esta é a tese dele. O que
José Maria Pimentel
não é despiciando a forma como é apresentado. Exatamente.
Aires Almeida
Portanto, diria, os candidatos para o valor da arte, um é o prazer, uma perspectiva hedonista, outro é o conhecimento, uma perspectiva cognitivista. A ideia é a seguinte, a arte é importante porque nos permite descobrir certas coisas que de outro modo não descobriríamos. Só a arte nos proporciona. E temos que pôr esta cláusula aqui porque senão isso não...
José Maria Pimentel
Claro, claro, claro. Como por exemplo?
Aires Almeida
Olha, por exemplo, há arte que testa a tua capacidade perceptiva. A discriminação perceptual, por exemplo, de sons, de detalhe naquilo que ouves. A arte, por exemplo, na música, obriga-te a prestar atenção a muitas coisas que estão a acontecer ao mesmo tempo e conseguir discriminá-las. Padrões sonoros que o ouvido normalmente não ouve, mas que por serem apresentados de uma forma cativante, leva o ouvido a descobrir, ou o olho a descobrir padrões, a descobrir efeitos visuais, que de outra maneira tu não descobririas. Mas estão... Há quem diga que, por exemplo, um quadro ou até uma fotografia nos faz ver aquilo que nós tínhamos sempre à nossa frente e não conseguíamos ver.
José Maria Pimentel
Ok, era aí que eu ia chegar, sim. Há
Aires Almeida
uma, acho que era um livro de Susan Sontag sobre a fotografia, que tem lá umas citações no fim, Alguém, agora já não sei quem é que disse, um fotógrafo importante, porquê que fotografa? Para ver como é que as coisas ficam depois de fotografadas, é a resposta dele. Porque é diferente.
José Maria Pimentel
Sim, sim, completamente. E
Aires Almeida
eu, por acaso, acho que essa frase tem um erro categorial por trás. As coisas ficam exatamente como estavam depois de fotografadas.
José Maria Pimentel
Não, mas a questão, o que eu acho que a fotografia faz é que cristaliza aquele momento e permite nos observá-lo durante muito mais
Aires Almeida
tempo do que... A ver como é que tu olhas para as coisas, passas a olhar de maneira diferente. Se tu fotografas este copo de água aqui à frente, depois de fotografado o copo fica exatamente igual. A fotografia não interfere nas moléculas. É
José Maria Pimentel
verdade, mas olha que eu acho que há outro lado, e essa é uma das minhas prototeorias a pensar neste tema, uma das coisas que eu acho que a arte faz desde sempre, e por exemplo a fotografia passou a fazer isso também de maneira diferente, é que é
Aires Almeida
uma espécie de super estímulo aos nossos sentidos. Exato. Faz os nossos sentidos discriminarem coisas, detectarem coisas, é como se fosse um teste à nossa perceção e, portanto, torna-nos perceptualmente mais atentos, perceptualmente mais ativos e, portanto, enriquece a nossa perceção. E vamos, a perceção faz parte, é um elemento fundamental do conhecimento, porque nós quando pensamos em conhecimento, nós estamos normalmente a pensar, muitas vezes, no conhecimento que os filósofos chamam proposicional. Eu sei que isto é assim, que aquilo é assado, mas há conhecimento que não é conhecimento proposicional, não é conhecimento de verdades ou conhecimento de factos. Quando tu consegues discriminar melhor com o ouvido certos sons, encontrar na paisagem que fez coisas que antes não tinhas conseguido ver, tu estás a enriquecer-te em termos cognitivos.
José Maria Pimentel
Eu acho é que isso está misturado, isto conceptualmente, como tu dizias há pouco, são questões diferentes, mas na prática estão misturadas. Eu acho que isto está muito misturado com a questão do prazer. O argumento que eu te estava a dar é um argumento, de certa forma, de prazer. De prazer isto é. Pensa, por exemplo, nos retratos do Velázquez, por exemplo, para dar o exemplo. Que eram e são amplamente elogiados por... A narrativa varia, mas é... Expressões, a capacidade de captar naquele momento as micro-expressões e a alma daquela pessoa, por exemplo. O que aquilo está a fazer, podes considerar que está a dar informação, mas também me parece que está de certa forma a sobre-estimular a nossa capacidade de ler caras. Nós temos uma capacidade grande de ler caras, de ler expressões. Se rependo a um artista muito dotado de conseguir pôr num quadro alguém... Se aquilo fosse uma fotografia, eu até diria que não seria em nenhum momento. Aquilo é a conjugação de várias fotografias tiradas pela mente dele, mais uma dose de imaginação que produz, pelo menos do ponto de vista de muitas pessoas, algo que é melhor do que a realidade, se quiseres. Da mesma forma que um bolo tem muito mais açúcar do que qualquer fruta que encontras na natureza.
Aires Almeida
Mas estás a focar em um aspecto muito importante, que é, eu disse há um bocado que o hedonismo não é o principal candidato a explicar o valor da arte, mas tem de estar lá. Porquê? Lá está. Mesmo para tu descobrires, para tu descobrires essas coisas na arte, o prazer é que te leva lá. Bom ponto, sim, sim. Ou seja, o prazer é como o engodo para o peixe. Para o peixe morder, Para ir lá, neste caso, a analogia não é muito boa porque o peixe sai-se mal.
José Maria Pimentel
Mas é uma espécie de... O peixe somos nós, não é? Nesta analogia.
Aires Almeida
Para tu aprenderes isso, o prazer é que te leva lá. O
José Maria Pimentel
exemplo do açúcar não é mau nesse sentido, não é? O exemplo do açúcar
Aires Almeida
é excelente. Portanto, o prazer é um ingrediente, mas esse ingrediente não explica... O valor que nós lhe damos. O prazer é quase instrumental aí também, para chegar àquilo que é realmente importante. Tu repara uma coisa, há uma grande discussão na arte sobre, por exemplo, as pessoas gostam de ouvir música triste. Aquilo que chamam música triste porque a música, em bom rigor, não é triste nem alegre. A música são sons. A música é física e matemática e a tristeza é um sentimento, é um estado mental e, portanto, a música não tem estados mentais. Logo, a música não é triste nem é alegre. Depois há muitos tiros. Desperta a tristeza, evoca a
José Maria Pimentel
tristeza, transmite. Mas nós sabemos intuitivamente que há música que desperta a tristeza.
Aires Almeida
Mas nós chamamos música triste e música alegre.
José Maria Pimentel
É um paradoxo, de facto.
Aires Almeida
E nós evitamos estar tristes. É um estado de espírito que nós, um sentimento que nós evitamos, a tristeza. Não queremos estar tristes, como as pessoas que estão saudáveis, não é? Normalmente. No entanto, nós procuramos ouvir música que transmite ou invoca ou que nos deixa tristes. Isto é estranho, é aqui um problema. Porquê? Repare, há um bocado estavas a me dizer, e eu estava a falar no conhecimento, é outro dos candidatos, já agora há um terceiro que é experiência estética. Eu ia-te perguntar, ah, então mas agora explica esse antes de voltarmos
José Maria Pimentel
para terminarmos de elencar os três primeiros e já voltas onde estávamos, o que é que são experiências estéticas?
Aires Almeida
A ideia é de que a arte tem valor, portanto, uma delas é porque proporciona prazer, um certo tipo de prazer. Ok, a arte é verdade, proporciona prazer, mas o prazer não explica o valor que a arte tem, enquanto arte. Outros dizem que é uma forma de obter conhecimento de um certo tipo, que não pode ser obtido de outra maneira. E era aí que estávamos. Exatamente. E uma terceira é que a arte tem valor porque nos proporciona certo tipo de experiências únicas, sui generis. Imagina, já tiveste a experiência de estar a lavar a louça, ainda há um bocado estive, antes de
José Maria Pimentel
chegares.
Aires Almeida
Enfim, várias experiências. E como é que tu designas A experiência que tu tens quando estás a ouvir música. É uma experiência
José Maria Pimentel
singular diferente das outras todas. É uma experiência que
Aires Almeida
tens quando estás a observar um quadro, uma pintura, mas a observar no sentido contemplativo. Estás a observá-la, a ver como é que as pessoas estão vestidas no quadro, etc. Mas alguns filósofos chamam isso de uma experiência estética. É um tipo de experiência diferente de todas as outras. Uma experiência sui generis. Uma experiência estética. E então, esse é o terceiro candidato. É importante porque causa em nós um certo tipo de experiências que são em si mesmas compensadoras. Em minha opinião, também não é uma boa explicação. Sim, eu tenho... Começa logo o problema de explicar o que é isso, uma experiência estética. O que é que faz uma experiência ser estética e o que é que permite-se ter uma experiência que é estética de uma experiência não estética? Há uma grande discussão sobre isso.
José Maria Pimentel
Parece demasiado metafórico, não é? Sim. Portanto,
Aires Almeida
eu diria que estamos aqui perante três dos principais candidatos.
José Maria Pimentel
E tu estavas a falar agora da questão da música triste, não é?
Aires Almeida
Sim, e até ainda um pouco mais atrás quando tu me perguntaste, mas o que é que tu aprendes com a arte? E eu dei-te o exemplo da percepção, mas há outras coisas que poderia ir por outro jeito. Por exemplo, com música. Tu repara, o que é que tu aprendes com um quarteto de cordas de Haydn? É música, aquilo que se chama música pura, instrumental. Não tem palavras, ninguém canta, nem nada, nem há um poema sinfónico como alguns compositores pegam numa obra, assim falava Zaratustra. Ok, põem aquilo em música, mas o título sugere-nos logo o que é que nós devemos ver naquela música, neste caso do Richard Strauss. Pensa em música pura, puramente instrumental, quarteto de cordas, ou outro, enfim, não é preciso ir para a música clássica, mesmo na música ligeira há muita coisa assim. O que é que tu aprendes realmente com aquilo? O que é que aprendes com música? Ouvir música assim? Aprendes alguma coisa realmente? A música não tem recursos. O aprender, o proporcionar conhecimento em sentido proposicional, saber que, a música não tem recursos para isso. As pessoas muitas vezes dizem que a música é uma linguagem universal, por exemplo. E dizem que a música é uma linguagem. Dificilmente isso será plausível. A música não é linguagem.
José Maria Pimentel
Acho que essa metáfora pretende dizer que a música transmite emoções de uma maneira mais ou menos uniforme, independentemente da língua que as pessoas falam e da cultura que
Aires Almeida
têm. Essa é uma questão curiosa, de mais ou menos uniforme. Há experiências empíricas, portanto, de psicólogos e de antropólogos e de musicólogos, que fazem em diferentes culturas, que não têm contato com a música de outras culturas, e perguntam, por exemplo, uma música em dó menor, com muito arrastado, etc., que todos nós aqui, por exemplo, na Europa, consideramos uma música triste. E depois vais aos aborígenes que nunca tiveram contato com esta música e perguntas-lhes tens aqui uma lista de palavras que tu associas a esta música. E para eles verem se entendem a música da mesma maneira, se a música a eles, se não é uma questão cultural daquilo que a música transmite às pessoas e há experiências nesse sentido que mostram que de facto tu vais para sitos em que têm tradições musicais muito diferentes com pessoas que não têm grande contato com a música ocidental e encaram aquilo que nós aqui encaramos como música triste, também como triste.
José Maria Pimentel
Curioso isso. Faz todo sentido o resto, mas é.
Aires Almeida
Mas essa mostra que parece tal ideia de uma linguagem universal, não é? Mas essas experiências ainda estão a ser realizadas, várias experiências, e tem-se publicado sobre isso. E é uma área bastante interessante.
José Maria Pimentel
Mas a música pode-se argumentar que a música, isto é menos mesurável, mas a música, não só obviamente ouvir música e ganhar entendimento sobre a música nos permite produzir esse tipo de música melhor, como é lógico, as complexidades que isso tem, mas também porventura é um meio para desenvolver determinadas capacidades cognitivas que depois são úteis em outro tipo de tarefas. Claro que tudo isto é muito fugidio, mas é um argumento que se pode fazer.
Aires Almeida
Portanto, a ideia de desenvolver capacidades cognitivas. E estás fora daquela ideia de aprender coisas. É uma aprendizagem também. Não, mas aprender factos. Ah, factos não. Saber que é assim, que é assim, que é assado,
José Maria Pimentel
etc. Eu diria que, pois, eu concordo contigo, acho que os factos é provavelmente o menos interessante da... Pois, a música não é. Parece meio menos eficiente do mundo para
Aires Almeida
transmitir factos. Não, mas, por exemplo, eu refiro a um dos livros que é, por exemplo, o Anton Schindler, que é amigo do Beethoven, dizia que as quatro primeiras notas da 5 Sinfonia do Beethoven eram a morte a bater à porta. Toda uma carga trágica, não sei o quê. Mas não está a transmitir uma emoção. Ok, mas está a dizer, isto diz-me que está aqui a morte a chegar. Isto é forçado, não é? Até podia ter tido essa intenção, etc, mas pronto, e ele se calhar transmite essa ideia porque conversou com o Beethoven, não sei se conversou... Este tipo de coisas a música não consegue mostrar que Deus existe ou que Deus não existe. Há quem diga que a música de Bach prova que Deus existe.
José Maria Pimentel
Nada disso. Não tem nenhum discurso.
Aires Almeida
A música às vezes tem é, sei lá, na abertura de 1812 de Tchaikovsky, tem os tiros dos canhões. Claro que aquilo representa, são feitos nos tímbalos, aquilo representa tiros dos canhões, mas poucas coisas assim são as buzinas dos carros no Americano em Paris, do Gershwin. Claro, tens lá mesmo buzinas e tudo, representa o movimento das ruas, dos carros em Paris. Mas pouco mais, são recursos muito limitados. Pouco mais para além disso vai, não podemos dizer que a música proporciona esse tipo de conhecimento. Isso é para excluir.
José Maria Pimentel
Há um lado da arte, por exemplo no caso da literatura, a arte cruza-se com a narração, com o contar de histórias e aí o contar de histórias de facto está provado que é uma maneira de transmitir informação muito mais eficaz do que o mero elencar de informação, porque nós estamos feitos para aprender. Mas não é isso que justifica o valor. Não, não é isso que justifica o valor, justamente.
Aires Almeida
Há obras literárias altamente informativas e como artisticamente não são grande coisa.
José Maria Pimentel
Claro, claro. E se formos por aí, muitas das que artisticamente são grande coisa estão cheias de informação, mesmo aquelas que transmitem diretamente informação, de informação que não faz sentido, quer dizer, que factualmente não é organizada assim.
Aires Almeida
Mas, por exemplo, tu vês no caso da música. Eu já descobri coisas acerca de mim que não sabia. Por exemplo, como ver ou ouvir uma determinada peça musical. Bom, eu não sabia que eu reagia assim. Eu estou a descobrir coisas acerca de mim quando estou em contato com um certo tipo de experiências musicais.
José Maria Pimentel
Era justamente aí que eu ia. A minha intuição é que o principal valor da arte, e eu acho que isto cruza a questão do prazer com a questão da informação, mas se calhar está mais neste segundo elemento, de um ponto de vista mais abrangente, é que te dá, que é como quem diz, pode dar acesso, ou permite-te ter experiências que ainda não tiveste, de certa forma. Ou seja, e a questão da música triste, eu acho que tem alguma coisa a ver com isso, que é, permite-te... O nosso leque de emoções é uma espécie de instrumento, não é? Precisa ser oleado, não é? E há, pelas nossas experiências de vida, há uma série de emoções, de matizes das várias emoções, porque ainda não passavam. Precisamente é que nós temos filhos, é nos dado, para dar um exemplo corriqueiro, é nos dado acesso a um leque de emoções que nós não tínhamos daquela forma, que nos sabe diferente. E as várias artes, eu acho que uma das principais valências, pelo menos potencial, é justamente essa. O exemplo mais óbvio e se calhar mais familiar para quem nos está a ouvir é só os filmes, não é? Porquê que as pessoas veem filmes tristes, por exemplo? Porquê que as pessoas veem filmes de terror, por exemplo? Exatamente. Eu acho engraçado porque a minha mulher gosta imenso de filmes de terror, eu não acho grande graça. Mas ela explica-me, e tem toda a razão, que aquilo, de certa forma, é uma... Se o filme for bom, sobretudo, há uns que são demasiado absurdos, mas não é bem desse estilo que ela gosta, aquilo é uma maneira de passar por uma experiência sem ter que a ter, não é? Ela está a olear a capacidade
Aires Almeida
de reação. Exatamente.
José Maria Pimentel
E provavelmente é muito melhor do que eu nesse aspecto, que não gosto muito desses filmes.
Aires Almeida
Era precisamente aí, para aí que eu me estava a conduzir e tu antecipaste-me muito bem. Estás a ver o filme todo, digamos assim. A ideia é esta, a experiência da tristeza ou a experiência da angústia são experiências dolorosas. Porque a fenomenologia da tristeza, a fenomenologia quer dizer o ter a experiência. Por exemplo, tu vês a fenomenologia do medo. Uma pessoa quando está com medo encolhe-se, fica talvez com os pelos irriçados ou da vergonha, quando estás envergonhado coras, não é? Quando estás com medo ficas com o ativamento cardíaco mais acelerado. Isso são aquelas reações que fazem parte daquilo que é a fenomenologia do que é sentir medo. Mas tu para sentir medo tens de acreditar que algo te está a ameaçar. Portanto, isto é uma concepção das emoções, há diferentes concepções das emoções, mas esta, digamos assim, é mais a concepção cognitiva. As emoções, como o medo, a vergonha, etc. E outras por aí, têm duas componentes essenciais. Uma é aquilo que nós assim chamamos de afenomologia, que é um sentimento, e outra é uma, lá incorporada, lá enfiada, algum tipo de crença, algum conteúdo cognitivo. Claro, claro. Tu tens vergonha porque acreditas que foste apanhado a fazer uma coisa que é mal vista pelos outros.
José Maria Pimentel
Daí no cinema usa-se a expressão suspensão da descrença, que é que tu acreditares no que se está a passar no filme, quando no fundo sabes perfeitamente que suspendeste a tua descrença. Isto
Aires Almeida
acontece também na música, portanto, o que acontece é que tu, nas emoções, e é por isso que eu acho que a arte, esta é a minha perspectiva e que eu defendo, que a arte proporciona conhecimento acerca do teu funcionamento emocional. Quando estás em contato com ela, tu reagens à música. E proporciona-te
José Maria Pimentel
experiências, eu acrescentaria esse aspecto. Quer dizer, as duas coisas estão interligadas, não é? Ou seja, tu
Aires Almeida
experimentas a fenomenologia da tristeza sem ter razões para estar
José Maria Pimentel
triste. Ou seja, sem pagares o custo de estar realmente triste. E o que te prepara para quando estiveres realmente triste, eu acrescentaria. De certa maneira também. Sem esse
Aires Almeida
potencial. Exatamente, pelo menos tem esse. Ou seja, é uma forma de tu experimentar certas coisas sem teres o custo à angústia, sem teres o custo de estar numa situação angustiante. E, por exemplo, no caso da música instrumental, há um musicólogo que mostra bem, porque, por exemplo, o compositor, quando compõe, o que é que ele faz? Joga com antecipação, com... Tens uma frase musical, tens uma progressão musical. Tu segues de uma nota para outra, ou de um ritmo para outro, e faz-te acreditar o ouvinte que a seguir, a seguir se resolve, chegando àquela nota, ou acelerando, e o que é que faz o compositor? Joga um pouco com as tuas expectativas, cria-te expectativas e depois retardas, aceleras, cancelas, etc. E isso cria nas tuas reações, cria reações semelhantes às reações que tu tens quando estás a ter determinadas emoções. Mas não tens as emoções completas, tens só a fenomenologia da emoção, ou seja, aquela parte do sentimento e não a parte cognitiva.
José Maria Pimentel
Sim, isso é muito interessante. O
Aires Almeida
medo nos filmes de terror. É claro que a pessoa não acredita que há alguma coisa medonha a acontecer, que quando vem um indivíduo, sei lá, no shining, com a faca, a pessoa não acredita que aquilo é real.
José Maria Pimentel
E no entanto temos a capacidade de reagir como se fosse. Exatamente. E do ponto de vista, nós estamos a falar aqui da arte enquanto utilidade para o indivíduo, mas do ponto de vista do grupo, também existe uma utilidade de tu conseguires, no fundo, a arte e outras manifestações, contar-te histórias também permite fazê-lo, ou grande parte da arte permite, pelo menos potencialmente, que tu dês a várias pessoas uma experiência que dificilmente elas teriam todas na vida dela. Algumas teriam, mas outras não teriam, E esse é um lado interessante
Aires Almeida
também. Há quem defenda que, por exemplo, na ficção o que tu tens são mundos possíveis, no fundo são experiências mentais que antecipam cenários que podem vir a ser reais ou não, e portanto de certa maneira te dão um determinado tipo de familiaridade, pelo menos com situações que apesar de não serem reais, são possíveis. Exato, exato. Sim, sim. Ou que têm partes delas que podem ser aplicadas à realidade. Claro que não podes transpor isso, ok, aprendi isto num livro. Claro. Há pessoas que às vezes fazem isso. E é por isso que eu digo que a música não é uma linguagem, embora se entenda porquê que as pessoas dizem isso, porque para haver uma linguagem, pelo menos em sentido mais rigoroso, tem que haver duas coisas. Tem que haver uma semântica e uma sintaxe. A música tem uma sintaxe. E bem rigorosa, não é? Mas
José Maria Pimentel
não tem necessariamente significado, não é? Não tem significado,
Aires Almeida
não tem semântica e, portanto, não reúne as condições para ser uma verdadeira linguagem.
José Maria Pimentel
O significado provavelmente varia e é isso que torna também tão difícil de analisar a arte, é que há uma componente que é transversal mas há outra componente que varia de pessoa para pessoa precisamente porque nós somos indivíduos diferentes e, portanto, com emoções diferentes, com cognições diferentes e em etapas da vida diferentes.
Aires Almeida
Sim, e quando reagimos, por exemplo, à música ou à arte, reagimos com a nossa bagagem
José Maria Pimentel
toda. Com a nossa bagagem, justamente. É isso aí. Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no site 45graus.parafuso.net barra apoiar. Veja os benefícios associados a cada modalidade e como pode contribuir diretamente ou através do Patreon. Obrigado. Mas olha, pegando no... Isto é muito interessante, os três pilares que tu deste, sobretudo os dois primeiros, lá está o terceiro, um bocadinho mais fugidio, eu estava a pensar no que é que poderia estar fora desses três. Há um aspecto que eu tinha pensado e que não me parece...
Aires Almeida
Há mistura dos três. Diz?
José Maria Pimentel
Não, há mistura dos três, mas há um aspecto que eu acho que está presente na arte, sobretudo na arte enquanto fenómeno social, quer dizer, eu ia dizer enquanto fenómeno social, sim está presente na arte de massas, mas também na arte mais elitista, que é a questão da admiração por aquele indivíduo. Ou seja, não é apenas aquilo que eu dizia há bocadinho de nós concedermos todos os favores aos artistas. Falta-me um exemplo mais óbvio, que é dos... Das bandas, dos grupos de música, ou dos artistas individuais. Esse talvez seja o exemplo mais evidente de todos. A admiração que é concedida aos Beatles ou aos Rolling Stones, por exemplo, depende do prazer que eles concedem, mas também depende de uma admiração por eles, não é? Ou seja, há aqui um lado muito humano, muito animal social de se admirar. Daí que muitas vezes falo de Bach ou Beethoven como se tivesse uma ligação a Deus, não é? Daquilo que tu aludias há bocadinho, porque é uma pessoa que no fundo se leva acima dos seres humanos normais, não é? E esse elemento da admiração, eu não sei se está presente nestes três, nos três pilares a que tu aludiste, e parece uma coisa que eu diria essencial na... Não tenho a certeza disto, quer dizer, tenho algum receitar ou usar estes
Aires Almeida
adjetivos exageradamente. Sim, compreendo, mas... E esse valor existe, reparem. Os Beatles não são só um fenómeno musical, são um fenómeno sociológico e cultural mais, no sentido mais alargado, não é? Os Beatles representavam também uma certa atitude em relação a um certo tipo de valores próprios de uma geração, que se manifestavam por exemplo nos cortes de cabelo, na maneira como que era uma coisa muito estranha, certas coisas que diziam e portanto grande parte dessa admiração é uma admiração por eles como líderes digamos quase culturais, como pessoas que tiveram sucesso numa área e que podem ser modelos para os jovens noutros aspectos também. E, portanto, nós estamos aí a mostrar, e para além de mais, há o sucesso deles enquanto músicos. Portanto, há aí um valor até de mercadoria. E eu não estou a dizer isto depreciativamente, eu acho que os Beatles foram os maiores compositores do século XX, sem sombra duvida. Eu equiparo a Richard Strauss, a Shostakovich e essa gente assim, claro, em áreas diferentes, mas são muito importantes. Portanto, não estou a desvalorizar a música. Mas, portanto, há aí um pacote, que agora como se diz em inglês, um pack. Há um pack que traz uma série de coisas associadas. E muitas vezes nós temos a dificuldade de estrinçar Porque é que, num casos, algumas pessoas darão valor como modelo social, como modelo de rebeldia, como modelo contracultural em relação a um determinado tipo de valores estabelecidos, etc. E outra coisa
José Maria Pimentel
é como músicos. Mas eu falo, mesmo estritamente, enquanto músicos, tu não achas que esse elemento é muito importante, esse elemento de... É claro que no caso dos Beatles e muitos outros casos travassam, porque nós, aliás, é uma espécie de viagem cognitiva que nós temos de transportar a nossa apreciação de alguém numa determinada área para depois toda a vida dela, não é? Uma pessoa que seja uma excelente cantora de fado será provavelmente uma excelente mãe, não? Se calhar não é, se calhar não é boa mãe, por ser... Quer dizer, as duas coisas completamente independentes, não é? Ou bom pai, por acaso. Mas
Aires Almeida
é, músicos são uns... John Lennon, pelo justo, por segundo dia, era uma pessoa...
José Maria Pimentel
Exato, exato. Portanto, as duas coisas não estão ligadas. Mas eu acho que essa admiração é isolável na questão... Na própria questão artística. Ou seja, nós olhamos para aquela pessoa e é como se ela fosse um super-humano, de certa forma. Eu acho que esse lado, aquilo que o Tolstói dizia, que eu ludia já há bocadinho, porque é que nós investimos tanto nos miúdos desde cedo e aqueles miúdos que se revelam um prodígio, há uma espécie de consenso social. Muitas vezes, a despeito dos efeitos perversos que aquilo tem na vida das pessoas, há um consenso social de que se deve investir e se deve catapultar ao máximo do potencial aquela pessoa.
Aires Almeida
Ninguém acha mal isso. O Tolstói chama isso uma forma de escravatura, escravizar os próprios filhos.
José Maria Pimentel
Sim, sim, enquanto sociedade nós achamos que, enquanto sociedade, voltar ao exemplo dos jogadores de futebol, que eu acho que tem a vantagem de nós contactarmos quer queiramos quer não diariamente, Há um consenso de que ainda bem que aquele tipo só vive para o futebol, ainda bem, é excelente, aquilo é ilugiável. Eu não estou a dizer que não é, atenção, mas aqui eu levanto isto para argumentar que a nossa sensibilidade artística, no sentido lá, também tem essa componente de admirar aquele indevido. E também, outra componente, que é, embora essa possa estar relacionada com a questão da cognitivista, em certo sentido, mas da... No fundo é a mesma coisa, não é? Quando nós, quando se admira um determinado pintor porque os quadros transmitem determinadas emoções, há um lado que tem a ver com as emoções que nós perenciemos, mas há outro lado que tem a ver com a admiração que nós depositamos naquela pessoa. E isto é válido? Mesmo em artistas, eu falava do Velázquez há bocadinho, mas mesmo em artistas contemporâneos, mesmo em artistas abstratos, que há essa admiração pela capacidade dele de... É como se ele tivesse uma sofisticação, naquele caso uma espécie de sofisticação emocional, se quiseres,
Aires Almeida
não é? Sim, quer dizer, não podemos negar, é inegável, que há pessoas que nascem mais talentosas do que outras. Sim. E outras que desenvolvem os seus talentos dedicando-se intensamente àquilo que fazem. Seja de forma voluntária, seja obrigados pelo... Mozart tinha que... Tinha que se dedicar à música e o pai de Mozart o obrigava a fazer uma data de coisas. Mas
José Maria Pimentel
olha, desculpa interromper, Tário, mas só para dizer isto. Esse é um excelente exemplo para este ponto, porque já reparaste no paradoxo de que nós admiramos o menos admirável quando admiramos o talento, nós devíamos admirar o esforço. E no entanto a nossa produção, eu falo por mim, é admirar o talento. O esforço parece-nos algo menor, não é? Nós admiramos é o talento. O Mozart, aqueles mitos, mito não sei se é mito, mas o Mozart tocou uma peça completa aos 4 anos.
Aires Almeida
Exatamente, porque tu diz assim, e ele não fez nada para ter talento. Foi a lutaria.
José Maria Pimentel
Exato, a lutaria genética, absolutamente. É o
Aires Almeida
resultado da lutaria natural, ao passo que o esforço foi o resultado do trabalho dele próprio. Indiretamente
José Maria Pimentel
também é resultado da loteria genética, mas para não nos meter por aí. Sim, sim, porque tu
Aires Almeida
podes passar a vida inteira a tentar fazer certas coisas. E
José Maria Pimentel
a tua capacidade para te esforçar também é, em certo sentido, genética. Claro, exatamente. Mas não achas que é um paradoxo? A nossa pulsão por admirar o talento em vez de admirar o esforço, quer dizer, mostra que aí é algo inato. Sabe porquê? Talvez.
Aires Almeida
De facto, diz assim, ok, o talento é o resultado da loteria natural e o esforço é o resultado do trabalho. E portanto nós devíamos dar mais valor ao trabalho. Mas nós também damos mais valor àquilo que é raro e o talento é mais raro
José Maria Pimentel
do que o esforço. Exato, exato. É isso, é isso. Acho que tem muito que ver com isso, exatamente. Daí serem pessoas privilegiadas se nós quisermos, não é?
Aires Almeida
E A ideia é, felizmente, nós podemos usufruir do talento daquela pessoa. E, portanto, ela não é a única pessoa beneficiada pelo talento que tem. Porque produz obras de arte, das quais nós próprios beneficiamos, mesmo que ela seja, depois, muito compensada por isso. Mas estás a falar, por exemplo, no caso do Cristiano Ronaldo. Cristiano Ronaldo é um exemplo de uma pessoa que talvez não tenha feito grande esforço, porque ele, segundo o que eu ouço dizer, e o que ele próprio diz, é que aquilo foi... E ele era a sua natureza que o empurrava para aquilo, para jogar à bola, com prazer constantemente, o prazer de jogar à bola em vez de ir às aulas. E sei que para ele era um esforço. Sim,
José Maria Pimentel
mas a narrativa em torno dele é de alguém que, claro, tudo isto tem uma motivação por trás, e portanto nesse sentido não é esforço puro, mas é de alguém que trabalhou, que ficava nos treinos depois dos outros, e o mesmo é dito em relação aos músicos, é uma coisa que entrou mais ou menos na cultura popular, daquela experiência das 10 mil horas que já deves ter apanhado, que entretanto está um bocadinho deturpado, mas uma experiência feita com violinistas em que o principal fator preditivo dos melhores violinistas era o número de horas que eles passavam a praticar. Ou seja, era o esforço que eles empregavam na...
Aires Almeida
Há um livro de um neurocientista muito engraçado, que ele é até filósofo também, e que decidiu testar uma tese, uma ideia muito conhecida, de que a proficiência, por exemplo, a tocar um determinado instrumento musical e a capacidade para aprender um determinado instrumento musical como para aprender línguas é muito maior quando somos pequenos, quando somos crianças do que quando somos adultos. E a ideia subjacente a isso, a explicação para isso é que é a tal ideia da plasticidade mental cerebral. Quer dizer que o cérebro das crianças é mais plástico, mais maleável, mais moldável, aliás mais depressa do que o de um adulto. Portanto, a teoria... Ele decidiu testar essa teoria da plasticidade cerebral. E ele pediu uma licença sabática na Universidade de Stamford para testar isso num caso. E o caso era ele próprio. Ou seja, ele tinha vários amigos músicos, muitos deles conhecidos, como David Byrne, o guitarrista dos Rage Against the Machine, esqueci-me do nome dele, um nome meio latino, que eram amigos dele, portanto, são craques da música e da guitarra, sobretudo esse o guitarrista dos Rage Against the Machine, e todos gozavam com ele, que diziam que tu não tens ouvido zero para a música. Tu não percebes nada de música, não consegues nada, e ele gostava, adorava ter sido uma estrela de rock and roll e portanto teve que ser filósofo e neurocientista, Mas queria tocar, aprender a tocar bem a guitarra, a guitarra elétrica. Bem a ponto de poder tocar com esses craques conhecidos, músicos conhecidos. E então ele dedicou-se na sua licença sabática a fazer nada mais, a não ser durante um ano, acho eu, ou dois, do que aprender a tocar guitarra bem. Então, chegou ao fim e provou que a tese da plasticidade mental, ou da plasticidade cerebral, está errada, porque Ele aprendeu a tocar de uma forma muito competente, a ponto de, em certos casos, poder substituir alguns músicos profissionais. Interessante isso. Então, como é que ele explica isso? Explica isso da seguinte maneira. Então, qual é a explicação para que, de facto, estatisticamente, os jovens, as crianças, aprendam muito mais rápido e de uma forma muito é normalmente quando se aprende.
José Maria Pimentel
É que têm menos interesses.
Aires Almeida
Têm uma disponibilidade completa para isso. Ou seja, ele diz, o que é que ele suspendeu durante esse tempo que esteve? Suspendeu idas ao supermercado, atendimentos de telefones, IRS, essas coisas estão sempre na cabeça, aquilo destraem. Enquanto que um adolescente ou pré-adolescente está completamente disponível, se for preciso, 5 ou 6 horas seguidas para o instrumento e ele... E
José Maria Pimentel
sem outras preocupações? Sem
Aires Almeida
preocupações nenhumas. É que não são só as 6 horas. Ou seja, é o treino. A ideia de o Gustavo dizer das 10 mil horas, isto vem a propósito das 10 mil horas, é o treino insistente. O treino cria-te memórias nos dedos, memórias até no ouvido, aperfeiçoa a capacidade auditiva também para discriminar
José Maria Pimentel
se notas estão no G7 ou não. Claro, queria novos sinapes.
Aires Almeida
Ou seja, e esse treino que ele teve completamente exclusivo, ou seja, decidiu dedicar-se só a aprender isso e tornou-se um grande, um bom guitarrista. E ele explica a sua experiência toda nesse livro que se chama Guitar Zero, por referência ao Guitar Hero, que é aquele jogo de Playstation com aquelas guitarras cheias de cores. E portanto lá está, de facto o treino é muito importante. Aliás, os Beatles, o segredo de grande parte, ou parte deles tem ter talento, não é? É de eles estarem em Hamburgo, quando forem a
José Maria Pimentel
Hamburgo, a tocar
Aires Almeida
seis horas por noite, seguidas, todas as noites, aquilo deu-lhes uma destreza tal, que chegou a um ponto em que eles, sem querer, estavam já a experimentar
José Maria Pimentel
outras coisas. Desenvolve o cérebro, justamente, e permite ter uma compreensão muito mais densa, permite antecipar uma série de coisas, ouvir uma nota e perceber logo o cérebro cria padrões e percebe como é que aquela melodia continua, permite dominar a linguagem, mesmo utilizando essa metáfora que
Aires Almeida
tu não gostas. Exato, e dominar essa linguagem mesmo de uma forma intuitiva. Por exemplo, os Beatles não sabiam música, não sabem ler música. E muitas vezes há pessoas que dizem que, bom, os Beatles foram revolucionários porque tentaram ir contra a tradição musical anterior, não é? Não, os Beatles tentaram fazer música dentro da tonalidade, não tentaram fazer música atonal, não tentaram fazer música serialista,
José Maria Pimentel
não tentaram ser...
Aires Almeida
Não, ao contrário, eles queriam fazer aquilo que o Schubert fazia...
José Maria Pimentel
Claro, só que fizeram de uma maneira intuitiva, é como um escritor que não... Olha, aliás, eu falava em off daquele livro do Steven Pinker, acho que que se chama A Sense of Style, se não me engano, ou The Sense of Style, não tenho certeza. E ele come�a justamente por dizer que teve quase de desistir do livro, porque eu perguntava a amigos escritores por dicas, e eles diziam todos, não, não, não, não, é que não sei, isto é uma coisa, no, quer dizer, nunca li nada, escrevo simplesmente aquilo que me ocorre, uma espécie de intuição. Claro que é uma intuição, mas é uma intuição que resulta de uma experiência muito longa de ler muitos livros, de pensar sobre isso, mesmo sem ter noção de que se está a pensar sobre isso. Exato. A ideia
Aires Almeida
da criatividade, que é uma obsessão para muita gente, ser criativo, ser diferente, tudo. A criatividade não é mandar às malvas as regras e não usar regras nem nada. A criatividade é aquilo que se faz quando se dominam bem as regras. Aquilo se faz com elas. E, portanto, só quando se está muito por dentro de uma coisa é que se está em condições, provavelmente, de se julgar com as próprias regras.
José Maria Pimentel
A criatividade é tu dominares o suficiente para ires aos fundamentos das regras e perceber onde é que eles podem ser flexibilizados, não é para criar algo novo, no fundo é isso que acontece. E olha, este aqui eu acho que nos leva a outras das questões que tu aludias há bocadinho, das quatro que tu falavas, a questão da... O que é a arte, o que é que justifica o valor da arte, como é que podemos avaliar a arte e a questão da intenção do artista. Porque há uma componente muito presente na arte que eu acho que está ligada àquela questão da admiração que nós falávamos há bocadinho, mas não só, também está relacionada de certa forma com a questão das emoções, que é a questão da autenticidade e da intencionalidade, que só falavas há bocadinho, do artista. De não estarmos a ler naquela peça, ou seja, naquele artefacto artístico, seja ele qual for, seja ele uma peça musical, um quadro, ou uma peça teatro, ou uma instalação, estarmos a ler a mensagem correta e a intencionalidade correta, seja ela uma mensagem ou a emoção que o artista experienciou, ou não. Se nós não estivermos a ler, isso põe em causa o estatuto de arte? Se
Aires Almeida
não estivéssemos a ler...
José Maria Pimentel
Se não estivéssemos a ler corretamente, ou seja, se a tua interpretação e aquilo que tu sentes diverge da intenção do artista, no caso do Mozart, que falavas há bocadinho, se a intenção dele não fosse de facto que aquelas primeiras quatro notas simbolizassem... Beethoven. Beethoven, perdão. Simbolizassem a chegada da morte, isso significa que nós não podemos acoplar esse valor artístico àquela obra?
Aires Almeida
Eu acho que não, não te impede de usufruir. Há várias interpretações possíveis de uma determinada obra de arte, seja literária, seja musical, seja de uma pintura. Não há uma maneira única de interpretar corretamente uma determinada obra de arte. Assim como, aliás, a questão da interpretação, mesmo da avaliação das obras de arte, Há critérios universais para a avaliação das obras de arte? Eu acho que não há critérios universais. Nuns casos, o que conta numa obra de arte é aquilo, uma determinada característica, que noutra obra de arte seria contra, e não a favor. Ou seja, a mesma característica, nuns casos, pode ser uma coisa positiva, e noutros casos negativa. Depende da maneira como essa característica está combinada com outras características.
José Maria Pimentel
A música atonal de que falavas há bocadinho é um bom exemplo disso, não é? Música que é propositadamente, sem não sei o que termologia correta, mas não harmoniosa, não é? Mas
Aires Almeida
em relação às intenções, de facto, nós podemos ver aqui as coisas de diferentes maneiras e não estou certo qual seja a mais correta. A ideia de que as intenções não contam nada para a interpretação, para a correta compreensão da obra de arte. Por exemplo, são aquelas teorias associadas normalmente ao Roland Barthes, que é a morte do autor, muito em voga nos anos 60. Ele até tem um texto sobre a morte do autor. O autor não interessa rigorosamente para nada, ele podia querer fazer uma coisa e falhou redondamente e fez outra completamente diferente, isso é irrelevante. A obra vale por si própria, portanto todo o seu significado está condutido nela ou na maneira como as pessoas reagem à obra.
José Maria Pimentel
E portanto ele nem retira valor à obra, nem lhe acrescenta. Nem lhe
Aires Almeida
acrescenta, exatamente. Eu acho isso altamente implausível porque há obras que foram feitas com intuitos, com intenção, por exemplo, de chamar a atenção das pessoas para determinados valores ou para determinados sentimentos. Há obras que são, por exemplo, antirracistas. E todo esse conteúdo, todas essas intenções são muito relevantes para nós percebermos qual o significado da obra. É claro, nem todos os autores estão, mesmo os próprios artistas estão de acordo com isto. Uma vez quando perguntaram ao John Cage, que ele tinha aquelas coisas, a música aleatória, que ele fazia a música com rádios e apanhar estações e tal, e aquelas coisas todas. Uma vez perguntaram-lhe na China, ou sei lá, mas qual é a intenção disto tudo? E ele riu-se, que era uma pessoa muito bem disposta, riu-se assim, meu caro, Eu não trabalho com intenções, eu trabalho com sons. Isto está do lado da morte do autor, porque não está a trabalhar com intenções. Mas é difícil nós interpretarmos adequadamente certas obras de arte, por exemplo, na literatura, se não tivermos em conta quem foi o autor, o que é que fez o autor, o que é que pretendia o autor, etc. Ou pelo menos se nós não imaginarmos qual é. Nos casos, os autores morreram há muito tempo. Então há aquilo a que alguns chamam de falácia intencional, ou seja, que as intenções sejam relevantes para interpretar corretamente uma obra de arte. E há os intencionalistas que defendem que as intenções são relevantes. Agora, quais intenções? As intenções que de facto o autor teve? Há uns que dizem que sim. Mas esta tese é muito, um bocado implausível, porque nós, então assim, seríamos incapazes de interpretar adequadamente obras que os autores nós desconhecemos. Claro, claro. Ou que já morreram há muito tempo.
José Maria Pimentel
E quanto mais antigo e de um autor não contemporâneo, nunca a saberemos interpretar perfeitamente, não é? Exato.
Aires Almeida
Porque não vivemos naquele mundo, não é? Há quem defenda que são as intenções hipotéticas, não as intenções reais. É aquelas intenções que, de acordo com os dados todos que nós temos na própria obra, plausivelmente o autor teria tido ao escrever aquele livro. E essas intenções devem estar, de certa maneira, manifestas ou patentes na própria obra. Nós como que reconstruímos aquilo que teriam sido as intenções do autor. Porque só isso é que é acessível ao público em geral. São aquelas que estão patentes no próprio livro. E portanto, é diferente dizer assim, não, as intenções não contam nada. Não, não, isto só se entende, o que eu estou a ler, só se entende se o autor, enfim, tiver esta ou aquela ideia, quiser chegar aqui ou ali ou além. Por isso é que pode haver até obras de arte falhadas. Pretendiam chegar a um ponto, fazer isto ou aquilo e não conseguem. São obras de arte falhadas. Mas, neste caso, o intencionismo… E o contrário, que
José Maria Pimentel
não pretendiam chegar àquilo que depois tomou como
Aires Almeida
sendo significativo. Exatamente. Agora, a ideia das intenções hipotéticas é as intenções que é legítimo por um leitor minimamente informado atribuir ao seu autor, mesmo que ele não as tenha tido.
José Maria Pimentel
Mas eu diria que na lógica da arte enquanto instrumento, as intenções do artista só são relevantes na medida em que elas nos acrescentem valor, a não ser, e eu acho que isso tem relevância, que as intenções também contem por causa daquela questão da nossa admiração pelo indivíduo. Portanto, as intenções contribuem para construir aquela persona. Sim, sim. Agora, congelando este efeito que eu odiei há bocadinho, mantendo só a versão mais estrita que tu propuseste inicialmente, as intenções só têm interesse se elas nos acrescentarem valor. Se uma obra tem uma mensagem antirracista com a qual nós nos identificamos e que nos ajuda a pensar sobre esse tema, tem valor. Se o artista tem uma intenção qualquer que nos é completamente desdrúxula, é então que não acrescenta valor, não é?
Aires Almeida
Sim, sim, sim. Eu concordo com essa perspectiva. Embora aqui na questão do valor tenhamos sempre de fazer a distinção, Há pessoas que querem saber sobre a biografia do autor, etc. Alguns acham que conhecer melhor a biografia do autor permite compreender melhor a obra. Estamos um bocado na linha do intencionalismo real, não é?
José Maria Pimentel
Ou ao contrário, ou permite extrair mais da obra da essência do autor, da singularidade
Aires Almeida
do autor. Mas a ideia é que... Da sapiência do autor, se quiseres. A ideia é que, por exemplo, no caso do intencionalismo hipotético, é que se o autor quer produzir um determinado efeito, então isso deve estar patente na própria obra. E não precisamos de inspecionar os seus estados mentais reais, aquilo que ele tinha mesmo é...
José Maria Pimentel
O problema é que a arte por natureza é obscura, não é? Um quadro expressionista, abstrato, é bastante obscuro, não é? Em que sentido? No sentido mais literal, não é? Que não é fácil interpretar aquilo que o autor está a tentar transmitir. O autor pode não querer transmitir nada. Sim, mas o que tu dizes é que se o que ele transmite não passa pelo quadro, então também não vale a pena indagar mais, não é? Sim,
Aires Almeida
o Jackson Pollock, o pintor americano, dizia que o quadro era simplesmente um registro dos seus movimentos enquanto estava a pintá-lo. Está lá tudo.
José Maria Pimentel
Mas aquilo é pose, isso é um bocado pose, não é? Sim,
Aires Almeida
isso é um problema também da arte. Na arte há muita pose. Precisamente por causa do prestígio social que a arte tem. E Eu até acredito que muitas das pessoas que dizem gostar de arte não gostam nada. A arte tornou-se um adereço social. Gostam de gostar, não é? Sim. Não, é um adereço social. Fica bem gostar de arte. Dá logo o ar de uma pessoa mais sofisticada. Sim. Então se gostar de música clássica, em vez de rock ou de heavy metal, parece melhor, ou se o star de jazz também já parece melhor, porque parece uma coisa mais profunda. Eu gosto de todos os géneros musicais, todos mesmo, todos, sem exceção. Eu acho que a música...
José Maria Pimentel
Você gosta de música atonal? Eu
Aires Almeida
acho que a música atonal... Há certo tipo de música que não é feita para se gostar, como muita arte não é feita para se gostar. É chamada arte anti-estética. Há artistas que declararam, foram mesmo registar no notário, uma declaração para pôr ao lado do quadro e dizer assim Atenção, este quadro não é bonito, O autor não pretendia que fosse bonito ou que tenha propriedades estéticas apreciáveis. Nem quer, nem deseja que seja visto assim. Portanto, este quadro não tem nada a ver com beleza. E uma declaração ao lado para as pessoas não olharem para o quadro assim. Por acaso é curioso que isto agora liga-se com a intenção, e não tantas pessoas podiam achar aquilo bonito. Portanto, na arte há muitas destas coisas misturadas, e na apreciação artística, estava eu a dizer que eu gosto praticamente de todo tipo de música, mesmo de todo. Eu recordo-me quando eu sempre fui uma pessoa que ouviu muita música e colecionou desde o tempo do vinil e de todas as gneras. Música rock. Eu era mesmo um conhecedor muito grande. Quase um segundo depois da música começar já sabia o que era. Agora Não, claro. Mas eu lembro que escandalizava os meus amigos que... Muito interessados na música, quando eu dizia que gostava do Zaba. Epá, não podes gostar disso. Isso é uma coisa muito popular hoje. Isso é uma coisa... Não sei o quê. E quando eu dizia, opá, O Dancing Queen é provavelmente uma das melhores músicas pop que eu já ouvi e é excelente música. Achavam isto quase escandaloso e quase que me pediam para não dizer isso em frente a outras pessoas, isso parecia mal. Portanto, há muita esta coisa associada à arte. A arte é um adereço, é como uma coisa que se coloca ao peito, olha eu gosto disto, é também um fator de identificação, tribal também. E eu estou neste extrato e eu estou naquele extrato. E portanto, Estas coisas aparecem muito misturadas quando se fala de arte. É por isso que eu comecei por dizer aqui que o discurso que muitas vezes se ouve, em Portugal é quase inevitável, fala-se da arte de uma forma muito empolgada, lírica, muito elogiosa. Parece que a pessoa não está a falar da arte, está a tentar dizer, vejam como eu sou uma pessoa sensível, vejam como eu sou uma pessoa educada, vejam como eu sou uma pessoa sofisticada. E eu acho que isto não é falar verdadeiramente da arte. E portanto, nas apreciações que se fazem, há muito esta mistura do aspecto social.
José Maria Pimentel
A arte, pelo facto de ser pouco palpável e pelo prestígio social que lhe está associado, de novo, provavelmente não há nada que tenha maior prestígio social, pelo menos tão prene e tão resistente. Presta-se muito a isso, por exemplo, Há um paradoxo interessante, já reparaste de certeza, que os avaliadores mais contundentes que existem são os avaliadores de arte, no sentido de lato. As críticas, se tu abres o jornal e leres as críticas de cinema, não há nada mais contundente do que aquilo. E no entanto, não é nada objectivo porque é que um filme é melhor do que outro. Há alguns aspectos mais ou menos objetivos de produção de som, de colocação das câmeras, agora, a maioria daquilo que compõe um filme não é nada objetivo e no entanto se tu vês uma crítica, uma bola preta, por exemplo, diz este filme é imprestável, não serve para absolutamente nada, o realizador não conseguiu, fez tudo e não há nenhuma dúvida ali, não há nenhum momento onde dizes, bom, talvez eu não tenha compreendido bem, não é? É um
Aires Almeida
paradoxo curioso, não é? Porque... É como se eles tivessem um algoritmo mental para decidir se aquilo era uma obra prima ou se é uma obra muito má, etc. É um grau de certeza incrível. Eu acho
José Maria Pimentel
que é uma proteção contra a noção de que não há certeza nenhuma.
Aires Almeida
E nós até avaliamos, se formos sinceros e honestos conosco próprios, nós avaliamos a mesma obra de arte de maneiras diferentes em períodos
José Maria Pimentel
diferentes. Justamente, exatamente. Já te aconteceu de certeza rever um filme e pensar, eu andei a dizer bem deste filme a tanta
Aires Almeida
gente? Já me aconteceu, já me aconteceu melhor. Há um filme que quando eu o vi achei fabuloso, na altura aconteceu, que é o Voando sobre o Ninho de Cucos, do Milos Forman. Incrível, depois vi o passado uns anos e pensei mas como é que eu gostava deste filme? Isto é tão primar.
José Maria Pimentel
Eu vi há pouco tempo e não achei grande graça. Pois,
Aires Almeida
achava aquilo tão primar e aquelas coisas do bonzinhos, malucos, é que estão certos, esta, esta história de inverter. E depois, aqui há algum tempo vi o filme e diverti-me imenso a ver o filme. E Eu pensei, não posso estar a divertir-me tanto com o filme e dizer que o filme é mau, não pode ser. Há qualquer coisa errada em mim. E passei a gostar outra vez do filme. Passei a avaliá-lo de maneira diferente. Isto acontece constantemente com... Por exemplo, no caso da música pop, isto acontece. Nós somos expostos muito tempo a uma determinada canção, que às vezes é bem feita, e aquilo massacra-nos, e nós reagimos mal. Depois passam-se 20 anos, ouvimos a mesma canção e dizemos, isto era bom.
José Maria Pimentel
Exatamente, é incrível, não é? Isto era muito bom, acontece muito. Porque nós cognitivamente somos muito limitados, não é? E somos influenciados pelo estado de espírito, pela saturação de ter ouvido aquela música várias vezes. Mas há outra questão interessante... O contexto também é importante. O contexto, sim.
Aires Almeida
O momento em que é preciso, o contexto, tudo aquilo que está associado à apreciação. E
José Maria Pimentel
depois há outra coisa interessante que eu me lembrei a propósito do Vento sobre o Ninho de Cucos, porque eu como te dizia, vi o filme há pouco tempo, pela primeira vez, e não achei grande graça. Como obra-prima, não é? Mas é que dizer, é tido como um filme bastante bom. E pensei, bom, há um lado aqui que eu penso nisto muitas vezes, sobretudo sobre arte contemporânea, no sentido de lado, que é aquele filme foi feito em determinado momento, é provável que ele tenha influenciado outros filmes, ou seja, é provável que ele tenha sido marcante pela diferença de paradigma faça ao que o precedeu, mas que depois entretanto tenha influenciado uma série de filmes que eu vi antes de ver aquele e que estavam uns degraus acima, menos, portanto, vamos imaginar, por metáfora de umas escadas, não é? O grande degrau, vamos imaginar, foi subido pelo Milos, como é que ele se chama? Milos Forman. Bem, e pelo resto da equipe e pelos atores naturalmente. Depois houve uma série de degraus mais pequenos, que eram mais pequenos, mas que catapultaram aquele paradigma para um nível superior. Exatamente, melhor. E portanto, quando eu voltei a ver o voando-sobrinho de Cougles, isto acontece-me imensas vezes, já achei aquilo
Aires Almeida
um bocadinho manhoso. Ok, compreendo perfeitamente o que estás a dizer, porque me acontece e tenho pensado muitas vezes nisso. De facto, é aquilo que se diz, esta obra é seminal, deixou lugar para o Saman para que os outros nascerem a partir daí. E tem lá aqueles aspectos... Repara, por exemplo, não sei se tu viste o Pulp Fiction quando saiu o Pulp Fiction. O Pulp Fiction foi uma coisa...
José Maria Pimentel
Era quase uma impossibilidade eu ter visto.
Aires Almeida
Uma coisa completamente inesperada. Hoje, qualquer filme tem carradas dos coisas assim... É um excelente exemplo. Sim, sim, sim. ...Do Pulp Fiction. Tu agora vais ver o Pulp Fiction e aquilo não te causa impacto nenhum.
José Maria Pimentel
É um excelente exemplo, porque de facto a pessoa consegue ver como o Pulp Fiction influenciou imensos filmes.
Aires Almeida
Exatamente. Tu vês quase todos, grande parte dos filmes,
José Maria Pimentel
mesmo séries. Sim, sim, sim. Que agora parecem fãs da arte, em certo sentido. Exatamente.
Aires Almeida
Vês séries como Breaking Bad e coisas assim. Tu tentes lá muitas coisas de Pulp Fiction e era o que estavas a dizer, que foram degraus que foram acrescentados em cima. Sim, sim, sim. E agora aquilo parece-te rudimentar quase. Mas há muitas coisas, o que estavas a dizer, de facto, a apreciação, o que eu vejo muitas vezes nos jornais e no cinema e na música e não só, nunca é uma apreciação estritamente artística ou estética, se quiseres. O próprio crítico muitas vezes está a falar mais dele próprio do que da obra. E mesmo quando fala da obra, fala de uma forma, na diagonal, nunca te dá nada. Metafórico, sim, sim. E é por isso que lhe permite dizer que todos os filmes que saem do Manoel de Oliveira são obras-primas, não é? Qualquer filme que tenha um grande público, que tenha um grande impacto, não são obras primas. Eu pessoalmente acho os filmes do Manuel de Oliveira terrivelmente chatos e maus, mas posso estar enganado. Sim, tu e muita gente, incluindo o Bruno. Eu acho que só vi um filme do Manuel de Oliveira. Vi dois filmes, o Aniki Bobó eu gostei e o Valabrão, porque é um filme que lá está, que eu aprecieio com determinado contexto. É passado na minha região onde eu nasci, no Douro, conheço aquilo tudo e portanto tem ali a liação. Enfim, causou esse impacto em mim, mas, provavelmente, se fosse ver depois com outro distanciamento, a avaliação já não seria a mesma.
José Maria Pimentel
Ao lado aí que eu compreendo que, voltamos quase àquilo que falavas no início, também há uma educação para apreciar a arte e não sendo rígida essa relação inversa entre aquilo que dá mais prazer ter menos conteúdo, não sendo de todo rígida, que nós fizemos aqui vários exemplos, os Beatles, até usava, é evidente que existe essa tendência, ou seja, aquilo que dá um prazer mais imediatamente tende a ser mais superficial e, portanto, eu compreendo que haja muito valor no Manuel de Oliveira que eu não sou capaz de obter porque não tenho ainda a sofisticação para o fazer. Mas isso não quer dizer que ele seja inquestionável, que esse valor seja inquestionável porque é evidente, não é? Como se fosse uma evidência para aqueles mais sapientes, mais iluminados que conseguem obter.
Aires Almeida
Sem dúvida, exatamente. És tu que não estás apto a usufruir adequadamente dos filmes do Manoel de Oliveira. Como eu também não. Mas tens razão numa coisa, Há obras de arte que são difíceis. É por isso que a questão do prazer. Temos que encontrar outro tipo de prazer. Há um prazer diferido, há um prazer que se situa num nível diferente.
José Maria Pimentel
Há muitas obras de arte que são difíceis.
Aires Almeida
Por exemplo, sei lá, há pessoas que gostam muito de ópera e quando começaram a ouvir ópera não gostavam nada. Mas depois quando começam a perceber, vêem o libreto, vêem aquilo traduzido, acompanham a história, se calhar ouviram ópera quando estavam na televisão em casa, mas se forem assistir uma ópera num teatro de ópera, estão completamente disponíveis para aquilo que estão a ver. Na música é a mesma coisa. Até na comida. Até na comida, exatamente. Depende da disponibilidade que a pessoa tem para aprender com aquilo, para ouvir aquilo, para prestar atenção àquilo. Há obras de arte que são difíceis. Dizem que muitas pessoas já leram Ulisses, muitas pessoas acharam o maior livro da vida delas. Há também quem diga que quase ninguém o leu até ao fim. Ou como deve ser, mas eu admito que seja uma coisa que tu, se dedicares bem e se estudares e se perceberes como é que aquilo foi criado, etc., pode permitir usufruir do livro de outra maneira. É por isso que entender a arte permite-nos usufruir mais e melhor da arte. Há um certo prazer que as pessoas retiram, ou que
José Maria Pimentel
qualquer um de nós retirem, em achar que está a explorar terrenos sensoriais ou cognitivos que estão vedados, à maioria das pessoas, pelo esforço que requerem, não é? No fundo. Eu acho também há um bocadinho esse lado. Poxa, lá está. É como se a arte estivesse a puxar por ti. Exato, exato. A puxar, lá está. Mas é algo que é desagradável, não é? À partida é desagradável, porque requer desforço, não é?
Aires Almeida
Exatamente. Há muitos casos assim. Portanto, eu não vou a ponto de dizer que os filmes do Manoel de Oliveira não são bons porque são chatos, não sei o quê. Posso ser eu que não estou na disposição certa ou que não tenho os elementos adequados para usufruir dos filmes do Manoel de Oliveira. Não é que não tenha tentado, mas não consegui chegar lá. Mas de maneira nenhuma estou a dizer que a fruição de certas obras de arte não requer esforço. Esforço auditivo na música, esforço de compreensão na literatura, esforço a vários níveis. Portanto, isso é verdade. Não podemos ser assim tão simplistas.
José Maria Pimentel
Olha, uma coisa que eu não te perguntei há bocadinho, em propósito da questão da intenção do autor. Qual é a tua posição sobre as falsificações, sobre as obras falsas? Há muitos casos esses, no outro dia havia um documentário que está no Netflix sobre o Mark Rothko, que teve uma série de... Teve isto, não foi ele? Houve uma série de quadros que lhe eram atribuídos, na altura em que ele tinha... Eu creio que ele já tinha morrido na altura, mas tinha atingido este estatuto, que ele de resto atingiu já perto do fim da vida de super sumi artista consagrado, e portanto os quadros todos valiam de centenas de milhares de euros para cima e na maioria dos casos até milhões e começam a surgir quadros no mercado atribuídos a ele, assinados por ele, e ali não só, e o Jason Pollock também e outro agora que me escapa, ou outra, não sei se era o homem ou a mulher. Ah, e eles, neste processo, provocam todo o tipo de reações emocionais que nós falávamos há bocadinho. As pessoas ficam completamente... Quer dizer, têm uma experiência sublime ao ver os quadros e detectam rasgo e transmissão de emoções e uma série de coisas que normalmente são atribuídas aos quadros destes artistas geniais. E depois descobre-se que não, que eles foram feitos por um pintor chinês que simplesmente era um excelente... Quer dizer, seria bom pintor e sobretudo era um excelente... Falsário, não é? Sim, sim, replicador das pinturas de outros. No entanto, estes quadros não deixaram de ser considerados obras-primas por muita gente e não deixaram de provocar, e que eu os via, muito deste benefício que nós falámos ao longo desta conversa. E perante isto, eu próprio estava a ver o documentário e a pensar, eles de repente passaram a valer zero, zero ou quase zero, passaram a valer muito pouco, Na verdade, à partida não, não é? Porque eles... O que é que conta aqui? É se eles são de facto produzidos autenticamente, foram pelo Mark Rothko, ou se eles, enquanto instrumento, são capazes de provocar o mesmo tipo de emoções e transmitir o mesmo tipo até de conhecimento, não é? Naquele sentido de lado. Sim. Olha, para já há um problema logo,
Aires Almeida
que há quem levante em relação a isso, uma falsificação de uma obra de arte. É uma obra de arte ou não é uma obra de arte? Pois, Jesus. Eu acho
José Maria Pimentel
que é. E também acho, também tento achar que
Aires Almeida
sim. Sim. Há um caso famoso do Hann van Meegren, que é considerado o maior falsário de arte da história. Que
José Maria Pimentel
vendeu aos nazis, não é?
Aires Almeida
Exatamente, e que ele próprio teve que pintar à frente do tribunal para mostrar que os quadros eram dele para se livrar da pena de morte. Essa história é muito interessante. Mas, de facto, Eu acho que isso pode ser arte de grande qualidade. Agora, há uma coisa que é diferente. Elas são cópias dos originais. Tu estás... Já agora estás a dizer... Não são cópias dos originais. Não são cópias assim, são produzidos. São quadros novos. Ok.
José Maria Pimentel
São do mesmo estilo, mas são quadros novos.
Aires Almeida
Depende dos critérios que tu usas para avaliar. Repara, há quem exija da arte autenticidade. Isto é, quando estás a exprimir artisticamente ou quando estás a produzir uma obra de arte, que é a tua obra de arte, de certa maneira, aquela obra de arte não é inteiramente da pessoa que a faz. Portanto, parte do mérito daquela obra de arte deve-se a quem criou aquela música, aquele esquema, aquela linguagem, aquela forma de pintar, etc. E, portanto, há uma falta de autenticidade nisso. De
José Maria Pimentel
originalidade. É que são coisas diferentes, não é? Não é só
Aires Almeida
de originalidade. O Rodko, quando pintava da maneira como pintava, ao final da sua vida, continuava a pintar daquela maneira e os quadros continuavam a ser autênticos. Eles já não eram tão originais, mas eu falo mesmo da autenticidade. Ainda há pouco vinha no carro e ia ouvir rádio e estava a ouvir uma música em inglês, pop, e eu disse, esta música é de uma banda portuguesa, tenho a certeza, nunca tinha ouvido na vida, e estava aqui a chegar a casa, dei mais uma volta para chegar ao fim e de facto era de uma banda portuguesa, e eu pensei, isto soa falso. Mas
José Maria Pimentel
tem a ver com o sotaque também, provavelmente?
Aires Almeida
Não, é uma coisa curiosa, é a tentar imitar o sotaque inglês lá de uma certa região, que é uma coisa esquisita. Tem também a ver com isso, mas com a forma, a maneira como se canta, a própria letra, é alguém a tentar imitar. Nota-se na própria música um certo universo que transparece na própria música, não o universo natural de quem está a cantar. Eu até sei o nome da banda porque depois disseram, mas é a portuguesa. E, portanto, isto soa uma falsa. Aquelas pessoas que dizem, epá, eu gosto muito deste universo, eu gosto muito destas bandas, eu gosto muito deste som, e eu agora vou cantar como eles, como, sei lá, aí pensa numa música punk. O punk nasceu de um determinado contexto social, de tipos que estavam por tudo, um bocado por tudo. E, portanto, queriam lá saber, até se agravavam de não saber mais do que três acordes e essas coisas todas. Mas era a atitude e a energia e uma certa revolta de protesto que traziam para cima do palco que era autêntica. Agora tu vês Betinhos em Portugal, a quem os pais pagam as guitarras boas para depois tocarem punk e dizerem gritos antissociais e não sei o que, é ridículo, falta de autenticidade, embora a música seja óptima, ninguém tinha feito aquela música. No caso do que estavas a referir, o que eu vejo é que, de facto, pode ter muitas das boas características, muitas das coisas boas, dos aspectos positivos que tu referiste, e ser digno de apreciação e tudo isso, mas há certos critérios de avaliação em que essa obra, uma vez que sabes, eles eram atribuídos ao Rodko, ao próprio Rodko.
José Maria Pimentel
Rodko ou Jason Pollock? Outro ou outro já não me lembro. Mas acho que a maioria eram do Rodko.
Aires Almeida
Quer dizer, eu confesso que é uma questão difícil. É difícil, é. É uma questão difícil. Se tu achas que A autenticidade é um critério de valor, de avaliação. Há um filósofo, Nelson Goodman, que utiliza uns critérios mais, digamos, técnicos. É a densidade sintática e a densidade... Mas não vamos falar nesta entrevista. É uma coisa um bocado técnica. O que ele defende é que uma imitação que seja quase indistornível do original de uma obra, porque é que nós damos tanto valor a uma que ao original e à outra que é exatamente, é indistornível, não damos. Tu podes encontrar exemplos desses na arte contemporânea mesmo em relação a obras de arte famosas, por exemplo, os urinóis do Duchamp. Ele comprou seis peças, urinóis, na loja de porcelana, lá da Loosa, sanitária de Nova Iorque, mas podia ter comprado todos os que lá estavam, não sei se estavam lá seis, podia ter comprado vinte, etc. E portanto, estes são arte e os outros não são arte. Só que estes, num contexto, significam uma coisa, adquirem um significado. No contexto original, eles não têm esse significado, não são olhados com a mesma atenção, não são olhados… Não
José Maria Pimentel
despertam as mesmas percepções, para voltar ao…
Aires Almeida
Nem são olhados, se calhar, nem são sequer associados.
José Maria Pimentel
Mas esse é um bom... Por acaso é bom teres falado disso, que eu queria voltar aí, de certa forma leva-nos de volta ao início, porque aquela questão da definição do que é arte... Tu aludiste precisamente aos casos de fronteira, desculpa,
Aires Almeida
Dígito. Sabes que a questão da definição da arte era o grande problema da filosofia da arte, discutido desde os anos 50 até os anos praticamente, aos anos 2000, era o grande problema. Toda a gente, e há teorias, apareciam teorias, como sabes e como apresenta no meu livro. E dá 10, 15 anos para cá, deixou de ser o problema, quase foi abandonado. Quase ninguém discute mais
José Maria Pimentel
a definição. Também, em si mesmo é curioso, não é? Acharam que o projeto de discutir,
Aires Almeida
o projeto definicional, é um projeto votado ao fracasso. Muitos filósofos acham disso. E que talvez seja mais produtivo dedicarem-se a tentar compreender formas de arte particulares. Não há arte em geral. Porque tu repara que a arte em geral é uma coisa tramada para essa expressão que tem a diversidade de artes que há. Uma
José Maria Pimentel
coisa imensa.
Aires Almeida
E depois, dentro da diversidade de artes, por exemplo, repara, tens fotografias que são arte e fotografias que não são arte. Tu tens mobiliário que é arte e mobiliário que não é arte.
José Maria Pimentel
Tens escritores que são escritores de literatura. Não, tu dizes
Aires Almeida
normalmente que a música é uma forma de arte. E portanto, tudo que é música é arte. O cinema, se entenderes, que é uma forma de arte. Tudo que é cinema é arte. A pintura é arte. Mas tu tens coisas como o mobiliário, a cerâmica. A maior parte das peças de mobiliário não são arte. Mas há peças de mobiliário que são arte. Tu podias dizer assim, podias dar uma definição assim, é arte tudo o que... E depois fazes uma lista extensa das diferentes formas de arte. É arte tudo aquilo que é pintura, escultura, arquitetura, tal, tal, tal, tal, tal, tal, e pronto, tinhas aí uma definição da arte, mas isso não funciona. Tu não podes dizer a fotografia. Não, há fotografias que são e que fotografias não são. Isso não funciona, mas...
José Maria Pimentel
E depois está sujeito a ser alterada com a passagem do tempo, não é?
Aires Almeida
Os filósofos hoje em dia estão-se a dedicar mais a formas de arte particulares e a tentar compreender formas de arte particulares, nomeadamente o cinema, a banda desenhada, etc. E a tentar compreender o que é um pouco a natureza. Mas mesmo aí nós vamos encontrar muitos dos problemas que encontramos em relação à definição da arte em geral.
José Maria Pimentel
Sim, claro. Eles existem na mesma, só que em casos mais específicos, mais particulares. Mas eu, na verdade, acho que partindo do modelo que nós estamos a discutir, do valor que está na arte, eu acho que é possível chegar a alguma resposta, pelo menos a resposta útil, daquilo que é arte versus aquilo que não é. Porque na verdade aqueles casos de fronteira, nós estávamos agora a discutir os casos das falsificações, tu explicaste bem o que é que está em causa, não é? E embora isto não seja completamente objetivo, é fácil perceber que ali numa falsificação bem feita ali há uma parte que é arte, mas depois falta-lhe qualquer coisa, que é essa questão da autenticidade, não no sentido da assinatura, mas no sentido da... Da personalidade, do estilo, do traço, do trabalho que está por trás da criação desse estilo. E depois aqueles casos de fronteira, da arte de vanguarda, por exemplo. Eles na verdade são compreensíveis porque eles não existem isolados. Ou seja, eu não sei se tu consideras o humor uma forma de arte ou comédia. Eu considero, acho que partilha com a arte uma série de características. E há um tipo de humor que é o anti-humor, que é o humor que é propositadamente não engraçado. Porquê é que esse humor funciona? Funciona da mesma maneira que o urinólogo do Guichão funciona. Tu estás à espera de ver uma coisa bela com propriedade estética...
Aires Almeida
Cria-te uma expectativa e depois defralda-te a expectativa existente.
José Maria Pimentel
Mas ele só pode existir porque aquela expectativa existente. Senão nunca existiria. Se tu fores numa tribo de caçadores-recoletores e fizeres uma piada de anti-humor, que não é uma piada, é dizer, está frio? É uma coisa qualquer desse género, não é? As más não deram-se a nenhuma. Agora, se um humorista conhecido chegar ao início de um espetáculo de stand-up comedy, ligar o microfone e disser, está frio e fizer um silêncio, provavelmente as pessoas vão sorrir, porque aquilo é completamente inesperado. E o efeito do Duchamp e de outros, e daquela pá do... A pá era dele também. A pá de limpar a neve. Ou a tela vazia que nós falávamos há bocadinho. Eu não quero dizer com isto que todo esse tipo de esquemas têm valor, mas há ali um valor criativo de defraudar aspectos, mas ele depende do anterior, não é? Só por isso é que ele é arte, mas é uma espécie de anti-arte. Isto para dizer que eu acho que esses casos fronteiros não são necessariamente um puzzle gigante para resolver, porque a pessoa compreende perfeitamente porque é que eles têm esse efeito.
Aires Almeida
O caso aí, há muitas pessoas que dizem assim, não podemos estar a apresentar propostas de definição de arte a pensar nesses casos de vanguarda, porque isso não é a maior parte da arte. O que acontece é que a resposta a isto é que os casos de fronteira na arte contemporânea tornaram-se muito comuns, são constantes. Não podemos dizer-se, pá, não vamos dar uma definição a pensar só numa pequena fração de obras de arte. O problema é que grande parte da arte contemporânea
José Maria Pimentel
é assim. E são esses que nos obrigam a... Que colocam o conceito de arte em causa, os outros não. Exatamente. Se não
Aires Almeida
forem essas, talvez não precisasse
José Maria Pimentel
uma definição para nada. Pois São esses que nos desafiam.
Aires Almeida
É por isso que há quem acha que o melhor é explicar a natureza da arte, nem dar uma definição, é dar uma explicação. É porque o problema das definições, se as definições são dadas em termos de condições necessárias e suficientes, o problema é que elas têm que lidar com contra-exemplos. Se encontras um exemplo que não satisfaz essas condições, que no entanto chamas arte, ou vice-versa, lá sai por terra a tua definição de arte. Mas se tu apresentas uma explicação acerca da natureza da arte, as explicações não têm grandes problemas a lidar com contra-exemplos, Porque uma explicação não é uma definição em termos de condições necessárias e suficientes. Não apresenta condições de satisfação rigorosas que as obras de arte têm. E o que alguns filósofos pensam é que se calhar é mais proveitoso, mais esclarecedor, mais informativo, nós termos uma explicação da arte. Por exemplo, há um filósofo contemporâneo, o Nick Zankvill, que defende precisamente essa perspectiva. No fundo, o que é que nós queremos quando vamos a um museu e dizemos, mas isto é arte? Alguém pergunta, porque é que isto é arte? Nós podemos responder, está no museu e alguém explica que as coisas que estão no museu são obras de arte. A partir daí mais ou menos consegue safar-se, a identificar com algum sucesso o que é que a arte é, o que é que não é, mas é isso que a pessoa quer saber. Não é, claro, pois justamente... Não, é isso que a pessoa quer saber. Que qualidades é que esta coisa tem que a leva a ser digna de estar aqui, exposta
José Maria Pimentel
neste sítio? E que valor é que ele dá, e quanto valor é que dá. E
Aires Almeida
é por isso que, no caso do Nick Sanguil, ele acha que parte da explicação tem que ser acerca do valor. Exatamente, sim, sim, sim, concordo com isso.
José Maria Pimentel
Olha, Erj, foi uma conversa incrivelmente estimulante, tanto que nos tendemos para lá da duração normal. Antes de terminarmos, que livro é que recomendas?
Aires Almeida
Olha, é estimulante até para quem responde, porque tu, pelos vistos, sabes puxar pela conversa, muito bem. Bom, mas então o livro que eu recomendo tem vários textos sobre vários dos problemas que temos aqui, por exemplo, sobre as intenções, sobre o valor intrínseco, sobre a definição da arte, que é de um dos filósofos mais importantes da arte, do nosso geral Levinson, e o livro é Investigações Estéticas, Ensaios de Filosofia da Arte. Portanto, É uma reunião de artigos do filósofo. Fui eu e o Vítor Guerreiro que escolhemos, selecionámos os textos e que pusemos à consideração do próprio Gerald Levinson, que achou boa e ele acompanhou, até fez um pequeno prefácio ao livro e, portanto, ele aborda diferentes temas da filosofia da arte. E tem também um texto sobre o humor já agora.
José Maria Pimentel
Curioso. O que é o
Aires Almeida
humor. Exatamente. E sobre a apreciação da música, sobre a definição da arte, cá está a intenção e a interpretação na literatura. Portanto, eu recomendo este livro, que é de um dos mais destacados filósofos de arte contemporâneos e é um livro que pode interessar a pessoas que se interessem por cinema, por música, por literatura, por arte em geral,
José Maria Pimentel
por humor, etc. Ares, muito obrigado.
Aires Almeida
Obrigado eu, foi um gosto estar aqui contigo.
José Maria Pimentel
Este episódio foi editado por Hugo Oliveira. Visitem o site 45graus.parafuso.net barra Apoiar para ver como podem contribuir para o 45 Graus, através do Patreon ou diretamente, bem como os vários benefícios associados a cada modalidade de apoio. Se não puderem apoiar financeiramente, podem sempre contribuir para a continuidade do 45 Graus avaliando-o nas principais plataformas de podcasts e divulgando-o entre amigos e familiares. O 45 Graus é um projeto tornado possível pela comunidade de mecenas que o apoia e cujos nomes encontram na descrição deste episódio. Agradeço em particular a Miguel Van Uden, José Luís Malaquias, João Ribeiro, Francisco Hermes Gildo, Família Galeró, Nuno Iana, Nuno Costa, Salvador Cunha, João Baltazar, Miguel Marques, Corto Lemos, Carlos Martins, Tiago Leite e Habilid Silva.