#107 Filipe Teles - O imperativo da descentralização e as especificidades do poder local em...
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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o
45 Graus. O convidado deste episódio é Felipe Telos, doutorado em Ciência
Política e professor na Universidade de Aveiro, onde faz também parte da
equipa reitoral, enquanto pró-reitor. O convidado é um investigador consagrado em temas
relacionados com a governação local, tem várias publicações em revistas académicas de
referência nesta área da ciência política e é atualmente presidente da European
Urban Research Association. O tema da nossa conversa foi Decentralização e Poder
Local em Portugal e o moto foi o ensaio com exatamente esse
nome que o convidado lançou este ano, publicado pela Fundação Francisco Manuel
dos Santos. Para além disso, Filipe Telles já tinha participado em 2018
na equipa responsável por um estudo pioneiro sobre a qualidade da governação
local em Portugal, que foi publicado pela mesma fundação e que também
discutimos no episódio. Mas porquê discutir o tema da descentralização política, ou
seja, a transferência de poderes do Estado Central para as autarquias? Por
vários motivos. Por um lado, porque como iremos ver, Portugal é um
país onde o poder está ainda muito concentrado no Estado Central. Isto
tem uma série de efeitos negativos, seja sobre a equidade da representação
política, obviamente, seja também sobre o próprio desenvolvimento econômico do país como
um todo. Além disso, é um modelo que faz pouco sentido no
tempo em que vivemos. Outro motivo pelo qual faz sentido discutir este
tema é porque apesar de nas últimas décadas já se terem tomado
algumas medidas de descentralização em Portugal, este continua a ser um tema
pouco querido, quer pela imprensa, quer pelos políticos. Aliás, ainda no início
deste mês, soube-se que o governo não tinha levado por diante a
nova fase da descentralização que tinha originalmente planeado para o início do
verão passado. E finalmente, claro, é uma altura especialmente boa para discutir
este tema porque estamos a dias das eleições autárquicas nas quais serão
escolhidos precisamente os representantes dos cidadãos dos órgãos políticos que estão teoricamente
mais próximos de todos nós. São, recorde-se, um total de 308 municípios
e 3.092 freguesias. Começamos a nossa conversa pelo ponto de partida óbvio,
saber como compara Portugal com outros países em termos do grau de
centralização do poder político e como veremos, compara mal. Mas o nosso
centralismo, como também discutimos, não é só um problema de instituições, é
também um problema cultural que tem manifestações a vários níveis com as
quais todos estamos, de uma forma ou de outra, muito familiarizados. É
também por isso que a política nacional domina, de longe, a atenção
dos políticos, dos média e da maioria das pessoas, eu incluído, que
se interessam por política. Por outro lado, também é verdade que não
ajuda a corrigir o nosso problema de centralismo, as próprias insuficiências que
a governação local também tem. Essas limitações, como vamos ver, estão em
parte também relacionadas com algumas peculiaridades do nosso sistema eleitoral e do
governo autárquico, que é complexo, pouco transparente e pouco amigo da participação
da população. Para não ficarmos só com o lado negativo, abordámos também
as melhorias que, apesar de tudo, têm sido conseguidas no passado recente,
na qualidade do poder local e na promoção da descentralização. E falámos
também das reformas mais relevantes que se podem e devem tomar para
continuar esse caminho no futuro próximo. Uma dessas reformas possíveis é, claro,
a regionalização, mas essa, como refere o convidado, é apenas uma forma,
de entre várias, de promover uma maior descentralização no país. Antes de
passarmos à conversa, aproveito para relembrar que encontro na descrição deste episódio
um índice com os assuntos que discutimos na conversa e com indicadores
de tempo associados a cada tópico. Assim, se estiverem a utilizar uma
aplicação de podcasts, basta selecionarem cada tópico para saltarem diretamente para o
minuto na conversa em que nós discutimos aquele tema. Finalmente, como de
costume, queria agradecer aos novos mecenas do 45 Graus. São eles, Eler
Miranda, Tiago Sotoque, António Mendes Silva, Joaquim Borges, Gabriel Candal, Abílio Silva
e Hugo Fraga. Muito obrigado a estes mecenas e aos que já
o são e com isto deixo-vos com a minha conversa com Felipe
Teles. Até à próxima. Felipe, muito bem-vindo ao 45°. Muito
José Maria Pimentel
é verdade. Sim, é culpa, neste caso, vejo que vamos no episódio
centésimo, eu não sei o que, eu já nem sei de cor.
Eu costumo, quase por princípio, não mesmo por princípio, não abordar temas
da atualidade aqui no podcast, neste caso vamos à boleia de um
tema da atualidade que são as eleições autárquicas do próximo domingo, mas
a ideia é falar de temas mais de fundo da descentralização em
Portugal, das autarquias e do poder local em geral. O ponto mais
óbvio para começar se calhar é perceber desde logo quão centralizada é
Portugal. Fala-se muito do centralismo em Portugal e da necessidade de descentralização,
é uma destas coisas, é um bocadinho como o equivalente aos discursos
dos CEOs das empresas de valorizar os empregados, de valorizar os trabalhadores,
é o equivalente em termos políticos é a descentralização, que é uma
coisa que toda a gente diz, fica bonito, mas na prática faz-se
pouco. Mas antes disso, se calhar, convém perceber até que ponto é
que nós somos, de facto, centralizados.
Filipe Teles
Parece-me ser um bom ponto de partida e gostei particularmente daquilo, do
resumo que agora foi feito, que é fala-se muito e depois na
prática faz-se pouco. De facto, fica bem falar de descentralização. Eu diria
que é uma das características constituintes de qualquer Estado democrático. A ideia
de que o poder se distribui, que o lugar da decisão não
está apenas concentrado num determinado território, numa determinada instituição, e portanto falar
de descentralização é natural numa democracia, é natural num país que se
diz do século 21, é natural quando se fala em capacitar para
a cidadania, quando se fala em desenvolvimento, etc. Portanto, é também natural
que se diga é importante centralizar, é importante dotar aquilo que nós
chamamos dos níveis subnacionais de governo, já falaremos sobre isso certamente, de
mais competências, de mais capacidades. Tudo isso é muito natural, a palavra
é mesmo essa, mas depois na prática o que assistimos é a
países onde estes processos, porque são sempre processos, e uso muitas vezes
esta expressão, esta palavra, porque descentralizar não é um ato legislativo apenas,
tem consequências maiores, mas não complexas. Não acontece de uma vez. E
dizia eu, isso tem outros países, vamos assistindo a processos mais ou
menos rápidos de descentralização e em Portugal vamos assistindo a uma retórica
interessante sobre descentralização, mas que depois na prática mantém Portugal a níveis
muito semelhantes àqueles que tinha quando transitou para a democracia e recordo
que as primeiras eleições democráticas foram em 76, portanto, é uma data.
Eleições democráticas locais, eleições para as autarquias, para os municípios e para
as freguesias foi em 76 e desde então passos tímidos foram dados.
Mas a pergunta não era essa, eu já estava aqui a perder.
A pergunta era se Portugal era ou não, no final, um país
centralizado. Fui mais ou menos por aí. Sim, no fundo, como
Filipe Teles
Esse foi precisamente um dos pontos de partida para o desafio, quando
me metia a escrever aquele ensaio para a Fundação Francisco Miguel dos
Santos, esse era também um dos desafios, era tentar explicar, por um
lado, o que é isto da descentralização e, por outro, como é
que Portugal se posiciona. E a resposta é muito simples de dar
e já a fui dando, é que Portugal é claramente um país
centralizado e isto é independente dos indicadores que usarmos para comparar o
modelo português com os outros países, particularmente, obviamente, os europeus, com quem
mais facilmente nos comparamos. Indicadores como, podemos usar, por exemplo, a parte
da despesa pública, uma delas muito cara aos economistas, a parte da
despesa pública em porcentagem do PIB, que é para garantir uma comparação
mais compreensível entre os países, que é efetuada pelos níveis de governo
local, e o valor mais recente calculado para Portugal, se não me
falha a memória, é cerca de 5, 6%, ou seja, 5, 6%
da despesa pública em porcentagem do PIB é efetuado pelos governos locais,
sendo a média dos países da OCDE, e retiro daqui os países
federados dentro da OCDE, onde obviamente as despesas das regiões dos Estados
são sempre maiores, é de 9, 2%. 5, 6 para 9, 2.
Da União Europeia 15, 5. A OCDE é incluída aos países, mas
dentro da União Europeia a média é 15, 5%. Por exemplo, outra
de memória seria a despesa
Filipe Teles
nacional que é efetuada pelo nível local, ou seja, do bolo total
da despesa pública nacional em Portugal, quanto é que é gasto, entre
aspas, pelos governos locais, e quando digo governos locais digo tudo que
tem a ver com os municípios e com as freguesias, é de
cerca de 12, 13%. 12, 6% era um dos valores que eu
tinha mais recentes na altura. O valor médio para a União Europeia
é 33%, ou 33, 4% ou 5%. É outra forma de perceber
o que isso significa ao emprego. Sim, o emprego também é bom.
Quando olhamos para o número de funcionários públicos associados à administração local,
quando comparados com o total de funcionários públicos associados à administração pública
portuguesa. Qual é que é a percentagem daqueles que estão afetos ao
local? O número tem evoluído nos últimos 15 anos, dos 13, 14,
para os 18%, era um dos valores mais recentes, E depois olhamos
para alguns países europeus com os quais nos podemos comparar e encontramos
valores próximos dos 50, 60, 75% em alguns países europeus. Claro que
um país que tem 60% dos seus funcionários públicos afectos aos governos
locais, significa, de forma muito simples, que ao nível local há uma
quantidade de serviços, quantidade de capacidade instalada, de meios, e aquilo que
me interessa particularmente, capacidade de decidir sobre aqueles territórios que nós não
temos. Temos uma pirâmide invertida quando comparado com esses países. De facto,
esta é uma forma de ver a tal posição remota, como eu
às vezes refiro, que Portugal ocupa nos diversos índices de centralização. Mas
o nosso problema não é só a fotografia. Ficamos mal nesta fotografia
dos índices de centralização, mas ficamos mal na fotografia ao longo dos
últimos anos, porque o que temos assistido é que uma grande parte
de países, mesmo aqueles que chegaram à democracia local depois de nós,
falamos por exemplo de todos os países que entraram na democracia local
e mesmo nacional pós 90, 91, os ditos países de leste, que
experimentaram a democracia local muito mais tarde do que Portugal, tinham índice
de autonomia local, de capacidade ao nível local, ou aquilo se quisermos
este índice de centralização comparáveis com os nossos, muito abaixo de Portugal
e agora já nos ultrapassaram. E portanto também ficamos mal neste retrato
ao longo da história, ao longo dos últimos anos. Gostei que há
pouco dizia que era uma fotografia um bocadinho tímida, ou uma história
tímida de descentralização, apesar da retórica. Parece-me assim um bocadinho óbvio, mas
é curioso porque no discurso público há algum receio de se falar
da descentralização. Há um lado positivo, retórico, mas depois há receio das
consequências, mais isso. Sim,
José Maria Pimentel
provavelmente há receio das consequências a prazo, já vamos falar disso, e
há alguns casos de poder ser impopular essa decisão, porque implica mudanças.
A sensação que eu tenho é que todas as reconfigurações são passíveis
de serem populares por vários motivos. As duas são mais tolerantes com
o status quo do que quando há uma mudança. Mas, Filipe, eu
estava a ouvir-o fazer essa descrição, estava a pensar quão relevante será
para este retrato, para esta imagem, também a própria diferença de configuração
da descentralização entre países. Porque nós em Portugal o que temos é,
sobretudo, e isso tem mudado, vamos falar disso também provavelmente, tem mudado
até nos últimos anos, mas nós temos sobretudo um poder central e
um poder municipal, que depois também conjuntas de freguesia, mas no fundo
são as duas linhas que nós temos. Depois temos os governos autónomos
da Madeira e dos Açores, mas são uma exceção a esse modelo.
Há países, não falando aqui do caso dos países federados, há países
que têm também níveis regionais, e os níveis regionais implicam também, é
mais ou menos indiferente para o peso que está no poder central,
mas implica uma subdivisão depois nos níveis a seguir. Onde eu quero
chegar com isto é dizer, isto implica que o poder central em
Portugal tem mais peso do que nos outros países, mas talvez não
implique necessariamente que as autarquias tenham menos peso, porque se noutros países
houver outros níveis intermédios as nossas autarquias até podem não estar tão
depauperadas assim.
Filipe Teles
municípios. Municípios, ou aquilo que vulgarmente temos chamado de municípios, o nível
local da decisão. Mas é verdade, é importante olhar para os níveis
regionais ou para os níveis intermédios ou aquilo que alguns autores até
chamam de mesogovernação, o nível que fica entre o local e o
nacional. Mas até aí o nosso retrato não é muito interessante porque
depois abre outra discussão que é a discussão da regionalização e não
é interessante por várias razões. Se vamos para os países que têm
dois níveis de governação subnacional, ou seja, que têm o nível regional
e depois o nível local, quando eu digo dois níveis é porque
há esta dimensão regional, alguns países por distrito a designação varia sempre
um pouco, mas pelo menos tem um nível entre o nacional e
o local, entre o governo nacional e o governo municipal, se quiser,
ali um a meio. Nós temos países como a Áustria, a Croácia,
a Eslováquia, a Grécia, os países baixos, agora assim designados, a Chequia,
a antiga República Checa, isto está sempre a mudar, a Roménia, a
Suécia e por aí adiante. A maior parte dos países que têm
dois níveis, ou seja, que têm um nível regional e depois um
nível local, são países que têm, quer do ponto de vista do
número total de habitantes no país, quer do ponto de vista da
média de habitantes por município, valores ou semelhantes ou inferiores ao nosso.
Ou seja, também há aqui um retrato curioso que seguir era importante
explorar. Há países mesmo, e aí temos que integrar os federados ou
quase federados, que têm até três níveis. Tem o nível regional, que
é o nível de Estado, como o caso da Alemanha, ou níveis
super regionais por razões de identidade linguística e cultural, como a Bélgica,
a Espanha. A França também tem um sistema mais burocrático e complexo
de administração territorial. Há vários países que têm até mais do que
estes dois, do que região e local. Independentemente dessa confusão que possa
aparecer à partir desta arquitetura de governação, qualquer que seja o indicador,
Portugal ou não está tão descentralizado quanto estes países, ou tem níveis
de governação subnacional que são inferiores àqueles que a maior parte dos
países têm usado com características semelhantes. Porque muitas vezes ouvimos a desculpa,
isto, nem tanto a desculpa, mas ouvimos a ideia de que o
nosso problema nem é haver ou não haver regionalização, o nosso problema
não é mais ou menos com terços para os municípios, é o
facto é que até temos municípios a mais. Ouvimos muitas vezes dizer-se
isto.
Portugal,
curiosamente, é fácil dizer-se estas coisas quando não... Se não olharmos para
o resto da Europa, mas Portugal é dos países europeus que tem
uma média de habitantes por município bastante acima daquilo que é a
média europeia. Nós temos mais de 34 mil habitantes em média por
município. Há países europeus que até têm três níveis de governação, que
até têm regiões e têm outros, que têm mil, dois mil habitantes
em média por município, os franceses, por exemplo, os tchecos têm 1600
habitantes em média por município, os suíços 3 mil, os austríacos também,
os húngaros, os alemães têm 5 mil habitantes por município, municípios estes
com muito mais competências, que estão naqueles índices que há pouco dizia,
numa posição incomparavelmente melhor do que Portugal, e países estes também, que
têm regiões com autonomia, têm níveis estritais com competências e, portanto, estamos
muito longe do que são estas práticas. Ou
Filipe Teles
O nosso problema não é a escala. Na maioria dos casos. O
nosso problema claramente não é a escala. O nosso problema é a
diversidade, mas é um problema que todos os outros países enfrentam. Ou
seja, é verdade que o município, e os últimos censos ainda tornaram
isto mais claro, é verdade que o município do litoral com uma
atividade econômica ou com uma cintura econômica e um tecido social vivo,
produtivo, a crescer em termos de população, tem mais do que a
escala suficiente e, eventualmente, até procura outro tipo de escalas, em agregações
intermunicipais, em áreas metropolitanas, vai muito para além das suas fronteiras e
funciona bem. Claro que com municípios, naquilo que nós podemos designar do
país mais deprimido do ponto de vista económico, com problemas sérios do
ponto de vista demográfico, grande parte do interior do país, o problema
não é a dimensão ou a escala, se quisermos, do território municipal,
o problema é da outra ordem. E, portanto, esta diversidade de necessidades
dos territórios é também aquilo que me parece que caracteriza a deficiente
descentralização portuguesa. É porque consideramos ou consideramos que a escala é importante,
mas não estamos a atender, por exemplo, à diversidade. E se continuarmos
a discutir a descentralização de forma igual para qualquer que seja o
município, é claro que vamos encontrar grandes entradas à descentralização. Transferir competências
na área da saúde e da educação para uma área metropolitana ou
para um município que está integrado numa rede intermunicipal com grande capacidade
para implementar essas políticas públicas, é totalmente diferente transferir essas mesmas competências
para um conjunto de municípios com menor capacidade e com outras necessidades.
A questão é essa.
Filipe Teles
Diferenciando, que é um problema, é uma palavra difícil de usar na
arquitetura política de governação portuguesa, que é tratar de forma diferente aquilo
que é diferente. E nós desenhámos os municípios portugueses, o legislador, a
Constituição portuguesa entende, e fomos a entender na prática de governação nos
últimos 40 e muitos anos a governação do território português de forma
com competências iguais. Todos os municípios têm as mesmas competências, todos os
municípios têm as mesmas oportunidades para desenvolver políticas públicas em determinadas áreas,
mas depois é óbvio que todos os municípios têm necessidade, ou os
territórios e as pessoas nesses municípios têm necessidade, características e meios diferentes.
E, portanto, a diferenciação foi a resposta.
José Maria Pimentel
E essa é uma centralização que está relacionada, mas não é necessariamente
visível naqueles dados de despesa, Mas é se calhar mais relevante ainda
porque é que está na base, e vê-se em muitas áreas, vê-se
na educação por exemplo, é uma espécie de... Isso é que é
cultural também, em certo sentido, a noção de que há um molde
e esse molde tem que servir para tudo e ao mesmo tempo
não existe atenção às necessidades dos vários locais. Aliás, esta questão da
cultura é inevitável a pessoa passar por aqui ou é atraente tentar
explicar estas coisas de maneira cultural, embora depois também seja um bocadinho
escorregadio. Porque eu estava a pensar e pensei nisso até a preparar
este episódio. O nosso centralismo também é histórico, ou seja, Portugal tem
uma história, primeiro tem uma história enquanto país, provavelmente, caso único na
Europa, que era uma nação antes de ser um Estado, e é
uma nação que correspondeu ao Estado desde o início, portanto, não tem
dentro de si várias culturas e várias línguas como existem muitos países
europeus, como existe em Espanha, como existe em Itália, que tem pouco
mais de século e meio de história, como existe na Alemanha, mesmo
na França em certo sentido, embora até seja um país mais comparável
com o nosso nesse aspecto, para não falar no Reino Unido e
para aí fora, e nós não, nós temos uma história em que
estamos aqui, quer dizer, com as fronteiras praticamente congeladas desde a Idade
Média, praticamente congeladas não, fixas desde a Idade Média, tirando a Livença
e um pouco mais, e de facto com um Estado que se
foi construindo com uma capital, que é a mesma capital há séculos,
e que sempre foi, sempre foi a capital do país e a
capital do império em tempos e portanto foi-se construído num estado central.
Claro que ele não existiu sempre com a forma que tem, foi-se
construído mais nos últimos dois séculos, mas ainda assim tem essa carga
histórica por trás que criou uma arquitetura e criou também, provavelmente em
termos culturais, uma visão que eu sinto até em mim próprio, e
eu nem sou de Lisboa, portanto não teria razão para ter essa
visão, criou em nós até a expectativa de que as decisões sejam
feitas a nível central. Isso até se vê no escrutínio, o escrutínio
é sobretudo feito sobre o poder central, mais do que sobre o
poder local, o que provavelmente também depois cria uma pescadinha de rabo
na boca, cria também problemas ao nível dos cortinos dos poderes locais,
mas isto para dizer que não põe em causa que seria desejável
ter mais descentralização, a história do país e a própria cultura e
a maneira como nós olhamos para a política parece traduzir essa centralização,
essa
Filipe Teles
visão de que as coisas se decidem no centro, se decidem no
poder central. Sim, é de facto a parte mais escorregadia sempre destas
discussões sobre centralização e quando entramos pelas justificações culturais, ainda que eu
as considero como importantíssimas para perceber o estado em que estamos em
termos de centralização. Concordando com a importância deste tipo de análise, eu
tenho sempre que fazer este prefácio, dizendo, atenção, que é arriscado. Antes
de entrar por aí, há aqui uma nota que eu não posso
deixar de fazer. Formalmente, constitucionalmente, Portugal não tem capital. Isto é importante
às vezes repetir. Eu ia dizer isso, mas como eu sou de
Coimbra, ficava-me mal. Exatamente. E o reino já teve várias capitais, teve
ao longo da história várias capitais, aliás, dependia muito onde cada reino,
rei ou dinastia se queria ir fixando e a capital foi flutuando.
Claro que se estabelece em Lisboa enquanto centro de poder, aí está.
Formalmente não é capital, mas é o centro de poder e informalmente
designamos sempre Lisboa como capital e assim vamos vivendo. Agora, esta lógica
de centro-poder é provavelmente a tal justificação cultural e identitária do país
que é interessante explorar e também é interessante explorar enquanto justificação para
a forma como nós olhamos para o país e para o exercício
do poder, portanto, bem sublinhado há pouco no comentário. E é esta
ideia que, por exemplo, passa quando se vê em comentários do género,
é desprestigiante passar um serviço da gestação Desconcentrada ao sistema judicial para
outra cidade portuguesa. Desprestigiante é a palavra utilizada. Independentemente de ser economicamente
ineficiaz ou de ser politicamente desaconselhável, Podiam ser outros argumentos, com os
quais não concordaria, mas não é sobre isto que vamos conversar. Mas
podiam ser quaisquer outros argumentos e o argumento é o de desprestígio.
Ou quando é desprestigiante um candidato que tem um percurso na política
nacional se candidatar à autarca. E a palavra foi a mesma há
tempos. É curioso ver, por exemplo, que em países que têm outras
tradições de relação com o poder, o percurso de carreira, podemos dizê-lo
assim, para saber do que estamos a falar, de carreira política, por
vezes é mais normal ser ao contrário, de Exercer uma função numa
entidade nacional da administração pública ou num governo ou num lugar de
nomeação política a nível nacional e depois vir a exercer um cargo
regional ou um exercício, por exemplo, de câmara, seja o que for.
Em Portugal isto é sempre visto como desprestigiante. Há de facto traço
de cultura, eu assinalava algumas e foi provavelmente a parte mais, em
tom mais ligeiro do ensaio, quando assinalava algumas das características que também
são exemplo disso, quando se diz que se sai de Lisboa para
ir a algum lado e não se vai, a algum lado sai-se
de Lisboa, ou quando medimos as distâncias, todos nós já ouvimos isso
muitas vezes, uma reunião fora de Lisboa é sempre uma reunião muito
mais difícil porque é longe, mas todos nós somos obrigados a ir
a Lisboa fazer reuniões e é natural que se façam as reuniões
em Lisboa. E, portanto, isto não é humor simples, não são apenas
traços da nossa portugalidade, são traços que traduzem de alguma forma aquilo
que é a identidade portuguesa e na relação que os portugueses têm
e as portuguesas têm com o poder e a centralidade do poder.
Isso, para mim, é um sinal de alguma infantilização também da cidadania,
infantilização da política e do exercício do poder, porque esta ideia de
que, apesar de distante, e o distante não é apenas geográfico, porque
os cidadãos de Lisboa também estão sujeitos a um poder central, ao
centralismo do poder. A distância ao poder, qualquer que seja a distância
ao poder, deixa-nos mais confortáveis, o que é muito estranho do ponto
de vista de um país maduro, do ponto de vista democrático, ou
da cidadania madura na democracia, onde a proximidade ao poder é, por
natureza, sempre melhor. Por razões óbvias, porque estou mais próximo do lugar
decisão e, portanto, pode a minha voz ser ouvida ou posso tentar
influenciar, mas também por razões de escrutínio e daquilo que até em
inglês costumamos designar de accountability, de prestação de contas, de fiscalização da
atividade, do exercício da atividade política. A proximidade tem imensas vantagens e
a nossa identidade, a que estamos aqui a falar, parece ter medo
disto. Usava-se, e falava-se disto muitas vezes, já brincamos menos com a
ideia de província, mas ela ficou, a ideia da existência de uma
capital e o resto ser província. A província, convém lembrar isto, eram
os territórios administrados pelo poder central no Império Romano. O que era
províncio era algo que era administrado por. Portanto, há quem administre e
há os administrados. E, de facto, estas marcas vão ficando. Também não
é por acaso que muitas vezes podemos perceber que há vários militantes
anti-decentralização e eles não estão apenas no centro de poder. Os cidadãos,
a opinião pública, alguns autarcas, são também todos militantes anti-decentralização, porque partilham
desta forma de entender a relação com o poder e isso pode
ajudar a perceber esta história menos descentralizada que há pouco traçávamos no
início, esta fotografia menos centralizada. Também brincava com aquela expressão, somos um
país que tem um dos seus livros no Canon da literatura, que
é a viagem à minha terra, de Almeida a Garratt,
e
as viagens terminam a 80 quilómetros de Lisboa, portanto, a minha terra
é reduça a isto. Pode ajudar a explicar.
José Maria Pimentel
E esse viés persiste, porque é engraçado. Isto traduz também uma... Portugal
é um país muito desigual a nível europeu, não necessariamente a nível
mundial, em termos económicos, em termos de acesso à educação, e também,
essa desigualdade também existe de Lisboa face à periferia, e aí a
gente se vê como muitas vezes existe uma forma que de uma
maneira mais meta nós até poderíamos chamar provinciana, para usar esse adjetivo,
carregado, que as pessoas muitas vezes de Lisboa praticamente não iam visitar
o resto do país, mas irem muito ao estrangeiro se tiverem recursos
para isso, por exemplo. Que é um paradoxo curioso, eu estou a
dizer isto, eu próprio sou em parte culpado disto, não é? Porque
havia muito mais países que eu podia ter visitado em algumas viagens
que terei feito, não é? Mas é um paradoxo curioso, porque a
pessoa, para ir ao porto, olha para três horas como uma distância
inultrapassável, mas três horas de avião é uma coisa que
Filipe Teles
a pessoa faz sem prestanejar. É, mas é este efeito da psicografia
quase. Há um mapa mental que se constrói do país dependendo do
lugar de onde se olha para ele, de onde se olha para
o país. Olhar para Portugal a partir de Lisboa ou a partir
de qualquer outra cidade, para não comparar outros aglomerados, qualquer outra cidade
em Portugal é necessariamente diferente, independentemente de ser da capital ou não
ser. Olhado para Portugal a partir de Aveiro ou a partir de
Coimbra, apesar da proximidade, diga-se, estes nossos dois exemplos, é necessariamente diferente.
Quando se está no lugar do poder, quando a imagem que se
constrói do país também é a partir desse lugar, porque a comunicação
social está cada vez mais concentrada, quando os órgãos de decisão da
administração pública também estão aí concentrados, quando a narrativa que se constrói
sobre o país parte daí, parte em grande medida desse lugar, claro
que o olhar sobre o país está tolvado, moldado, influenciado. Inevitávelmente, claro.
José Maria Pimentel
Aliás, há um aspecto engraçado que eu tenho notado. Nós vemos, nos
últimos anos, um foco crescente na inclusividade, não só no mercado de
trabalho, mas também no espaço público. Por exemplo, hoje em dia é
recorrente e bem, embora muitas vezes possa ser um juízo precipitado, se
a pessoa tiver um painel, ao painel de discussão, então cinco homens,
por exemplo. E há sempre alguém que diz, então, mas não há
uma mulher, quer dizer, há cinco homens neste painel. Raramente eu tenho
ouvido esse discurso em relação à proveniência geográfica das pessoas. E no
entanto, na maior parte dos casos que nós fomos ver, aquelas pessoas
são quase todas de Lisboa. É... Ou seja, o mesmo juízo faria
sentido, e no entanto o facto de ele ser raro ou inexistente,
ou estou a dizer raro para dar o benefício da dúvida, porque
nunca me lembro de o ver, mostra que também não existe massa
crítica, pelo menos com voz, não é?
Filipe Teles
Mesmo que sejam quatro homens, podem não notar ou não notarão certamente
que o painel não é representativo, nem representa a sociedade portuguesa, e
como normalmente são quatro homens de Lisboa, também não coloca a questão
da geografia. E mais ninguém coloca, não é? Porque depois de estar
em torno
deste
clube que gera a comunicação e as ideias que são transmitidas nos
grandes médias também não tem outra proveniência. Ou quando tem outra proveniência,
já estamos no lugar do poder e, portanto, não há forma de
entrar. E, portanto, há, de facto, falta de representatividade também territorial no
olhar sobre o país, no discutir o país, na construção política do
país, e por isso é que também a descentralização é importante. Estou-vos
a tentar fazer uma ligação ao início da nossa conversa. A descentralização
também é importante porque é precisamente dessa forma que se consegue mais
voz e mais
José Maria Pimentel
poder. Sim, levar a democracia ao local. Aliás, nós temos um... Acho
eu que temos este paradoxo. O Filipe já me dirá se isto
é verdade ou não. Mas a impressão que eu tenho é que,
embora o poder local em teoria fosse o mais democrático de todos,
e é um dos argumentos que se invocam nestas situações e sobretudo
a propósito das eleições autárquicas, na prática nós não vemos isso, não
é? E na prática o que nós vemos é que a participação
eleitoral nas eleições autárquicas eu creio que até está ligeiramente abaixo das
legislativas, não tenho a certeza absoluta do que estou a dizer, e
outros indicadores de satisfação da população e de proximidade e de participação
da população não são nada bons na maioria dos municípios, o que
é um paradoxo, não é? Isto tem que ver com o quê?
Tem que ver certamente com esta questão cultural, mas tem que ver
também com o próprio desenho do poder municipal e da democracia a
nível municipal, tem que ver com falta de massa crítica? Falta de
Filipe Teles
escala não é? Isso já percebemos que não será, pelo menos por
comparação com outros países. Sim, falta de escala não é, os indicadores
europeus são... O comportamento eleitoral europeu é muito semelhante. Na maior parte
dos países europeus, quanto mais pequeno é o município, quanto mais a
proximidade se estabelece. Exato. Aqui uma lógica que vai de encontro ao
argumento que estava a usar. Mas o que se assiste em Portugal
nem é tanto essa diferença, porque ela acaba por não ser muito
significativa. Há um declínio maior no início da participação eleitoral ao nível
local, mas que depois se aproxima e vão mais ou menos a
par. A abstenção em Portugal vai aumentando, mas vai prejudicando igualmente as
eleições legislativas e as eleições locais. Agora, o que se vê ao
nível local é, eventualmente, e aquilo que sublinhou há pouco, a tradução,
a palavra pode não ser a melhor aqui, mas é uma tradução
e um problema de arquitetura também dos governos locais. Ou seja, nós
também não podemos limitar esta conversa sobre a descentralização e a identidade
portuguesa ou centralismo, sem dedicarmos algum tempo a olhar para a forma
como funciona a governação local em Portugal. E isso também merece alguma
atenção. De facto, nós temos, eu quase arriscava dizer, para tornar até
a nossa conversa mais animada, que esta ideia de identidade centralista portuguesa
também se traduz ao nível local, porque o que temos no nosso
modelo são pequenos poderes centralistas que estão não apenas centralizados, e vamos
aqui ser repetitivos, centralizados na Câmara, mas em particular no exercício da
presidência da Câmara. Apesar do modelo eleitoral nem apontar necessariamente para isto,
mas depois o enquadramento legal, o funcionamento dos executivos municipais acaba a
favorecer este presidencialismo local. E portanto, o que também temos ao nível
local é uma espécie de reprodução do modelo centralista português, com um
poder muito limitado da oposição, com um papel, muitas vezes, apesar de
poder ser extremamente importante e haver margem na obra para isso, mas
um poder muito simbólico das assembleias municipais, que teriam aqui um papel
de coordinador, de acompanhamento das decisões, de validação ou não, mas que
vão perdendo esse poder. Portanto, não há uma tradução no exercício da
democracia local, ou se quiserem, O exercício da governação local não traduz
aquilo que seria a tal mais valia, a expressão aqui não é
mais adequada, mas a mais valia da democracia de proximidade, porque enfrentam
um modelo institucional que está desadequado. Também não é por acaso que
vamos assistindo, e aqui o parênteses pode fazer algum sentido, vamos assistindo,
desde que foi possível existir no sistema eleitoral português a participação de
listas independentes nas candidaturas autárquicas, vamos assistindo a um crescimento cada vez
mais significativo deste fenómeno, o que também traduz alguma insatisfação com o
modelo. Mas traduz, diria
eu,
traduz para já, a informação ainda é muito reduzida, a prática ainda
tem poucos anos, mas traduz provavelmente uma insatisfação mais com o sistema
partidário, o sistema de representação dos cidadãos ao nível local por via
dos partidos tradicionais do que necessariamente uma queixa face ao modelo de
governação. Portanto, a democracia local portuguesa tem deficiências também. No fundo, a
sindicataria essa também tem deficiências. Não é
José Maria Pimentel
apenas o... Tem o próprio sistema, sim. Contribua para a continuidade e
crescimento deste projeto no site 45graus.parafuso.net barra apoiar. Veja os benefícios associados
a cada modalidade e como pode contribuir diretamente ou através do Patreon.
Obrigado. A ideia de falar do poder local também me surgiu porque
comecei a pensar e percebi que havia vários aspectos da governação local
que eu não compreendia bem. O que é lá está outro paradoxo
interessante porque compreendo muito melhor ao nível da governação central, com a
qual a pessoa lida diariamente nas notícias e faz um escrutínio muito
maior porque o governo local de facto tem uma série de características
particulares que me parecem também limitações. Por um lado temos aquilo que
o Filipe dizia há bocadinho, temos o poder concentrado na figura do
presidente de câmara ou da presidente de câmara, portanto muito centrado numa
pessoa. Depois o governo da câmara é um bicho meio estranho porque
tem os vereadores da oposição teoricamente no executivo camarário, embora sem pelouros.
Quer dizer, eles podem ser cooptados e ser lhes dado pelouros e
fazer uma espécie de coligação, mas estão lá, que é uma figura
meio estranha. Mas depois a oposição, esse é um dos problemas que
é muito reportada, a posição tem muito pouco acesso à informação que
permita fazer um escrutínio. Depois temos, para além da Câmara, temos a
Assembleia Municipal, mas que é um órgão, não é legislativo, naturalmente, tem
um órgão mais ou menos deliberativo, mas que também parece ter alguma
falta de poder e, sobretudo, tem muito pouca participação dos cidadãos. Tenho
a impressão que é isso que os dados dizem. E que conta
não só com os eleitos, porque quando a pessoa vai votar, vota
no Presidente da Câmara e no representante da Assembleia Municipal, e vota
na Junta de Fraguesia e os presidentes da Junta de Fraguesia também
estão na Assembleia Municipal. Então é uma confusão gigante. E temos ainda
este nível da junta de freguesia que eu já tinha-se palpite e
depois no seu livro confirma isso, é uma espécie de peculiaridade portuguesa,
não é? Que isto nem sequer existe noutros países. Quer dizer, tudo
isto, eu sei que agora lancei aqui várias coisas para cima da
mesa, mas tudo isto já aqui é um sistema de governo que
parece pouco transparente e um bocadinho desequilibrado.
Filipe Teles
Eu pouco transparente não diria, mas já lá vamos. Eu ia dizer,
imagino, José Maria, eu ter que explicar isto, a minha área de
investigação é esta, imagino explicar isto em cada encontro académico, em cada
reunião de trabalho que tenho com colegas de outros países que já
vão percebendo como é que funciona o sistema português, como é óbvio,
até porque estudam este tipo de fenómenos e da organização, mas é
muito... É raro provar as razões.
Filipe Teles
Tal como está, é a Constituição pós 25 de Abril, é a
Constituição de 76. O modelo foi sempre, já na Primeira República, tinha
características semelhantes, depois no Estado Novo, não democrático, vai tendo esta lógica
sempre de um corpo executivo ao nível municipal que tem responsabilidades distribuídas,
ou seja, haver um presidente de Câmara e variação. Claro que há
aqui traços de mairança medieval também, mas o que nós temos hoje
como modelo totalmente novo e inovador, novo, raro, e dito em 76
como modelo muito inovador, é fruto da Constituição de 76, é fruto
da Assembleia Constituinte. Agora, a raridade traz problemas. A raridade não é
só boa porque ela é diferente e inovadora e, de facto, prometia
muito. Eu acho que este é um modelo que promete porque, primeiro,
tem este fator absolutamente distintivo, que é incluir num corpo executivo de
governação representantes da oposição. Uma lógica muito benevolente da democracia.
Filipe Teles
E de que é possível, por essa via, garantir um escrutínio maior
e até alguma consensualização na decisão política. Na prática, temos dois caminhos.
É uma espécie de representação permanente da oposição em reuniões de Câmara
e, portanto, os votos estão automaticamente determinados à partida ou então temos
essa cooptação que por vezes acontece até porque quando é preciso garantir
que há uma maioria suficiente no executivo municipal, pode haver uma distribuição
de pelouros pelos vereadores da oposição e garante-se ali uma maioria para
um mandato. Portanto, há essa peculiaridade. Há o facto de termos dois
órgãos, que é um, ao nível do município, Temos dois órgãos que
não encontramos em grande parte dos governos locais europeus. Ou seja, que
é ter um órgão executivo, aquilo que nós dignamos por Câmara Municipal,
e temos um órgão legislativo, não é bem, mas vamos chamar de
legislativo porque formalmente devia, é o que é, que é a Assembleia
Municipal. Ou seja, que tem competências de fiscalização, independente da Câmara, que
tem competências de aprovar grandes opções do plano, contas, orçamento, regulamentos, taxas,
licenças, etc. Portanto, tudo o que são competências do foro mais legislativo
da ação municipal e depois que compete à atividade camarária para o
ano seguinte, mas que na prática também se transforma num órgão, aquilo
que fomos assistindo na democracia portuguesa, num órgão menor do exercício da
democracia local, apesar de ser o órgão principal. Porque estando o poder
todo concentrado a decisão, o dia a dia da governação, a capacidade
de exercer isso, porque a presidência e a vereação a tempo inteiro
ou ao meio tempo são remuneradas, e bem, como tem que ser
porque é um exercício de um cargo executivo político. Já a despesa
da Assembleia Municipal, na maior parte dos casos com senhas de presença,
não justifica grande dedicação, nem grande tempo, nem grande capacidade para ir
acompanhar o dia a dia. Portanto, foi-se perdendo o papel importante que
as assembleias municipais podem ter e devem ter. E
José Maria Pimentel
também me parece que haverá outra limitação, eu não conheço estes números,
mas imagino que a correlação entre os votos para a Câmara e
os votos para a Assembleia seja muito grande, o que significa que
a distribuição na Assembleia, mesmo com aquela especificidade dos presentes de junta
serem adicionados, mas a distribuição não há de fugir muito da distribuição
dos pelos, dos pelos, perdão, dos lugares, dos valores de variadores. Portanto,
no fundo, o que é aceito de um lado é aceito
Filipe Teles
no outro. Até temos os casos de, que alguns autores até defendem,
de que este modelo não contribui para a governabilidade porque a oposição
está no executivo e porque depois pode haver um desequilíbrio entre a
Assembleia e o executivo municipal e todos estes desequilíbrios vão prejudicar a
governabilidade municipal e que nós podemos contar pelos dedos os casos de
executivos que não conseguiram governar, ou presidentes de câmara, que tiveram que
deitar a toalha ao chão, seria essa a expressão mais esportiva, porque
não conseguiram governar. Em 45 anos é contar pelos dedos, em 45
anos de democracia local. E, portanto, o que acontece é que tem
mais de um problema oposto. Exatamente. O que temos é que as
maiorias conseguem-se nos executivos facilmente, as maiorias formam-se com facilidade por via
do método da proporcionalidade eleitoral, quando não se formam, formam-se facilmente na
distribuição de poluores ao nível do executivo e não há casos significativos
de ingovernabilidade e depois a relação, o que disse bem, a correlação
com os votos para a Assembleia é muito significativa e portanto também
não há na Assembleia uma sede da democracia local em termos de
exercício de fiscalização e de acompanhamento. Há quase uma lógica de complementariedade.
Pois as pessoas participam um pouco também, não é? A população, imaginou?
A
população... É interessante. Decidiria na Assembleia, não é? Decidiria... Quer na Câmara,
quer na Assembleia. Depois também temos esta peculiaridade. E tudo isto é
a literacia do sistema político português, é a literacia do sistema da
governação local. E a Busina Maria dizia isso bem no início. Conhecemos
bem como é que funciona a democracia nacional e a governança nacional,
porque tem sede num espaço mediático, mas lá está mais um exemplo
do nosso centralismo, é que depois a democracia local não tem sede
nenhuma, mas é com aquela que nós temos de conviver quase todos
os dias. Mas é outro exemplo de facto, os cidadãos podem participar,
vai depender depois de regimento para regimento, mas têm pelo menos uma
vez por mês
a
possibilidade de participar em reuniões de assembleia municipal, num espaço dedicado ao
público para colocar questões diretamente à Assembleia Municipal, ao Presidente ou à
Presidente e à Vereação, mas também podem ter, de acordo com o
regimento das Assembleias Municipais, espaço dedicado para poder colocar questões, levantar problemas,
participar diretamente no período que é dedicado ao público, nas assembleias municipais.
Perguntar-me há, faz sentido os dois? Sim, há dois órgãos, faz sentido.
Faz sentido na cabeça do cidadão ter de decidir e perceber o
suficiente para saber a qual é que deve ir e por que
razão é que deve ir. Não faz sentido, temos que facilitar este
processo. E quando ele também é peculiar por causa disso, traz desafios.
E o terceiro, o resumo foi bem feito, o terceiro é o
facto de termos este nível submunicipal. Há tempos, há uns anos, trabalhei
com um conjunto de colegas num pequeno livro sobre a organização submunicipal
na Europa. E nós apresentamos mais uma vez Portugal como um caso
diferente. Há muitas estruturas submunicipais na Europa. Grandes cidades que precisam de
uma lógica de organização por distrito urbano, ou por bairro, ou por
qualquer outro arranjo de escala que não seja municipal, muitas vezes associado
às lógicas das áreas metropolitanas ou de grandes capitais. É muito esta
a razão para a organização de estruturas submunicipais. Nunca numa lógica nacional.
Ou seja, nós somos o único país europeu que tem um órgão
submunicipal, que nós chamamos freguesia, junta de freguesia, aliás, Assembleia de freguesia,
com competências sobre esta divisão submunicipal, que se distribui pelo país todo
de forma igual. Ou seja, todos os municípios estão, entre aspas, divididos
por freguesias. E isto não acontece em lado nenhum na Europa. Aliás,
isto também nos levanta problemas de comparação. Qual é que é o
nosso governo local? É a freguesia?
Filipe Teles
comecei esta parte da nossa conversa a dizer que há um mérito
no desenho da Assembleia Constitucional, há um mérito no desenho da Constituição
de 1966 na forma como olha para... E depois na legislação posterior
que configura o nosso poder local e a forma como se governa
ao nível local, que tem mérito, que tem um olhar novo sobre
a forma de governar os territórios de proximidade. Mas depois levanto estas
questões todas. Mas eu diria, este é um debate que não pode
estar separado do debate da descentralização, que não pode estar separado do
debate da revisão, por exemplo, do sistema eleitoral português. Não é apenas
o local, também o nacional. Quando nós temos representantes que são eleitos
por distritos e quando a organização distrital em Portugal deixou de fazer
sentido há algum tempo, Não é apenas porque não há governos civis,
é porque os distritos deixaram de responder à maior parte da organização
administrativa do território português, na organização desconcentrada, por exemplo. Quando dissociamos estes
três debates ou quatro que já estou a colocar em cima da
mesa do debate da transferência de competências e de recursos, falamos muitas
vezes só de competências e esquecemos da questão dos recursos, do debate
sobre a racionalização, que é tratado de forma separada deste bolo outro
enorme de discussões que são possíveis de ter, da diferenciação, que há
pouco
o José
Mario me obrigou a sublinhar, e bem, que o nosso problema também
é em que é precisar diferenciar o que são as competências dos
municípios em função dos diferentes territórios. Nós olhamos para tudo de forma
igual. Portanto, há aqui tantas peças neste puzzle que um debate sério,
uma discussão séria sobre a arquitetura da governação portuguesa não pode ficar
apenas pela pergunta é a favor ou contra a descentralização ou é
a favor ou contra a regionalização e limitar a resposta aos tais
três ou quatro comentadores homens de Lisboa que se sentam na televisão.
Isto só para provocar ainda mais.
José Maria Pimentel
Até porque é uma medida que, certa ou errada, é o tipo
de medida mais fácil de tomar para todos os efeitos. Porque é
o tipo de medida que é por construção tomada centralmente, é uma
mudança do sistema, mas que acaba por, provavelmente não é a medida
mais eficaz, não quer dizer que não contribui para isso, mas não
é a medida mais eficaz para sedimentar a democracia a nível local,
que no fundo é o que tem que ser a base disto.
E as pessoas pensarem a participação política também numa lógica local, aquilo
que o Filipe falava há bocadinho da própria questão do sistema eleitoral,
o nosso sistema eleitoral, depois a pessoa podia comentar como fazer isto,
mas o nosso sistema eleitoral basicamente são listas em que há um
representante nas duas relativas ao representante do distrito que algumas vezes tem
a ver com aquela zona geográfica, outras vezes não tem e as
pessoas nem ligam particularmente àquilo, A ideia que eu tenho é que
votam no partido. Estou-me um bocadinho nas tindas para o bem e
para o mal, mas aquela pessoa é... Para aquele deputado, é o
deputado é que estou a eleger. Uma pessoa que se decidiu pôr
como cabeça de lista naquele distrito, mas podia ter sido outra qualquer,
ou seja, não há ali uma lógica. Depois, claro que o nosso
sistema também não tem essa lógica do nosso representante direto, que entretanto
também pode ter outras desvantagens, não crendo por aí, mas não existe
sequer essa lógica geográfica. Embora existam listas por região, não existe, eu
acho que na cabeça da maioria das pessoas, a ideia de eu
estou a eleger a cabeça de lista pelo meu distrito. Aquilo é
um bocadinho, parece um bocadinho maquilhagem em certo
Filipe Teles
sentido. Sim, a lógica do nosso sistema eleitoral tem virtudes, mas eu
diria já... As virtudes de um sistema dependem sempre da forma como
se olha para ele. É óbvio que se eu tenho este defeito
de olhar para o problema que me é colocado no domínio da
ciência política, pode ser noutra qualquer, mas no domínio da ciência política
eu olho para o problema a partir da minha visão sobre a
arquitetura subnacional, sobre a descentralização, sobre o poder local, sobre estas coisas,
e eu olho necessariamente para o problema do sistema eleitoral português, ou
do modelo de representação português, e olho do lugar do poder local,
por defeito. E olhando do lugar do poder local, vejo aqueles problemas
que estávamos a identificar. Da incongruência entre os círculos eleitorais e os
lugares de pertença das pessoas. O distrito já não é a identidade
nem o lugar de pertença. E
Filipe Teles
O distrito já não é a forma como organizamos a administração pública
em Portugal, mas continua a ser a forma como elegemos e, portanto,
eu olho dessa forma. Como o comissão de Maria Agórias estava a
sublinhar bem, provavelmente, ou sabemos isso também de alguns estudos de comportamento
eleitoral, o voto em função das expectativas de resultado na formação de
governo não justifica muitas vezes a votação no cabeça da lista do
partido no meu distrito. O que é que isto quer dizer? Quer
dizer que eu estou a votar em função de uma expectativa de
vencedor ou de posição que eu quero assumir enquanto eleitor num determinado
partido, pela imagem nacional que esse partido tem, pelos representantes nacionais que
tem, pela sua agenda, por razões ideológicas, seja qual for a razão,
e eu posso desconhecer, ou em muitos casos eu diria até que
a grande maioria dos eleitores, eu até posso desconhecer totalmente quem são
os membros da lista que esse partido apresenta no seu distrito. Portanto,
vota-se por outra razão e não em função das listas. Mas essa
é a lógica do nosso sistema, não é uma lógica de representação.
Claro que isso traz, para além disso, eu há pouco dizia que
olho para isto sempre a partir da lógica do Poder Local traz
outro problema acrescido que é o de vir a agravar também alguma
dos desequilíbrios territoriais que nós temos. Quando nós temos três ou quatro
distritos eleitorais a elegerem uma maioria do Parlamento e os restantes distritos
a elegerem menos metade, isto cria desequilíbrios, porque se faz em função
da população e, portanto, há territórios que estão sub-representados. As populações estão
sempre representadas por razões proporcionais, mas os territórios, enquanto entidades não eleitoras,
um território é uma coisa que não vota, mas temos distritos neste
país com um ou dois deputados que são os únicos representantes e,
portanto, muitas zonas do país que vão ficando também dessa forma mais
distante daquilo que nós vulgarmente chamamos coesão territorial. Coesão também se faz
por aí. Portanto, Não é só as pessoas, são também os territórios,
é o equilíbrio do país e por isso é que o debate,
se houver debate novamente em Portugal sobre a reforma do sistema político
e eleitoral em particular, também deve trazer este olhar, um olhar da
arquitetura subnacional, do poder local, do que é que significa eleger para
um órgão nacional a partir da democracia local e da importância que
têm os territórios e as pessoas. Não pode ser apenas uma discussão
sobre a lógica nacional. E porquê que não
José Maria Pimentel
há mais reivindicação a nível local? Isto então um bocadinho me presenta
a nossa conversa, mas eu estava a pensar qual será a razão
de fundo para isto. Eu fui para a bocada o dia até
àqueles presidentes de câmara que aqueles próprios, quase em aparente contradição, rejeitam
a descentralização. Eu não sei quão representante é, por acaso fiquei curioso
quais seriam as razões evocadas por eles, mas não sei quão representativos
serão, Mas a verdade é que parece, aliás, como mostra aquele exemplo
que eu estava a dar há bocadinho da inclusividade, às vezes parece
haver também pouca reivindicação, o que eu não sei se terá a
ver com alguma dificuldade de associação até entre as várias cidades, entre
as várias localidades da mesma zona, que muitas vezes têm rivalidades entre
si e têm muito mais a ganhar em se aliar e formar
um corpo, sei lá, de sociedades a norte do Douro, por exemplo.
Há aquele exemplo quase caricatural, mas que é verdade, a rivalidade entre
Braga e Maranhos, que gastam mais tempo, se calhar, na sua rivalidade
do que em associar-se e formar, no fundo, uma espécie de regionalização
bottom-up, uma regionalização vinda de baixo, vinda de facto das pessoas que
teriam a beneficiar com isso. Seria o caminho normal.
Filipe Teles
Por aí há notas positivas a dar, eu tenho que me aguardar
um bocadinho optimista, mais positivo à conversa. Há uma prática histórica já
em Portugal, que é importante sublinhar, que é do associativismo municipal. Ou
seja, a relação, a procura de escala, que é agrupar dois, três
ou mais municípios em função da prestação de um serviço em particular,
ou às vezes até multifunções, não é apenas prestar um serviço aos
municípios daqueles, daquela agregação municipal, daquele conjunto de municípios, mas pode ser
até mais do que isso, já vinha a ser uma prática da
democracia local portuguesa há algumas décadas, vem a reconhecer maior força e
até uma obrigatoriedade por força de lei quando são constituídas, na versão
atual, porque têm quase 19 anos, as comunidades intermunicipais e áreas metropolitanas,
a sua congénere no Porto e Lisboa, vem de facto reconhecer e
reforçar esta prática, são um bom exemplo daquilo que estava a dizer,
que é o da procura por via, numa lógica bottom-up, por via
dos próprios municípios, de quais são as áreas ou permitidas por lei
ou obrigatórias por lei, seja qual for, permitidas significa ainda alguma margem,
são aquelas áreas de atuação onde se ganha ganhando escala e fazer
isto de forma de baixo para cima, ou seja, por iniciativa voluntária
dos municípios vizinhos, é um sinal muito interessante da vitalidade da democracia
local. É um sinal de voz, reivindicação, vitalidade do poder local. Claro
que isto vem a ser reforçado ainda mais quando, por exemplo, por
via dos fundos comunitários, particularmente os programas regionais dos fundos comunitários, quase
que condicionam o acesso a fundos das entidades públicas, nomeadamente as autarquias,
a projetos que tenham esta cariz intermunicipal e, portanto, isto ainda veio
reforçar mais este trabalho em conjunto. E eu diria que essa, e
trabalhei há algum tempo sobre este tema, essa é uma das características
mais interessantes da governação local portuguesa, até em termos comparados europeus, nos
últimos 10 anos. É a vitalidade e a dinâmica da colaboração, da
cooperação intermunicipal, como assim costumamos designar. Agora, aquilo que estava também a
referir é não sentir tanto esta reivindicação ao nível nacional, uma voz
nacional em defesa do poder local, mas isso traduz também uma lógica
de... Aqui voltamos ao negativo e voltamos à lógica de identidade. Diria
que se traduz também esta identidade que depois se vê no exercício
do poder local subserviente face ao poder central, naquilo que algumas vezes
até posso ser mal interpretado, posso dizer desta forma, mas é o
que por vezes parece que é uma lógica de pedinte, ou seja,
o governo local parece perder a sua legitimidade eleita, autónoma, constitucionalmente protegida,
da autarquia, a lógica da autarquia, porque se vê na posição de
pedinte perante o governo central, de quem depende muitas vezes para um
conjunto de investimentos, um conjunto de respostas a necessidades de população, num
conjunto de favores, que é uma palavra que também faz sentido incluir
aqui e, portanto, inverte-se muito esta lógica. Aquilo que poderia ser uma
lógica de reivindicação, de discussão séria sobre o que é que deve
ser competência do município, o que é que deve ser competência do
governo, como é que nos podemos entender relativamente a estas matérias, aquilo
que na literatura mais académica nestas áreas se chama até de articulação
multinível, traduz-se muitas vezes mais na lógica de pedinte e subserviência e
quando assim não é, quando isto não acontece, é provavelmente aqueles momentos,
aquelas áreas de política pública, aquelas decisões que me parece que são
mais maduramente tomadas em Portugal. É quando há uma boa articulação quase
entre pares, entre os decisores locais, os decisores regionais da administração desconcentrada,
não políticos, porque não temos no continente, mas da administração desconcentrada, e
entre os decisores nacionais. É pena ser raro, acontece menos também porque
o poder local, se calhar por estas razões de identidade que andávamos
a falar, tem uma relação menor com o poder
José Maria Pimentel
estava a tentar chegar era perceber se isso é uma consequência da
centralização e, portanto, é uma limitação de facto ou se é um
problema de dificuldade de associação ou até cultural e de falta de
vontade de levantar a voz porque os municípios até teriam poder para
isso. O que nós vemos agora nas autárquicas, até tem sido quase
caricatural, mas nós vemos o Primeiro-Ministro passear pelos vários municípios e anuncia
o plano europeu, a inauguração de um determinado organismo, de uma maternidade,
como fazia em Coimbra, e independentemente da nossa visão moral sobre a
legitimidade de fazer isso, o facto dele fazer isso mostra que isso
provavelmente resulta, não é?
Filipe Teles
E mostra que o município se sente subalterno. Claro, claro. Esse é
um exato exemplo. E com a mesma nota, independentemente do juízo que
fazemos sobre isto e daquilo que podia ser até mais transparente, mais
legítimo, mas que
seria
uma separação clara do exercício do poder governativo durante os períodos eleitorais
de outros órgãos. Por exemplo, um primeiro-ministro não tomar nenhuma, não aparecer
publicamente ou não fazer nenhum anúncio público neste período que interferisse sobre
as decisões locais, poderia ser mais correto, mas não vamos suspeitir isso,
independente disso. Isso é um exemplo muito claro de como há uma
dependência excessiva, ao nível local, daquilo que é o poder central. Porque
se uma intervenção de um primeiro-ministro a dizer que uma determinada obra
vai ser incluída no PRR para aquele município. Isso terá uma influência
sobre o comportamento eleitoral numa eleição que é totalmente independente da eleição
nacional ou de quem ali falou, que foi o primeiro-ministro, só vem
mostrar-se mais uma vez que há aqui um desequilíbrio enorme, para além
dos problemas de modo de ingerência, de pouca transparência que isto pode
levantar, mas isso seria uma discussão sobre a transparência do exercício político
em Portugal. E portanto, sim, isso é outro exemplo. Nós temos vários
exemplos disso que andamos a falar, tivemos, por exemplo, agora no período
que ainda vivemos, mas que sentimos todos que está numa fase diferente,
que é o da pandemia. Nós fomos o único... Há estudos já
feitos interessantes sobre a resposta à pandemia, à descentralização e à forma
como os países foram respondendo mais ou menos eficazmente do ponto de
vista da reorganização dos seus serviços de saúde, etc. E de segurança
até, e claro que países descentralizados foram adaptando as suas respostas também
às necessidades regionais específicas ou locais específicos e tinham vantagens nessa matéria.
Tudo bem, não estou a dizer que Portugal teria respondido melhor ou
pior a estes trabalhos feitos também em termos europeus, mas fomos o
único país, é isso que eu estava a dizer, que teve, e
aqui vou usar a palavra mais forte possível, que teve o desplante,
pode ser assim, de nomear secretários de Estado para coordenar a resposta
regional. Nós tivemos secretários de Estado nomeados com áreas completamente diferentes, do
desporto e de outras, que vinham coordenar regiões. Na resposta inicial, logo
no ano passado, em 2020, na resposta à pandemia, se há visão
mais centralista em esta, é preciso indicar onde está a estar. Lá
está a administração da província, lá é o administrador nomeado pela capital,
pelo Império Romano, administrar a província, seja qual for, o centro, o
norte, o Alentejo, foram todas administradas pelo administrador provincial. São pequenos exemplos
como estes, às vezes caricatos, fazem-nos rir, mas traduzem a tal identidade
que falávamos há pouco, que fica cravada depois na ação política cotidiana
e que explica algumas das deficiências que vamos aqui conversar. Eu,
José Maria Pimentel
Filipe, agora para dar um tom mais otimista, pegando naquilo que falava
há bocadinho, que apesar de tudo tenha havido alguma evolução, por exemplo,
na cooperação interna entre municípios. E no livro fala também de outras
evoluções que têm havido nos últimos anos, provavelmente este século, e que,
não deixando, acho eu, de manter um retrato global de centralismo, apesar
de tudo, têm dado alguns pasos. Quais são as principais mudanças que
têm havido e, ao mesmo tempo, também quais são as limitações que
elas têm, que no fundo levam a que este diagnóstico se mantenha?
Filipe Teles
Eu diria que os governos, os municípios, o poder local, vamos usar
uma expressão que seja sempre a mesma, que o poder local em
Portugal, com as competências e com os meios disponíveis, foi sendo obrigada
a adaptar-se muito rapidamente a realidades novas que tinha que enfrentar. E
eu
diria
que essa é uma das grandes virtudes do governo local português, é
uma história feliz para contar, é o facto de ter adaptado. Adaptou-se
à digitalização da economia, adaptou-se a ter que compreender que a governação
local não é apenas a prestação de serviços ou a infraestruturação, é
também falar de uma economia de quarta geração, é falar da atratividade
territorial, do marketing regional, da cooperação com outros municípios e, portanto, também
foi adaptando-se a novas formas de governar. Foi transitar de uma fase
muito importante após a integração europeia, eu diria até quase final do
século XX integrado, que é o da infraestruturação, foi muito responsável pelos
equipamentos e pela infraestruturação do país. O Portugal de 85, para ir
adesão à comunidade económica europeia, então, é muito diferente do Portugal de
hoje, também pelo grande esforço de investimento feito ao nível local. Temos
brilhantes exemplos. Eu tive a oportunidade de coordenar cientificamente um trabalho com
uma antena, com uma rádio portuguesa, sobre o poder local do século
XXI, e elegemos um conjunto de temas e de municípios para falarem
sobre desafios. Isto para dizer o quê? É possível identificar áreas, projetos,
iniciativas extraordinariamente inovadoras ao nível local. Eu diria que em políticas públicas,
em governação, onde mais se inova é de facto ao nível local.
A
proximidade das luras. Os orçamentos participativos, por exemplo. Aí, na participação cívica,
na inclusão dos movimentos sociais e nos processos de decisão, nas respostas
a desafios ambientais, de educação, projetos municipais, até de respostas em áreas
de saúde, portanto até em áreas de política pública onde normalmente os
municípios não tocavam, temos incríveis exemplos pelo país fora. E portanto eu
podia ter aqui, podia-me sentir daqui um programa fantástico comigo a dizer
coisas positivas, porque é fácil fazê-lo. Agora, É muito mais fácil garantir
que isto acontece mais frequentemente em mais municípios e não apenas naqueles
onde há capacidade para o fazer. Capacidade financeira, capacidade de recursos humanos,
capacidade de organização, capacidade política. Seria muito mais fácil que isto fosse
normal, porque O retrato que eu fiz é o retrato das exceções.
Nós encontramos boas exceções em todo o lado. Que isto fosse mais
normal, que fosse o dia-a-dia da governação local, se nós tivéssemos um
poder local com capacidade para o fazer. A capacidade, quando falo de
capacidade, é os recursos, a descentralização necessária, a autonomia na decisão em
muitas áreas que não tem. Mas sim, é um país que se
adaptou a esse período de infraestruturação para um período de grande ritmo
de investimento europeu e de novas agendas. Os municípios, os autarcas portugueses
e as autarcas portuguesas precisaram se adaptar a toda uma nova agenda
que passou daquilo que era, e que todos nós brincavamos, a agenda
das rotundas e dos parques esportivos que se replicaram pelo país e
das piscinas, outro assunto que normalmente não é referido sobre o local,
e das piscinas municipais, para a competitividade económica, para o turismo, para
o apoio à inovação social, por exemplo, ao empreendedorismo, à digitalização da
economia. Portanto, há uma capacidade de adaptação e de resposta que é
absolutamente necessário reconhecer. Isso sim são as boas notícias, que a pensada
de associativismo é outra. São as boas mensagens que devem... Há pouco
o Zé Maria solicitava, as boas mensagens que vão passando da prática
do governo local em Portugal. E não estamos sempre fora dos... Começámos
a conversa por aí dos índices comparativos, ou seja, também olha, se
olha muitas vezes para Portugal, diz, há boas práticas aqui, por exemplo,
na governação eletrónica, ao nível local, fomos durante muito tempo os países
mais inovadores, a introdução de boas práticas em termos de governação eletrónica,
Não só o acesso à informação, mas mesmo o envolvimento dos cidadãos
na tomada da decisão por via das tecnologias de informação. Há vários
exemplos deste género. Isso é um bom ponto para falarmos daquilo que
falta fazer.
José Maria Pimentel
Nós já cobrimos algumas destas coisas. Uma delas seria reformular ou repensar
o próprio sistema do governo local. Nós falámos já de uma série
de desfuncionalidades que existem no governo da Câmara, por exemplo. Outra seria
dotar de mais meios financeiros às câmaras, o Filipe falava disso ainda
agora, e aqueles indicadores que falámos no início mostram isso bem, o
nível de despesas, o nível de funcionários públicos, tudo isso mostra, no
fundo, o poder financeiro que a própria Câmara tem, no fundo é
isso que permite que... Os recursos, não é? Os recursos, exatamente, o
financeiro que a Câmara tem, é o que permite que faça coisas.
Também a coordenação entre municípios, seja pela existência de entidades, no fundo,
de fóruns, não é? De mesas nas quais as pessoas possam sentar
e fazer essa cooperação, seja por via mesmo de uma regionalização de
facto, o que é que falta aqui? Resumo fantástico. Falta acrescentar
Filipe Teles
aqui, outra vez que já falámos, a diferenciação, ou seja, também
a forma de
olharmos para os territórios diferentes de forma necessariamente diferente, e portanto com
necessidades de governação e competências dos municípios que sejam diferenciadas. Falta uma
coisa que é particularmente difícil, ou duas diria, uma que é da
mudança de identidade, que é uma coisa que não existe, não se
mudam identidades, assim, há uma mudança de comportamentos, de práticas centralistas em
Portugal, isso é um processo longo e pode decorrer destas primeiras que
estávamos a falar. Não sou nem optimista.
Filipe Teles
sou nem mais ou menos otimista em relação a isso. É necessário,
claramente, e esta é uma agenda mais possível e que falta aí
incluir, que é a agenda da transparência. A transparência é fundamental na
governação. Por uma governação credível, que não afasta as pessoas, que legitima
a decisão e que torna a decisão pública e a governação pública
verdadeiramente aquilo que elas são, que é pública. A redundância aqui é
obrigatória, ou seja, torna acessível, compreensível, repetidamente, fácil de aceder a informação
sobre como se tomam decisões ao nível local, regional e nacional aos
cidadãos. Essa é uma reforma fundamental em Portugal, a reforma da transparência.
Podemos rotulá-la de ampla corrupção, outras coisas.
Filipe Teles
continuam com ela. Claro. Em muitos países se assistiu a este processo,
até com a legislação nacional muito clara relativamente ao acesso à informação.
Eu diria que esse pequeno passo da transparência que foi sendo dado.
Há melhores formas de aceder hoje à informação do que havia há
uns anos atrás, mas ainda assim eu continuo a usar o verbo
aceder à informação, o que significa que eu tenho que fazer alguma
coisa, não é? Aqui há alguma agencialidade do meu lado. Então, há
uma decisão que eu tenho que tomar e meios que eu tenho
que recorrer e conhecimentos que eu tenho que ter para aceder à
informação sobre como se tomam decisões e quais são as decisões e
que concurso é que foi feito e quem é que votou e
como... Ou que regras é que são ou se eu devia ir
à Assembleia ou à Câmara ou se foi o Governo que decidiu
ou se foi a Comunição de Coordenação Regional. Portanto, o sistema é
to complexo. Eu preciso de fazer alguma coisa. Uma governação verdadeiramente transparente
quase que não necessita de vontade para saber. A população, os cidadãos,
os cidadãs têm acesso à informação porque ela está disponível. E esta
relação muito transparente com a decisão, com a governação é fundamental e
ajudaria a transformar ainda mais depressa esta arquitetura que estávamos a falar.
E essa é uma reforma mais longa. Isto já não é apenas
sobre o poder local, é uma reforma da governação portuguesa como um
todo. No poder local isto é particularmente sensível e é mais sensível
porque está à mão. Nós dizemos muitas vezes isto, para quem estuda
Governança Local e Poder Local, que a transparência ao nível local faz-se
de duas formas. Ou se faz mostrando, disponibilizando a informação, ou se
faz porque eu me cruzo com o Presidente de Câmara ou com
a Vereadora não sei quantos no café e pergunto então, como é
que é? Esta é a virtude da democracia local, é a grande
virtude do pequeno demos, o pequeno espaço de decisão, é a virtude
da proximidade. Mas também é mais opaco, não é? É mais difícil
Filipe Teles
Claro, precisamente, precisamente, E por isso a transparência faz-se de outras formas,
mas tem esta possibilidade. Quanto mais a escala é outra, quanto mais
central é o poder, menos destes mecanismos são disponíveis. Eu não me
cruzo com o equivalente da governação local todos os dias, nem no
café, nem algo que se pareça. Nem se pode limitar a isso
a transparência. Portanto, esta é uma reforma que eu diria que era
fundamental e que acrescentava a essas todas mais relacionadas com o local,
que bem resumimos há pouco os dois, temos um plano de trabalhos
interessante. Temos o mais fácil.
José Maria Pimentel
O Filipe já frisou várias vezes que há uma diversidade grande e
essa diversidade também existe, como não poderia deixar de ser, na própria
qualidade da governação. O Filipe participou, salvo o erro em 2019, no
relatório da Fundação Francisco Melo dos Santos, sobre precisamente a qualidade da
governação, que estudava, através de vários indicadores, os vários níveis de qualidade
da governação nos municípios no país. Olhar para o topo é interessante,
não é para o... Estou tentando dizer isto em português para não
me caírem em cima, por estar sempre a usar expressões estrangeiras. Olhar
para a lista...
José Maria Pimentel
Para a classificação, exatamente. Olhar para a classificação dos municípios é um
exercício interessante porque não estão aqui sequer nomes muito óbvios. Aparece Mealhada
em primeiro lugar, Abrantes, Oliveira do Hospital, Boticas. Boticas eu por acaso
sabia que era bem governado. Proença Nova, Pena, Cova, enfim, eu procuro
uma série de conselhos. O meu objetivo aqui não é falar de
nenhuma coisa em particular, mas fiquei curioso ao ler o relatório, ou
a passar os olhos pelo relatório, para ser justo, que não lido,
fiou para vivo, e portanto é possível que a minha pergunta lá
esteja respondida, o que é que diferencia os conselhos, para simplificar, bem
governados e os mal governados, os municípios bem governados e os mal
governados? Porque nós apontámos aqui vários problemas, mas eles também terão cambiantes
de certeza e haverá sítios onde a governação... Aliás, há municípios que
não estão aqui e que têm tido bons progressos nos últimos anos,
como Viseu, por exemplo, Aveiro também, em certo sentido, Braga, por exemplo,
onde a governação local parece, sem me crescer aqui a pronunciar sobre
os candidatos às eleições, que a governação local parece ter tido algum
sucesso, enquanto há outros que, onde claramente isso não acontece. E
Filipe Teles
vemos, sei lá, presidentes de câmaras eternizarem-se no poder sem uma aparente
correspondência com a qualidade da governação e por aí adiante. Este é
um bom indicador, não é? É da competição democrática ao nível local.
Mas antes de ir aos indicadores que permitem responder à pergunta, eu
queria só fazer aqui talvez uma pequena correção, que é este trabalho
que nós fizemos para a Fundação, foi de 2018 e não de
2019, podemos confirmar isso, ele não é capaz de dizer, eu não
sou capaz de dizer, nem era o objetivo, e sei que é
impossível dizer isso a partir daquele relatório, que se é bem governado
ou mal governado. Eu acho que há aqui um sujeito que não
existe. O que se avalia é a governação, que é um conceito
um bocadinho mais. Ou seja, não é quem governa, mas como o
sistema ao nível local, o sistema de governação ao nível local... Não
depende necessariamente daquele presidente da Câmara
Filipe Teles
Muito feliz quando os resultados não eram dele. Depois há essas questões,
há outros dados, a maior parte dos indicadores que nós usamos para
isto, alguns nem estão disponíveis, lá está a questão de transparência, nem
todos os dados que nós precisávamos são do ano anterior, muitos daqueles
resultados dizem respeito a ciclos eleitorais anteriores e a Presidente de Câmara,
a pé de outros partidos. Exato, exato. Por isso é que nós
evitámos ter, e constávamos muitas vezes isso com a Fundação, evitámos ter
um ranking nacional ou que isto se tornasse uma espécie de ranquificação.
Pois, Pois, pois.
Filipe Teles
mesmo propositadamente. O estudo tinha um objetivo muito claro, que é procurar
responder uma pergunta. O que é que significa qualidade da governação, em
primeiro lugar? Nós sabemos o que é que é academicamente e na
prática e na discussão e no dia a dia podemos tentar configurar
uma definição do que é a qualidade da democracia, por exemplo, eleições
regulares, eleições livres, poder associar-me para poder votar, poder associar-me para poder
ser candidato, ter acesso à informação. Podemos falar muito sobre qualidade de
democracia. A qualidade da governação é um bocadinho mais complexa. Veja, hoje
a governação, por isso
é que
usamos muito mais esta palavra do que governo, tantas vezes, a governação
é também extremamente complexa, porque implica várias áreas de políticas públicas, implica
vários conhecimentos diferentes, o conhecimento burocrático, o conhecimento técnico e científico das
áreas, o conhecimento político, a decisão política, obriga à relação aquilo que
também podemos ignorar, já há pouco falava desse palavrão, da relação multinível.
A governação implica uma relação com a freguesia, uma relação com a
comissão de coordenação, a administração regional de qualquer coisa, o governo e
a União Europeia. Portanto, articulação multinível obriga ao cumprimento de um conjunto
infinito, por isso é que governar hoje também é mais difícil, de
normas, de enquadramento legais, jurídico, de regras do ponto de vista da
discussão financeira, é
muito
mais complicado. Articulação entre sectores, porque governar hoje também já não é
apenas, não é a Câmara Municipal enquanto órgão da administração local e
a administração local que implementam as decisões ou que têm responsabilidades diretas
sobre algumas áreas políticas públicas, em articulação com empresas municipais, já entra
aqui o setor para-público, ou com o setor privado, quantos dos prestadores
de serviços ao nível local são, ou as prestações de serviço são
feitas pelo setor privado, o terceiro setor, ou o setor da economia
social, tem um papel cada vez mais preponderante, e portanto nós estamos,
isso foi só um retrato rápido, a falar de um sistema muito
mais complexo e perguntar o que é que a qualidade nisto obriga
a perceber de que é que estamos a falar. Foi esta uma
primeira pergunta que procurámos responder. A segunda é, se temos aqui uma
ideia de que a qualidade de governação tem a ver com várias
destas dimensões, o acesso ao cumprimento da lei, uma coisa básica, haver
um mercado livre e concorrencial que é respeitado, por exemplo, nos concursos
públicos, que há mecanismos para prestação de contas do ponto de vista
financeiro, do ponto de vista político. Transparência. Transparência, que há liberdade de
expressão, há equidade nas decisões, que há mecanismos de participação, que há
informação acessível nos meios ao se dispor das municípios, que há estabilidade
política, que há governabilidade, que há concorrência política, como há pouco dizíamos,
e portanto eu não vou passar, até porque eu não me recordo
de todos os indicadores e todas as dimensões que colocámos neste trabalho,
há um conjunto muito significativo de, para simplificar, assuntos para os quais
importa olhar quando falamos de qualidade da governação. E foi para cada
um desses assuntos, pergunta três, que procurámos indicadores. O que é, quais
são e como é que se mede. Ao medir, para além das
dificuldades todas que há pouco referia, claro que era possível para algumas
dessas dimensões fazer uma espécie de mini-rankings. Há municípios que tinham muito
boas práticas em termos de acesso à informação, ou despenalização de informação,
há outros municípios que têm boas práticas de... Ou que revelaram sempre
grande dinamismo do ponto de vista da participação democrática ou que tiveram
grandes alternâncias políticas e, portanto, concorrência eleitoral também maior, mais significativa. Isso
gerou aqueles resultados, mas são resultados que são necessariamente circunstanciais, era daquele
período que tivemos acesso a dados, resultados que variam, resultados que também
tinham muitos defeitos em função da informação que tivemos acesso e dos
dados que estavam disponíveis, mas essencialmente traduziam uma mensagem, que é importa
discutir a qualidade da governação.
E há aqui uma
agenda. Em certo sentido, um ponto de partida. Exatamente. E há aqui
uma agenda. Há aqui estes 10, 12, 17 itens que importa ter
em consideração para quando se quiser discutir a qualidade da governação, e
em particular a governação local em Portugal, atender a cada um deles
significa que é preciso olhar para o futuro e daí vem a
reflexão mais sobre reformas, sistema local. Mas foi isso que fizemos e
devo dizer também isso, que o trabalho foi coordenado por dois colegas,
o António Tavares da Universidade do Minho e o Luís de Sousa
do ICS, na altura na Universidade de Aveiro, com quem colaborei, ou
abaste-te, com quem colaborámos todos numa grande equipa e foi muito interessante
essa... Colocar na agenda, eu diria, mais colocar na agenda a governação
local mais do que fazer índices ou rankings, porque não se justifica
seria incorreto e eu diria que até poderia ser mais perigoso a
interpretação de um ranking do que...
José Maria Pimentel
A não coincidência entre o município mais bem classificado e a qualidade
do executivo camarário faz sentido, no fundo seria como nós analisarmos a
qualidade da governação na Europa, por exemplo, e concluímos precipitadamente que o
país com melhor qualidade da governação tinha necessariamente o melhor partido, o
melhor partido no poder a governar aquele país, e o equivalente em
relação ao pior. Mas ainda assim eu tenho a tentação de fazer
a pergunta se, mesmo com toda a prudência em relação a estes
dados, vocês detectaram algum padrão, ou seja, algum padrão geográfico, por exemplo,
de uma espécie de cluster de bons municípios com boa governação, ou
o contrário? Não,
Filipe Teles
geográfico não, não houve. O que notamos foi disparidades enormes, sem qualquer
padrão territorial. E, portanto, até é territorial ou populacional? Sim, sim. Ou
seja, que a qualidade da governança não é dependente necessariamente da densidade
demográfica, da litoralização maior ou menor do município, de um ou outro
partido político, não há esse tipo de correlação. E eu diria que
também foi importante sublinhar que a média, se fossemos olhar apenas para
os valores e para o ranking, que podem gerar a partir daqueles
indicadores, é relativamente baixo. Ou seja, temos muito por onde evoluir em
termos de qualidade da governação, mas mais uma vez eu sublinho isto,
não depende apenas das pessoas que estão no exercício dos cargos políticos
locais, numa resposta quase estetibulística eu diria em grande medida depende do
sistema, A culpa é do sistema, como se dizia há algum tempo
atrás sobre alguns clubes de futebol que nunca ganhavam, a culpa era
do sistema. Eu diria que aqui uma grande responsabilidade do sistema, daquilo
que no início da conversa chamámos de arquitetura da governação subnacional, de
todas estas coisas da nossa agenda, que no há pouco referimos, contribui
para que haja esta preocupação com a qualidade da governação local. Claro
que também podemos fazer o mesmo exercício para a governação nacional, mas
sobre essa não me pronuncio, porque não estudo, mas também já temos
muitos rankings e índices internacionais que fazem isso. Sim, sim, sim, exatamente.
Filipe, a conversa já vai longa, eu
José Maria Pimentel
importante. Sim, sim, sim. E me é culpa nesse aspecto, porque eu
próprio também demorei bastante tempo a trazer o tema ao podcast e
tive quase que me forçar a mim próprio, pensar, está na altura,
autárquicas, acho que este tema, quer dizer, olhando racionalmente para ele, merece,
e depois a pessoa começando a pensar e começando a ler e
o insight está muito interessante, percebe que o tema não só é
muito relevante como está longe de ser simples, não é? É complexo,
o que o torna interessante também, não é? Ou seja, não só
é relevante como é interessante.
Filipe Teles
e eu julgo que vai na sequência do que estávamos agora a
conversar no final, da complexidade deste desarranjo, deste sistema, de uma agenda
de reforma, por exemplo, e como olhar para a governação local é
muito mais, tem muito mais cores, lentes, perspetivas, características, dimensões que a
tornam rica mas também complexa. E a recomendação é precisamente por aí.
É um livro que tive a oportunidade de ler o ano passado,
já sei que está traduzido para português recentemente, ou este ano já,
que é Uma Teoria da Democracia Complexa, assim há o título em
português, Uma Teoria da Democracia Complexa. O autor é um pensador europeu
reconhecido, Daniel Linares Ariti, tem trabalhado muito sobre estes temas, é um
pensador da filosofia política, da democracia europeia contemporânea, dos desafios da Europa,
mas que neste livro olha de forma mais cuidada também para como
todos os desafios que nós enfrentamos hoje obrigam também a repensar o
que é a democracia contemporânea e que a democracia precisa de um
olhar também complexo. Nós tendemos a simplificar as nossas práticas, as formas
de envolvimento, as formas de decisão, mas hoje a democracia é muito
mais complexa e o que o Daniel faz neste livro é propor
uma teoria complexa da democracia e é uma leitura que aconselho, indiretamente
relacionada com o tema da nossa conversa, mas que faz
José Maria Pimentel
Este episódio foi editado por Hugo Oliveira. Visitem o site 45graus.parafudo.net barra
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de apoio. Se não puderem apoiar financeiramente, podem sempre contribuir para a
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entre amigos e familiares. O 45 Graus é um projeto tornado possível
pela comunidade de mecenas que o apoia e cujos nomes encontram na
descrição deste episódio. Agradeço em particular a Miguel Van Uden, José Luís
Malaquias, João Ribeiro, Francisco Hermes Gildo, Família Galeró, Nuno e Ana, Nuno
Costa, Salvador Cunha, João Baltazar, Miguel Marques, Corto Lemos, Carlos Martins, Tiago
Leite e Abílio Silva. Legendas pela comunidade Amara.org