#103 Mafalda Pratas Fernandes - “Porque está hoje tão polarizada a política nos EUA?”

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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45°. Neste episódio nº 103 estou a conversa com a Mafalda Pratas. A Mafalda nasceu nos Estados Unidos, cresceu depois em Portugal e regressou aos Estados Unidos em 2012, onde se licenciou a Economia e Ciência Política. Atualmente está a terminar o doutoramento em Ciência Política na Universidade de Harvard com uma tese sobre o efeito dos partidos políticos e das instituições no processo de representação dos eleitores. Nesta investigação ela compara as características da realidade política dos Estados Unidos com a do Reino Unido e a da Europa continental. Esta foi uma conversa bem longa, em que percorremos um leque enorme de aspectos que caracterizam e explicam a política norte-americana. Comecei por perguntar à convidada como foi que chegámos ao nível atual de enorme polarização política nos Estados Unidos. Para compreender devidamente este estado de coisas, precisámos recuar aos anos 60, com a aprovação da legislação do Civil Rights Act, em 1964, no tempo do presidente Lyndon Johnson. Esta legislação pôs fim à segregação racial que existia até então, ainda em vários estados, sob aquilo que ficou conhecido conjuntamente como as leis de Jim Crow. Para perceber as causas históricas da polarização atual, é no entanto preciso compreender também como é que funciona o sistema político americano, nomeadamente as instituições e as regras que influenciam e condicionam a maneira como a vontade política dos eleitores é refletida no tipo de políticos que são eleitos e nas políticas que são levadas em frente. E foi sobretudo em instituições que falámos durante o resto da conversa. A principal característica do sistema político americano é uma estrita separação de poderes imposta pela Constituição entre três poderes, legislativo, executivo e judicial. O poder legislativo é atribuído ao Congresso, ou seja, ao Parlamento, que está também ele dividido entre duas câmaras, a Câmara dos Representantes e o Senado. Já o poder executivo está no Presidente e no Governo, enquanto o poder judicial está entregue aos Tribunais e, em particular, ao Supremo Tribunal, que pode, por exemplo, votar leis aprovadas pelo Congresso ou Decretos Presidenciais. A existência no Congresso de duas câmaras é resultado em grande medida do facto de se tratar de um sistema federal, isto é, de um sistema em que os Estados têm um grau grande de autonomia. A ideia em ter duas câmaras é, em parte, que a Câmara dos Representantes represente os cidadãos no seu conjunto, uma vez que o número de representantes eleitos por cada Estado é proporcional à respectiva população, enquanto o Senado traz uma ligação mais estreita à realidade específica de um Estado como um todo, uma vez que no Senado cada Estado é representado por exatamente dois senadores, independentemente da sua população. Há ainda uma série de particularidades do sistema americano de que falamos na conversa e que têm uma influência grande sobre a forma como a política ocorre na prática. São exemplos destes o grande poder dos Estados, mesmo em comparação com outros sistemas federalistas, a peculiar regra do chamado filibuster no Senado, o facto das eleições decorrerem por círculos uniluminais e haver o chamado gerrymandering, a existência de apenas dois partidos políticos e com características diferentes dos partidos europeus, o facto dos candidatos presidenciais serem escolhidos através de eleições primárias, o papel do colégio eleitoral, outra instituição peculiar, na eleição presidencial, ou ainda os vários poderes do presidente, muito para lá daqueles que a Constituição define formalmente. Mais para o final da conversa falámos ainda de algumas melhorias institucionais que podem ajudar a diminuir este clima de polarização e melhorar o funcionamento da política e mesmo no final a convidada partilhou a visão dela sobre aquilo que pode ser o futuro próximo da política americana e a evolução deste grau de polarização. Como de costume, queria agradecer aos novos mecenas do podcast João Moura, Cloela e Alma Galhães, Francisco Moura, Rui Barbosa, Pedro Frois Costa, Tomás Saraiva, Rui Antunes, Ana Vitória Soares, Guilherme Monteiro Ferreira e Tomás Salgado. Entretanto, antes de passarmos ao episódio, queria dar-vos conta que o 45° vai entrar agora de férias, durante os próximos dois meses. Aos mecenas do podcast, deixo-vos no final do episódio uma mensagem mais específica. Faço esta pausa por dois motivos. Como sabem, estes episódios têm por trás uma preparação grande e para mim não faz sentido fazê-los sem estar em condições de garantir essa qualidade, e por motivos pessoais não consigo garantir nesta fase. Por outro lado e mais importante para vós, estou também ocupado com um projeto muito estimulante relacionado com o 45° e do qual espero poder dar-vos novidades muito em breve. Até lá, aproveitem esta conversa especialmente longa e cheia de informação com a Mafalda Pratas. Até breve! Mafalda, muito bem-vinda ao 45°. Olá. Vamos falar de política americana. Já agora te faz sentido fazer aqui uma explicação para quem nos está a ouvir, porque este episódio, embora na minha opinião não perca interesse por isso, mas era suposto ter sido gravado na altura das eleições americanas e não foi por culpa minha, por problemas meus da gente, e portanto é que vamos ter que esperar um bocadinho mais. A ideia é tentar perceber a realidade política americana melhor do que aquilo que muitas vezes nos é dado a conhecer pela cobertura dos médicos, embora sendo muito exaustiva, inevitavelmente é muitas vezes superficial e há tantas diferenças, seja de história, institucionais e até culturais, face aos Estados Unidos, que apesar da nossa grande exposição a coisas americanas nem sempre é fácil compreendermos. Se calhar o melhor ponto para começarmos é tentar perceber como é que chegámos ao estado de coisas atual, em que temos um espectro partidário, uma configuração dos dois partidos particular em termos históricos, não foi sempre assim, aquilo que cada um deles defende, mas também a exuberância com que cada um deles defende esses pontos que levam a uma polarização que no mínimo não existia desta forma em décadas. Portanto, o que perguntava é como é que nós chegámos aqui.
Mafalda Pratas Fernandes
Pois, isso é uma conversa longa e poderíamos ir até quase 1787 e à origem da própria nação e aos compromissos que se tiveram a fazer para isso e devemos chegar lá, mas eu acho que a resposta curta seria qualquer coisa como, como sabem, há muitos anos que os Estados Unidos são um sistema de apenas dois partidos, serão talvez o único país do mundo que me esteja a lembrar neste momento que são puramente de dois partidos, mesmo outros sistemas uninominais do Reino Unido acabam por ter partidos mais pequenos que acabaram, por exemplo em 2010 houve uma coligação dos Liberal Democrats com o Conservative Party no Reino Unido. Nos Estados Unidos houve, portanto no século XIX e no início do século XX havia partidos mais pequenos, mas de facto já há muitos anos que é um sistema político dominado por dois partidos. E o problema que se coloca é como é que uma sociedade tão diversa como a sociedade americana consegue ser representada por apenas dois partidos e a resposta a isso tem que ser cada partido tem que ser uma grande tenda, é essa a expressão que normalmente é utilizada até no trabalho académico, é uma grande tenda que inclui vários grupos, várias facções, com diferentes interesses económicos, culturais, etc. O que é que acontecia? Até mais ou menos a 1965, vamos pôr assim a divisão, também havia dois partidos, mas o Partido Democrata, principalmente o Partido Democrata, era um partido que na verdade incluía dois partidos. Incluía a facção do que se chamam os Democratas do Sul, os Southern Democrats, que eram os democratas brancos dos Estados do Sul dos Estados Unidos, que são no fundo os descendentes dos Estados que tinham escravatura, não é, antes da guerra civil, e nesses Estados figurava efetivamente não dois partidos mas apenas um, portanto era um party regime. Só havia um partido na grande maioria desses estados, o Partido Democrata que era o partido dominante nesses estados não deixava inclusive pessoas negras participarem nas primárias do seu próprio partido e enfim muitas outras restrições do Jim Crow, não é? Mas isso fez com que houvesse sempre essa facção muito poderosa dentro do partido democrata que depois também incluía o quê? Não diria o oposto porque em algumas coisas alguns interesses conseguiriam encontrar em comum mas incluía, por exemplo, os democratas mais ligados ao setor do trabalho e dos sindicatos, desse setor mais clássico que nós identificamos com a esquerda, inclui todos os afro-americanos que num movimento que durou desde 1905, 1900 até 1960, 1970, aquilo que se chama Great Migration que é precisamente como reação ao regime de Jim Crow que havia no sul dos Estados Unidos muitos negros começaram a migrar para os estados do norte e isso fez com que muitas das cidades do norte e do oeste dos Estados Unidos, portanto Chicago, Detroit, Baltimore, Nova York, Los Angeles, etc. Começassem a ter grandes comunidades afro-americanas que viriam do Sul, não sei se se lembram para quem leu o livro da Michelle Obama, que obviamente será um livro que para uns terá mais interesse que outros, mas a parte inicial eu acho extremamente interessante porque é ela a contar a história da sua família e ambas, aos seus lados, quer o pai, quer a mãe dela, emigraram para Chicago vindos do Sul e no fundo havia várias rotas e eles fizeram as rotas para Chicago, não é? E esses democratas quando estavam nestas novas cidades, portanto centros metropolitanos do Norte obviamente continuavam a enfrentar muitas dificuldades, por exemplo na maioria deles não podiam juntar-se às mesmas sindicatos que empregados brancos, etc, mas acabaram sempre por se associar ao Partido Democrata nessas cidades do Norte. Porquê? Por várias razões, em primeiro lugar porque eram obviamente normalmente pessoas mais pobres associadas às classes trabalhadoras que estariam interessadas em algumas propostas económicas que essa facção do Partido Democrata quereria apresentar, mas também porque, e isto é uma questão que eu acho muito interessante e que talvez seja pouco falada, o Partido Democrata desde mais ou menos 1928, que foi a primeira vez que um candidato católico foi concorrer, neste caso por um dos dois grandes partidos, pelo Partido Democrata, antes, portanto, foi o candidato antes do Kennedy. Antes do Kennedy. Ah não, antes do Roosevelt. Sim, imediatamente antes do Roosevelt. Ah,
José Maria Pimentel
não, não, está bem, antes do Kennedy estava a desencontro de católicos. Sim, claro,
Mafalda Pratas Fernandes
sim. Antes do Roosevelt na medida em que ele preparou a coligação que viria a votar no Roosevelt, que consistia em quê? Consistia em todos os grupos étnicos vindos da Europa que se tinham estabelecido nas várias cidades, outra vez na maioria dos casos do Nordeste e do Midwest dos Estados Unidos, mas principalmente do Nordeste, e que portanto consistia em católicos, normalmente irlandeses e italianos, judeus, mais do centro da Europa e do leste da Europa, alemães que foram o maior grupo étnico nos Estados Unidos mas na maioria os alemães foram mais para as áreas do Midwest e depois também nesta grande coligação multiétnica e multirreligião, porque é bom relembrar no século XIX, por exemplo, pessoas como os italianos ou os portugueses ou os espanhóis não seriam considerados, ou os gregos não seriam considerados a mesma etnia dos alemães nos Estados Unidos, mas portanto é verdadeiramente uma coligação multiétnica que é feita a partir mais ou menos dessa altura e depois o Roosevelt chega ao poder e, digamos, tenta satisfazer o máximo possível todas essas coligações, que são no fundo coligações normalmente de classes trabalhadoras, costuma-se dizer que quem emigrou da Europa para os Estados Unidos foram as Europe's Tired, Poor and Hordial Masses, portanto as massas desgastadas, cansadas, que não tinham futuro na Europa, que emigraram para os Estados Unidos, portanto extremamente pobres, e que se concentraram nessas cidades e que mais uma vez estariam interessadas numa coligação de expansão do poder dos sindicatos, de expansão de setores de proteção do trabalho como, portanto políticas de proteção do trabalho como desemprego, segurança social, etc. E houve portanto essa grande coligação, mas para ganhar a presidência ele necessitava também obviamente de Estados do Sul e a facção que sempre foi democrata nos Estados do Sul foram esses Southern Democrats. O acordo que foi feito no New Deal e que vigorou até 1965 foi um acordo na verdade extremamente, muito positivo para a sociedade americana, foi talvez uma das grandes revoluções da sociedade americana em termos do poder do Estado Federal e da assistência social que o Estado dá aos seus cidadãos, mas foi também um acordo, e isso é pouco falado, extremamente racista, na medida em que os Southern Democrats, os democratos do Sul, basicamente disseram que concordavam com todas estas medidas de segurança social, subsídio a desemprego, todas essas medidas de assistência, infraestrutura, portanto construção de infraestrutura pública, todas essas medidas. Porque eles
José Maria Pimentel
beneficiavam também, não é?
Mafalda Pratas Fernandes
Exatamente, mas, e a condição sempre foi, os benefícios não haveria políticas para incluir trabalhadores domésticos e agrícolas, que incluía basicamente todos os trabalhadores negros do sul dos Estados Unidos e, portanto, que na verdade era para excluir esse sector da sociedade e foi isso que vigorou até aos anos 60, não é? Nos anos 60... Espera,
José Maria Pimentel
uma falta, desculpa, só uma coisa para ver se eu percebo bem. Os democratas do sul, democratas? Não estamos a falar de políticos democratas, não é? O eleitorado democrata do sul, estamos a falar de pessoas também, elas tendencialmente relativamente pobres, pelo menos comparadas com os estados do norte, por terem Estados mais pobres, não é? Portanto daí eles serem beneficiários, não é?
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, sim. Nós tendemos a esquecer, obviamente, que no Sul haveria grandes pessoas ricas, não é? Nomeadamente aqueles que eram donos das grandes plantações. Só que eram poucos. Mas esses são muito poucos. E os democratas do Sul na verdade incluíam ambos. Portanto, quer os ricos, quer os pobres do Sul votam o Partido Democrata, porque o Partido Republicano no Sul era visto como o partido dos direitos dos afro-americanos. Porquê? Porque isso havia sido o partido do Lincoln que tinha feito a emersiveção. O que é que acontece? Eles julgaram, o que muita gente diz é que a elite branca, talvez isso será, digamos, a teoria mais conspiradora ou mais marxista, é que a elite branca jogou a carta da raça e com isso conseguiu colocar os pobres brancos do sul contra os negros pobres do sul.
José Maria Pimentel
Pois é, Aquela história do white trash. Exatamente. Não, mas eu ia te perguntar só para perceber quão longe é que isso chega, antes de irmos aos anos 60, quando tu dizes que o Partido Democrata dominava, eu suponho que isso quer dizer que eles, por exemplo, elegia, os senadores eram sempre democratas, grande parte dos representantes da Câmara dos Representantes também seria, mas por exemplo na Câmara dos Representantes seriam mesmo todos ou muito perto de todos e por exemplo no Senado e Câmara dos Representantes estaduais também eram só demócratas, não é? Que no fundo eram câmaras representadas apenas por pessoas de um partido.
Mafalda Pratas Fernandes
Não, na sua maioria, não digo que não haveria poucos, mas eram mesmo muito poucos, por isso é que é chamado mesmo um regime de um partido só. Pois
José Maria Pimentel
é, incrível isso. O
Mafalda Pratas Fernandes
cientista político John Aldrich, mas há sistemas de um partido só, o Japão não é um
José Maria Pimentel
sistema de um partido só. Pois é, estava a me lembrar do Japão por acaso. Exatamente, e já foi John Aldrich Já foi um bocadinho mais também, não é?
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, sim. John Aldrich, que é um cientista político norte-americano muito conhecido da Universidade do Huck, tem um livro sobre o sistema partidário norte-americano ao longo do tempo, mas também tem um livro só sobre o sistema unipartidário do Sul e como isso era no fundo um sistema autoritário, mas na sua grande maioria eram democratas e aliás tanto é que se, não sei se alguma vez repararam, mas quem vá ver a composição da Câmara dos Representantes em qualquer ano entre os anos 50 e 1994, quando o Newt Greenwich conseguiu recuperar a Câmara dos Representantes para os Republicanos, a Câmara dos Representantes teve sempre uma maioria democrata, sempre, portanto mais de 40 anos. Porquê? Estamos a falar de haver o dobro dos Democratas dos Republicanos na Câmara dos Representantes, porquê? Porque na verdade não eram partido, eram dois, não é? E eram dois que no fundo conseguiam agir em comum, encontrando plataformas em comum que conseguiriam, por exemplo plataformas em prol de classes trabalhadoras, desde que não negras, em comum. O que é que acontece? Acontece também que os democratas do Sul no Congresso eram pessoas extremamente senior e mais ou menos na altura dos anos 50, 60 o Congresso norte-americano tinha um sistema que se chama um sistema de senioridade. O que é que isso significa? Quer dizer que as posições de liderança dentro do Congresso, portanto imaginemos aquilo que atualmente é… O Speaker. Exatamente, não só o Speaker da House, mas todos aqueles que são de Chairs de vários comitês, todos os comitês, a maior… portanto era por, digamos, senioridade. Era o mais velho. Exatamente, o que estava lá há mais tempo escolhia primeiro, digamos assim. E começou a haver, para além de todas estas grandes clivagens dentro do Partido Democrático, entre Norte e Sul, digamos uma coligação mais multietnica e uma coligação branca, começou a haver também uma grande divisão, naturalmente, de idades, porque começou a haver uma fação muito mais jovem do Partido Democrata do Norte, que era mais radical no assunto da raça, era também mais radical no assunto da guerra do Vietnã, era mais radical em muitos assuntos que a fação democrata do Sul e que a fação até que a precedeu, começaram a entrar para o Congresso e questionaram esse sistema de senioridade e entretanto conseguiram até desmantelá-lo, portanto começou a ser um sistema de eleição e não de senhoridade para tentar reduzir ao máximo o poder desses senadores brancos democratas. Eventualmente, obviamente, todos nos lembramos das decisões do Supremo Tribunal de Justiça que começam nos anos 50 com o Brown vs Board of Education e que vão até, várias decisões até ao final dos anos 60, basicamente a eliminar um sistema de apartheid, que era isso que era, um sistema de Jim Crow que havia no Sul que separava a grande maioria das coisas, portanto escolas, empregos, casas, etc. E o Supremo Tribunal declarou, enfim, constitucional. As ruas também eram palco de movimentos, de protesto, que eu diria começaram a disputar nas classes médias brancas mais consciência dos problemas raciais que os afro-americanos nos Estados Unidos tinham que, digamos, enfrentar, não é? Porque há pessoas, há quem diga, e eu acho que há académicos que dizem que se, por exemplo, se fosse fazer uma sondagem aos militares todos que lutaram do lado da União, do lado de Lincoln na Guerra Civil, se fosse perguntar-lhes, à maioria deles, aos militares, à maioria dos militares brancos, qual era a sua posição sobre a escravatura, a maioria não seria nem a favor nem contra. Não seria algo, seriam relativamente indiferentes. Um
José Maria Pimentel
ponto interessante, sim. Sim,
Mafalda Pratas Fernandes
por exemplo, três quartos apontam mais ou menos para esse tipo de figuras, que a maioria dos habitantes do Norte, brancos, não eram nem a favor nem contra, eram relativamente indiferentes a esse tópico. Depois, há várias teorias sobre porque começam a ser mais conscientes em relação a esse tópico. Um deles é que começa a haver muita migração de negros para o Norte, para as cidades do Norte e do Oeste, que antes quase não havia, antes estavam quase todos concentrados no Sul dos Estados Unidos, e com isso começa a haver também uma elite afro-americana, por exemplo o mais conhecido sendo Martin Luther King, mas houve muitos outros milita afro-americana que quer mais, não é? Quer lutar por mais, etc, etc. E não quer sujeitar-se até mesmo às, portanto, as leis, às regras racistas, e uma das mais conhecidas é precisamente essa de empregados, por exemplo, das câmaras municipais, por exemplo, a Michelle agora me conta isso, como o pai dela e o avô dela, que eram empregados, principalmente o pai, acho eu, da Câmara Municipal de Chicago, do sistema de água, acho eu, não tenho a certeza, não eram permitidos eles afiliarem-se aos sindicatos dos trabalhadores brancos do mesmo sítio, não é? Não era permitido. E eles, obviamente, com mais dinheiro, com mais educação, etc., foi aumentando
José Maria Pimentel
o crescimento econômico
Mafalda Pratas Fernandes
de todas essas pessoas e começou a haver mais atenção, não é? Mas a potencial causa será simplesmente em geral o crescimento económico em geral, então com essas sociedades faz com que comecem a aparecer na política questões não materiais, não é? E isto é uma questão não material, portanto a classe média branca que teria denunciado o grande crescimento económico a seguir à guerra e que, digamos, estava no pico do seu poder económico comparativo, atualmente é óbvio que todos somos mais ricos do que eles, mas do ponto de vista comparado em relação ao resto do mundo estariam bastante bem, teriam acesso a casa própria, todos os eletrodomésticos de cozinha, etc. E começaram a preocupar-se e os seus filhos principalmente quando foram para as universidades também devido à GI Bill, não é, que permitiu que muitos ex-militares e os seus filhos fossem para as universidades grátis e muitas outras coisas que na altura permitiam que o custo das universidades fosse mais baixo, mas todas essas pessoas começaram a disputar mais interesse em relação a estas questões. E finalmente, talvez também é preciso dizer, que não deixa de ser já o período da Segunda Guerra Mundial e acho que é relativamente consensual que no pós-guerra a norma internacional passa a ser de que os direitos humanos e as liberdades civis são direitos universais e, portanto, é a mesma altura que há movimentos de independência e, portanto, descolonização.
José Maria Pimentel
Sim, da autodeterminação.
Mafalda Pratas Fernandes
Autodeterminação dos povos. Obviamente que não estou a dizer que foi isso diretamente que causou isto, acho que as outras razões são mais palpáveis mas acho que por trás de tudo isto começa a haver algum pensamento.
José Maria Pimentel
É engraçado porque isso acontece frequentemente ao longo da história gera-se uma espécie de dissonância em que a moral já evoluiu num certo sentido, mas ainda há umas coisas que ficaram para trás e de repente quando surge esse confronto elas depois avançam rapidamente porque estavam de facto muito... Já não faziam sentido, não é? Teriam feito sentido numa moral antiga, mas já não fazem sentido na moral daquele tempo.
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, isso normalmente era um dos argumentos mais usados pelas juventudes nos anos 60, quer brancas, quer negras, que eram a favor da mudança, era de que os Estados Unidos durante este período da Guerra Fria não tinha direito a criticar sistemas não democráticos noutros países e depois ter na sua própria casa sistemas altamente discriminatórios e extremamente desumanos.
José Maria Pimentel
Mas o que acontece naquele período? Tu estás a falar agora daquilo que depois deu origem ao realinhamento em que o Partido Democrata no fundo perdeu o apoio desses Brancos do Sul que foi para o Partido Republicano e depois voltou mais ou menos a reconfigurar-se. O que é interessante aí é que, de uma forma cínica, parece que é o Partido Democrata a tomar a iniciativa de esbaratar esses eleitores. Porque Pelo menos eu lembro-me, não tenho a certeza se esta causalidade é direta, mas eu lembro-me que um dos eventos principais dessa altura é quando o Kennedy na campanha dele liga o Martin Luther King, salvo erro. E o Martin Luther King está ainda numa posição que é curioso, por acaso é curioso até pensar essa perspectiva, porque ele ainda estava, ou pelo menos era retratado assim, como ele ainda estando um bocadinho remitente em comprometer-se com qualquer dos partidos. Ou seja, podia ter sido o Nixon a ligar-lhe, não é? Sim,
Mafalda Pratas Fernandes
sim, não, o Nixon acho que também tinha ligações e falou com ele. O Partido Revolucionário, como eu disse, nessa altura não era um partido tão extremista, digamos assim, como nós hoje em dia talvez algumas pessoas o vejam, era um partido muito mais moderado, era um partido que historicamente no Sul tinha defendido os interesses dos afro-americanos e portanto de facto não era óbvio essa ligação de Martin Luther King e desse movimento afro-americano pelos direitos civis ao partido democrata. Eu sou uma pessoa que acho sempre que o papel do Kennedy é altamente sobrevalorizado, eu acho que o melhor presidente dos Estados Unidos do século XX. Sim, isso eu por acaso concordo. Foi o Lyndon B. Johnson, precisamente aquele que veio a seguir a ele. Foi o
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que teve mais impacto, sem dúvida
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nenhuma. Sim, exatamente. E nunca esquecer que ele era um
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democrata do Sul. Ele
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era um democrata eleito pelo Texas e de certa maneira o pensamento dele também evolui e é ele que de facto, não só, e há aqui duas questões que eu acho interessantes, não só o pensamento dele evolui e ele consegue digamos auto-maneuver, portanto jogar com os outros democratas do Sul que eram da sua trupe, digamos assim, que ficaram altamente desaltejos porque ele os tinha traído, mas também Lyndon B. Johnson é considerado uma figura cinzenta porque tinha estado há muitos anos, era um, era basicamente, era alguém tipo Joe Biden, eu costumo dizer que o Joe Biden vai ser é o Lyndon B. Johnson do século XXI, ou pelo menos da primeira metade do século XXI. Porque é alguém... Por to eficaz. Exatamente, é alguém que vem do Congresso e que sabe melhor do que muita gente as regras do Congresso. Ele tinha sido, tinha pedido montes de posições de liderança na Câmara dos Representantes, que sabia todos os truques que tinha que usar para conseguir passar uma peça de legislação. E usou. Exatamente, e usou. E eu costumo dizer que pronto, o Barack Obama será algo mais inspirador, acho eu, na minha opinião pelo menos, que John F. Kennedy, mas que na verdade são os seus vice-presidentes que têm mais experiência, que são figuras mais cinzentas, mas que também por isso conseguem passar compromissos ou leis mais ambiciosas, porque na verdade quer Barack Obama quer Donald Trump tinham muito pouca experiência legislativa, não é? Barack Obama basicamente teve dois anos no Senado Federal antes de lançar a sua candidatura presidencial. Quer Lyndon B. Johnson, quer Biden, tiveram décadas. E é natural que conheçam, digamos, todos os jogos, todas as leis, que são milhares de páginas de pequenas regras parlamentares que têm que ser usadas ou não usadas para conseguir passar uma peça de legislação, e não só isso e ter um rapor, não é? Ter uma reputação com vários grupos dentro do Congresso para conseguir, digamos, cobrar compromissos, fazer compromisso e fazer todo esse jogo político que de facto muitas vezes é mal visto, mas que também é verdade que é muitas vezes ele que faz avançar peças de legislação extremamente importantes, não é? Por exemplo, hoje em dia, quantos de nós acharíamos bem o compromisso normativo feito pelo FDR, não é? E no fundo aceitar as demandas dos democratas do Sul, mas, quer dizer, quem sou eu para julgar? Ao mesmo tempo também criou um sistema de segurança social que impediu milhares e milhares de pessoas de estar na pobreza na sua velhice, até hoje, e é um dos programas mais populares de sempre dos Estados Unidos, da história da administração pública americana, e são compromissos extremamente difíceis de fazer mas que por vezes têm que ser figuras pouco polarizadoras a tentar fazê-los, não é? E é muito interessante uma frase que Barack Obama no seu livro novo dele, na sua memória, digamos assim, escreve enquanto ele está a refletir sobre o mandato de Harold Washington, que é o primeiro Mayor afro-americano de Chicago e que no fundo foi a pessoa que o inspirou quando ele era organizadora em Chicago para começar uma carreira política. Como ele, portanto, ele está a refletir sobre essa presidência de Harold Washington, que foi uma presidência muito curta e que foi altamente inspiradora, que trouxe muita gente para a política e que podia trazer muita mudança, mas que foi muito curta e que a seguir a ele basicamente veio o filho do presidente anterior e continuou lá, continuou até
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os anos 90. Michelle, vamos falar disso num livro também, acho, não é?
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, sim. Harold Washington é de facto uma das figuras para essa geração política normalmente afro-americana mais inspiradora, mas ele fala e quando ele diz quais é que foram os problemas que o Harold Washington acabou por ter, uma pessoa parece e sabe que ele está a dizer os problemas que ele acabou por enfrentar. Então os problemas que ele diz é nenhuma mudança, nenhum movimento de mudança é um movimento de um homem só, é um movimento tem que ter uma organização por trás, tem que ter pessoas que saibam a jogar dentro das instituições e tem que ter mais gente disposta, digamos, a trabalhar dentro dessas instituições para que essa promessa de mudança seja concretizada. E a segunda característica, isto é algo que obviamente não estaria no poder de Barack Obama, mas e ele também diz em relação a Harold Washington, portanto não são palavras minhas, são palavras dele, que qualquer movimento baseado na raça, isto são palavras de Barack Obama, eventualmente vai trazer a seguir um movimento de... Contrário. Exatamente, um movimento contrário. E ele diz que isso foi uma das razões pelas quais Harold Washington falhou e eu acho que ele também está a refletir sobre ele próprio. Portanto, é evidente que a eleição de Barack Obama foi um momento que muitos consideraram histórico e foi de facto histórico, mas muita gente precipitou-se ao declarar, entrámos na era pós-racial e foi precisamente o contrário, se calhar entrámos numa era tão racial como já não existia desde os anos 60 ou à altura da guerra civil quase, não quero exagerar, mas uma era extremamente grupal e extremamente racial em que as importâncias raciales é extremamente elevada. E é evidente que Joe Biden, sendo um democrata mais old school, não é? Portanto ele é mais católico que Trump, não é? É mais… é relativamente progressista, sempre foi em relação a políticas económicas, apesar de ser um moderado, não é alguém tão radical como algumas pessoas no Partido Democrata, mas é uma pessoa mais moderada, é a única pessoa, aliás muitos observadores na inauguração dele, etc, estavam a dizer como sempre que havia muito gridlock e não se estava a conseguir passar nenhuma legislação em Washington, o Mitch McConnell dizia ao representante da Casa Branca no Congresso, bring me Joe Biden. E eles eram os únicos, portanto, só ele é que conseguia de facto destravar essa… A
José Maria Pimentel
última coroal republicana. Exatamente,
Mafalda Pratas Fernandes
esse gridlock. Porque é preciso de facto pessoas, isto não será a melhor coisa a dizer, mas por vezes é preciso revoluções, mas por vezes a seguir essas revoluções também é preciso jogar dentro das instituições e tinha um professor de ciência política que é muito conhecido que é o José Chebob que dizia que mais difícil do que ganhar uma guerra é governar a seguir a ganhar a guerra, não é? E portanto tenho bastantes, pronto, só para dizer, só para fazer o parênteses da similaridade entre Lyndon B. Johnson e Joe Biden. Mas voltando à presidência do Lyndon B. Johnson, ele de facto faz esse move, digamos assim, muito arriscado. Eu não sei se ele pensou... Pois,
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essa era uma dúvida que eu tinha, sim.
Mafalda Pratas Fernandes
Eu acho que ele não pensou nas consequências a longo prazo, ele simplesmente ou então pensou mas achou que duas coisas, achou que por um lado o apoio que o Partido Democrático ia ganhar quer no Norte, quer nos afro-americanos do sul, que agora ficariam em muito mais, muito mais, em números muito maiores, iria compensar. E depois fica famosa, não é, a frase também do Nixon, de The Southern Strategy, que a seguir ao Voting Rights Act, que é o Civil Rights Act, o Sul ia ser republicano durante 20 anos ou 30 anos, acabou por ser mais, agora estará outra vez a equilibrar-se devido a migrações internas e etc. Mas sim, houve esse realinhamento, que não foi automático, é um realinhamento que dura durante todos os anos 70, 80 e só acaba de facto em 94, quando o Neil Greenwich consegue ser eleito numa plataforma já bastante polarizada, Presidente dos Estados Unidos. Presidente dos
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Estados Unidos? Presidente da... Da
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Câmara dos Representantes, desculpa, Speaker of the House. Tudo isto para dizer o quê? Que este é um momento de polarização porque não há nada, mas literalmente nada, em comum entre os dois partidos, não é? Em nenhum assunto há a possibilidade, nem nos assuntos económicos, nem nos assuntos culturais, há possibilidade de exercer compromisso, não é? Estás
José Maria Pimentel
a falar agora. Exatamente, agora. Estás a falar agora, certo? Desde
Mafalda Pratas Fernandes
os anos 90 até hoje, e a coisa só foi piorando. Porquê? Porque antigamente, digamos, numa visão muito simplificada havia democratas do Norte e democratas do Sul, ou seja, democratas liberais e democratas conservadores. E havia também republicanos liberais, muitos deles, na Nova Inglaterra principalmente, e republicanos conservadores. E portanto quando as pessoas dizem as coisas eram bipartidárias, Eram bipartidárias porque o realinhamento era diferente, mas na verdade, quer dizer, não era assim tão diferente, não era? Só eram bipartidárias no papel, porque na prática alguns daqueles partidos eram tão diferentes como partidos em qualquer parte do mundo, não é? Mas A partir do momento em que há esse realinhamento há um partido que é conservador nos costumes e na economia, ou liberal na economia, não é? Como se diz em Portugal, e outro progressista na economia e nos costumes e não há nada, nenhuma fação dentro de cada um que passa… Que se intercepte, não é? Exatamente, que se intercepte, ou seja, à exceção Costuma-se falar de crosscutting cleavages, não é? Portanto, de haver uma facção como os democratas do sul que são conservadores nos costumes mas progressistas na economia. Ou haver republicanos que são talvez mais libertários, portanto, liberais na economia mas progressistas nos costumes. Portanto, não há nenhuma interceção entre os dois partidos. Mas
José Maria Pimentel
isso é que é curioso, o que aconteceu, o que existe agora, é o que faz sentido, não é? E é o que é mais parecido com os sistemas políticos nos outros países ocidentais, digamos assim. O que existia antes é que era estranho, não é? É que tu tinhas... Sim! Os partidos não estavam bem arrumados, não é? Sim e não! Não tinhas um partido direito e um partido esquerdo.
Mafalda Pratas Fernandes
Sim e não, porque se tu vires o sistema anterior como quatro partidos ou como três partidos, e se tu olhares para qualquer país europeu, toda a gente sabe que é muito mais fácil governar num sistema de três partidos minoritariamente do que num sistema de dois partidos quando estás ali a dividir poder totalmente, não é? Sim, sim. Às vezes dispõe a limitação do sistema de dois partidos. Há essa possibilidade de fazer coligação, mas quando aquilo era uma coligação, não é? Exatamente, pronto, eu acho que ambas as situações são extremamente anormais, mas há quem diga, por exemplo, a Lee Drutman, neste livro de Breaking the Two-Party Doomloop, The Case for Multiparty Democracy in America, que esta é realmente a primeira vez na história em que há realmente apenas dois partidos, porque em todas as outras alturas havia facções suficientemente diversas dentro de cada partido para eles não agirem como um só, não é? Não terem quase todos a mesma opinião sobre todos os assuntos. E depois tudo isto é reforçado pelas instituições políticas que são conducentes a gridlock, não é? Portanto a dificuldade em mudar o status quo e a um sistema presidencialista, no fundo. Portanto essas duas coisas em conjunto tornam extremamente difícil que qualquer mudança seja efetuada e portanto ambos os lados vão sentir-se constantemente desiludidos naquilo que os líderes e os governantes conseguem fazer e tenderão a radicalizar-se. Quando nada é feito, não é? E nada é feito durante muito tempo ou não há grandes peças de legislação diferentes durante muito tempo, ou as mudanças que as pessoas querem deixam de ser ouvidas durante muito tempo, essas pessoas tendem a radicalizar-se mais e mais e como sabemos os partidos políticos norte-americanos, sendo agora então essas duas grandes tendas, são também partidos que utilizam um sistema de primárias que empodera os setores mais extremistas dentro de cada um, porque quem vota em primárias normalmente é um eleitorado mais extremista do que o eleitorado das eleições gerais E quem se organiza mais, quem tem tendência a formar grupos de interesse, movimentos como o Tea Party ou movimentos por trás como aquele do Bernie Sanders, quem age mais politicamente são aqueles que têm ideologias mais extremas, isto é o princípio da ação coletiva, não é? Sim. São aqueles que têm mais a ganhar em mudar o sistema. Aqueles que concordam com quase tudo não têm tanto incentivo em organizar-se. E essas pessoas que se organizam em ambos os partidos, é preciso dizer, todas as medições feitas por cientistas políticos, nomeadamente as mais conhecidas são as feitas por Nolan McCarthy e Rosenthal da Princeton University, que fazem estimativas desde a fundação até hoje das posições ideológicas de todos os membros do Congresso, utilizando todos os votos deles e métodos depois de, parecidos com o principal component analysis, fazem uma estimação ideológica e ao longo dos últimos 30 anos há de facto uma grande polarização, portanto um afastamento de ambas as linhas do centro, mas a linha vermelha vai mais para a direita do que a linha azul vai para a esquerda. Agora talvez neste…
José Maria Pimentel
Primeira republicana, sim.
Mafalda Pratas Fernandes
Exatamente. Nestes últimos anos a linha… tem havido algumas facções na linha azul, nos democratas que querem de facto propostas mais radicais, mas serão facções minoritárias, não é? Como serão, talvez, há muita gente que diz, as facções mais extremistas do Partido Republicano, eu diria, pela minha experiência, que são facções minoritárias. O problema é que têm um poder desproporcional dentro do Partido Republicano e dentro do sistema montado. Mas se quiseres podemos falar quer da importância das instituições políticas norte-americanas nesse sistema de dificuldade de mudança e de frustração, mas também das instituições dos partidos, não é? E da capacidade de grupos organizados a tomarem conta de partidos e no fundo extremá-los. E como depois estamos num sistema de polarização muito grande, Quando um grupo toma um partido é muito difícil para os votantes desse grupo, mesmo que estejam em desacordo com as facções mais extremistas, votarem para outro lado, porque eles pensam, bem eu posso não concordar com tudo aquilo que diz Donald Trump, posso não concordar com as posições dele em relação à imigração, por exemplo, mas se eu votar nele consigo impedir algumas coisas, mas ele dá-me menos impostos e juízes conservadores no Tribunal Constitucional e vice-versa para os democratas, ou seja, eles preferem votar em alguém do seu partido mesmo que mais extremista do que em alguém do partido oposto. Sim, então era uma lógica binária. Exatamente, exatamente. E portanto, dessa maneira aquele teorema famoso do votante mediano falha e já houve modelos formais a demonstrar como com ativistas muito ideológicos falha ainda mais. Eu diria que talvez falhe menos em sistemas multipartidários, na medida em que apesar de haver partidos muito extremistas, como há coligações formais, O ponto que a coligação vai ter que acabar por admitir é um ponto mais centrista do que talvez um sistema de dois partidos onde os ativistas ideologicamente extremados tomam conta de um deles e
José Maria Pimentel
podem fazer quase o que quiserem. E só podem ir para um lado ou para o outro. A tua tese é interessante, deixa-me tentar organizá-la da maneira como eu vi pelo que tu disseste. O que tu propões é que a partir do momento em que, desde os anos 60 e até os anos 90 progressivamente, os partidos se realinham e passam a estar organizados de uma maneira que não estavam no espectro esquerda-direita, se quisermos, progressista-conservador ou conservador-liberal no sentido americano, esse realinhamento gerou partidos muito menos diversos dentro deles e, portanto, gerou uma coisa muito mais apreta e branca entre esquerda e direita que por sua vez aumentou a polarização política de cada um desses partidos, porque antigamente cada um deles tinha várias sensibilidades dentro, era como se tivesse vários partidos, como dizias há bocadinho, e deixaram de ter. E depois o que tu propões é que para além disto ou em conjugação com isto, tu tens o problema das instituições, do sistema político americano, que é muito propenso a gridlock, a impasses legislativos, no fundo, a não conseguir, o exemplo mais conhecido talvez seja da dificuldade em criar uma espécie de sistema nacional de saúde, por isso é que o que o Roosevelt fez é tão conhecido, porque era justamente muito difícil de fazer, ou seria, e o próprio Lina de Jorge falava-se há bocadinho, e depois o facto de nas primárias, os intervenientes nas primárias serem tipicamente pessoas mais ideológicas do que a média dos eleitores, não é? É isto, não é?
Mafalda Pratas Fernandes
É, é isso, e eu diria só, para além dos ativistas que interferem nas primárias, os financiadores, porque nos Estados Unidos há muito dinheiro na política, os financiadores de cada lado também tendem a ser mais ideologicamente, mais ideológicos do que um votante mediano. É isso que normalmente é dito, principalmente do lado republicano.
José Maria Pimentel
Aquilo que eu... As dúvidas que isto nos suscita relativamente às instituições e às primárias é que em relação às instituições eu acho que se poderia também fazer o argumento contrário que é O facto de o processo de decisão ser lento e difícil, obviamente que gera descontentamento das pessoas cujas políticas não são empurradas, não são levadas a bom porto, mas previne o descontentamento daqueles que veem leis aprovadas das quais discordam. Porque também se pode argumentar isso.
Mafalda Pratas Fernandes
Eu concordo com essa visão, mas eu concordo que, por exemplo, isto agora vai ser extremamente polémico, se calhar dizer que eu sou norte-americana e votei em Joe Biden e votei em Hillary Clinton e votei em Barack Obama, portanto as minhas preferências políticas estão demonstradas, não é? Mas eu acho que a presidência de Donald Trump não foi assim tão má, na medida em que é verdade que ele disse muitas coisas escandalosas, fez muitas coisas escandalosas, mas tudo o que ele fez por executive action
José Maria Pimentel
pode ser revertido. Dá para revertir. E depois o
Mafalda Pratas Fernandes
que ele fez legislativamente também dá para ser rapidamente revertido, que foram basicamente apenas os cortes de impostos e mais ainda o que ele não conseguiu fazer, que foi, lá está, desmantelar o sistema que Obama criou da saúde, porque, e nisso é muito interessante verificar como continua a ser, apesar de qualquer polarização ideológica e da importância da ideologia, continua a ser muito difícil políticos que são ideologicamente muito contra alguma política pública livrarem-se dela se essa política pública for extremamente popular, que foi o caso republicano, que são ideologicamente contra o Affordable Care Act, não conseguiram, não tiveram coragem de votar contra ele porque sabiam que em sua casa, no seu estado, muitos cidadãos têm benefícios que vêm desse Affordable Care Act, tal como nunca foi possível em nenhuma sociedade livrarem-se de um sistema de segurança social. É muito difícil... Sim, uma vez instituído. Exatamente. É mais difícil instituir, mas uma vez instituído é muito difícil que políticas populares sejam desmanteladas. Mas
José Maria Pimentel
desculpa interromper-te, só uma dúvida. O Obama quer de facto popular ou o receio deles é que a maneira de o desmontar seria ainda pior no fundo? E traria à tona as vantagens que ele tem que muitas pessoas não estão a ver.
Mafalda Pratas Fernandes
Não, eu diria aqui duas coisas. Em primeiro lugar, há muita gente que será politicamente contra o Affordable Care Act porque politicamente associa-o a Barack Obama, mas que na prática beneficiam com ele. E se depois alguma coisa que tu, sei lá, deixasses de conseguir aceder a um serviço de saúde porque já não tens, até que ponto é que a tua ideologia ou a tua preferência política se ia sobrepor a essa consequência material, não é? E depois no Affordable Care Act há muita gente que é contra, quer na vertente o Estado não devia poder obrigar ninguém a ter um seguro de saúde, que é uma das vertentes, apesar do Supremo Tribunal ter mantido essa decisão, mesmo durante a era Trump, que poderia ser obrigatório e quem é economista e nos está a ouvir conhecerá o problema da seleção adversa, não é? Portanto, se não for obrigatório haver um mandato individual de ter um seguro de saúde e de pagar para ele, as pessoas saudáveis e novas vão, começam a sair e depois começam a tornar-se mais caras e mais caras.
José Maria Pimentel
Só ficam os mais, sim.
Mafalda Pratas Fernandes
Exatamente. E o que eu também sei é que o Affordable Care Act aumentou muito o financiamento daquilo que se chama Medicaid e Medicare. Portanto, o Medicare é o sistema de saúde que aí sim é universal de todos os reformados, que todos os reformados têm direito, isto porque os reformados são normalmente pessoas com mais doenças e portanto conseguiu-se criar um sistema de saúde para reformados, não é? E o Medicaid que é aquele que é um sistema de saúde que qualquer pessoa mais pobre, abaixo de um certo linear, pode aceder apesar de qualquer condição médica. Portanto, muitas vezes o que acontece é que quem acaba por aceder ao Medicaid ou a esse tipo de seguros são pessoas com pré-condições muito raras ou muito graves e que têm tratamentos extremamente caros e isso obviamente vai aumentar o preço dos seguros e tudo isso. Tudo isto para dizer que o Affordable Care Act aumentou a ajuda federal que é dada ao programa de Medicaid e Medicare e agora este novo programa de estímulos de Joe Biden também o fez, portanto, e em particular este programa de Joe Biden também em geral reduz os prémios de seguro de saúde de muita gente, principalmente aqueles que ganham menos de 75 mil dólares por ano. E portanto eu diria que na prática muitos serão a favor do Affordable Care Act sem o saberem.
José Maria Pimentel
Exato, sim. Pois, pois, pois, estava aí por aí, sim. Exato, sim.
Mafalda Pratas Fernandes
Agora, eu concordo que não é um sistema perfeito. Está muito longe de ser um sistema perfeito. Eu acho que tem muitas imperfeições e há muita gente que continua fora dele e o sistema… Até
José Maria Pimentel
porque resultou de um compromisso, não é? Também é
Mafalda Pratas Fernandes
o… Exatamente, exatamente, no fundo é isso, não é? Portanto, não pôde ser um seguro como nós os conhecemos na Europa, não é? Um sistema nacional de saúde e, portanto, tem que começar a haver compromissos entre empresas privadas que providenciam seguros e serviços de saúde, os estados e os mercados estaduais e o que é que o governo federal paga ou não paga. E isso é extremamente difícil de conseguir conciliar essas três coisas, não é? É extremamente difícil conciliar seguros privados com um seguro público que muita gente não quer aderir.
José Maria Pimentel
Por acaso é engraçado porque tu falavas agora, tu dizias que o mandato do Trump não tinha sido tão mau assim porque no fundo quase tudo aquilo que ele fez poderia ser revertido ou... Sim, eu
Mafalda Pratas Fernandes
diria que a única coisa que não pode ser revertida imediatamente, e isso de facto é a grande derrota dos democratas com Donald Trump, foram ele ter conseguido fazer em quatro anos três nomeações para o Supremo Tribunal de Justiça, que é algo absolutamente fabuloso, não é? Portanto, o Obama em 8 anos fez os mesmos
José Maria Pimentel
números. Teve sorte, sim.
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, teve sorte, embora há que dizer que Ruth Bader Ginsburg teve culpa já desde 2008 que havia pessoas, e em 2012 também, a dizer que ela se devia reformar, tal como agora dizem que o juiz Breyer se devia reformar, antes de chegarem à idade de 90 anos e portanto de arriscarem morrer, porque se calhar está lá um presidente que não é da cor política deles. Pronto, depois começa a gerar um equilíbrio e isso depois é muito discutível.
José Maria Pimentel
Uma pressão.
Mafalda Pratas Fernandes
A Saúde desse tipo de instituição, que eu acho completamente arbitrária, quer dizer, uma instituição cuja nomeação depende de quando é que uma pessoa ou não morre, é completamente arbitrária.
José Maria Pimentel
Pois, mas qual era a alternativa?
Mafalda Pratas Fernandes
Alternativa? Há muitas alternativas.
José Maria Pimentel
Quer dizer, Qual era a alternativa que mantivesse o benefício de tu teres alguém que não pode ser politicamente pressionado, não é?
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, sim, sim. Por exemplo, uma ideia apresentada que eu achei muito interessante pelo candidato democrata Pete Buttigieg
José Maria Pimentel
foi que... Consegues pronunciar o nome dele? Não é fácil.
Mafalda Pratas Fernandes
É verdade, é verdade, é o nome maltejo. É maltejo? É, o pai dele é maltejo, é um ex-académico, que ele já está muito conhecido, que traduziu toda a obra de Gramsci para inglês. Fica aqui a curiosidade. Uma proposta que ele fez, que eu achei muito interessante, foi que se devia aumentar o número de juízes para, por exemplo, 15, portanto para um número ímpar, não é? Obviamente. Portanto, teria de ser um número ímpar até 20, não é? Portanto, a adição, em vez de serem, por exemplo agora estão lá os democratas e iam nomear 7 democratas, que é obviamente completamente ilegítimo e que começa a tornar a instituição ilegítima porque depois a segui vão os republicanos e nomeiam mais 10 e a segui vão os democratas e torna-se insustentável. O que ele propunha era que tal como há penso que 9 juízes que já estão lá e que são nomeados, haveria por exemplo 10 que eram rotativos de todos os tribunais que estão imediatamente abaixo do Supremo Corte, que são tribunais federais, que são tribunais federais e que há penso que 13, 14, 15, não sei, e incluindo o tribunal muito importante que é o US District Court do círculo de DC, que é considerado um mini Supreme Court, e muitos dos juízes que vão para o Supreme Court estão lá anteriormente, e rotativamente e quase que aleatoriamente, não é? Randomly, tirar por exemplo 10 pessoas de todos esses juízes para, por exemplo, em mandatos de dois anos, quatro anos, etc, serem os outros 10 do Supremo Tribunal. Portanto, eu acho que com imaginação conseguem-se descobrir soluções.
José Maria Pimentel
Mas eles sairiam depois?
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, sim, exatamente. Portanto, imaginemos, vamos dizer que eu sou juíza do Circuit Court de DC. Eu seria eleita, por exemplo, dois anos para uma anunciação temporária para o Supreme Court e só votaria em coisas nesses dois anos. Depois alguém me substituiria. Dois ou quatro ou seis, não é? Não interessa, mas portanto isso tornaria extremamente difícil politizar tanto o Supremo Tribunal, porque não só há um número muito maior, há uma pool muito maior de juízes que são todos altamente qualificados, como uma pessoa chegar a um juiz federal de uma de duas dezenas desses, digamos, tribunais que estão imediatamente abaixo do Supremo Corpo, têm de ser pessoas já extremamente experientes e que no fundo são essas pessoas que são os candidatos para o Supremo Corpo, portanto são pessoas que já são experientes de si mesmo e que já se teriam a ensaiar para um dia serem nomeados definitivamente, havendo tantos e tirando, por exemplo, aleatoriamente nomeações temporárias, seria extremamente difícil de tu conseguires, estrategicamente, conseguires dominar este sistema.
José Maria Pimentel
Sim, estou a pensar. A vantagem de aumentar o número parece-me lógico, porque para um país como os Estados Unidos nove é bastante pouco. Eu estava a pensar se esses seriam... Não,
Mafalda Pratas Fernandes
há outras propostas em cima da mesa, como é evidente.
José Maria Pimentel
Estava a pensar se quão pressionáveis é que eles poderiam ser ou quão aliciáveis é que eles poderiam ser com... Pois,
Mafalda Pratas Fernandes
eu diria que não são... Que são às vezes menos aliciáveis, por várias razões. Primeiro porque todos os juízes que seriam nomeados para essa nomeação temporária obviamente que queriam fazer a melhor figura possível porque estariam a ensaiar-se para um dia terem uma nomeação definitiva.
José Maria Pimentel
Justamente, não é? Mas nomeação por um partido.
Mafalda Pratas Fernandes
Não necessariamente, pode ser para se tornarem populares pelo público em geral, não é? Mas eu pertenho ao que estás a dizer, mas é extremamente difícil. Eu acho que esse juízo teria o incentivo a não serem tão extremistas como alguém que já está lá para a vida. Quanto
José Maria Pimentel
mais não seja pela incerteza que está envolvida, não é? Exatamente. Ou seja, não convém apostar tudo nas fichas todas.
Mafalda Pratas Fernandes
Será o partido, exatamente. Sim. Mas eu em geral, Eu sou relativamente cética dessa ideia de serem pressionáveis, porque na verdade os juízes que lá estão já são pressionáveis, não é? Porquê que o juiz, penso que o juiz Kennedy, penso que sim, porquê que se reformou no segundo ano do mandato de Trump? Porquê que foi nessa altura e não foi dois anos antes? Quer dizer, e muitos deles, por exemplo, John Roberts é amigo de políticos, tal como são os demócratas, não é? Não,
José Maria Pimentel
não, mas eles terão inclinações, não é? Agora, eu diria que a vantagem do mandato ser para a vida, não é? Que ele não pode ser retirado e, portanto, não pode haver pressões políticas com essa ameaça. E, por outro lado, como a pessoa já é mais velha também não tem o incentivo para fazer X na expectativa de obter Y, não é? Mas isto não quer dizer que não tenha amigos e não tenha preferências.
Mafalda Pratas Fernandes
Cada vez mais estão a ficar menos velhos. Aliás, o Trump foi conhecido por jogar, e isso foi uma estratégia perfeitamente normal, dado os incentivos do jogo, por nomear pessoas o mais novas possíveis para estarem lá um maior número de anos. Portanto, algumas das nomeações dele têm 40 anos, são as mais novas possíveis e que vão estar lá talvez 50 anos. Eu acho isto uma coisa altamente antidemocrática. Ser a mesma pessoa a ter esta posição de tanto poder, que é uma posição a meu ver errada, e é verdade que historicamente o poder imenso que o Supremo Tribunal tem é um acidente histórico, não é? Da decisão muito conhecida de Marbury vs. Madison, é um poder que não estava previsto na Constituição e que foi o próprio juiz-chefe, o juiz-presidente do Supremo Tribunal, na altura, que tomou esse poder por ele mesmo e disse que tinha poder para rever... Ele disse isso
José Maria Pimentel
dizendo que não ao caso que estava a
Mafalda Pratas Fernandes
apreciar. Exatamente, ele disse que não ao caso que estava a apreciar, que era o caso de Marbury, mas disse, mas dado que você está a fazer este processo e colocou este processo no Supremo Tribunal, quando na verdade não devia ter colocado pela Constituição e fez isso segundo um acto de Congresso, nós temos direito a dizer que esse acto de Congresso é inconstitucional e por isso nós temos direito de rever toda a legislação feita pelo congresso.
José Maria Pimentel
À luz da Constituição.
Mafalda Pratas Fernandes
Exatamente, à luz da leitura de cada pessoa da Constituição, que é um documento altamente vago, muito pequeno e que, na verdade, permite qualquer interpretação, não é? No fundo é isso.
José Maria Pimentel
O que eu à bocada ia te provocar é porque tu estavas a dizer que o gridlock legislativo, ou seja, este impasse legislativo que nós falamos há bocadinho, o facto das instituições terem esta questão dos checks and balances, de se equilibrarem e porem o limite ao poder das outras, limitar o processo de decisão e portanto levar a insatisfação. Mas é também, quer dizer, há muita gente que dirá que isso é justamente a virtude das instituições e que foi justamente isso que impediu que o Trump, tirando essas decisões que de facto não podem ser revertidas da nomeação do Supremo Tribunal, que ele tivesse conseguido levar a vanto aquilo que queria porque na prática grande parte foram, como é que se diz, executive actions, portanto no fundo são medidas paralegais.
Mafalda Pratas Fernandes
São decretos de lei que podem ser revertidos
José Maria Pimentel
logo que chega outra administração, não é? Exatamente, aquilo só vale durante o mandato dele e depois mesmo que é aprovado no Congresso também basta ter uma maioria no sentido contrário e é repetir. Portanto, no fundo, foi justamente a virtude das instituições que impediu que ele tivesse conseguido fazer mais, ou seja, se o Congresso fosse mais ágil, com esta realidade polarizada, ele tinha feito muito mais do que aquilo que conseguiu fazer. Ou eleger uma pessoa como ele, ou uma pessoa de sentido contrário, não é? Mas uma pessoa não apenas radical, mas longe do, diríamos nós, da percepção do eleitor comum, do eleitor médio, seria muito mais problemático.
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, todos os sistemas políticos têm que tentar atingir um balanço entre duas coisas fundamentais, que é haver eficiência governativa, portanto, conseguir haver uma resposta efetiva aos problemas da sociedade e prevenir ações que possam danificar direitos fundamentais ou direitos de minorias que não estariam representadas nessa maioria, não é? Portanto, há aqui duas coisas, há uma tentativa de preservar o status quo o suficiente mas não tanto que resulte em muito pouca mudança e eu penso que o sistema norte-americano tem esse defeito atualmente há muitos anos, não teve sempre esse defeito, há muitos anos que tem demasiados, aquilo que chamam de veto points, tem demasiados pontos de veto, é preciso demasiadas pessoas concordarem com uma mudança e o problema de não haver mudanças radicais ou de não conseguir agradar a tanta gente para fazer uma mudança é que quando se passam, sei lá, 20 anos sem mudanças significativas em certas áreas da economia, da sociedade, etc., a sociedade começa a enfrentar problemas cada vez mais graves para os quais quase não há resposta, não é? É verdade que todos os sistemas têm que fazer o balanço entre haver eficiência governativa, os sistemas por exemplo britânico do Westminster é um sistema que permite muita ação governativa, não é? Qualquer primeiro-ministro que tenha uma maioria tem um poder enorme, mas também tem que haver resposta efetiva aos problemas da sociedade e eu acho que o sistema americano como está desenhado, por exemplo, o facto de, aqui há muitas coisas, não é? Portanto, de haver o poder presidencial que tem que no fundo partilhar poderes com o poder legislativo, faz com que basta que haja uma diferença entre os dois ramos e torna-se impossível resolver essa diferença, porque não há ninguém para resolver esse choque. Se ambos de facto quiserem chocar com o outro não há nada que consiga parar esse choque e evitá-lo. E o Juan Lins, que é um sindicato político, diz que isso é uma das causas para tantos sistemas presidencialistas terem tido, por exemplo, golpes de Estado ao longo da história, etc., porque começa a haver gridlock entre duas das instituições e não há nada para resolver constitucionalmente, não é? E há muitas outras coisas, não é? Depois há a questão do Senado ser uma instituição que, pela interpretação de uma regra que pode ser alterada, que pode ser alterada com uma maioria simples, mas que até hoje não se quis alterar, que é a regra do Filibuster, faz com que na verdade sejam preciso 60 e não 50 em 100, portanto uma super maioria, que em alguns países é só preciso para mudanças constitucionais para passar qualquer legislação, o que é mais uma vez extremamente pró-statístico, portanto tinha mudança. Depois é necessário que os Estados não ativamente bloqueiem a tradução para a realidade prática do dia-a-dia dessas leis, porque como sabem, por mais leis que uma pessoa consiga fazer, se necessitarem de cooperação estadual para serem implementadas nos Estados Unidos, é possível bloquear por exemplo subfinanciamento de certas agências estaduais ou por bloquear nomeações etc, bloquear o avanço dessa legislação. E por fim há então o Supremo tribunal que ainda pode dizer que não a qualquer uma destas leis. Portanto, quer dizer, já estamos num sistema em que há quatro veto point, quer dizer, já estamos numa coisa extremamente elevada, não é? E a maioria dos sistemas do mundo não tem tantos veto point, mesmo sistemas presidencialistas, e isso faz com que seja extremamente difícil mudar. E aí em cima disto ainda há o facto de, não sei se reparam, mas já os sistemas presidencialistas têm mandatos fixos, neste caso de 4 anos, e entre cada mandato fixo há umas eleições intermédias, umas midterm elections. O que é que acontece? O economista Alberto Alesina, que morreu há pouco tempo, nos anos 90 escreveu um livro muito interessante, uma teoria muito interessante sobre, digamos, a ação governativa norte-americana e os padrões da ação governativa norte-americana, face no caso dele à economia, mas poder-se aplicar a mesmo raciocínio a outras políticas, que o que costuma acontecer é no primeiro mandato de um presidente depois de outro, portanto neste caso teríamos por exemplo Barack Obama em 2008 ou Donald Trump em 2016, haveria uma onda para o Presidente, portanto, se elegia um Presidente e uma Câmara e um Senado, todos do mesmo partido, como a maioria do mesmo partido. Mas passado dois anos há logo eleições e normalmente o que acontece historicamente é que o partido brasileiro, por exemplo, normalmente ele vai perder uma das câmaras. Então no fundo ele tem dois anos para fazer mudança, não tem quatro. Sim, mas
José Maria Pimentel
ele tem dois anos porque as pessoas só lhe dão dois anos. Ou seja, isso é o eleitorado, não é? São os eleitores, é o que eu quero dizer, desculpa, são os eleitores. Sim,
Mafalda Pratas Fernandes
sim, é o eleitor que no fundo se quer mobilizar. O
José Maria Pimentel
eleitor médio, ou a média dos eleitores, do que quisermos por isto, não só gosta do sistema, deste sistema de pêsos e contrapesos, como até toma decisões para o pôr em prática, porque no fundo está a fazer o poder passar para o outro lado, que é precisamente para pôr um travão naquilo que o Presidente pode fazer. E sendo recorrente, a interpretação que eu tiro daí é que até nem é casuístico, não tem a ver com discordar daquele Presidente que desiludiu por algum motivo, é de facto uma coisa pendular, é estrutural, quero dizer. Eu
Mafalda Pratas Fernandes
acho que isto deriva de uma coisa, é que normalmente os presidentes quando têm as outras duas câmaras, como sabem que as oportunidades de mudança são muito poucas, avançam legislação extremamente ambiciosa, talvez mais ambiciosa ou mais extremista do que o eleitor mediano quereria. E depois há a reação a essa legislação, muitas vezes acaba por haver modificações a essa legislação, quer por via judicial, quer por via de Estado, quer por via, outra vez, legislativa, que acabam por não implementá-la, por não a implementar totalmente e acaba por vencer outra vez o status quo, mas é mais por inércia, por não se conseguir levar ao fim quase nenhuma mudança estrutural, legislativa. E também há aqui outra questão que é, Nos Estados Unidos, mas em todos os países do mundo, as eleições, há muito esta ideia de que as eleições representam o que o votante quer, mas na prática… Depende
José Maria Pimentel
do sistema eleitoral, claro.
Mafalda Pratas Fernandes
Também há essa questão, depende muito do sistema eleitoral, que nos Estados Unidos beneficia áreas rurais e estados com pouca população, mas também beneficia de certa maneira quem vai votar, não é? Porque é um sistema em que há 50% da abstenção e que grande parte do jogo não é convencer o votante de um ou de outro partido é mobilizá-lo, portanto é conseguir convencê-lo a ir votar, é que isso é uma eleição muito importante para o ivotário. Portanto os demográdos conseguirão convencer muita gente que ter o Donald Trump na presidência seria uma coisa muito má para eles e portanto mobilizar uma grande onda para ir votar contra ele. Da mesma maneira que Mitch McConnell conseguiu convencer muita gente em 2010 que ter lá Barack Obama que ele dizia que era um grande extremista seria extremamente mau e portanto no fundo está a mobilizar o seu lado para ir votar contra o presidente, mas eu concordo que de certa maneira...
José Maria Pimentel
Mas isso tem a ver com o espectro binário de dois partidos, não é? Sim, exatamente. Ou estás com eles ou estás contra eles, ou estás de um lado ou estás do outro.
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, sim, e há muita gente que não vota, obviamente, também não sabemos as preferências desses, normalmente são preferências mais indiferentes. Porquê é que há tão pouca desculpa só fazer empreendas? Porquê é que os Estados
José Maria Pimentel
Unidos têm tanta abstenção? Isso foi uma coisa que eu descobri relativamente tarde e surpreendeu-me.
Mafalda Pratas Fernandes
É um dos países com mais abstenção do mundo. Um país que tem um adepto das
José Maria Pimentel
eleições, não é? Um adepto que eles têm eleições para tudo e mais alguma coisa, não é? Portanto, é curioso.
Mafalda Pratas Fernandes
Não, não, há muitas razões para isso, não é? Muitas delas prendem-se com a dificuldade em votar, portanto, a eleição ser uma terça-feira.
José Maria Pimentel
É outro ponto, importante, sim. Portanto,
Mafalda Pratas Fernandes
que é um dia de semana, não é? Portanto, muita gente não consegue votar essa terça-feira. Antes de qualquer eleição é preciso uma pessoa registar-se, portanto é preciso, nos sítios onde não há registro online, é preciso ir ao sítio da eleição, portanto à comissão de eleições do seu município, uma pessoa registar-se para poder votar na eleição que vai ocorrer e depois ir lá outra vez para votar, só isso duplica o esforço necessário para uma pessoa ir votar. E depois é um sistema muito desigual em que é verdade que em termos medianos a classe média vive relativamente bem, por padrões das democracias avançadas, não é? Mas também é um sistema onde há muita pobreza e, normalmente, quem não vai votar são as pessoas mais pobres, portanto são as pessoas que ou que têm que trabalhar muitas horas por semana, ou que não têm tempo para ir votar, ou que não têm tempo para prestar atenção a política, etc. E até que podem sentir-se descontentes com as opções que existem, porque depois ainda há a questão, não só há só duas opções, como em muitos sítios, que são uma das opções, porque estamos num sistema de single member district, num círculo uniluminal, que é baseado geograficamente e que apenas elege um representante, no fundo se o meu distrito for totalmente republicano ou totalmente democrático o meu voto é quase inútil, não é? Exato. Por exemplo, em cada eleição da Câmara dos Representantes não há mais do que 20, 30 círculos que são realmente competitivos. Sim. A maioria já tem ganhos à partida. Exato, exato. Até porque também há, não é, gerrymandering, como se sabe, não é, que é os partidos que estão no poder, em cada estado desenha os distritos eleitorais.
José Maria Pimentel
Às vezes com umas formas um bocado estúpidas.
Mafalda Pratas Fernandes
Exatamente, exatamente. Normalmente há umas fórmulas para sempre, para beneficiar o seu partido eleitoralmente e geograficamente, escolhendo zonas que são ou mais democratas ou mais conservadoras, mas e que a maioria dos eleitores também votam em círculos e em estados, até para eleições presidenciais, votam em estados que realmente não interessa, não é? Porque, quer dizer, o que é que interessa é ir votar num estado em que eu já sei à partida, por exemplo, na Califórnia, que eu já sei à partida que os democratas vão ganhar a eleição presidencial, sei lá, por 5 milhões de votos. Quer dizer, não interessa muito, não é? Embora ainda há muita gente a fazer, muitas milhões de pessoas que o fazem, mas é um voto meramente simbólico. E votar, por exemplo, republicano para uma eleição presidencial na Califórnia é um voto simbólico. E haver tanta gente a fazê-lo é impressionante. E vice-versa.
José Maria Pimentel
Não, mas isso é que eu acho estranho, quer dizer, vendo a coisa de fora, a minha intuição aqui, quer dizer, que vale o que vale, é que o problema não é tanto no sistema político, digamos assim, que é elogiável e de resto tem provas dadas, obviamente com alterações, como dizias há bocadinho, no papel dos vários, mesmo o Presidente tem um papel maior do que... Foi tendo progressivamente um papel maior, por exemplo, embora apesar daquelas limitações, mas para todos os efeitos, quer dizer, é um sistema que dura há 200 e tal anos e não se pode dizer o mesmo de grande parte das democracias ocidentais com essa relativa estabilidade, não é? Agora, intuitivamente, aquilo que causa mais estranheza e que parece, de facto, ser altamente discutível são até mais estes aspectos que tu falavas agora, não é? Da eleição por círculos unionominais, que cria uma destrução grande no processo eleitoral, que leva a que o voto, como tu dizias, que o voto de muitas pessoas não serve para nada, leva até a um certo extremar de posições. O facto do processo eleitoral ser ele também muito desigual e ter o papel dos Estados, o que significa que tu não consegues ter, como tens em Portugal, por exemplo,
Mafalda Pratas Fernandes
que tens um... Sim, não
José Maria Pimentel
há nenhuma agência nacional de eleição, não
Mafalda Pratas Fernandes
há regras uniformes para todos os estados. Tudo isso são regras, são regras institucionais. Depois
José Maria Pimentel
o colégio eleitoral, desculpa só para terminar, depois o colégio eleitoral que no fundo faz com que tu possas ter, como teve a Hillary Clinton, mais a maioria dos votos mas não ganhas a eleição, que não É uma distorção gigante, mas é uma distorção, não é? Estás a distorcer no fundo o ponto médio.
Mafalda Pratas Fernandes
Não há nenhum sistema presidencial do mundo em que uma pessoa com mais votos perca a eleição. Isso é a maiores proporções
José Maria Pimentel
do mundo. O que eu quero dizer é que é um absurdo, mas não é... O Trump não tinha 10% dos votos, não é? Ele estava relativamente perto, mas para todos os efeitos estás a distorcer ali o ponto médio eleitoral, não é? Porque o ponto médio teria de pôr-te a Hillary no poder. Bem, há
Mafalda Pratas Fernandes
aqui várias questões e agora talvez é mais a minha praia porque eu sou uma pessoa que acredita mais no poder das instituições em explicar os fenómenos políticos do que propriamente em comportamentos inatos de cada um de nós ou em comportamentos sociais de cada um de nós ou mesmo em determinismos económicos, eu acho que, primeiro lugar, o sistema político norte-americano não dura há 200 anos, na medida em que houve uma guerra civil pelo meio, portanto só aí dura desde... Sim. ...Vá, 1960 e... Não, sim, 1865.
José Maria Pimentel
Sim, mas pronto, 150 anos, já não está mal.
Mafalda Pratas Fernandes
Calma, calma, calma. Depois só se torna uma democracia real em 1965, não havia sufragem universal antes disso. E em todos os estudos atualmente sérios do mundo, não é. É como era o Reino Unido em 1850, também não havia sufragem universal, era uma democracia. Quer dizer, era como... Não,
José Maria Pimentel
mas tem uma continuidade com o regime atual, não é o que eu quero dizer?
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, tem uma continuidade com o regime atual porque o pacote elaborado à partida, o pacote digamos institucional elaborado à partida, tem tantos pontos de veto, em parte porque na altura vinham de uma confederação, eram estados diferentes e nenhum estado queria perder totalmente o seu poder, que desenharam um pacote institucional em que, primeiro, é extremamente difícil mudar a Constituição, é extremamente difícil fazer coisas sem a maioria dos estados e os Estados são uma criação humana, não é? Já houve gerrymandering de Estados, não é? Por exemplo, as duas Dacotas, só são duas, antes eram só uma quando eram um território, passaram a ser duas antes de entrarem em Estados para poder ir até quatro senadores em vez de dois. Ah foi? Sim. Quer dizer, os Estados são uma Constituição, até posterior à Constituição, não é? Porque na Constituição só havia três Estados. Mas se calhar uma coisa que ninguém sabe é que na Convenção Constitucional de 1787, que foi a única, tecnicamente é possível fazer outra mas nunca foi feito, O primeiro plano, o plano apresentado por James Madison que normalmente é visto como o homem dos cheques and balances é precisamente o oposto. O plano que ele apresenta, o Virginia Plan, é um plano que no fundo é um plano de sistema parlamentar. É um plano em que a Câmara dos Representantes e o Senado iriam ser fundamentalmente proporcionais à população o imposto dos pagos, ele também deu essa opção, a população de cada Estado, e depois houve uma reação obviamente e muito curiosamente, eu acho que sem saber, por isso é que eu costumo dizer também que o presidencialismo é um acidente histórico, como foi o poder do Tribunal Constitucional, mas o presidencialismo em geral é um acidente histórico. Porquê? Porque quando James Madison desenha esse plano original, que foi o plano que depois, digamos, Houve um contraplano e depois houve uma síntese dos dois, mas esse plano original em que ele desenha a Câmara dos Representantes e o Senado, enquanto o Congresso, elegiam o Presidente. Portanto, no fundo, é aquilo que nós hoje conhecemos como sistema parlamentar. Em alguns planos, no plano que depois houve em contraponto, que foi o plano dos Estados Pequenos, porque James Madison vinha da Virgínia, que era um dos maiores Estados juntamente com a Pensilvânia, e obviamente que era favorável a uma situação em que era por população e não por Estado. Houve um plano contrário, que foi o que era chamado New Jersey Plan, que os estados pequenos apoiaram, portanto New Jersey, Rhode Island etc., que disse não, não, nós queremos apenas uma Câmara e nessa Câmara só há um representante, ou há o mesmo número de representantes por estado, que é obviamente uma desproporção gigante, não é? E depois foi feito, criou-se este compromisso que foi uma das câmaras é por população, que é a câmara dos representantes, e a outra é por Estado. Só aí é uma mega desproporção, porque os Estados pequenos e os Estados rurais, normalmente porque têm menos gente, têm por habitante muito mais poder do que estados mais urbanos. Porquê que houve também, e conseguiu ser alcançado um compromisso? E porquê que é tão difícil de mudar as instituições americanas desde da altura até hoje? Porque entretanto se meteu o assunto da escravatura, porque basicamente havia duas clivagens na Convenção Constitucional, Estados grandes versus Estados pequenos e Estados livres, portanto escravos sem escravatura versus escravos com escravatura. Portanto havia Estados grandes com escravos, como a Virgínia, estados grandes sem escravos, como a Pensilvânia, via estados pequenos com escravos, como na altura o Kentucky, acho eu, estados pequenos sem escravos, como Rhode Island, não é? Portanto, no fundo tens de fazer um plano de um sistema político que fosse agradar a todos estes Estados, o que é extremamente difícil. O compromisso feito foi, lá está, uma Câmara proporcionada por população e outra Câmara, o Senado, por Estado, e porque é que no fundo foi a Virgínia principalmente, porque é que aceitou este plano? Porque foi feito um acordo entre os estados com escravatura e os estados pequenos, no fundo é isso, há um acordo feito, para que para além de tudo isto, e há aqui este pormenor que raramente é contado, não sei porquê, que para além da Câmara na altura ser a proporcionada, e essa palavra não é, por população, era não só por população livre, mas também por 3 quintos de todos os escravos. Portanto, o que é que isso faz? Faz com que a Virgínia e a Pensilvânia tivessem exatamente o mesmo número de homens brancos livres, mas depois a Virgínia tinha em cima disso 300 mil escravos, ou seja, teve muito mais representação e foi o estado com mais representação de todos
José Maria Pimentel
desde o início. Sim, mesmo só contando 3 quintos.
Mafalda Pratas Fernandes
Exatamente, mas 3 quintos de 300 mil é muita gente. Portanto, criou uma desproporção enorme, neste caso, que beneficiou desproporcionalmente Estados pequenos. O Senado é uma Câmara extremamente desproporcional, mesmo comparando com outras Câmaras superiores de outros países e mais, comparando com outras câmaras superiores, é uma câmara com muito poder hoje em dia. A maioria das segundas câmaras não tem tanto poder como o Senado. E para além disso, depois ainda há...
José Maria Pimentel
Até era suposto ter, desculpe-me interromper, era suposto até o Senado ter mais poder, quer dizer, mais poder se calhar a discutir, porque os poderes estavam divididos, mas pelo menos ter as decisões de fundo, daí também os mandatos serem mais longos e esperar-se dos senadores, que aliás não eram eleitos diretamente, eram
Mafalda Pratas Fernandes
eleitos pelas assembleias estaduais. Na altura eram eleitos pelas assembleias estaduais e lá está, mais uma vez, indiretamente, Portanto, sim, sendo verdade que o Senado eu acho que não era uma questão de ter mais ou menos decisões, porque havia decisões muito importantes que
José Maria Pimentel
eram feitas pela Câmara,
Mafalda Pratas Fernandes
como por exemplo o equivalente ao Orçamento de Estado, algo assim. Exato, é o power of the person. Mas era, costumava, são uma instituição que era suposto ser mais para debater, para refletir, digamos assim, mais elitista nesse sentido e mais livre de pressões eleitorais. Exato. Por isso os mandatos de seis anos, não é? O que é que acontece? É precisamente esse pensamento de debater que cria esta instituição do filibuster, não é? Que originalmente é uma instituição bastante ridícula na medida em que, originalmente o filibuster é o quê? É quando está apresentada no floor, portanto na Assembleia do Senado, uma lei, alguém pode pedir para interromper, portanto para adiar a passagem ou bloquear a passagem da lei da fase de debate para a fase de votação, ao digamos ir proferir a um discurso ou não sei o quê. Portanto, ir proferir na maioria dos casos um discurso e falar, e portanto por isso é que até mudaram as leis no final, mais na segunda metade do século XX, as pessoas, havia essas histórias das pessoas falarem 48 horas seguidas para bloquear a passagem da fase de debate para a fase da lei e no fundo havia também a partir desse momento desistências, havia coisas políticas que aconteciam, não é? Portanto o público via aquilo, via muitas coisas, basicamente para dificultar a passagem de leis e para ultrapassar um filibuster era preciso 60 votos e não 50, portanto não 51, O que lá está é uma super maioria. O que acontece? A instituição do filibuster se torna-se demasiado fácil, porque a cidade de Altura eles mudam as regras, na segunda metade do século XX mudam as regras e basta pedirem um filibuster sem ter que ir 48 horas de bater. Eu posso simplesmente, sem qualquer custo, um senador pode dizer eu faço o Filipe Bachar esta regra e automaticamente são 60 votos, portanto basicamente tudo precisa de 60 votos. Claro, exato. Por isso é que atualmente está sobre a mesa, desde que Joe Biden foi eleito com a maioria na Câmara dos Representantes e uma maioria muito pequena no Senado, pelo voto do vice-presidente, mas está na mesa, portanto, livrarem-se dessa instituição do filibuster. Porquê? Porque na verdade, isto é uma curiosidade, todas as regras do Congresso são votadas no início de cada congresso. Não há nenhuma regra na Constituição que diga que o filibuster é obrigatório. Isso é uma regra inventada e que por tradição democrática em todos os inícios de congresso são votadas as regras que se vão usar nesse congresso e as pessoas votam sempre nas mesmas porque pensa que há, ganha-se com a ver a estabilidade das regras e a pessoa pensar que eu posso agora perder com esta regra mas eu sei que ela existe e está lá para me proteger quando eu estiver do lado perdedor, digamos assim, não é? Portanto, No fundo foi por isso que até agora ninguém se livrou do filibuster, ou melhor, não se livraram em algumas situações, por exemplo, se livraram do filibuster, Obama foi e depois Trump continuou, em relação a nomeações executivas e do Supremo Tribunal. No fundo eles estão a comer a instituição aos bocadinhos até acabar, porque não é um equilíbrio em nenhuma instituição no mundo ser necessário 60 de 100 votos. Claro. Para passar uma lei, para além da câmara anterior, não é? E do veto do presidente. No fundo reformar estas instituições é extremamente difícil, como já foi falado, é preciso o acordo de muitos Estados, de muita gente, é preciso ser constitucional e é preciso estar disposto a quebrar certas tradições que são muito antigas e à medida que as tradições ficam mais antigas é
José Maria Pimentel
mais ainda difícil de quebrá-las. Mas como é que se mudaria? Imagina que havia uma proposta de acabar com os círculos unionominais e criar eleições mais próximas das nossas, no fundo, independentemente de teres um método puramente proporcional ou até um método como o nosso, método de onde que já não é bem proporcional, porque também convém assegurar a governabilidade, mas que, bem, ali no caso dos Estados Unidos não se ponha bem esse problema, porque são só dois partidos, não é? Mas que, no fundo, eliminava essa questão dos círculos uniliminares que falavas há bocadinho, não é? Se houvesse essa proposta, o que é que precisaria para avançar? Precisaria de ser aprovada na Câmara e no Senado e não ser rejeitada pelo Supremo e ponto? Ou precisaria de ser aprovada por exemplo em cada Estado? Não sei.
Mafalda Pratas Fernandes
Isso depende se era uma alteração constitucional ou uma alteração, eu penso, que seria necessário. Portanto, não é necessário mudar a Constituição, é necessário eliminar uma lei em vigor desde 1967 que digamos obriga as eleições a serem uniluminais, mas cada Estado tem relativa liberdade em desenhar o modo como selecionam os seus representantes, portanto, no fundo eu acho que poderíamos acabar a ter um país com... Com vários sistemas. Com estados, exatamente, com estados. O que não é necessariamente errado, há muitos países assim, mas é um pouco bizarro. Se considerarmos o 1, uma magnitude 1, não é? Pode haver distritos com magnitude superior, mas seria muito bizarro haver tanta diversidade de magnitude e de população por distrito. Seria necessário fazê-lo. É extremamente difícil mudar os sistemas eleitorais, não é? Portanto, há muito poucas reformas eleitorais no mundo e isso normalmente até é uma coisa positiva, Não é bom estarmos sempre a mudar o sistema eleitoral e para além disso é extremamente difícil convencer políticos que foram eleitos segundo um sistema que mudar para o sistema oposto nos iria beneficiar, porque não é evidente que depois em cada estado, quer dizer, não ia ser sempre o mesmo a ser denunciado. Portanto, pessoas de ambos os partidos em todos os estados, pessoas diferentes iam ser denunciadas e prejudicadas naquele particular momento, não é? Por exemplo, na Califórnia há mais votos republicanos que em qualquer outro estado, talvez no Texas haja mais. Mas neste momento, em algumas eleições, conseguem ser diluídos em votos democratas. Mas se calhar se mudasse para um sistema pro-profissional, se calhar íamos ter mais representantes democratas na Califórnia, mais republicanos na Califórnia. Se calhar íamos ter mais democratas no Texas, etc. Não é evidente que cada Estado quisesse mudar.
José Maria Pimentel
Sim, sim. Aliás, falou-se disso até por causa da eleição presidencial agora, se se mudassem as regras da...
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, a regra do voto popular é relativamente diferente. Para isso, o que é necessário, para, digamos, eliminar o colégio eleitoral, apenas é necessário, no fundo já está em vigor, não, já está em processo há muitos anos, uma coisa que é conhecida como National Popular Vote Compact, que é um, digamos, um pacto que os estados assinam ou não assinam, portanto depende, a dizer que se o número suficiente de estados para ter uma maioria no colégio eleitoral tiver assinado esse documento, todos esses estados vão votar sempre no vencedor do voto popular e não no vencedor do seu estado e basicamente isso eliminaria o colégio eleitoral. Mas ainda não houve estados suficientes a assinarem ou a concordarem com esse... Estava a
José Maria Pimentel
ver aqui na Wikipedia 16 estados apenas com 196 votos assinando. Exatamente,
Mafalda Pratas Fernandes
seria necessário 270.
José Maria Pimentel
O que é curioso é que no fundo nós voltamos sempre para o... Parece-me um problema incontornável, que é a questão do peso dos Estados e que está desde a origem dos Estados Unidos, mas se mantém até hoje, no fundo mantém-se uma questão, essa tensão entre o federalismo e o antifederalismo, se quisermos chamar assim. Numa perspectiva que eu diria que é por inércia aquela que nós tendemos a ter na Europa e que olhamos para os Estados Unidos como um país, até porque vemos muita política externa, que é feita como se fosse um país, causa-nos estranheza, por exemplo, a questão de cada Estado ter dois senadores, independentemente da sua população, parece bastante absurdo. Mas se nós pensarmos nos Estados Unidos como composto por vários estados, isso já passa a fazer sentido. De resto, aliás, o sistema americano é um compromisso já face ao sistema inicial logo depois da independência, ou seja, é mais ágil do que esse, porque esse sistema original eu creio que até era mais próximo do que... Em relação àquilo que
Mafalda Pratas Fernandes
nós temos... Não, o sistema original era uma confederação, não é?
José Maria Pimentel
Sim, exatamente. Que é aquilo que nós temos na União Europeia. Em que tu precisas do consenso... Ou obtinhas
Mafalda Pratas Fernandes
mais, sim, sim. Mas precisavas do consenso de toda a gente. Porque é um sistema estúpido, não é? Não é nenhum sistema político do mundo que pode requerer unanimidade.
José Maria Pimentel
A questão é... O que é que tu achas que vale mais, não é? É o cidadão ou os Estados, não é? Na União Europeia tu estás a meio caminho, não é? Porque estás até aquém, obviamente os Estados Unidos, não é? Porque não por acaso não é uma união política, não é? Mas tu achas que os Estados têm um poder... Porque nós, nós em Portugal, não queríamos, de repente, passar a ter um sistema puramente proporcional à população porque o nosso peso diminuiria bastante, não é? Não quer dizer que depois o peso real já não corresponda à população e, sobretudo, ao poder económico de cada país, não é? Mas o facto de, pelo menos teoricamente, cada país ter um voto em várias instituições europeias, no Parlamento não, naturalmente, mas em várias instituições, é uma garantia para os Estados terem aceito fazer parte daquela... Os Estados isto é, os países neste caso terem aceito fazer parte daquela união, não é? Nos Estados Unidos também foi, no fundo, não é? Portanto, é por aí que faz sentido, não é? Ou que fará. Sim,
Mafalda Pratas Fernandes
o problema é que eu diria que, atualmente, digamos que atualmente é um país muito mais nacionalizado, portanto, é muito mais um só país do que seria em 1787, não é? Está claro, está claro. Portanto, se se calhar faz sentido, faria sentido serem Estados, cada Estado ter o seu poder apesar de isso obviamente ser debatível e eu por acaso Acho que não, acho que normativamente só tem, e mesmo politicamente depois por outros resultados do processo, acho que só tem sentido, ou tem muito mais sentido, uma representação proporcional por várias razões. Em primeiro lugar, Isto é um argumento que foi Hamilton que o disse ou James Madison, foi um dos founding fathers a favor da representação proporcional que disse que o Estado é uma construção, quer dizer, o Estado só vale na medida em que estão indivíduos lá dentro. Eu acho que um sistema em que... Mas é
José Maria Pimentel
válido para todos, também é válido para o Estado assim, mas não é para o país.
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, sim. Mas quer dizer, o país decide depois a quem quer pertencer. Tu queres ser um país independente ou queres pertencer a um país federal, não é? E tu podes ter países federais com menos poder nos Estados, não é? A maioria
José Maria Pimentel
dos países federais, da
Mafalda Pratas Fernandes
Alemanha, a Alemanha também tinha grandes diferenças internas, não é? Por isso era muito diferente de Baden-Württemberg ou o que seja, não é? Quer dizer, mas o que é que acontece?
José Maria Pimentel
O que eu estou a dizer é que há uma tensão aí, ou seja...
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, claro, há uma tensão. É
José Maria Pimentel
evidente que o Estado só... Quer dizer, que um país só é composto pelos seus cidadãos, não é? Portanto, instituições intermédias, desse ponto de vista, não fazem sentido. Mas, por outro lado, as instituições intermédias são aquelas que estão mais próximas das pessoas e nas quais elas, em relação às quais elas se identificam mais e sei lá, imagina que a União Europeia caminhava para uma União mais política, é instituição intermédia, país, país isto é, governo do país dificilmente perderia peso, não é, Porque nós nos identificamos como portugueses, não é? Por muito europeistas que
Mafalda Pratas Fernandes
nós sejamos. Não, mas a ideia que está é que a maioria de nós, e não é errado dizer que a maioria dos países na Europa são culturalmente mais, digamos, mais nacionais do que cada Estado norte-americano, não é? Ah claro, por isso entendo. Há muita gente que não sente assim tanta afeição pelo seu Estado e que a maioria das pessoas aliás liga muito pouco a política estadual. Ah é? Há muito menos votação, há pretenção ainda mais elevada em eleições estaduais. A maioria das pessoas não sabe quem é o seu representante estadual, saberá quem é o seu governador, algumas pessoas saberão, mas muito mais gente atualmente pelo menos presta atenção à política nacional do que à política estadual. Portanto há aqui várias dimensões. Primeiro lugar, em cada vez mais no mundo que corre, a instituição adequada para responder aos desafios que uma sociedade como a sociedade americana necessita de responder, não é cada Estado individual, não há de ser o Kentucky individualmente ou o Rhode Island individualmente, acho que é necessário medidas mais abrangentes, tal como, e isso foi um bocado o racional é por trás da criação da União Europeia, não é?
José Maria Pimentel
Sim, sim, claro.
Mafalda Pratas Fernandes
É necessário respostas maiores do que de um Estado só, embora no caso da União Europeia houve também outros fatores a terem em conta e no caso dos Estados Unidos também. Depois há aqui outra questão ainda que é, eu acho que o compromisso inicial é um compromisso que lá está, que mesmo olhando para os Estados Federais no mundo inteiro é um compromisso que dá demasiado poder a cada Estado individual. Cada Estado individual teria sempre a opção de escolher não pertencer aos Estados Unidos, não é? Mas apesar de tudo queriam pertencer a um país com os três maiores Estados e mais ricos, não é? Pensilvânia, Virgínia e Nova Iorque, como nós queremos pertencer a um país onde a Alemanha possa negociar vacinas. Portanto, isso tem um preço. Eu seria a favor da representação proporcional na União Europeia. Mas também digo que nós temos mais, portanto há mais uma identidade nacional do que há uma identidade estadual em cada estado norte-americano. E depois há aqui outra questão que é o ponto de partida, o ponto de partida interessa muito não é? Jonathan Rodden, que é um cientista político da Universidade de Stanford que estuda o federalismo, escreveu um artigo muito inteligente a dizer que o federalismo, mais do que uma instituição, é um processo de negociação e é uma divisão de poder para depois um processo de negociação acontecer. Ou seja, se eu, imaginemos, no momento zero dou mil euros a todos os participantes, depois cada um vai começar dessa posição, não é? E cada Estado teve tanto poder inicialmente que depois não tem sentido cada Estado ir abdicar dele nunca e portanto qualquer mudança, em qualquer mudança eles vão ter, cada Estado vai ter sempre bastante na sua mão para impedir que essa mudança aconteça e portanto cada Estado, digamos na barga que existe entre Estado e regime federal tem esse poder inicial a favor do Estado, que foi por várias razões, duas razões principalmente, porque havia Estados muito pequenos mas também, e muito muito porque havia Estados que queriam preservar a instituição da escravatura e Estados que não queriam, que não queriam saber disso e que aliás alguns deles até eram contra a instituição da escravatura e muitos deles sendo indiferentes, mas queriam preservar a autoridade política suficiente para haver essa distinção entre Estados que podiam ter escravatura e Estados que não tinham Uma regra dessa dimensão ser feita ao nível estadual dá muito poder a cada Estado a nível individual e eu acho que tanto não é um sistema muito conducente à ação, digamos assim, é um sistema mais sempre a preservar o status quo, que qualquer mudança é extremamente difícil e a mudança é sempre, foi sempre feita, mudanças estruturais na sociedade são sempre feitas depois de eventos extremamente difíceis, não é? Guerra civil, uma grande depressão, é muito difícil fazer mudança em momentos normais. Quer dizer, eu não digo que não seja importante em todos os temas políticos preservar o status quo, é sempre necessário ser relativamente difícil mudar o status quo, mas não pode ser tão difícil, tem que haver um balanço entre ação e moderação, digamos assim.
José Maria Pimentel
Não, até porque às vezes também tens o problema de gerar... Quando a coisa não passa por um lado, passa por outro e depois tens essa profusão de executive actions e de medidas que criam instabilidade em vez de teres um processo deliberativo que cria uma lei que depois prevalece, não é?
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, e por exemplo, eu não acho muito democrático ser o Supremo Tribunal a fazer muitas das decisões que faz, não é? Porque no fundo é uma instituição não eleita e que não é accountable a nenhum cidadão, não é? E eu posso ser a favor ou contra muitas das decisões do Supremo Tribunal mas eu não acho que eles tenham… quer dizer, não acho que um sistema político saudável possa resolver esse tipo de conflitos numa instituição judicial, mas que no fundo só tem o poder que tem porque também há muita inação, nomeadamente no Congresso. Em termos presidenciais tens toda a razão que cada vez mais, devido à dificuldade em passar, em legislar no Congresso, cada vez mais o Presidente se tem socorrido de medidas burocráticas e de, digamos, dessas executive actions, que lá está, são outra vez, na minha opinião, medidas muito pouco democráticas e são medidas, no fundo, de um só homem, não é? São medidas que não são, digamos, parlamentares, não são medidas de demigração política, etc. E são, lá está outra vez, totalmente feitas para quatro anos e que depois voltam a ser eliminadas. E
José Maria Pimentel
que não foram criadas para aquele propósito, não é para serem usadas por tudo e mais alguma coisa, não é?
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, claro, claro.
José Maria Pimentel
Aliás,
Mafalda Pratas Fernandes
uma das discussões também que há, em alguns círculos, de reforma institucional, não é? Há muitas coisas em cima da mesa, a liderar do Philly Buster, pessoas mais radicais a questão da representação proporcional, embora isso obviamente acho que não está em cima da mesa, embora existam em algumas eleições locais, algumas eleições locais, nomeadamente cidades que utilizam métodos de representação proporcional, mas na prática para um nível bastante já generalizado isso não está em cima da mesa, mas há outras medidas de reforma que estão em cima da mesa, uma delas seria o Presidente não ter tanto poder, portanto, de nomear pessoas tão abaixo no sistema burocrático, ou seja, por exemplo, eu devo ser capaz de nomear o equivalente a ministros e secretários de Estado, etc., mas eu não devo nomear pessoas já muito abaixo na estrutura burocrática que são, portanto, que no fundo se lá está, são enviados políticos e não são pessoas na burocracia capazes de... Portanto, especialistas, relativamente independentes do poder político, capazes de simplesmente... Sim, o que é suposto serem, sim,
José Maria Pimentel
sim. Sim, porque isso cria um poder gigante, o presidente, porque no fundo toda a máquina do Estado... De um poder
Mafalda Pratas Fernandes
antidemocrático, não é? Isso é um poder de um homem só. E que não estava minimamente previsto na Constituição,
José Maria Pimentel
é assim, então é fácil dizer. Até porque a Constituição previa um papel, não era? Previa um papel muito maior à parte legislativa do que a... Sim, sim, sim. Mas agora ainda em relação à lentidão do processo legislativo e à dificuldade de fazer aprovar algumas medidas que nos causam alguma estranheza, vendo aqui do outro lado do Atlântico, a parte da explicação será certamente institucional, mas outra parte não será também cultural, Ou seja, num país, lá está, tão diverso e composto por tantos... E lá está, eu também não diria, quer dizer, obviamente tu conheces a realidade muito melhor do que eu, mas a minha impressão também não é que é tanto dependente do Estado, mas simplesmente de uma geografia extensa e de histórias diferentes e muitas etnias, quer dizer, há diversidade a vários níveis, num país tão diverso torna-se difícil tu montares um Estado Social como tu tens na Europa e que foi criado precisamente, bem ou mal, nos Estados-nação, em sítios, em comunidades que tinham uma unicidade cultural, uma homogeneidade cultural que permitiu criar aquele estado de nação. Quer dizer, nós vimos, de novo dando o exemplo da Europa, vimos durante a crise do euro, a falta de solidariedade que existia, sei lá, entre alemães e gregos, né, povos do sul, povos do norte, nós vimos como de repente, quando foi preciso tomar decisões de solidariedade, essa solidariedade não existia e seria difícil de existir, não é? Porque as pessoas no fundo não sentiam que faziam parte da mesma comunidade. E nos Estados Unidos, não sendo obviamente a mesma coisa, não é? Claro que é diferente, não é? O peso da cultura, o peso dos Estados nesse sentido é evidente não é o mesmo, mas não deixa de haver uma diversidade cultural maior, eu diria até bastante maior, do que existe dentro de cada um dos países europeus, não é? E isso, a minha intuição, é que isso também torna difícil aprovar esse tipo de medidas. Lá está mesmo, mesmo a segurança social foi difícil, não é?
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, sim, sim. É extremamente difícil aprovar esse tipo de medidas, embora... Sim, portanto, isso é uma das grandes teorias sobre porque é que o Estado Social americano é tão mais pequeno e tão diferente de Estados Sociais noutros países, até mesmo em países como Canadá, não é? Que são países, se calhar, mais próximos da realidade norte-americana em termos de diversidade étnica, etc. E uma das respostas dadas sempre foi essa da diversidade étnica. Lá está. Eu acho que a diversidade étnica, só por si, eu duvido que isso seja a razão pela qual, digamos, não há Estados Sociais e uma das razões será exatamente o Canadá, que é um país também fruto de imigração de muitas regiões do mundo.
José Maria Pimentel
Temos Estados Sociais... E até tem duas línguas, mas é mais pequeno por outro lado, não é?
Mafalda Pratas Fernandes
É bastante mais pequeno, mas o que eu acho também é que não é tanto etnias, é mais mesmo a questão que é central desde o início, que é a questão da raça, e sempre foi, primeiro foi a escravatura e depois foi o Jim Crow e agora é a raça. E sempre houve essa questão fundamental, portanto, tendo o país começado na escravatura e depois ido para o Jim Crow, em que, digamos, estruturas como os sindicatos ou as igrejas são totalmente segregadas, mesmo em estados do Norte em que oficialmente não tinham que ser segregadas talvez, mas que na prática depois eram, a criação de uma comunidade só de laços, digamos de solidariedade entre essas duas raças, digamos negros e todos os outros, seria muito baixa e essa é uma das razões dadas, por exemplo eu lembro-me do Alézina no livro dele com o Glazer de porquê que os Estados Unidos não têm um welfare state, como a Europa. Uma das razões que ele apresenta é precisamente a diversidade étnica, mas principalmente esta questão racial, não ser diversidade étnica em geral, ou seja, não é o facto de haver muitos italianos e gregos e irlandeses que cria propriamente a dificuldade, foi mais esta questão mais fundamental, mais funda, digamos assim, de divisão racial que acaba por ser mais funda. Pois,
José Maria Pimentel
tu estavas a falar dos italianos e tal, não cria divisões agora, não é? Mas a pessoa vê até nas séries e nos filmes que...
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, criou divisões, mas apesar de tudo, a classificação de quem é, digamos, um branco foi-se expandindo para incluir irlandeses, italianos. Agora, eu acho que em termos raciais, só o peso de haver um sistema de apartheid dentro de um país é uma coisa que não é comparável a uma sociedade, mesmo uma sociedade multicultural, É uma coisa que só é comparável à África do Sul e ao Brasil, não é comparável em mais nenhum país do mundo. De ter um sistema com, portanto, igualmente no caso do Brasil, de tantos escravos negros a irem num sistema de escravatura para um país e depois serem, digamos, a elite ser de outra raça completamente, não é? Ou então no caso da África do Sul, o sistema da apartheid, não é? Em que no fundo havia mesmo uma coisa legalizada de divisão entre duas raças. Isso é uma coisa que é extremamente difícil de ultrapassar. É,
José Maria Pimentel
porque depois para tu reequilibrar-se exige um esforço gigante e exige que pessoas abdiquem daquilo que têm, e mesmo que nós consideremos injusta elas têm aquilo que têm ou houver
Mafalda Pratas Fernandes
aquela disparidade? E algumas coisas são quase muito difíceis de mudar, por exemplo, fala-se agora muito na questão das reparações, De no fundo dar dinheiro para reparar o mal da escravatura às pessoas que são descendentes de escravos. Em geral eu acho que esse tipo de política que é extremamente controversa não é uma política que tem tudo para correr bem, antes de perguntar, é uma política que tem tudo para correr mal. Sim, concordo, sim. Mas porquê? Porque no fundo é extremamente difícil, quer dizer, como é que tu vais resolver um problema de teres, neste caso, 13% da população que sistematicamente são de facto muito mais pobres que o resto, têm muito menos por exemplo
José Maria Pimentel
Menos património. Casa própria do que o
Mafalda Pratas Fernandes
resto, exatamente, menos património que o resto, menos educação, menos rendimento que o resto, que vivem muitas vezes em comunidades que estão, digamos, separadas, não é? Portanto, há, quase continuam a haver em muitos casos, comunidades completamente negras e comunidades completamente brancas. Quer dizer, como é que tu vais levantar, digamos assim, efetivamente da propriedade a um grupo desse tamanho e especialmente aceitando os outros fazer isso, não é? Legislando os outros para resolver esse problema. É extremamente difícil. Eu não creio que dar o dinheiro diretamente seja a solução, não só por todas as razões logísticas de calcular quem é que é descendente de escravo ou não é, até porque há muitos brancos que são descendentes de escravos também, não é? Portanto, pessoas que são brancas na pele que são descendentes de escravos, mas depois dessas pessoas teriam direito ao dinheiro ou não. Exato. E depois imigrantes, pessoas que, por exemplo, um imigrante negro que foi para os Estados Unidos em 1920, mas continua a enfrentar racismo na rua, mas não é descendente do escravo, apesar de tudo há certas coisas que não herdou instituições, problemas de descendência, de intergeracionais de pobreza que se calhar não enfrentou, essa pessoa tem direito a receber ou não, isso é digamos, está feito para gerar descontentamento. Eu lembro-me de uma frase de uma académica que estuda estados sociais que diz que um estado social bem sucedido não é um estado social que transfira dinheiro de ricos para pobres, é um estado social que transfere dinheiro de saudáveis para doentes, de educados para não educados, portanto que não faz a divisão através do rendimento, porque isso gera muito descontentamento de parte das pessoas que têm mais dinheiro, não é? Porque essas são as pessoas que vão ter que financiar e ao mesmo tempo sentem que não vão usufruir dos benefícios. Enquanto que se tu fizeres um sistema, por exemplo, neste caso de saudáveis para doentes, não é? Tens um sistema geral que todos têm acesso. E tu
José Maria Pimentel
não sabes se vais ser saudável ou doente no futuro, não é?
Mafalda Pratas Fernandes
Exatamente, e que todos podem ser saudáveis ou doentes, no fundo há mais aceitação social, é mais fácil aceitar socialmente isso do que, digamos, pagamentos de dinheiro. E geralmente eu acho que em quase todas as sociedades os sistemas mais assistencialistas, Os programas mais assistencialistas são sempre os programas mais controversos que geram e que também são muitas vezes menos efetivos, porque de facto é muito difícil dizer que um problema estrutural vai ser resolvido dando dinheiro individualmente a cada família e não com instituições acima de um indivíduo que sejam capazes de lidar com, digamos, problemas de ação coletiva relativamente a educação, a saúde, a providenciar bens públicos para essa população. Isso requer algo acima do nível familiar
José Maria Pimentel
ou individual. E integrá-las, não é? No fundo, não
Mafalda Pratas Fernandes
é? Sim, sim, sim, integrá-las no resto da sociedade. Depois, eu também acho que, sem dúvida, a raça desempenha um papel demasiado importante na sociedade americana, no discurso político americano, que aquele tema que é vai gerar divisão, vai gerar divisão a mais, digamos assim, não é? Eu não estou a dizer que não é um problema importante, mas normalmente, se nós olharmos para o momento, digamos, com o maior sucesso, que foi o momento do Martin Luther King e talvez o momento em que o Barack Obama conseguiu ser eleito, talvez diria que esses são os dois grandes sucessos de uma visão em relação à raça, é uma visão mais universalista, não é? Quer um quer outro, vinham com discurso. Portanto, a maneira de convencer, portanto neste caso os francos não norte-americanos, que isto está certo não é convencer que nós somos pessoas inerentemente diferentes e que precisamos de coisas diferentes e precisamos de uma transferência de recursos diretamente de um lado para o outro, como se fosse, digamos, um processo em tribunal em que a vítima recebe dinheiro do culpador do crime. É mais fácil de convenceres politicamente e é mais fácil agir politicamente se for baseado na ideia, portanto, de uma questão universal, que todos enfrentamos estes problemas, mas que depois na prática tu não tens que dizer isso. Eu sei que isto é um pensamento alguilitista, mas eu acho que se tu fizeres um programa, por exemplo, que vai ajudar pessoas que arrendam casas, por exemplo, como já há programas de apoio a empréstimos de casa subsidiados pelo Estado Federal, não é? Houve um grande programa de apoio a compra de casa desde o final do… portanto desde os anos 50, desde a segunda guerra mundial, apenas para brancos, não é? Havia muitos bancos que não emprestavam a pessoas negras porque viviam em zonas, compravam casa em zonas que eles consideravam que eram zonas onde o imobiliário não valia dinheiro. A maneira de, por exemplo, se eu disser vou fazer um programa para arrendatários, Ele depois na prática até pode ter, pode ir a cagar por beneficiar mais pessoas, se calhar negras ou hispânicas, do que brancas, mas tu não tens que dizer isso. Eu acho que salientar demasiado diferenças raciais acaba por, apesar de poder ser verdade os problemas, acaba por ser mais difícil de agir politicamente sobre eles. São temas extremamente divisivos.
José Maria Pimentel
Sim, assim catam divisões, não é? Trazem à tona o que divide e não o que une, não é? No
Mafalda Pratas Fernandes
fundo. Sim. Eu não quero negar que também há um problema de racismo estrutural, obviamente que não quero negar isso, estou longe de achar que está tudo bem, eu só acho que às vezes é necessário pensar mais em como vamos sair daqui do que continuar a pensar em tudo o que foi o passado e o que nos dividiu etc. E é mais importante pensar como é que estão agora as pessoas e como é que podemos melhorar a vida delas no
José Maria Pimentel
futuro. Sim, sim. Olha, Mafalda, a nossa conversa já vai longa e eu vou começar a fechar, tentar fechar parênteses de coisas que nós fomos a frente. E pronto, nós acabámos por começar a começar na história, passar pela polarização e depois para as instituições propriamente ditas. Houve aqui várias coisas que deixámos em aberto. Uma delas que tu tinhas aludido há bocadinho, querias falar nisso, era no Voting Rights Act, não é? Querias... E eu depois interrompi-te e acabámos por não ir lá.
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, portanto, como sabemos, uma das grandes legislações que foram muito importantes nos anos 60 foi o Voting Rights Act, que tinha três grandes componentes. Uma delas foi impedir os estados e os governos locais, que nos Estados Unidos mais uma vez são os responsáveis por fazer as leis eleitorais e por gerir o processo eleitoral, daí a diversidade do modo como se conduzem eleições de estado para estado, não é? Mas que o Voting Rights Act de 65 fazia com que cada Estado não pudesse passar nenhuma legislação em relação a voto, em relação ao processo de votar, cujos efeitos fossem discriminatórios em relação às etnias e à raça. Reparem que, ao contrário do que foi o primeiro Voting Rights Act, quando foi passado em 1860, 100 anos antes, em 1865, aí o que se proibiu foi a discriminação baseada em raças e etnias. Aqui já com a experiência de terem-se depois utilizado avenidas diferentes de dizer a raça diretamente, se calhar dizer testes de literacia ou coisas desse género, são vias que por outras vias conseguem o mesmo efeito. Então a lei dizia, o voto em redact dizia, não se pode passar a legislação cujos efeitos vão ser discriminatórios em relação a diferentes etnias e raças. Depois, lá está, proibia todas essas avenidas que historicamente foram usadas, não é? Literacia, impostos de urna, etc, etc. Mas finalmente, e aqui mais importante, tinha uma secção, que era a secção 5, que é uma secção de preclearance, que é uma secção que lá está num Estado Federal, numa nação federal extremamente impressionante, como é que foi passada e durou tantos anos, que dizia que certas áreas do país, que respondia à fórmula que eles deixavam lá, certas áreas do país, mas que portanto na maioria seriam os estados onde havia, onde houve mais leis a limitar o direito de voto a afro-americanos, Qualquer lei que eles quisessem passar, que as localidades ou os estados quisessem passar para mudar coisas relacionadas com eleições teriam de ser pré-aprovadas ou pelo US Attorney General, portanto pelo, digamos, equivalente ao... O Ministro da Justiça, não é? Ao Ministro da Justiça, ou pelo District Court DC, portanto, digamos o mini Supremo Tribunal de Justiça, antes sequer de serem votadas no Estado. Portanto antes de sequer disso eles tinham que aprovar em D.C. Essas leis. E finalmente em 2013, desculpem, esse Voting Rights Act, essa exceção foi eliminada numa decisão altamente controversa, não é? 5-4 e o Chief Justice John Roberts, que escreveu a opinião da maioria, disse que passados 40 anos e num Estado, lá está numa nação federal, era uma imposição demasiado grande do Governo Federal em relação aos Estados continuar com este Voting Rights Act especialmente tendo em conta que o número de incidentes eram muito pequenos. Obviamente que este raciocínio é totalmente ridículo, não é? A última parte do raciocínio, não a primeira. A primeira em relação à imposição entre o Poder Federal e local, obviamente que este Voting Rights Act o faz, depois a cada um decide se isso é justificável ou não, não é? Mas a história de hoje, não houve incidentes suficientes nos últimos anos para justificar isto e obviamente um raciocínio errado e foi isso que deu origem depois à opinião de dissidência. Quem escreveu foi a agora falecida juiz Ruth Bader Ginsburg e foi aí que surgiu aquele nickname que todos conhecem, o Notorious RBG, em que ela escreve que deitar fora esta secção de preclearance porque não houve incidentes nos últimos anos é como deitar fora um guarda-chuva quando está a haver uma tempestade, porque nós estamos a ser molhados. E a verdade é que depois desse...
José Maria Pimentel
Estava a perguntar uma analogia do género por acaso.
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, que é-se, depois desse Voting Rights Act de 2013, depois dessa decisão de 2013, começou a haver muitas decisões a nível estadual que de facto têm impacto diferente, não é? Em termos raciais, étnicos, até económicos muitas vezes. Então o que agora os democratas com o Joe Biden querem fazer é querem passar uma nova legislação chamada, a certa altura queriam chamar de John Lewis Voting Rights Act porque ele ajudou a escrevê-la, não é? Aquele congressista que faleceu que era da equipa, digamos assim, do Martin Luther King nos anos 60 e que estava no Congresso desde essa altura, mas que na verdade se chama For the People Act de 2021, que já passou na Câmara dos Representantes, mas que provavelmente não vai passar no Senado por causa do filibuster. E agora está uma grande discussão sobre se querem finalmente livrar-se do filibuster para passar uma nova legislação que iria fazer coisas como, coisas um pouco radicais para o sistema americano como, registar automaticamente todos os cidadãos nas eleições, incluindo a possibilidade de registar no mesmo dia, que em alguns estados é possível e em outros não, possibilidade de registar online, o dia das eleições ser um feriado nacional para que todos possam votar, coisas desse género, não é? E também proíbe o partisan gerrymandering, portanto todos os Estados teriam de fazer uma comissão independente para desenhar os distritos, não é? Eleitorais. E obviamente que passou na Câmara dos Representantes com um voto altamente partidário, acho que passou 220, 210 e agora vai para o Senado, não é? Há aqui várias questões, em primeiro lugar há a questão sobre se os democratas terão coragem de deitar abaixo, principalmente o democrata mais conservador que é o Joe Manchin da West Virginia, que é um democrata muito conservador, é talvez o último dos democratas muito conservadores, apesar de, obviamente, não ser como um Southern Democrat dos antigos, em termos de Jim Crow nem nada disso, é simplesmente alguém que economicamente é progressista, mas que também é conservador nos costumes. Digamos assim, é mais conservador nos costumes do que a maioria dos democratas. É
José Maria Pimentel
como algum voto latino na Flórida, por exemplo.
Mafalda Pratas Fernandes
Exatamente. Ele não quer, já disse que não quer, livrar-se do filibuster, o que é uma decisão muito interessante porque obviamente que isso ia tornar o votante pivô em todas as votações e portanto ele seria o responsável por todas as coisas que não iriam ser passadas, portanto é muito interessante esta absolvição de responsabilidade, não é? Ele quer que essa responsabilidade não seja dele sempre, mas também disse uma coisa muito interessante que é, mas estaria disposto a votar para se trazer de volta ao filibuster antigo, em que só é possível fazer filibuster se de facto a pessoa estiver disposta a passar pela dor de o fazer, de ter que estar a fazer o discurso durante cinco dias seguidos ou o que seja, o que obviamente ia, digamos, aumentar o custo de fazer um filibuster, no fundo é isso que ele quer fazer. Não sei o que é que vai acontecer, isso poderá acontecer e a legislação passar, mas se eu tivesse que apostar diria que penso que não será desta que vão eliminar o filibuster. Claro que depois de ser passada esta legislação o Supremo Tribunal ainda tinha que, provavelmente algum Estado dos que, dos Estados que são mais votantes republicanos, iam contestar e ia chegar ao Supremo Tribunal sobre se esta legislação poderia ser, digamos, constitucional, dado que é uma legislação que no fundo obriga os Estados, que constitucionalmente têm o direito de regular as eleições, a fazer certas coisas, não é? Portanto, obviamente que seria uma decisão muito difícil. Agora, isto é uma decisão sobre, e isto é muito interessante, como nos Estados Unidos, desde 1860, desde o final da guerra civil, se politizaram estas tecnicalidades do voto, em que mais de uma democracia está politizado, não é? Portanto, eu acho que numa democracia saudável o que deve acontecer é, todos concordam com regras neutras do jogo, por exemplo, fazer, haver uma comissão independente a gerir as eleições e a desenhar os distritos, não estar sempre a mudar as regras de quem é que pode ser votante, quem é que não pode, esse tipo de coisas, não é? E não utilizar esse tipo de regras para ganhar ou perder eleições, que eu acho que isso é algo… quer dizer, numa democracia saudável quando uma pessoa tem menos votantes o que tem que fazer é mudar a plataforma para ganhar mais votantes, é simplesmente isso não é? E não mudar as regras para que as pessoas que votem sejam um grupo diferente dos que votaram na eleição anterior. Portanto isto é algo um pouco perverso, mas cuja tradição, eu acho que vem alguma tradição, lá está, que vem desde os anos 60 do século XIX, de usar tecnicalidades para restringir quem é que podia votar e quem é que não podia, etc. Depois, passando para outra questão de reforma institucional, que também tem sido muito falada, lá está, é a questão da representação proporcional, que nós já falámos, e eu Acho que aí é quase impossível, houve algumas pessoas… o sistema mais próximo de ser passado não é um sistema de representação proporcional pura, é o sistema de STV, não é? De Single Transferable Vote, em que as pessoas listam as preferências, não é? 1, 2, 3, 4, 5, etc. E depois há uma transferência, portanto, tira-se o menos votado, não é? Esses votos vão para a segunda preferência desses votados, depois vão assim sucessivamente até chegar só a dois e nesses dois ganham um, no caso de ser só um. Portanto, é um sistema utilizado, por exemplo, na Austrália, na Irlanda é utilizado, mas é utilizado com vários membros por distrito e não só com um, não é? Não só com um eleito por distrito, mas que é um sistema que permite... Mas desculpa interromper-te,
José Maria Pimentel
mas isso faria sentido com mais partidos do que dois, não é?
Mafalda Pratas Fernandes
Não, pois a ideia disso é... Não, primeiro que tudo, há mais partidos do que dois. Claro que há, pois, eu sei que sim. As pessoas tendem-se a esquecer, eu sei que isso não é muito falado, o papel dos terceiros partidos, mas eu estive a fazer as contas e, por exemplo, em 2016 houve mais de 10 Estados cuja eleição foi decidida por menos votos do que aqueles que votaram no Partido Verde e no Partido Libertário, que são os 3 e 4 partidos. Portanto, só aí esses votos eventualmente... E são
José Maria Pimentel
pessoas que estão a votar sabendo que aquilo não vai contar para nada, não é, Garmel? Exatamente,
Mafalda Pratas Fernandes
são pessoas puramente
José Maria Pimentel
expressivas. Portanto, se aquilo contasse seria diferente.
Mafalda Pratas Fernandes
Portanto, essas pessoas puramente puradiam o 1 no Partido Verde e não no Partido Libertário e depois o 2 no Partido Democrático da República, consoante as suas preferências e etc. E depois também, eventualmente, isto vem, é uma proposta que vem das pessoas que desejam mais partidos, obviamente. Que eu acho que é uma, acima de tudo, é uma das coisas que também torna mais fácil haver mais coligações feitas, porque se as pessoas pertencerem a vários, portanto, se houver vários partidos representados numa legislatura é mais fácil tentar ver, o que em Portugal se denomina geometrias de... Variáveis. De variáveis, não é? De haver coligações com grupos e depois com outros e acaba por ser mais fácil do que só haver dois blocos e um deles ter que ter a maioria em tudo, não é?
José Maria Pimentel
Pois, o que tu tinhas antes é que tinhas dois partidos mas tinhas diversidade, várias correntes dentro de cada um deles. Exatamente, blocos. Exatamente.
Mafalda Pratas Fernandes
E a verdade é que as pessoas costumam dizer, ah mas no sistema uniliminal só é possível dois partidos. Essa lei, não é? Muito conhecida, que não é uma lei, é uma tendência, não é? Apontada por Duverger já há muitos anos e depois muita gente tem como adquirida, não é totalmente verdade. Ou seja, ao melhor é verdade, mas tem um cáveate, um pequeno promenor que as pessoas esquecem, que faz toda a diferença. O que a lei do VRG, a tendência do VRG nos diz é que num sistema uniliminal só há dois candidatos competitivos ao nível do distrito. Claro, sim. Mas os dois candidatos não têm que ser os mesmos em todos os distritos. Não tem que ser no mesmo partido, claro. Claro, por exemplo, no Reino Unido, por exemplo, no círculo de Bath, os candidatos competitivos são os Lib Dems e os… e eu acho que são os Lib Dems e o Partido Conservador. No distrito de Oxford serão os Lib Dems e o Labour. E o Labour, exato. Exatamente. Portanto, quer dizer, não tem que ser sempre, por exemplo, na Escócia o Partido Nacional Escocesa acaba por ganhar muitos lugares porque os partidos, é sempre o Partido Escocesa versus um dos outros e muita gente vota de acordo com a dimensão regional e vota, portanto, não é, E o que eu acho surpreendente, e eu já tentei várias pessoas explicarem este puzzle e ninguém consegue explicar, como é que num país com tanta diversidade étnica, geográfica, etc., como é que mesmo assim nunca houve partidos mais pequenos que conseguissem eleger pessoas em certos distritos? Eu não tenho dúvidas que em certos distritos da Califórnia o Partido Verde seria, o Partido Libertário seriam competitivos.
José Maria Pimentel
Sim, até porque vai contra a lógica do primazia dos Estados, não é? Porque se os Estados fossem tão importantes haveria mais diversidade de partidos, não é? Exatamente. O que isso mostra é que a questão nacional, a implicação nacional tem um perigo.
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, sim. Quer dizer, a ideia de que os conflitos políticos num distrito, na Califórnia, são os mesmos que os conflitos políticos num distrito, no Illinois ou no Wisconsin, é um pouco ridículo, não é? Porque os conflitos políticos, as esclivagens políticas variam consoante, quer dizer, a diversidade social, económica, étnica de cada distrito. Não tem que ser sempre os mesmos, o mesmo conflito, que no fundo é sempre este conflito.
José Maria Pimentel
Mas não era, A resposta a isso não é precisamente aquilo que tu dizias há bocadinho, ou seja, os partidos eram como é que tu chamavas, grandes tendas, não é? Portanto, no fundo era uma coisa útil tu teres o selo do Partido Republicano ou Partido Democrata, ou até os que houve antes desses, mas na prática o candidato refletia variantes. Também,
Mafalda Pratas Fernandes
é uma solução, portanto, a ver, a ver, eu não acho isso uma má solução.
José Maria Pimentel
Era um bocado cambiante, não é?
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, mas por exemplo se calhar fazer isso de uma forma mais formal, portanto a ver, imagina, uma facção, um subgrupo do partido democrata de uma certa maneira, um subgrupo de outra, um mais conservador, um mais radical, como por exemplo, mais radical teria pessoas como a Alexandria Ocasio-Cortez, ou mais liberado teria pessoas como a Christian Cinema ou o Joe Biden, e cada pessoa associava-se a isso e ia, quer dizer, ia acabar por criar facções. O problema é que, outra vez, as grandes tendas só estão organizadas de acordo com... Só há uma dimensão, ou seja, em nenhum tópico a Alexandra Cáceres Cortes está mais de acordo com os republicanos do que com o Joe Biden, mesmo que as suas
José Maria Pimentel
posições se difiram. Agora, sim, claro.
Mafalda Pratas Fernandes
E é isso que tem que se resolver, é haver mais dimensões de composição.
José Maria Pimentel
Mas sabes que, por acaso, ainda bem que falas disso, que eu queria te falar disso também, a propósito dessa polarização crescente. Há um psicólogo moral que deves conhecer, que é o Jonathan Haidt, que tem uma teoria um bocado prosaica, mas eu acho interessante, pelo menos provocadora, para ajudar a explicar essa polarização. Não sei se já ouvisse, mas a teoria dele, quero ver se estou a explicar isto bem o que ele diz é que basicamente houve uma regra que mudou agora não corre exatamente qual é mas que nem tenho certeza tenha sido uma regra e não apenas, sei lá, voos mais frequentes ou alguma coisa de qualquer tipo mas que permitiu basicamente que os congressistas não vivessem em Washington ou não tivessem que viver em Washington e portanto estavam lá, sei lá, como os nossos parlamentares europeus como os nossos deputados do parlamento europeu iam lá votar para as sessões, para as várias comissões ou comitês do Congresso e estavam, mas não faziam vida lá e não socializavam e isso gerou uma alteração fatal que havia antes, é que as pessoas viviam lá e socializavam entre si, quer dizer, socializavam, muitas vezes até, sei lá, iam almoçar com pessoas do outro partido, quer dizer... Não, isso eu discordo... As famílias conheciam-se, portanto o que ele diz é... Eu
Mafalda Pratas Fernandes
percebo o que ele está a querer dizer, mas eu discordo. Aliás, é o portamento oposto, antigamente havia muito mais ligações de cada congressista ao seu... Aliás, acho que o número de dias que antigamente e hoje em dia cada congressista passa no seu distrito de casa, não é? O Home District em Washington é relativamente o mesmo. O que pode de facto diferir é a sua interação com os membros dos outros partidos fora do ambiente legislativo.
José Maria Pimentel
Era assim a tese dele, é essa, exatamente.
Mafalda Pratas Fernandes
Portanto, haver, criar esses laços sociais que de certa maneira são importantes entre elites para depois as divisões que se dão dentro da Câmara Observativa. Para
José Maria Pimentel
depois estarem abertas a compromissos, no fundo, não é? Exatamente,
Mafalda Pratas Fernandes
Exatamente. Eu acho que não houve nenhuma regra que mudasse institucional, isso foi algo, lá está. Mais orgânico. Talvez tenha sido um produto, foi orgânico, exatamente, foi um produto do tipo de candidatos que foram concorrendo cada vez mais em cada partido, não é? Que no fundo foi o produto do realigamento. Eu não acho, eu estou vagamente feminizada com esse tipo de teses do Jonathan Hayes, etc. E eu concordo, no ponto de vista da ciência política se calhar o mais conhecido é o Democracy for Realists do Larry Bartels e do Christopher Haycon, que diz que de facto basicamente que a política nos Estados Unidos é uma política grupal, não é? Que é acima de tudo que tu pertence a um grupo e portanto votas porque pertence a um grupo. Eu não discordo que isso aconteça. O que eu acho é que de que grupos é que são relevantes não é inevitável, não é? Eu acho que a política é precisamente a mobilização de certos grupos e de certos temas e a não mobilização de outros, não é? Portanto, não há nada que me diga que, por exemplo, um hispânico deva votar de acordo com o tópico imigração e não de acordo com o tópico, o seu catolicismo. Não há nada que me diga que eu tenha que votar como mulher ou como branca ou como estudante ou como o que é que seja, não é? Ou como rica ou pobre. Quer dizer, todos esses tópicos, o papel dos partidos e dos políticos é mobilizar certos tópicos. E o que eu acho é que isso foi criado, digamos, pela mobilização constante de tópicos de cada lado que foram sendo feitos e isso foi o produto, acho que está, do realinhamento. Isso é a minha opinião, obviamente. Sim, para
José Maria Pimentel
a mobilização que comentavas há bocadinho, não é?
Mafalda Pratas Fernandes
Exatamente, para a mobilização de cada um dos seus lados e depois também houve, claro, a questão do modo como cada partido está organizado, não é? Os partidos americanos são partidos extremamente diferentes dos partidos europeus, são partidos muito pouco hierárquicos, não há aquela ideia de... A direção do partido. Um chefe de partido, a direção do partido e depois os mais novos têm que, digamos, estar ali e lamber botas aos mais velhos e ir subindo e primeiro são backbenchers e depois tornam-se frontbenchers no parlamento e depois poderão ir para o governo e depois podem se calhar ser primeiro ministro, etc. Não há este sistema de, digamos, carreirismo, que muita gente critica mas que tem benefícios. Tem alguns benefícios, tem algumas coisas mais. São partidos muito menos hierárquicos, por exemplo, há uma liderança informal, se nomeadamente o partido estiver na presidência, o líder informal é o presidente e eu acho que isso é uma coisa que por acaso pouco falada, que é o poder do presidente como líder do seu partido. Muita gente fala que O presidente ganha o poder pelas ações executivas, pelo poder de vir à imprensa, pelo poder da burocracia, mas eu também acho que ganha muito poder pelo controle que tem sobre o seu partido.
José Maria Pimentel
Mas como é que ele ganha esse poder? Não é formal, não é um poder informal? Não,
Mafalda Pratas Fernandes
não é formal, exatamente, é um poder totalmente informal. Apesar de, por exemplo, Donald Trump unir pessoas…
José Maria Pimentel
É por poder atribuir favores, por exemplo? É nessa lógica? Eu
Mafalda Pratas Fernandes
acho que é mais numa lógica de uma eleição presidencial, e isso está demonstrado que as pessoas, quando há uma eleição presidencial, o conflito principal é a eleição presidencial e depois há muita gente que, por exemplo, votará num certo partido ou noutro porque o candidato presidencial é desse partido, não é? E, portanto, já, por exemplo, está demonstrado que quando há eleições legislativas, por exemplo, para um congresso, quer seja no Brasil, quer seja nos Estados Unidos ou o que é que seja, ao mesmo tempo de umas eleições presidenciais o número de partidos na Assembleia reduz. Porquê? Porque as pessoas tendem a votar mais simplesmente no partido do presidente. Há uma imagem pública.
José Maria Pimentel
Claro, é mais visível.
Mafalda Pratas Fernandes
Que o presidente é o, digamos, o porta-voz do que é que é a plataforma do partido naquele momento. Do lado contrário da oposição eu acho que por acaso há muito pouco, não há digamos uma liderança formal, ou seja, eu sei que o Chuck Schumer e a Nancy Pelosi são respectivamente os líderes, mas não são os líderes, digamos, eles não mandam em ninguém, não é? E o que aconteceu também muito é, desde sempre, isto é, há uma tese, é de dois cientistas políticos que é o Schubert e o Samuels que dizem que num sistema presidencial, a partir do momento em que há um presidente eleito, esse presidente tem duas funções, não é? Que é ser líder do partido e ser presidente. Obviamente que o que ele quer acima de tudo é as suas ações como presidente, porque ele não vai continuar na política a seguir a ser presidente, ele não quer saber do partido e o que se verificou e muitos líderes políticos americanos verificam que há muito pouco aquilo que se chama party building. Por exemplo, o Barack Obama quando foi eleito presidente, ele foi eleito com a sua própria organização, o Obama for America, ou seja, os ativistas estavam afiliados à organização Obama, E depois ele mudou a organização para Organizing for America, mas era uma organização separada da estrutura do Partido Democrata. E cada presidente faz isso, não é? Depois o Trump faz e depois, por acaso, Joe Biden, pela primeira vez, é alguém que está a seguir muito, que está a dar muita voz aos membros do partido e não, por exemplo, o Trump nomeou uma direção totalmente nova do Partido Republicano, da RNC, que eram tudo pessoas que ele queria, não é? Portanto, no fundo há uma grande dominação por parte do presidente do partido. Sim. Porque
José Maria Pimentel
é que o partido não tem nenhuma estrutura autónoma de presidente, no fundo, não
Mafalda Pratas Fernandes
é? Exatamente. Sim, exatamente. E não se pode ver livre dele. E não se pode ver livre dele, porque não te esqueças, nós não temos muito essa tradição por acaso, mas não se chama parlamentar há votos, não há confiança, não é? Quem tirou a Thatcher de lá foram os próprios ministros dela, não é? Que fizeram ali um jogo. Ou seja, não há… a não ser que tu queiras fazer um impeachment ao teu próprio presidente, que ninguém quer, porque é algo que em termos eleitorais é muito… custa muito. Claro. Não há nenhuma arma que o próprio partido tenha para se defender de uma dominação por parte do presidente. E isso faz com que eles não tenham armas contra o partido. Portanto, eles basicamente, digamos cada vez mais, os parlamentares, os congressistas, peço desculpa, são o partido que responde ao presidente. E isto era menos assim antigamente. Porquê? Porque o presidencialismo, que é um acidente histórico, não estava preparado para a existência de partidos. O que é que a ideia do presidencialismo é? Tu tens um presidente E como é que é suposto o Presidente lidar com a Assembleia? Não é através do seu partido, porque isso faz com que fosse extremamente difícil, quer dizer, se há sempre o mesmo partido lá e está dividido, basta não teres o teu partido, não teres minoria, tu não consegues fazer nada. É suposto o Presidente agir com a Assembleia fazendo, portanto, deals individuais, fazendo acordos compromissos com senadores e congressistas individualmente. Por isso é que aquela política, digamos assim, do que se chama pork barrel, a política de dar rendas a certos sítios, em Portugal se diz o queijo limiano, é, portanto, conseguir fazer deals individualmente com membros ou facções do Congresso e foi feito para isso, não foi feito para um sistema de dois partidos apenas que estão contra o outro país. O sistema é o sistema do Westminster em que tu tens dois partidos, há um que ganha e a eleição um que perde, mas depois esse partido que ganha tem direito a nomear o primeiro-ministro e a eleger. Agora se tu nomeias o presidente numa eleição diferente da que nomeias a Assembleia Legislativa, então a partir desse momento tu quer dizer vais ter muitas situações em que a prioridade tu tens um sistema unitar em que tu dominas as duas casas mais o presidente, em qualquer sistema presidencial, a América Latina também tem muitos sistemas assim, e torna-se extremamente difícil. Uma das soluções inventadas, por exemplo em sistemas com vários partidos e presidenciais, foi o que se chama o presidencialismo de coligação que a reservatória havia no Brasil. Sim, no Brasil. Exatamente. Colisão, como é que se diz. Exatamente. Pronto, há pessoas que dizem que isso resultou, não resultou, parte disso também pode ter sido o tipo de coligações que se fizeram, não é?
José Maria Pimentel
E o Brasil tem o contrário, tem uma mirilha de partidos. Imensos partidos,
Mafalda Pratas Fernandes
sim, sim, sim. O Brasil é um sistema em que há demasiados partidos, basicamente. É precisamente o problema contrário. Sim, exato. E tem um sistema em que, mesmo dentro do partido há competição, que é uma coisa completamente louca, não é? Os
José Maria Pimentel
partidos pouco ideológicos, por exemplo, ou eram até há pouco tempo? Sim,
Mafalda Pratas Fernandes
exatamente. O que eu queria só voltar atrás era para dizer que adicionar ainda ao facto de serem partidos... São partidos pouco hierárquicos, porquê? Porque lá está essa instituição da primária. A partir do momento em que a maneira de tu seres nomeado não é através do teu partido, é através de ganhares uma primária, sim, muita gente vai ganhar através da sua afiliação partidária, mas tu podes pela afiliação a certos grupos, como por exemplo grupos até exteriores, por exemplo o Tea Party Movement, ter apoios de pessoas que são notáveis, ter financiadores que são externos, ou tu conseguis arranjar financiadores, se tu consegues ser eleito e consegues ter uma vida política sem necessariamente teres sido nomeado pela liderança partidária, não é? Por exemplo, a ascensão tão depressa de Barack Obama só é possível porque estamos nesse sistema, não é? Em nenhum sistema do mundo é tão rápido passar de senador estadual, de outsider completo para presidente, não é? Porquê? Porque, lá está, porque não é dependente das lideranças partidárias fazerem esses acordos. Era assim em certa altura e mudou mais ou menos a partir dessa mesma altura dos anos 60, 70, mais 70, relacionado com esses conflitos que estavam a existir nesse momento entre gente mais nova, mais aberta a novas fações que queria mudar o Partido Democrático e depois o Partido Republicano copiou de fazer esse sistema de primárias totalmente abertas em que basicamente os votantes escolhem os seus eleitores. Quer dizer, por exemplo, alguém como Donald Trump que conseguiu num sistema completamente arbitrário de primários, quer dizer, por exemplo, o Partido Republicano tem um sistema de primários diferente do democrático, são sistemas um pouco
José Maria Pimentel
arbitrários. Ainda por cima varia a consumação do Estado, não é?
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, sim, varia a consumação do Estado e não só isso, varia, por exemplo, se tu ganhares um Estado tens todos os representantes ou não, quer dizer, são, todas as regras variam totalmente e ele conseguiu, sem ter no caso uma maioria dos votantes republicanos, ser o mais votado e entretanto ter uma pluralidade dos votos, não houve nenhum candidato que se conseguiu coligar contra… candidatos que se quiseram coligar, digamos assim, uma fronte única contra ele, e depois ainda há a questão, lá está de ser uma primária não hierárquica, porque é que alguém outsider, que nem sequer era do partido, consegue ser assim. Por isso é que muitas vezes esse tipo de figuras consegue aparecer, porque normalmente é porque tem acesso a recursos exteriores aos partidos. Pode ser recursos de celebridade, pode ser recursos de dinheiro exterior aos partidos, Tu de alguma maneira consegues que os teus recursos que tu já possui como indivíduo, cidadão, etc., e usas esses recursos para participar nas primárias. E podes ganhar. E os partidos têm muito pouca arma contra isso. Ou se há uma porcentagem da população que quer votar em Donald Trump e ele acaba a ganhar a primária, o partido não tem nenhuma arma contra isso. Tem a arma de o rejeitar, mas é algo questionamente anti-democrático, não é? Dizer, bem, então agora os votantes das primárias, isso não interessa nada, nós acabamos por decidir tudo. Isso não tem sentido, não é? Donald Trump também só aparece porque há este sistema de primárias, não é? Ninguém no Partido Republicano, se fosse um sistema em que, por exemplo, os congressistas todos juntos e os senadores e os governadores juntassem e votassem todos em candidatos, ninguém excluiria Donald Trump à partida.
José Maria Pimentel
A questão é que o Obama também não, não é?
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, sim, sim. Pois, exatamente.
José Maria Pimentel
Ou seja, é o forte e o seu fraco, não é?
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, sim, ambos são outsiders. São outsiders diferentes, mas ambos são outsiders. Eu comecei esta entrevista a dizer que os insiders tinham as suas vantagens e continuo a dizer que Nós tendemos a gostar de outsiders e a não gostar de partidos, a não gostar de guerreirismo ou de lideranças ou do que seja porque é inerente, ninguém gosta de organizações oligárquicas. No entanto, em muitas coisas ter um insider pode ser uma vantagem, como demonstra a LBJ e como demonstra a Joe Biden. Ter alguém que teve muitos anos numa instituição e aprendeu e foi subindo nela e aprendeu a jogar dentro dela pode ser vantajoso, pode não ser tão entusiasmante para as massas, para a população, para os eleitores, mas esse eu acho que é um dos grandes problemas do sistema política americano atual, é que o modo… as qualidades que são necessárias para ser eleito presidente são totalmente diferentes das qualidades necessárias para ser um bom presidente. É preciso qualidades mediáticas e nisso Joe Biden é de facto alguém que foi muito interessante, eu estou convencida que sem a pandemia ele não tinha conseguido ser eleito, muito difícil sem a pandemia, dado o quão perto foi a eleição, em alguns estados centrais, apesar de no todo não ter sido perto, não é? Mas nos Estados centrais, em alguns Estados foi muito perto. Sem a pandemia ele não tinha conseguido ser eleito e recentemente houve também algumas teorias e eu tendo a concordar com elas, que Joe Biden teria sido o único democrata capaz de derrotar o Donald Trump, como foi demonstrado. Porquê? Porque é alguém que é uma ponte entre o passado e o futuro, é alguém que ainda consegue votantes brancos da Pensilvânia porque é lá que ele nasceu, ele nasceu em Scranton, Pensilvânia, que é uma cidade industrial de working class branca da Pensilvânia, é alguém moderado, mas que pelas duas grandes ligações que tem, principalmente a ligação de Obama, não é? Obama escolheu para ser vice-presidente, isso que também criou uma boa reputação junto das comunidades afro-americanas, e de certa maneira escolheu a Kamala Harris também como, para continuar dentro, com reputação dentro de comunidades mais jovens ou mais diversas, conseguiu ganhar o suficiente nos estados do Midwest e ganhar o suficiente nos 9 estados que no futuro, populações mais novas e mais diversas são cada vez maiores, como o Arizona ou a Geórgia. Mais ninguém conseguiria o equilíbrio desses dois estados. Não acho que Kamala Harris conseguisse ganhar o Wisconsin, Michigan e a Pensilvânia para além do Arizona e da Georgia. É extremamente difícil de conseguir esses dois, esse equilíbrio. E
José Maria Pimentel
como? Se a pessoa pensar no Bernie Sanders, por exemplo...
Mafalda Pratas Fernandes
Sim, o Bernie Sanders tem muito má reputação, tem muito boa reputação junto dessa classe mais branca do Midwest, tem má reputação junto de principalmente de negros. Os hispânicos estavam um pouco melhor deste ano, o ano passado, mas não tem boa reputação. É, mas nem reputou. Não se sabe, ele nunca… pronto, o Vermont é um Estado extremamente branco, ele nunca teve grandes posições, digamos, não tem report com a comunidade, não é? E depois também há certas coisas que as pessoas não gostam de dizer, ele em algumas coisas é um pouco um representante de uma velha guarda, por exemplo ele sempre foi a favor, agora no final não é coisa, mas ele sempre foi a favor do Second Amendment, do Porto de Armas, porque no Vermont toda a gente que quer ser eleita tem que ser, é um estado muito rural de caça, etc, etc, tem que ser a favor disso e isso é um tema altamente que não é favorável no Partido Democrata. Há alguns tópicos em que ele é alguém muito da velha guarda, não é? Em que acha que o que interessa são, tudo o que interessa é apenas a classe e não os outros tópicos, enquanto que a nova geração acha que outros tópicos são também importantes. E portanto, Joe Biden consegue fazer a ponta entre esses dois lados, não é? Entre o lado que era o lado antigo da classe, do labor union, etc, etc, de ser católico irlandês filho de imigrantes, ou né, de imigrantes. E o lado mais progressista. E o lado mais progressista porque teve a sorte de ser escolhido por Barack Obama. E tudo isto deriva do quê? De ser uma eleição completamente arbitrária, no fundo, porque é uma eleição que são 50 eleições separadas em que tudo depende de tu ganhas um número arbitrário de votos que é a soma do número de representantes na Câmara dos Representantes que o Senado… quer dizer, e depois é o winner take all, não se faz uma coisa proporcional de cada estado, porque se fizesse a probabilidade do vencedor ser tão diferente sempre do… ser tão diferente do colégio eleitoral era menor, não é? Portanto, é um sistema que eu… principalmente para a eleição de presidente é completamente arbitrário e facilmente era substituível, não é? Por um voto direto, como todos os sistemas presidenciais têm. Agora, isso iria resolver poucos problemas a meu ver, porque os problemas mais fundos de como é que se consegue passar a legislação, como é que se consegue agir politicamente, não é? Portanto, como é que se consegue ultrapassar o status quo, tendo tanto veto point que nós falámos ao longo desta entrevista, e tendo tantas divisões tão grandes na sociedade, não interessa se tu conseguisse eleger um presidente ou outro, porque esse presidente vai lidar com estes problemas mais estruturais e nesse sentido eu acho que Donald Trump é apenas um, cadê? É apenas um produto, algo idiosincrático do sistema, não é? Que dependeu muito de muitas coisas específicas de Donald Trump, não é? De ele ser uma celebridade na televisão há muitos anos, das posições sempre que ele teve em relação à America First, já nos anos 90 ele tinha essas posições, muita coisa que ele tinha que era idiosincrático, mas no fundo é também um sintoma de todos estes problemas por baixo estruturais que levaram aquele fosso eleito e o facto de ele ter saído não resolve nenhum desses problemas. Só também para acabar essa questão de Donald Trump ser um sintoma e não uma causa de todos os nossos males, é que muita gente que votou em Donald Trump não acredita naquele lado mais apalhaçado, mais mediático dele, o que quer saber mais é de políticas públicas e portanto são pessoas que mais facilmente votariam em John McCain, em George W. Bush, em Mitt Romney, mas visto que tiveram que escolher entre Hillary Clinton e Donald Trump engoliram um sapo, como se disse na política portuguesa há muitos anos, e votaram em Donald Trump para ter os benefícios que pudessem ter. E essa escolha também foi devida à grande polarização entre os dois campos que se deu em 2016 e que apesar de tudo eu acho que, espero que esteja menor hoje em dia, não acho que esteja menor em Washington, acho que na sociedade Começa a ser menor. Um dos fatores, se calhar, para determinar, que eu acho muito positivos, que eu estou a observar, é que, por exemplo, acho muito interessante e espero que o Partido Republicano cultive cada vez mais votos nos grupos, digamos, de pessoas hispânicas, que têm todo o incentivo e toda a possibilidade de conseguir, porque são muitos deles imigrantes católicos, extremamente conservadores do ponto de vista dos costumes, muitos deles têm os seus próprios negócios e nesse sentido são pessoas que em termos de políticas económicas, se calhar estão mais perto de muitos brancos que têm os seus próprios negócios e portanto eu acho que isso é um desenhamento positivo porque nós precisamos de movimentos que diminuam a dimensão grupal da política, portanto de ter grupos de ambas as etnias e que votem em ambos os partidos. Portanto, haver hispânicos que votem nos dois partidos, haver nicos que votem nos dois partidos, haver brancos que votem nos dois partidos, ricos e pobres, etc. Não estou a dizer que não haja tendências, como há em muitos países, Mas... Não,
José Maria Pimentel
a questão é não serem binárias, não é?
Mafalda Pratas Fernandes
Não ser... Exatamente. Não ser tão previsível em quem é que uma pessoa vai votar baseado no seu grupo, porque eu acho que isso é, aliás, é muito pouco liberalista, humanista, não é? No sentido em que uma visão mais, escalhar, idealizada... Não, é assim, é pré-moderno, não é? Claro, é pré-moderno. Exatamente. É que a pessoa reflete e vota de acordo com as suas preferências de políticas públicas que estão em cima do jogo e não de acordo com a sua identidade. Aliás, se calhar só para terminar, costuma existir, Portanto, o Líbano é, como todos sabem, um país que se calhar leva isto tudo ao extremo, que tem uma divisão muito grande entre muçulmanos, cristãos, cópitas, dois tipos de muçulmanos, e dividiu o sistema político desde o início, como aliás a Irlanda do Norte também fez, mas o Líbano é mais conhecido, não é, talvez, que dividiu e portanto o presidente é sempre de um grupo étnico, o primeiro ministro é sempre de outro grupo étnico, etc. Não é? Portanto, em termos fixos. E eu uma vez li uma crítica muito interessante deste tipo de sistema, que cada vez mais eu acho que também é aplicável a eleição americana que tem, estão-se a tornar uma etnocracia. Não é bom que as divisões étnicas sejam a priori já tão definidas, ou seja, podem ser matéria política mas também podem devido a ser, noutras eleições, serem temas menos relevantes. Se o objetivo é que cada vez mais haja menos divisões étnicas, então o objetivo não deve ser criar divisões permanentes nas instituições, o objetivo deve ser que elas, portanto inicialmente serão temas políticos mas eventualmente vão ser resolvidas e já não vão ser importantes. E o problema de ter uma etnocracia é que as divisões são cada vez mais profundas e sendo cada vez mais profundas se tornam cada vez mais difíceis de ultrapassar e de apagar, eventualmente, com políticas públicas e com decisões políticas.
José Maria Pimentel
Boa. Olha, excelente maneira de terminarmos. Muito rapidamente, que livro é que vais recomendar?
Mafalda Pratas Fernandes
Eu acho que vou recomendar um livro e vou recomendar uma série. Vou recomendar um livro, Breaking the Two-Party Doomloop, que já falei aqui, de Lee Drutman, que é precisamente, digamos, um aprofundar de muitos dos temas que falámos aqui, não é? Mas que está escrito para audiência em geral, ele é um académico, digamos, investigador que escreve para audiência em geral e que faz, digamos, o caso pela democracia multipartidária nos Estados Unidos. Recomendo ainda também, já que posso recomendar vários livros, recomendo o livro How Democracies Die de Steve Lavitsky e Daniel Zibod, que já é muito conhecido, não é? Teve, foi um best-seller do New York Times e que retrata muito bem como é que, digamos, historicamente se chegou até onde se chegou, fazendo sempre a comparação com outros períodos históricos, nomeadamente com outros regimes presidenciais da América Latina que às vezes correram mal e com o período de interguerra da Europa que também correu mal. E finalmente em termos de séries, gostaria muito de recomendar a série Mrs. America que retrata, digamos, a passagem ou a tentativa de passagem da Equal Rights Amendment nos Estados Unidos nos anos 60 e 70, que foi falhada, não é? Portanto, uma tentativa de emenda constitucional para que tivesse na Constituição que homens e mulheres tivessem os mesmos direitos, mas que mais do que isso, portanto, mais mesmo que não sejam interessados nisto, mais do que isso eu acho que demonstra muito bem os dois grupos a começarem a separarem-se naquelas duas décadas. Portanto, o grupo mais religioso, mais tradicionalista e mais, talvez, mais suburbano, mais rural, etc. E o grupo mais queremos mudar tudo, queremos ser livres de todas as coisas e etc. Portanto, queremos ser libertários e ultrapassar os nossos problemas do passado. Boa. E acho que é isso.
José Maria Pimentel
Boa, excelente. Mafalda, obrigado. Aos mecenas do 45°, mais uma vez obrigado pelo vosso apoio generoso a este projeto. Aqueles que o fazem através do Patreon não precisam de se preocupar, porque o site permite que eu congele a vossa contribuição e durante este período não vos será cobrado nada, a quem o faz por outras vias, pedi então que interrompessem vocês o contributo e o retomassem quando o 45° voltar, se acharem que se continua a justificar. Obrigado a todos e até breve. Este episódio foi editado por Martim Cunha Rio. Visitem o site 45graus.parafuso.net barra Apoiar para ver como podem contribuir para o 45 Graus, através do Patreon ou diretamente, bem como os vários benefícios associados a cada modalidade de apoio. Se não puderem apoiar financeiramente, podem sempre contribuir para a continuidade do 45 Graus avaliando-o nas principais plataformas de podcasts e divulgando-o entre amigos e familiares. O 45 Graus é um projeto tornado possível pela comunidade de mecenas que o apoia e cujos nomes encontram na descrição deste episódio. Agradeço em particular a Tomás Fragoso, Gonçalo Monteiro, Nuno Costa, Francisco Carmona Gildo, Mário Lourenço, Carlos Seixa Cardoso, José Luís Malaquias, Tiago Leite, Carlos Martins, Corto Lemos, Margarida Varela, Felipe Bento Caires, Miguel Marques, Família Galeró, Nuno e Ana, João Ribeiro, Miguel Vassalo e Bruno Heleno. Até ao próximo episódio.