#99(b) Desidério Murcho - Populismo, elites, polarização e redes sociais

Click on a part of the transcription, to jump to its video, and get an anchor to it in the address bar

José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o Corre em 45°. Neste episódio o convidado é Desidério Murcho, professor de filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto, no Brasil, e que é autor de mais de uma dezena de livros, sobretudo nas áreas da lógica, ética e filosofia da religião. Nesta segunda parte da conversa com o desiderio Murcho, damos um salto da lógica teórica para a lógica aplicada, para discutir os problemas atuais que vivem as democracias liberais em todo o mundo, com a polarização crescente do eleitorado, e isto é particularmente verdade no Brasil, onde o convidado vive, a ascensão do populismo, a difusão das fake news, etc. Em relação a este problema, o convidado tem uma visão muito original e propõe uma solução pouco convencional e até algo controversa. Mas tem sobretudo uma posição que dá muito o que pensar e que foi para mim um desafio de discutir. Foi aliás uma das discussões mais estimulantes que tenho tido aqui no podcast. Antes de passarmos ao episódio, só uma nota rápida para clarificar o jergão filosófico que pode criar alguma confusão na conversa. O desidério usa muitas vezes o termo epistémico ou epistemológico quando fala, por exemplo, de humildade epistémica. Epistémica é um termo de que os filósofos gostam muito, mas que basicamente significa algo que diz respeito ao conhecimento e ao modo como podemos, no fundo, saber que sabemos, ou seja, saber que temos esse conhecimento. Por isso, neste caso, humildade epistémica significa apenas a humildade de reconhecer quando um tema é muito difícil e não é a nossa área e por isso é complicado termos uma opinião muito fundamentada sobre ele. Para terminar, um agradecimento aos mecenas da última quinzena, João Mendes Ferreira, João Ribeiro, José Correia Neves e Mário Lourenço. Agora,
Desidério Murcho
deixa-me falar de um segundo caso, ou uma segunda lição, que eu penso que é muito importante, e que na verdade foi uma das coisas que o próprio Thomas Baise sublinhou, mas a sua aplicação matemática, digamos, é bem mais difícil. Mas era uma das preocupações do Thomas Baise, e eu penso que é um aspecto muito interessante e que nos diz muito acerca do mundo contemporâneo e sobretudo com este mundo extraordinariamente polarizado politicamente em que tu dês pessoas da extrema para um lado e dês as pessoas da extrema para o outro e há uma grande dificuldade em nós conseguirmos sequer comunicar uns com os outros. E isto é uma dificuldade de lógica real porque quando nós estamos a falar de indução, isso é uma coisa que torna-se muito mais manifesta. Acontece também no caso de dedução, como eu disse muito brevemente ao falar das lógicas não clássicas, mas no caso da indução é muito mais óbvio. E o que é óbvio é o seguinte, é que eu estou a falar contigo e se nós discordamos de um ponto qualquer, as nossas crenças de fundo interferem e muitas vezes nós nem nos apercebemos quais são essas crenças. Mas, claro, tu fazes uma afirmação que para ti parece de uma coisa assim em termos intuitivos mas que tem uma certa probabilidade razoável e essa mesma afirmação eu acho que aquilo é a coisa mais improvável que eu ouvi na vida. E porquê? Bom, porque o meu conhecimento de fundo ou as minhas crenças de fundo são diferentes das tuas e aí nós vamos ter uma dificuldade em comunicar. A boa notícia, e esta era uma das coisas que o Thomas bem sublinhava e que eu penso que é uma das peças interessantes, a boa notícia é o seguinte, é que se ambos formos racionais no sentido de atualizarmos as nossas crenças à medida que aparecem novos dados no mundo, vai haver uma convergência ao longo do tempo. Vamos convergir ao longo do tempo. Isso é uma notícia feliz, está a ver? Isso é uma notícia feliz. Quer dizer, se formos pessoas de boa vontade, Apesar de eu sou de uma direita extremamente conservadora e maluca, tu és de uma esquerda extremamente maluca igualmente. Mas se formos ambos genuínos e honestos, e de facto eu sou de direita mas é porque eu acredito que aquilo realmente é o melhor para a humanidade, e tu és de esquerda porque também acreditas que aquilo é o melhor para a humanidade, mas temos crenças de fundo diferentes acerca do que melhor funciona no mundo para proteger as pessoas da pobreza, para dar saúde às pessoas, para dar educação de qualidade apenas temos crenças de fundo diferentes, mas se formos realmente honestos nessas nossas crenças políticas, se formos realmente honestos à medida que formos olhando para o mundo e à medida que formos incorporando novas informações e à medida que formos fazer estudos científicos acerca de como é que nós conseguimos melhorar a vida humana, as nossas posições vão
José Maria Pimentel
convergir ao longo do tempo. Isto é uma notícia feliz. Sim, isso é interessante, isso que dizes. Na prática infelizmente acaba por haver, isto é um problema de jogos repetidos, não é? Ou seja, tu começas com uma probabilidade muito diferente e depois precisas de vários jogos, ou seja, várias iterações para haver essa convergência, não é? E muitas vezes não há tempo para haver essa convergência, embora do ponto de vista cultural e civilizacional tenha havido essa convergência em alguns temas. A questão da democracia, por exemplo, há coisas que hoje em dia... Algumas delas começam a ser questionadas, mas também é outro tema interessante, mas são mais ou menos inquestionadas e que resultam dessa convergência. Mas na prática muitas vezes é difícil haver esse diálogo e as pessoas estarem no mesmo espaço e irem fazendo essa atualização das suas próprias previsões, bem, sem ter noção disso, para gerar essa convergência. É um problema, acho eu, da democracia atualmente. Até porque muitas vezes as pessoas partem para... E as redes sociais hoje em dia querem esse problema, das pessoas partirem para tomar posições sobre um determinado tema em relação ao qual não sabem muito, de uma maneira muito apressada, e sem justamente se darem ao trabalho de pensar nele com algum cuidado. Bom,
Desidério Murcho
até porque em muitos casos conta muito mais a expressão da tua identidade tribal, política, do que propriamente ser a tese que estás defendendo é verdadeira ou falsa. É por isso que se d inversões curiosas no discurso político ao longo das décadas. Quer dizer, as mesmas pessoas que são de uma certa área política e que eram extremamente críticas da ciência e que para elas era tudo cune e era tudo fire rabbit e era tudo assim e a ciência era a mesma coisa do que a magia e ainda... Que ótima homeopatia. Hoje em dia já são todas pró-ciência e já são todas contra a relativização da ciência. Porquê? Bom, porque a outra fação política foi nessa direção, foi na direção de relativizar a ciência e dizer que qualquer chico esperto sabe a mesma coisa que um cientista e, portanto, por uma questão só de identidade política, a pessoa mudou o bico ao prego, não é? Exato, exato. Então é preciso não esquecer que uma parte significativa do discurso político é desonesto neste sentido. As pessoas não estão honestamente a defender aquilo que genuinamente e honestamente pensam que é o melhor para a humanidade. Não, as pessoas estão só a defender a sua tribo. Ponto. Isto é extremamente desagradável, mas é verdade.
José Maria Pimentel
Mas isso põe em causa o teu postulado mais otimista de há bocadinho, não é?
Desidério Murcho
Não sei o que eu te disse, meu querido, se as pessoas forem honestas... Ah,
José Maria Pimentel
ok, eu perdi. Peço desculpa. Peço desculpa, deixa passar esse, por
Desidério Murcho
suposto. Houve uma atenção que eu disse desde o início. Se nós formos honestos, tu tens certa crença, eu tenho outra, e temos crenças de fundo diferentes. Mas se honestamente acreditamos nessas coisas, discordamos porque temos crenças de fundo diferentes, mas ambos somos perfeitamente honestos nos nossos objetivos, que é melhorar a vida humana, então nós vamos convergir.
José Maria Pimentel
Mas essas crenças, a ligação dessas crenças de base às crenças aplicadas a um determinado assunto não podem ser tão rígidas de maneira a não permitir essa convergência. Vamos supor o exemplo de eutanásia, que falávamos no outro dia, ainda antes desta conversa. Se eu for crente, se eu acreditar em Deus e se acreditar que A vida foi dada por Deus, portanto, para mim, o único ente que pode retirar aquela vida é Deus, e não eu nem o médico.
Desidério Murcho
Bom, eu, sim, exemplos desse género costumam ser dados e isso é um pouco explorado até pelo trabalho em epistemologia do Alvin Plantinga e eu penso que as coisas não são assim tão pessimistas. Quer dizer, uma vez mais, se as pessoas tiverem boa vontade de realmente olhar com atenção e com sentido crítico para as suas próprias crenças, eu penso que vamos conseguir chegar a uma convergência. É de facto uma questão de boa vontade. O que acontece muitas vezes é a identidade, digamos, tribal da pessoa que é muito mais importante para a pessoa do que propriamente a honestidade do ponto de vista, digamos assim, e de procurar um ponto de vista que tenha provas adequadas a seu favor e que seja genuinamente bem fundamentado e bem justificado. Portanto, Sim, quer dizer, se tu me disseres que há aqui uma resistência psicológica fortíssima e há aqui um conjunto de vieses cognitivos que interferem e que tornam o trabalho difícil, eu concordo, claro que há. Mas isso significa apenas, do meu ponto de vista, que esses vieses cognitivos e que essas resistências psicológicas têm de ser cuidadosamente desmascaradas para que a pessoa tenha vergonha delas, tal e qual como uma pessoa tem vergonha de ser racista, por exemplo. E eu penso que esse trabalho não está a ser feito hoje em dia. Quer dizer, nós crescemos imenso no respeito ao conhecimento dos viajes cognitivos humanos a partir dos anos 70 do século XX, com os trabalhos de psicologia cognitiva e de pessoas que até trabalham noutras áreas, mas depois começaram a trabalhar nessa área, que é o caso da economia, porque a
José Maria Pimentel
economia precisa de conhecer questões. O Kahneman.
Desidério Murcho
O Kahneman e outros, que precisam de conhecer questões acerca de como é que as pessoas tomam decisões, etc. E o conhecimento imenso que nós obtivemos a partir daí não entrou ainda, digamos, no discurso público, no sentido em que nós não compreendemos que somos poços de vieses cognitivos. E, portanto, que A primeira atitude de honestidade que nós temos quando entramos num debate é perante a outra pessoa aportarmos a mão e dizermos olha, somos os dois umas bestas, eu tenho os meus viés, tu tens os teus vamos lá tentar fazer o melhor que conseguirmos, vamos tentar cooperar. E tu repara que quando se tem essa atitude as coisas funcionam razoavelmente bem. O desenvolvimento da ciência a partir do século XVIII é praticamente um milagre da humanidade. E se é uma coisa curiosa que as pessoas que estão fora das academias ou tudo isso, ou que não conhecem cientistas, por vezes há uma certa tendência para pensar que o cientista é a pessoa completamente objetiva e completamente imparcial. Não é, O cientista é uma besta como tu e eu. A questão é que quando trabalham, têm um conjunto de princípios éticos e metodológicos a que têm de obedecer. Senão não conseguem fazer carreira. E o ponto é esse. Quer dizer, Todos nós somos bestas e temos vieses e somos idiotas, mas se nos esforçarmos... Essa é notícia positiva, eu acho. Se nos esforçarmos e trabalharmos cooperativamente e encontrarmos plataformas de cooperação e plataformas de compreensão, nós somos capazes de ter uma convergência. E às vezes, tu repara, podemos chegar a um ponto em que há divergências, mas que são divergências pacíficas. Nós não temos que concordar todos com tudo. Nós podemos ter carregadas divergências. O meu exemplo favorito é o seguinte, imagina uma pessoa de outra geração, que foi educada de uma certa maneira e agora ouve falar esta coisa dos gays e eles casam e não sei o quê a pessoa fica assim. É normal, eu acho, e psicologicamente compreensível que a pessoa sinta assim uma certa coisa interior. Eu acho que isso é respeitável, não tem problema nenhum, mas ele não precisa de concordar. 100% de acordo. Entendo. Ele só precisa de olhar e dizer objetivamente assim é pá, realmente a mim custa, mas eu realmente compreendo se a pessoa é daquela maneira. Quer dizer, ela vai ter a vida despedaçada porque ela não vai poder fazer a vida normal se não puder casar. Vai ter a vida completamente de pés para o ar, coisa que eu não tive, que eu pude casar com a minha mulher, pude fazer a minha vida, pude ter a minha reputação social e ele não pode. Portanto, a pessoa, por mais rígida que seja a maneira como ela foi criada, ela consegue chegar a um ponto em que ela consegue ter aquela bonomia de dizer ok, sou a favor do casamento daquelas pessoas, ao mesmo tempo que continuar a dizer ''ah pá, mas isso para mim é um bocado esquisito''. Nós podemos chegar a um ponto em que há uma divergência que é pacífica.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. Aliás, eu concordo 100% contigo e parece-me que há um valor, que eu já não diria que é esquecido hoje em dia, mas que tem menos ênfase, que é justamente essa questão da tolerância nesse sentido lático. E implica a tolerância também com a opinião das pessoas. Ou seja, a sociedade boa é a sociedade que permite comportamentos plurais e não os restringe, mas tu não tens que obrigar todas as pessoas a celebrarem esses comportamentos. Quer dizer, as pessoas têm a sua identidade, não é? Ela está, tem as suas experiências e tu forçares as pessoas a fazer essa convergência muitas vezes é contraproducente, não é? Com
Desidério Murcho
certeza. Eu penso que uma das ideias que nós precisamos de tornar mais conhecida no mundo contemporâneo é o ideal do liberalismo clássico. Não todos os aspectos do liberalismo clássico. Porque o liberalismo clássico é uma resposta às guerras religiosas intermináveis que agressaram na Europa. Quer dizer, imagina que é uma guerra que dura 100 anos. Bom, a guerra de 100 anos chama-se guerra de 100 anos porque durou 100 anos. Imagina a loucura, Quer dizer, duas gerações de seguida ou três, quatro gerações nascem e morrem na mesma guerra! Que já é uma loucura completa! A Europa andou nesta desgraça durante séculos. Até os primeiros filósofos liberais como John Locke e outros, terem formulado aquilo que é uma plataforma de desentendimento civilizado, digamos assim. Nós não temos que concordar com tudo. Tu podes ser católico, eu sou protestanto, outro é não sei o quê, outro é não sei o que mais... Nós não temos que concordar com tudo. Temos que conseguir garantir uma liberdade e uma tolerância no espaço público de maneira que as pessoas não se atropelem umas às outras. É só isso. Exatamente.
José Maria Pimentel
Esse ponto é muito importante porque a lógica subjacente a isso é que tu podes ter crenças privadas que são... Podem estar em oposição a outras pessoas da mesma sociedade, mas tu consegues construir uma sociedade sobre isso, e por isso é que tu tens... Aliás, é muito interessante porque o tema da religião, que é o tema que eu até já discuti no podcast, e a questão da existência de Deus, esse tipo de conversas que são conversas interessantes, para alguém como eu até atingiram-se se calhar outro extremo, em que são temas que praticamente não são discutidos, se tornam quase um tabu, mas que têm essa boa razão que está na base e que a pessoa hoje em dia já quase se esquece, mas que é precisamente deixar as pessoas terem as suas crenças, por muito bizarras que nos possam parecer e por muito erradas que nos possam parecer, respectivamente, não é? Está aos crentes e aos não-crentes, ou aos crentes de religiões diferentes, porque tu sabes de experiência histórica, civilizacional, que no momento em que aquilo foi matéria política, as coisas correram mal.
Desidério Murcho
Exatamente. Podemos concordar e discordar em muitos aspectos, não é? As coisas em que temos realmente de concordar e que não podemos discordar são os aspectos fundamentais dos direitos humanos, da proteção dos mais fracos. Coisas que são de facto fáceis de concordar. Sim. Agora, em muitas outras coisas é fácil discordar e podemos conviver com essa discordância. Isso não levanta problema. Podemos conviver com respeito e com essa discordância. Uma das coisas que me preocupa tremendamente no mundo contemporâneo e em particular em alguns ambientes, unidamente no ambiente académico, é que, quer dizer, tornou-se praticamente proibido ser de direita. Quer dizer, subitamente é como se ser de direita fosse ser imediatamente nazi. Isso é uma coisa muito estranha. Na academia norte-americana isso é muito discutido e formou-se até a Orthodox Academy, que é precisamente para lutar contra esse tipo de coisas porque subitamente, no meio académico norte-americano ser do Partido Republicano, que é um partido democrático, respeitável com uma tradição, que lutou contra a escravatura e tudo isso e subitamente ser do Partido Republicano é como se fosse a Nazi na universidade. Isso é uma coisa esquisitíssima.
José Maria Pimentel
Como é que é no Brasil já agora?
Desidério Murcho
Não é muito diferente.
José Maria Pimentel
Curioso. Em Portugal eu acho que a academia tem uma... A intelectualidade no geral tem, como sempre e como em todo lado e por razões que são normais, um viés à esquerda, ou seja, um intelectual não tem que ser de esquerda, mas é normal que o trabalho intelectual te gere uma predisposição progressista, digamos assim, no sentido de lado. E portanto, no fundo é preciso teres uma história, ou estás numa área específica, ou ter uma história familiar específica que tenha uma visão diferente. Mas acho que o contraste não é tão grande como nos Estados Unidos, sendo que nos Estados Unidos também foi uma evolução das últimas décadas, não foi sempre assim? Sim, quer dizer... O Jonathan Hyde que é um dos tipos por trás do Heterodox Academy, que é o texto histórico.
Desidério Murcho
Claro, exatamente. É uma coisa recente, tem a ver com estas coisas das políticas da identidade, porque a preponderância de pensamento de esquerda na academia norte-americana já existia há 20 ou há 30 anos, só que as pessoas que eram de esquerda respeitavam as pessoas que eram do Partido Republicano, quer dizer, achavam que isso faz parte da democracia e não tem nada de mal, por isso a gente acha que a pessoa é republicana talvez nós achemos aquilo um bocadinho esquisito, mas tudo bem, quer dizer, mas a pessoa é capaz de jantar com ela e... Mas nas últimas décadas isso tornou-se impossível, quer dizer, subitamente a pessoa que é da parte republicana em muitos casos perde o emprego, puro e simplesmente. E isso torna-se uma coisa, puro e simplesmente, bizarra, não é? Como é que eles imaginam o mundo? É só um partido? Não,
José Maria Pimentel
sobretudo produz fenómenos perversos como tu teres 70 milhões de pessoas a voer a votar no Trump, que para essas pessoas, como de resto para muitos de nós, eu incluído, mas acho que muitas dessas pessoas estarão ainda numa situação mais miúda em relação a essa realidade é completamente incompreensível. São realidades, lá está, na mesma sociedade, realidades a conviver que estão em planos completamente distintos. Mas é engraçado falar disso, porque isso relembra-me um aspecto que eu ia relançar há bocadinho quando falavas da ciência. Gostava de saber o que é que tu achas em relação a isso. Eu acho que nós vivemos uma altura em que há uma confluência de várias tendências, uma das quais a internet e depois o crescimento das redes sociais, que de certa forma vieram baralhar o espaço público. E a ideia que eu tenho é que nós tínhamos convergido, nós, países do ocidente no sentido lato, tínhamos convergido num paradigma da democracia liberal que funcionava não porque fosse perfeito, mas porque de uma forma mais ou menos orgânica, quer dizer, partes obviamente não orgânicas, partes do sistema tinham sido pensadas, mas outras resultavam da tradição e tinham resultado mais ou menos bem, levavam a que essas democracias liberais funcionassem bem, mas na prática assentando numa espécie de elite que ocupava o espaço público em articulação com o resto da sociedade. Tu tinhas uma democracia, mas na prática tinhas uma elite que ocupava o espaço público, elites de todo o tipo, políticas culturais, económicas, por aí adiante, e que no fundo funcionava como a infantaria da democracia, se tu quiseres, não é? E portanto havia debate, não é? Havia debate de ideias, sempre houve debate de ideias, havia visões diferentes, mas entre essa elite e entre umas regras de jogo que tinham sido definidas, variando o consumo do país, com princípios mínimos, isto é mais verdade em países culturalmente homogéneos como Portugal, do que por exemplo no caso do Brasil ou no caso dos Estados Unidos, mas é mais ou menos verdade em todo lado, e de repente com várias alterações que confluiram aqui, mas uma das... Porventura haverá outras e terás talvez outras ideias, mas uma das principais talvez deve ser as redes sociais, tudo de repente o espaço público alarga-se, portanto há muita gente que não estava no espaço público e entra no espaço público, ou seja, passa a emitir opinião, passa a pensar sobre os assuntos, mal ou bem, do ponto de vista imediato, isto é um ganho democrático, porque passas a ter muito mais gente a interessar-se pelo debate político, mas ao mesmo tempo tens um efeito colateral que é criar bastante mais polarização, criar um debate de ideias mais superficial, mais extremado, mais radical, haver ideias que lá está que faziam parte das regras do jogo, aceites pelas elites, e que de repente são deitadas por fora. O Trump é um excelente exemplo disso, é um tipo que vem subverter várias regras que tinham sido aceitas, veja-se agora, por exemplo, o tempo que ele demorou a aceitar a derrota e isso põe a nua a ausência de um sistema, ou pelo menos a inadaptação do sistema que existia na democracia para a realidade atual ao contrário, de certa forma, do que existe na ciência, O que a ciência fez foi conseguir criar um sistema que se sobrepõe aos defeitos dos indivíduos. E tu tens imensos casos de cientistas que eram péssimas pessoas e tentaram subverter todo o tipo de estudos e no final ganham a verdade. Umas vezes demorou mais tempo, outras vezes demorou menos tempo, mas ganham a verdade. Nós hoje em dia temos um desafio porque não é certo quem política muitas vezes vai ganhar a verdade. Exatamente.
Desidério Murcho
Eu concordo em grande parte com a televisão das coisas e é algo que eu próprio já manifestei em alguns casos. Quando caiu o muro de Berlim e foi por essa altura que o Fukuyama depois publicou o livro dele, O Fim da História e oltimo Homem. Sim. E a ideia que nós tínhamos precisamente era que tínhamos chegado a uma convergência, que era basicamente a democracia liberal, com apoios sociais, e que isso era o intocável. Quer dizer, agora era só uma questão de discutir promenores e discutir coisas mais pragmáticas, mas a base fundamental era indiscutível. Quer dizer, já ninguém queria o comunismo, já ninguém era anticapitalista, já não havia essas coisas. E de repente tudo mudou. De repente vêm os creacionistas, que acham que a biologia não pode ser usada nas escolas, e depois vêm as pessoas da esquerda que acham que temos que acabar com o Microsoft e temos que acabar com as empresas todas e tem que ser tudo nacionalizado e que o mundo marxista é que é bom e as coisas mudaram radicalmente. E isto é um pouco assustador porque Esta receita, digamos, liberal e a palavra liberalismo e a palavra liberal tornou-se um palavrão nos sectores mais radicais da esquerda contemporânea. E esta receita liberal, eu não vejo alternativa a esta receita liberal pura e simplesmente. O que é que nós vamos ter? Vamos ter guerras na rua entre criacionistas por um lado e bloco de esquerda por outro. Quer dizer, eu acho isto um bocado preocupante politicamente. Eu concordo também com outro aspecto da tua análise que é a ideia de que os meios de comunicação modernos trouxeram para o debate público pessoas que não tinham voz anteriormente. E isto destruiu a grande ilusão democrática, o aposentado democrática que se tinha. Eu penso que grande parte das conquistas económicas e civilizacionais e de justiça social que nós tivemos no último século deveu-se a uma elite, o que é que tu estavas a dizer, uma elite política e comunicacional e uma elite de pessoas que realmente, digamos, dirigiam a democracia e dirigiam a democracia nessa direção de apoios sociais, de justiça, de instituições melhores, mais estabilidade, mas era uma elite. E claro, o povão votava, mas o discurso público estava viciado à partida, porque o discurso público era controlado por jornalistas que pertenciam a essa elite, os próprios políticos, os canais televisivos e os canais jornalísticos, tudo isso estava controlado pelo milita. A partir do momento em que aparece um novo meio de comunicação, que são os meios de comunicação modernos da internet, de repente o que é que as pessoas descobrem? Descobrem que afinal o povão não gosta nada da democracia liberal e não gosta nada dessas coisas. Gosta basicamente de guerras. As pessoas... É preciso não esquecer uma coisa aqui muito importante, que é... A mim, e provavelmente a ti, causa-te um certo desconforto de ver as pessoas a espumar pela boca e a gritar umas com as outras. Mas as pessoas gostam disto. Mas é o grande problema é esse. As pessoas gostam disto. As pessoas gostam do sangue nas ruas, as pessoas gostam de se pulmar, entende? Porque, repara, as pessoas fazem isso com o futebol, por amor de
José Maria Pimentel
Deus.
Desidério Murcho
As pessoas agridem-se com o futebol. Os seres humanos, a menos que sejam devidamente educados, São basicamente predadores perigosos e predadores tribais. É uma coisa extremamente perigosa. E, portanto, nós tivemos um conjunto de conquistas, direitos das mulheres, legislação antirracista, etc. Ou um conjunto de conquistas que resultaram de uma certa ilusão de democracia, porque no fundo não era bem uma democracia. Era uma democracia no sentido de que as pessoas votavam, mas as escolhas, aquilo a que as pessoas podiam votar, as escolhas já estavam pré-definidas e pré-limitadas. Agora que a seleca se abriu, a maneira mais clara que eu tenho de pôr isto é o seguinte, eu não acredito que as conquistas fundamentais, tanto da medicina pública, como do ensino público, como conquistas fundamentais de justiça social, que nós obtivemos a partir da 2 Guerra Mundial, eu não acredito que essas conquistas fossem possíveis hoje. Entende? Porque tu chegas à rua e dizes olha agora nós vamos fazer vacinação universal vamos acabar com o pólio. Tu tens logo malucos no Twitter e no Facebook e nas ruas a manifestar-se contra e dizem que é uma conspiração dos laboratórios capitalistas. É para acabar... Não se consegue mais fazer nada. É extremamente difícil. E o pior é que as pessoas que fazem essas manifestações nem sequer é, na maior parte dos casos, esta é a minha especulação, nem sequer é porque acreditem genuinamente naquilo que são a dizer. É porque, pura e simplesmente, aquilo faz parte da maneira que elas têm de ter uma voz pública. As pessoas são vaidosas, querem ter uma voz pública e repara o que acontece hoje em dia nos meios de comunicação. Quanto mais chocantes forem as afirmações daquele rapaz, o Ventura, mais ele aparece nos meios de comunicação. E é por isso que ele faz aquelas afirmações medadas, quase que ele nem acredita nelas. Ele faz essas afirmações porque é isso que lhe dá votos. Nos meios de comunicação contemporâneos, há uma guerra de cliques. É extremamente difícil de tu ganhares dinheiro nos meios de comunicação atuais, muito mais do que era quando havia apenas jornais e televisão, porque hoje em dia a internet é como se fosse um modelo da televisão, é um modelo dos cliques e da publicidade, e portanto tens que ser sensacionalista. E portanto, o sensacionalismo é o que está a ganhar, E é o que invadiu os jornais respeitáveis, o New York Times, todos esses jornais ou são sensacionalistas ou, principalmente, perdem ainda mais leitores. E, portanto, o que é que uma pessoa como o Nuno Ventura descobre? É uma coisa de simples. Se ele ser às maiores barbaridades do mundo, as pessoas ligam, clicam, ligam a televisão, vão ver o canal, vão ver o vídeo no YouTube. Isso é o que ele precisa. Portanto, é assim que as coisas funcionam hoje em dia. O Trump, em grande parte, ganhou por causa disso também. Sim, sim, o Trump é
José Maria Pimentel
o inventor.
Desidério Murcho
Ele dizia tudo o que era contrário. Quando ele ganhou, eu lembro-me ainda perfeitamente quando foi às eleições, foi uma coisa muito engraçada. Eu fui dormir tranquilo da vida, não sei o quê, convencido que a Clinton ia ganhar, porque o New York Times, toda a gente anunciava que a Clinton ia ganhar. Sim, foi o que aconteceu também. Tranquilo, não sei o quê, passo uns três dias, volto ao New York Times, ganhou o
José Maria Pimentel
Trump.
Desidério Murcho
Eu pensava que era uma, sei lá, aquela coisa que tinha acontecido especial. Quer dizer, os próprios jornalistas e os próprios previsores e aqueles técnicos todos achavam o discurso do Trump de tal maneira estrambólico que nem acreditavam que as pessoas pudessem votar naquilo. Mas a realidade acerca da natureza humana é esta. Nós pomos um certo verniz educativo nas coisas, pomos um certo verniz civilizacional nas coisas. Mas o grosso da população, infelizmente, a melhor coisa que nós podemos fazer ao grosso da população é tirar-lhes o poder para que um poder iluminado possa ajudá-las a elas. Se forem elas a tomar decisões acerca das suas próprias sociedades, serão decisões terríveis para elas próprias.
José Maria Pimentel
Essa é uma tese provocadora, não é?
Desidério Murcho
E não é por causa dos cliques. E
José Maria Pimentel
não é por causa dos cliques. Estava aqui perdida no meio de uma conversa. O meu, Rousseff, com essa tese é, nós, a visão da elite iluminada, não é, do Espoto Esclarecido e outras versões, foi uma visão que caiu por terra não por acaso. E teve muito boa gente a defendê-la. O Corvo Thomas Jefferson, por exemplo, que tinha uma ideia... Com o próprio Mill? Com o próprio Mill, exatamente, tinham visões desse género. E depois acabou porquê ir? Por terra, porque se percebeu que a natureza humana também se aplica a essa elite, não é? Ou seja, o sistema anterior, quando digo sistema anterior, é o sistema em que nós vivemos atualmente, ele está desadaptado, já não está adaptado à realidade, que era um sistema em que tu tinhas uma elite que fazia parte do sistema mas que tinha uma ligação ao eleitorado, o eleitor votava e portanto tinha a possibilidade de remover governos, não tinha, era uma decisão direta nos governos, esse sistema funcionava precisamente porque essa elite era... Respondia ao eleitorado, não é? Quando ela não respondeu isso funcionou mal, não é? E por isso é que se percebeu que em teoria... Em teoria tu podias ter, em teoria, uma espécie de déspota esclarecida, mas na prática isso nunca funcionava porque a natureza humana é demasiado perversa para isso acontecer tanto de um lado tanto do outro. Aqui o que me parece neste caso é que primeiro nós temos aqui algo de bom, ou seja, eu sei que é visível, eu sei que o que se vê, o que dá mais nas vistas é o mau, ou seja, é tu teres pessoas, sei lá, basta abrires as caixas de comentários dos jornais e ver as enormidades que se dizem, vês as muitas manifestações na rua e treta por uma linha. Mas a verdade é que tu produziste um efeito que me parece inegavelmente positivo que foi interessar pela polis muita gente que vivia a sua vida praticamente à margem. E isso não parece mal. Esse é um aspecto bom. Depois, claro que o problema é que... Mas isto podem ser dores de crescimento do sistema e de resto há casos históricos semelhantes até com a invenção da imprensa, embora, tendo em conta as guerras a que conduziram, não sejam necessariamente inspiradores, ou seja, podem ser inspiradores a prazo, mas tiveram consequências imediatas não muito felizes. Mas dizia isto, podem ser dores de crescimento em que tu, nesta fase inicial, as pessoas... Não há uma filtragem dessa informação e portanto o que tu vês é as pessoas aderirem às opiniões mais simplistas e às opiniões mais mais radicais e, dessa forma, bastante tribal, mas para todos os efeitos aquilo que me parece é que tu podes construir aqui uma síntese que é melhor do que o que existia antes. Tu precisas é de novos mecanismos de mediação, e depois também há a questão dos jornais, os jornais, ou seja, os médias faziam esse papel de mediação, que agora deixaram de fazer ou fazem bastante menos, e no fundo como estão a concorrer com o Facebook e Twitter e afins, têm que jogar o jogo do clickbait, têm eles próprios que jogar esse jogo, mas tu precisas de novos mecanismos de mediação, mas que não passem para o lado de lá e que sejam ditatoriais, digamos assim, que sejam uma espécie de...
Desidério Murcho
Pois, nós temos aqui dois aspectos diferentes, Em primeiro lugar, a palavra democracia é muito plural, quer dizer, em diferentes coisas, em diferentes contextos e um dos aspectos da palavra democracia é o aspecto eleitoral da democracia, que eu penso que é o pior da democracia. Outro aspecto da democracia é a ideia associada à justiça e direitos humanos. Esse é o melhor da democracia. Muitas vezes quando as pessoas usam a palavra democracia é isso que elas têm em mente. Têm em mente um sistema qualquer que não seja ditatorial, que não oprima as pessoas, que não explora as pessoas, que tenha respeito pelos direitos humanos, que procura igualdade entre géneros, por exemplo, que condena o racismo e tudo isso, que tenha tolerância religiosa e ideológica, etc. Essa é a parte boa, é aquilo que quando as pessoas usam a palavra democracia é aquilo com o qual eu concordo. Agora, a outra parte da palavra democracia é a parte eleitoralista da palavra, que é as pessoas elegerem pessoas. E aí vem a parte que eu estava a falar, que é que durante um certo período histórico, enquanto havia um conjunto de filtragens que estavam muito bem montadas, aquilo em que as pessoas podiam votar já estava quase pré-determinado a partir e portanto elas não podiam votar muito mal de qualquer maneira. E portanto os votos delas, ok, davam-nos uma ilusão de que era o povo que estava a mandar nas coisas. Na verdade não era, era uma pequena elite. Essa elite, seja por razões profissionais, porque eram pessoas genuinamente preocupadas com o bem comum, seja porque eram um pouco pressionadas se a governação não fosse muito boa, perdiam as próximas eleições, seja por uma razão, seja por outra, mas houve um conjunto de elites governativas a partir da 2 Guerra Mundial que realmente construíram uma Europa que é um exemplo de tolerância, de democracia, de justiça, de direitos humanos, essas coisas. E isso foi tudo muito positivo. Mas agora temos uma situação completamente nova em que as pessoas conseguem dar voz eleitoral a radicalismos políticos que ameaçam destruir o próprio equilíbrio delicado das instituições que nós conseguimos ao longo de vários séculos de experiência política. E esse equilíbrio é este, é que nós por um lado não queremos cair em governos populistas, como foi populista o governo de Mussolini, é uma coisa que poucas pessoas sabem, o governo foi populista, o governo de Hitler foi populista, não é? Portanto, nós não queremos cair nesse tipo de populismo que acaba por prejudicar o povo que os apoia. E também não queremos o déspota esclarecido, porque como tu estávamos a dizer, a maior parte das vezes ele é mais déspota do que esclarecido. A maior parte das vezes. E há um risco muito grande quando nós temos um déspota, até mesmo que seja esclarecido, porque depois as coisas começam a correr mal e nós não temos mecanismos institucionais pacíficos para tirar o gajo de lá. A única maneira é ao tiro.
José Maria Pimentel
Isso é muito mais complicado. E porque o mundo também lá está. O mundo é demasiado complexo para um derrubo de petação ou mesmo um conjunto. Exatamente.
Desidério Murcho
Quer dizer, uma das coisas bonitas das instituições que nós recebemos nos anos passados é o caso agora do Trump. Que se é uma mesta completa, pacificamente tem que sair de lá e acabou-se a conversa. E nem sequer é preciso puxar por uma arma. Isto é bonito. Há dois séculos não era assim. Ela agarrava-se com unhas e dentes e havia uma guerra mesmo. Seria a única maneira de o tirar de lá. Portanto, nós temos um conjunto de instituições que foram fruto de ajustes cuidadosos ao longo dos séculos da experiência política. O que estou a dizer é que estas instituições que nós temos precisam ser reforçadas e repensadas relativamente ao mundo contemporâneo do clickbait e ao mundo contemporâneo das opiniões políticas tribais e corrosivas e tóxicas. Esse é um aspecto. O outro aspecto é que nós herdámos uma ideia um pouco, digamos, lírica a que tu deste voz na tua intervenção aqui, que é a ideia de que é uma coisa maravilha a intervenção pública, que chama-se isso por vezes o republicanismo aristotélico, que é a ideia de que se as pessoas participarem da polis, se as pessoas participarem da vida política, que isso é bom. Que isso é que é realmente a genuína democracia. A genuína democracia é que toda a gente tem uma voz a dizer quando a gente vai decidir se legalizamos o aborto ou não legalizamos o aborto, se legalizamos a eutanásia ou não legalizamos a eutanásia, e depois fazemos um referendo, e depois fazemos um debate na televisão, depois não sei o que... E depois o povo escreve coisas... Olha que beleza! E tudo isto é mentira. E tudo isto é mentira no sentido de que algumas pessoas que estudam esses assuntos realmente têm uma palavra a dizer relevante e construtiva e que vai ser positiva para a sociedade e vai ajudar a sociedade a melhorar são os especialistas que trabalham nas áreas e que estudaram essas coisas a generalidade das pessoas vai acontecer duas coisas em primeiro lugar vão dizer barbaridade só em termos de clickbait e só em termos do seu próprio sucesso no Twitter e de seguidores no Twitter porque é aquilo que lhes dá fama porque as pessoas são vaidosas. E em segundo lugar, e nisto acho que tu desempiras que achas sobre isto, as pessoas corrompem-se quando fazem política. Corrompem-se no sentido em que tornam-se desagradáveis. Tornam-se hooligans. Tal e qual como os partidários do Sporting, ou os partidários do Benfica, ou de outros clubes qualquer. As pessoas tornam-se extremamente tribais e extremamente desagradáveis.
José Maria Pimentel
Mas isso é válido para todos, também para as elites, se quiseres, não é?
Desidério Murcho
Mas o ponto crucial é que... Com certeza, mas o ponto crucial é que se nós conseguirmos fazer instituições... Um dos meus exemplos preferidos é o exemplo da medicina. Poucas pessoas sabem que a medicina era uma camada de assassinos até o século XIX.
José Maria Pimentel
Matavam mais do que...
Desidério Murcho
Eu lembro de ser estudante e eu achar graça a arrogância de Descartes. A gente mais ou menos conhece a história de Descartes. Descartes foi convidado pela Rainha da Suécia, que aliás era uma excelente filósofa, que era talvez melhor filósofa do que o próprio Descartes. Levantou-lhe objeções de morte que o Descartes, depois de muitas respostas, o Descartes teve que confessar. Ah pá, está bem, olha, Eu não sei responder a isto. Eu não tenho resposta a esta objeção. Mas, quer dizer, Dakar foi para a Suécia e dava aulas às 5 da manhã, lá que é, imagina aquele frio danado da Suécia, era de noite ainda e não sei o quê. E o gajo apanhou pneumonia. E uma das coisas que eu achava engraçado quando era estudante, ao ler assim coisas sobre o Dakar e tudo isso, é que o gajo, a Rainha pôs imediatamente ao dispor dele o médico oficial da corte. Quer dizer, o médico dela. O médico que falava ao serviço do senhor Dakar, que ela tinha convidado o homem para ir lá e tudo isso. E ele recusou. Recusou, dá, se não quer nada médico, e fazia o seu próprio tratamento. Receitava o tratamento e o seu criado aplicava-lhe o tratamento. Eu lembro-me de seres tanto de ler e dizer-me, mas o gajo era maluco, quer dizer, o gajo receita o seu próprio tratamento, o que é que o gajo sabia de medicina? Mal sabia eu que naquele tempo a medicina era tão má, mas tão má, que realmente aquilo que ele estava a fazer era perfeitamente razoável. Porque o médico, o suposto médico da corte, não sabia mais acerca do corpo humano, nem acerca da pneumonia, nem acerca das doenças, do que eu. E portanto, O que é que aconteceu a ele, como aconteceu a Carradas e outras pessoas naquele tempo? Quando ele finalmente já estava tão doente que já não era capaz de ele próprio fazer o seu tratamento. O médico finalmente entrou em cena. E qual era o curativo principal dos médicos naquele tempo? Sangrar. Sangria. Exato. Sangrava o gajo. Quer dizer, Claro que morreu mais depressa ainda, não é? Portanto, isto é muito engraçado e é grave, mas é engraçado. Mas é só para dizer o seguinte, eu estava a dar o exemplo da medicina. A medicina era uma completa fraude até ao dialbar do século XX, até a se tornar científica, até porque nem sequer havia ativido os germes, não sabia nem quem eram os germes sequer. Portanto, tudo o que é doenças infecciosas, aquilo que passava debaixo da nariz, eles não sabiam nada. Mas tinham mesmo aquele prestígio todo, tinham aquela atitude de elite, aquela coisa toda. Era só aparência. Eles, na verdade, não sabiam nada de especial e matavam mais pessoas do que salvavam. Uma pessoa que tivesse doente em meados do século XVIII ou mesmo já no final do século XIX era preferível não ir ao médico, até porque o médico andava infectado com as doenças dos outros doentes todos, era preferível não ir ao médico do que ir. A probabilidade de morrer ou de ficar pior indo ao médico era mais elevada do que se não fizesse nada. E precisamente o corpo ou reage ou não reage e a pessoa oh se safa ou não se safa e acabou-se. Mas isto mudou. Hoje em dia temos uma medicina maravilhosa. Temos coisas que eram impensáveis no tempo de Descartes. Operações de coração aberto, transplante de órgãos. Temos um conhecimento microscópico dos órgãos humanos, dos germes, temos vacinas. É uma coisa inimaginável. Portanto, a doença evoluiu muito. Mas os médicos continuam a ter um poder gigantesco. Ou seja, eu vou ao médico, o médico diz uma coisa e eu sigo aquilo mais ou menos religiosamente. E eu apesar de tudo ainda tenho uma certa formação, posso ir à procura de informação, médica na internet, revistas académicas e tudo isso. Sobretudo se ela me der uma indicação um bocado mais exótica e esquisita. Mas a população que tem outras qualificações académicas, que não tem as qualificações académicas que eu tenho, fica muito mais vulnerável. E no entanto, a profissão funciona bem, são casos raros de malevolência médica, Eu nem sequer me lembro de nenhum caso recentemente, não é? De más práticas, não é? De negligência médica. Sim, isso há algumas. As pessoas erram, enganam-se e assim por diante. Mas são relativamente reduzidas. Dado o poder imenso que eles têm sobre a vida de um ser humano, que está completamente desprotegido perante o médico, a taxa de sucesso da maneira como a instituição médica está construída é muito boa. Uma das lições aqui no respeito à instituição médica é que funciona muitíssimo bem, não é? E é, digamos, o ideal do déspotas que o Herceg Deus é um pouco... Foi concretizada na profissão médica. E há outras profissões que são assim também. Quer dizer, há um elevado grau de profissionalismo por parte dos médicos, o respeito que eles têm pelos pacientes, o cuidado que eles têm, a prática médica é cuidadosamente vigiada para que eles não abusem do poder imenso que eles têm sobre as pessoas, não é? E claro que haverá sempre coisas que podem e que devem ser melhoradas. Em Portugal há uns anos houve o escândalo dos laboratórios que pagavam coisas aos médicos para os médicos receitarem medicamentos de um certo laboratório em vez de outro laboratório, coisa que é proibido noutros países, nomeadamente nos Estados Unidos, os laboratórios não podem pagar coisas aos médicos por razões óbvias, não é? Claro, claro. E portanto há sempre questões que nós podemos melhorar na profissão médica. Mas eu uso a profissão médica como um exemplo precisamente porque o médico é uma espécie de um déspota esclarecido, no sentido em que ele tem bastante poder, mas esse poder é benéfico e é bem usado. Nós precisamos de ter instituições deste género. Em princípio. Em princípio, é claro que há erros e tudo isso. Porque a questão aqui, e isto é muito importante aquilo que disseste, a questão aqui é que a vigilância é contínua. Isto não é automático, Isto não é como um programa de computador que a gente programa, põe aquilo a funcionar e vai dormir. Não, a vigilância é contínua. Se tu baixares as defesas, baixas ao mais tarde a mocina vai dar errado. Tens de continuar. E basicamente aqui a maneira como nós desenhamos as instituições tem que ter em atenção aquilo que funciona em termos de incentivos e desincentivos. Exato. Se tu tiveres uma instituição, ou uma instituição seja política ou mesmo profissional, e cujo incentivo principal e ao praticamente único seja o desejo benemérito de fazer bem à humanidade. Isso vai dar errado, ok? Isso não é assim a psicologia humana. Sim, algumas pessoas como o Nelson Mandela são dessa maneira, ok? Mas a generalidade... Sim, mas
José Maria Pimentel
não ganha escala assim, claro.
Desidério Murcho
Claro, isso não escala, Quer dizer, tens que pensar em termos de curva de gaúcho. Tens os psicopatas de um lado, com os maluquinhos completos, e depois tens as pessoas realmente como o Peter Singer ou Nelson Mandela, que são realmente anjos na Terra, mas depois tens o grosso da população, que nem é psicopata, nem é particularmente angélico. Portanto, a pessoa basicamente responde aos seus interesses. Se conseguir conciliar os seus interesses com uma coisa positiva, que até a pessoa se sente bem com isso, melhor. Mas basicamente a pessoa responde aos seus interesses. Portanto, Nós temos que construir as profissões e as instituições de tal maneira que a pessoa normal, a pessoa comum, respondendo aos seus interesses, não consegue fazer mal à sociedade e pelo contrário, para atender aos seus próprios interesses, tem que fazer bem à sociedade. 100% de acordo. Isso é o ideal. Ora, nós temos isso em algumas profissões. A profissão médica, os engenheiros, a mesma coisa. As pontes andam para aí a cair. Portanto, nós precisamos de aprender isso e fazer a mesma coisa noutras profissões. Em particular na profissão de político. Ora, a profissão de político... Nós herdámos aqui várias distorções na profissão de político, porque repara, a sanção que o político sofre é a sanção eleitoral. Mas o problema é que se ele tomou medidas que vão prejudicar as pessoas daqui a 15 anos, Já é tarde demais. Quando as pessoas começarem a sentir na pele o prejuízo, já ele fez o mal que fez e ele tem um emprego numa empresa pública qualquer, numa empresa privada qualquer que tinha negócios especiais com o Estado. Portanto, nós precisamos de repensar muito bem e cuidadosamente a profissão de política e a maneira como a profissão está montada. E hoje em dia é basicamente um conjunto de amadores, algumas pessoas muito bem intencionadas, eu não duvido disso, eu não duvido que haja ministros e primeiros ministros e presidentes e deputados que são pessoas que realmente, genuinamente querem o melhor para a população e procuram fazer o melhor. Mas, cá está, isso é o Nelson Mandela lá de política. É a generalidade. Estão ali para seguir a sua carreira, ganhar o seu dinheiro e fazer a sua vida e depois ao fim de semana ir divertir-se com os amigos, não é? E o problema é que não temos os incentivos e os desincentivos no lugar certo. Legisla-se da maneira completamente mais arbitrária e louca que seja possível imaginar, porque não há esse incentivo. Isso é uma coisa que tem que ser estudada cientificamente, curiosamente, com sociólogos, com o pessoal que faz ciência política. Isto para dizer o quê? Para dizer que eu não acredito que uma saída baseada nos moldes democráticos e eleitoralistas que nós temos hoje em dia, que isto tenha um grande
José Maria Pimentel
futuro. Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no site 45graus.parafuso.net barra apoiar. Veja os benefícios associados a cada modalidade e como pode contribuir diretamente ou através do Patreon. Obrigado. Então deixa-me responder à tua provocação. Ok. Porque Estamos aqui a falar de duas coisas diferentes. Nós tínhamos um modelo antigamente que tinha várias coisas boas, ao ponto de ser a melhor coisa que tínhamos criado, mas tinha vários defeitos e eu sou cada vez menos fã daquela frase célebre do Churchill. Ou por outra, resigno-me cada vez menos com a frase célebre do Churchill, que é de me crescer o melhor sistema, depois de todos os outros com os seus defeitos. É evidente que é, depois dos outros que já existiram, mas não quer dizer que não se possa construir melhor. Mas apesar de tudo há aqui duas coisas. Uma é reconhecer os defeitos que o sistema tinha e que se calhar em tempos de bonança não eram tão visíveis, mas estavam lá. Outra questão é as virtudes que o sistema tinha ou aquilo que funcionava bem no sistema e que com as alterações que houve no terreno entretanto deixaram de funcionar assim também. Portanto, no fundo nós temos aqui dois desafios. Esse desafio que tu levantaste, estou 100% de acordo, mas já existia. Mas depois há o desafio contemporâneo, que é o desafio criado porventura, alterações culturais, quer dizer, com fluência de várias tendências históricas que vinham, umas econômicas, outras sociais, outras até políticas, mas também pela questão das redes sociais, e que é causado, parece-me, por sobretudo, duas coisas que deixavam de funcionar como funcionavam. Um era essa espécie de elite que respeitava determinadas regras do jogo. Lá está, porque como era uma elite e no fundo estavam nesse jogo no longo prazo, também beneficiavam dessas regras e de repente isso é subvertido e os Trumps ou os Andrés Venturas da vida entram em jogo, subvertem completamente essas regras, dizem coisas só para provocar e toda a gente fica apanhado desprevenido. E por outro lado, os mecanismos de mediação que tu tinhas de informação que faziam com que notícias falsas ou notícias simplistas ou informação que não era científica ainda fosse transmitida para as pessoas e portanto não vias nos jornais antigamente, ou na maioria dos jornais, atenção sempre houve tabloides e sempre houve jornais simplistas, mas havia um crivo E nem toda a informação ia passar às pessoas. Hoje em dia tu não tens isso, não é? E isso criou aqui um problema que alimenta informação falsa, alimenta visões deturpadas da realidade, alimenta radicalismos, alimenta uma série de coisas. Mas ao mesmo tempo, e esse era o meu idealismo, como é que tu dizias? Republicanismo Aristotélico, não é? Ao mesmo tempo, isso aliado também a um aumento da literacia, não é? Isto vai haver também um aumento da literacia, trouxe muita gente para o espaço público. E eu percebo as tuas críticas de que o país ideal não é necessariamente o país em que toda a gente participa, como se fosse Atenas, como se fosse a Atenas clássica. Mas acho difícil disputar que é melhor, ou que um país melhora, quando mais gente entra no espaço de discussão pública e mais gente se interessa pelos assuntos, até porque mesmo com esses defeitos da democracia liberal existente, atual, existente antes destas mudanças, mesmo com os virtuses do respeito pelos técnicos, pelos especialistas em determinadas áreas, há ali um equilíbrio ténue em que esses especialistas nunca funcionaram de forma completamente solta, liberta do resto da população. Ou seja, a medicina não dá torto, não é, e não entras em teorias eugénicas e coisas do género, também porque há uma espinha dorsal democrática e de... Accountability, falta uma expressão correta em português, em relação ao eleitorado e de vigilância mesmo daquilo que os especialistas dizem e isso é mais visível ainda em áreas de, sei lá, como economia, por exemplo, em que a realidade concreta é bastante mais difícil de discernir e, portanto, o especialista vale menos do que nas ciências, não é? E portanto, aqui, a minha dúvida é como é que nós conseguimos, sem perder este ganho, que me parece que é um ganho de teres mais gente a entrar no espaço público, reconstruir instituições que permitam não entrar nesta lógica das pessoas terem crenças completamente infundadas e visões radicais em relação às coisas. E isto antes de irmos às melhorias da democracia, que me parece que é outra... Quer dizer, podemos fazer as duas numa assentada, não é bem entendido, não é? Mas eu acho que há aqui um problema que antes de melhorarmos a democracia temos que restituir ao Estado original, se quiser.
Desidério Murcho
Pois, eu penso que há um ponto de vista muitíssimo comum, não é? Quer dizer, a ideia, precisamente, que se chama por vezes o republicanismo aristotélico, não é? Que é a ideia de que a participação política ennobrece as pessoas e é bom que as pessoas participem nas decisões que afetam os seus próprios destinos e que as suas próprias sociedades, é a ideia das pessoas se autogovernarem, digamos assim. É um ideal que eu partilhei durante muito tempo até começar a ler algumas coisas e ter mudado radicalmente a opinião. E eu penso que, uma vez mais, esse ideal é produto de uma elite intelectual que não olhava com atenção para os verdadeiros e genuínos interesses das pessoas mais comuns. Os verdadeiros e genuínos interesses das pessoas mais comuns não é para oprimentar decidir coisas acerca das leis e da sociedade e não sei o quê. Eles querem basicamente ter uma vida boa. E a ideia de que a participação nos processos políticos e ter que estudar as coisas relativas a decisões, que isso teria, digamos, que seria uma coisa agradável para essas pessoas, é empiricamente infundada e é previsivamente falsa. O ponto crucial aqui é que... E eu compreendo o teu ponto de vista, porque eu já tive esse ponto de vista, é como se nós projetássemos um pouco a nossa postura perante o povo, digamos. O meu exemplo favorito... Estás a perceber?
José Maria Pimentel
Eu percebo onde queres chegar sim. O
Desidério Murcho
meu exemplo favorito aqui é o 25 de Abril de 1964 em Portugal, que foi uma coisa maravilhosa, é uma coisa que me comove ainda hoje. Claro, teve coisas menos maravilhosas e tudo isso, mas no cmputo geral foi uma coisa maravilhosa. Um povo mantido na miséria por um ditador analfabético e bruto e aquelas coisas... Bom, ele era professor universitário, mas é possível ser analfabético e ser professor universitário, como se sabe. E que era uma besta completa, não é? E manteve o povo na miséria, fez perseguição política e, quer dizer, teve algumas coisas boas. Ele pacificou o país porque havia um clima louco em 28 quando ele tomou o poder, não é? De terrorismo e tudo isso. Mas o ponto crucial é que o 25 de Abril foi uma coisa maravilhosa. Mas qual era a ânsia principal do povo real, do povo comum com o 25 de Abril? As pessoas mais humildes. Não era propriamente a participação política, o que as pessoas querem é uma vida melhor. Claro. Queremos todos. Uma vida melhor. O que todos queremos, Melhor saúde, melhor educação, melhores empregos, férias melhores, um carro melhor. É isso que as pessoas precisam. A ideia de que as pessoas querem um debate político na televisão e que isso é importante para elas e querem ler o Expresso ao público ou o Diário de notícias e que isso é importante para elas e querem escrever artigos no Diário de Notícias. Quem escreve artigos no Diário de Notícias? É meia dúzia de macaques da elite como tu e eu. Não é a maior parte das pessoas. Não é que queiram escrever e não possam, é que não têm interesse nisso. Têm interesse em comprar uma moto nova, têm interesse em comprar umas calças novas, tem interesse em comprar o telemóvel da última geração, novo. Ponto final. Não tem interesse em estar a escrever um artigo num jornal acerca de se vamos aprovar a eutanásia ou não. Então Eu penso que em primeiro lugar há aqui uma certa projeção, que seria até interessante estudar empiricamente e cientificamente, mas penso que há uma certa projeção elitista. Nós pensamos que isso é importante, porque é importante para nós e pensamos que é importante para o resto das pessoas. Isso provavelmente é uma ilusão. Provavelmente isso é uma ilusão, ok? E agora A segunda parte da minha posição é a seguinte, é que provavelmente essas pessoas têm a razão. No certo sentido, é que o propósito é que eu hei-te preocupar com os promenores de como é que se abre, como é que se faz uma operação à coração. O mundo, já disseste umas cinco vezes que o mundo é muito complexo. Isso é complexo, isso é o teu complexo de economista, não é? O mundo é muito complexo. Que é desculpa dos economistas para dizer que as previsões falham, não é? Estou a brincar contigo.
José Maria Pimentel
É um bocado verdade, é até um bocado
Desidério Murcho
verdade. Está a saber? Mas já disseste, espera aí, umas 5 vezes que o mundo é muito complexo. Mas agora repara, precisamente porque o mundo é muito complexo, um dos itens fundamentais que permitiu a enorme riqueza que as sociedades industrializadas têm no século XXI e que não se compara, mesmo que recursa a um século e meio, Não se compara com a riqueza que as pessoas tenham há 150 anos. Sim,
José Maria Pimentel
sim, exatamente. O nível de riqueza que nós temos
Desidério Murcho
hoje. Por um lado. Por outro lado, essa enorme complexidade do mundo tem a ver com a divisão do trabalho. Ora, o nível de riqueza que nós temos hoje em dia é o fruto de duas coisas fundamentais. Por um lado o conhecimento acrescido que nós não tínhamos antes e por outro lado a divisão do trabalho. Mas agora quando olhas outra vez para o conhecimento acrescido que nós temos no século XXI que não tínhamos no século XIX deve-se a quê? Outra vez à divisão do trabalho. Entendes? Eu ilustro isto com um exemplo muito simples. Na passagem do século 19 para o século 20, a Sociedade Mundial de Matemáticos fez o seu encontro centenário, como fizeram agora outra vez na passagem do século 20 para o 21. E no seu encontro centenário convidaram o David Hilbert, que era um matemático que tinha uma visão de abrangência de todas as áreas matemáticas. E na publicação dele, que ficou célebre e que ainda hoje é seguida cuidadosamente, ele explicou o estado da arte da matemática do seu tempo e os problemas em aberto mais urgentes e que mais precisavam da atenção dos matemáticos e que precisavam ser resolvidos e têm sido resolvidos ao longo do século. Quando se vai da passagem do século XX para o século XXI, eles voltaram a fazer o encontro secular da Associação Mundial dos Matemáticos e agora queriam fazer a mesma coisa, que foi um sucesso, porque o artigo do Hilbert tornou-se, entretanto, um artigo memorável, ainda hoje é um artigo lido, um artigo histórico importantíssimo. Então vai lá à procura do Hilbert hoje. Tiveram que pegar em 5 matemáticos diferentes. Ninguém sabe toda a matemática hoje em dia. Ninguém. Não há ninguém. Não há uma pessoa. Não há. É possível. Porque a matemática cresceu exponencialmente e isso é impossível. Ora, no entanto, continuamos a ter matemática e continuamos a ter progresso matemático e tudo isso. Mas como? Com a divisão do trabalho. Mas a divisão do trabalho tem um preço a pagar e esse preço a pagar é a pessoa que sabe de uma coisa e não sabe da outra. Ora, no que respeita à política nós estamos a indo um pouco como aquela mentalidade medieval que... A idade da pedra, sim. Exatamente, vamos todos ser felizes, fazemos uma quinta com uma casinha, uma galinha e uma vaca. E essa é que é a economia que funciona. Eis a má notícia. A economia de sobrevivência não funciona. Trabalhas 16 horas por dia e ficas pobre a vida toda. O que funciona não é a economia de subsistência. É a economia distribuída. É a economia especializada. Em que o gajo que sabe fazer a capa do telemóvel não sabe fazer o microprocessador e o gajo que sabe fazer o microprocessador não sabe fazer o alto-falante e o gajo sabe ir por aí fora, por aí fora, por aí fora. É assim que produzimos riqueza e é assim que produzimos conhecimento. Porquê é que na política nós continuamos a ganhar raza e dado a pedra? Eu acho isto curioso. Repare, eu só estou a fazer uma pergunta, porque eu vejo a dificuldade imediata que tu provavelmente vais colocar, que é, mas espera lá, não tem de haver de alguma maneira algum poder de síntese e de coordenação? Nós temos de alguma maneira de ter uma certa visão de síntese e de conjunto? Sim, eu concordo com isso. Mas olha o caso dos matemáticos. Uma pessoa a fazer isso é extremamente difícil. Portanto, ser várias pessoas a fazer isso, eu acho que é muito mais razoável.
José Maria Pimentel
Mas a tua implicação para a política é que nós acreditamos que podemos todos discutir todos os temas? Bom, é que
Desidério Murcho
podemos todos discutir todos os temas politicamente relevantes. E isso parece-me implausível. Hum. Mas
José Maria Pimentel
sempre foi implausível. Sempre foi isto, não é? Sempre? Não foi sempre, mas... Hoje
Desidério Murcho
é muito mais do que era.
José Maria Pimentel
Vamos admitir que hoje é... Sim, mas há 20 anos era quase tanto como é
Desidério Murcho
hoje, não é? Para o estado atual das coisas. Só que, repara, quando as coisas estavam mais calmas, era mais fácil a voz dos especialistas terem força política. Porque era mais fácil o Ministro da Saúde reunir-se com uma equipe de médicos que lhes dizia olha nós temos que reorganizar a saúde pública do país, temos que fazer uma campanha nacional de vacinação disto e disto e daquilo, temos que fazer assim. E era mais fácil o ministro ouvir aquelas pessoas, ouvir aqueles técnicos fazer os seus estudos, pedir estudos e fazer a política. Hoje em dia, meu Deus! Meu Deus! As pessoas não querem sequer usar a máscara na rua! Manifestam-se contra isso. E o ponto crucial aqui é... Porquê é que elas se manifestam contra isso? É por causa do incómodo da máscara? Ah, a máscara também me incomoda, então eu prefiro não andar com a máscara na rua, claro. A máscara incomoda muita gente. Mas o ponto é que as pessoas que se manifestam contra a máscara não é devido à máscara. É uma maneira de aparecerem publicamente e de manifestarem o seu tribalismo. É tal e qual como as pessoas que se manifestam pelo Benfica, é a mesma coisa. São viéses cognitivos tribais terríveis nos seres humanos. E nós aceitamos isso como se fosse normal. E depois a pessoa faz uma manifestação na rua com 20 macacos e aparece logo imediatamente na televisão a Filmaus e as pessoas a gritar na rua porque isso dá cliques, porque isso dá vendas. Então é um circo vicioso terrível que nós temos aqui. E repara que tu há pouco falaste um pouco disso e falaste do passado e disseste muito brevemente. Já havia tabloides. Mas olha bem o que é que acontecia. Os tabloides estavam marginalizados do discurso público. Sempre houve tabloides e sempre venderam mais do que jornais chamados de jornais de referência. Só que era como se não existissem. Só que agora não se pode mais fingir que não existem porque essas pessoas que escreviam antes os tabloides agora vão para o Twitter, vão para o Facebook, vão para o YouTube e agora aqueles policies que agora têm ainda mais exposição do que tinham antes e agora subitamente já não podemos fingir que essas coisas não existiam. Mas sempre, sempre existiram essas coisas. Só que foram sistematicamente oprimidas. E agora não. Agora... E
José Maria Pimentel
com defeitos também, atenção, essa espécie de jugo das elites e ostracização de algumas pessoas porque não correspondiam àquilo que era tido como adequado, também tinha, no meio cultural havia pessoas que simplesmente porque não correspondiam àquilo que era designado como o cânone eram postas de lado, eram colocadas de lado e fora do sistema, precisamente porque o sistema também ele próprio não era muito democrático. Agora, aqui neste caso há uma limitação que ocorre desde logo, é que essa elite também não é estanque. Bem, não só a diferença entre elite e o resto não é ela própria discreta, discreta no sentido binária, ou seja, todos nós queremos é viver bem no fundo, Podemos ter um lado de interesse intelectual e de interesse pelo bem comum maior ou menor, mas quer dizer, todos, tirando lá esta um ou outro santo, todos nós no fundo temos sempre uma maior parte que é de interesse próprio e de gostar de viver bem. Mas também há outro lado, que tem que ver com a própria matéria-prima de quem está no espaço público e quem se interessa por esses temas e de quem compõe essas, chamemos-lhe assim, elites, não é? E aquilo que a internet veio possibilitar e que não existia antes, esse parece-me que é um ponto que é preciso reconhecer, é que muitas pessoas que antigamente, pelo meio em que nasciam, não tinham acesso a esse espaço, passaram a ter acesso. Ou seja, havia pessoas que nasciam num determinado meio intelectual ou econômico e estavam fora desse sistema e por causa da internet passam a poder aderir a esse sistema e por essas mesmas redes sociais que geram discurso lixo também passa muito discurso de qualidade, e com qualidade que em certo sentido nunca teve, não é? Quer dizer, não querendo julgar em causa própria, mas a conversa que nós estamos a ter agora seria impossível ter há 10 ou 20 anos por uma série de coisas, porque se não isso e redes sociais se calhar... Se calhar... Quer dizer, nós não nos conhecemos através das redes sociais, mas pronto, mas se calhar de uma maneira indireta, e não estaríamos a gravar pela internet desta forma, não é? Portanto, há aí o efeito positivo que também não convém deitar fora, não é? Não convém deitar o bebê com água do banho, digamos assim, não é?
Desidério Murcho
Claro, com certeza, precisamos encontrar um equilíbrio. Como tudo, O meu exemplo favorito aqui é os tribunais. Às vezes digo assim, já viste bem a loucura que é o estribunal? Que estupidez é aquela? Um gajo qualquer ou uma gaja, veste uma roupa qualquer e tal, ou lá os ingleses põem uma peruca e não sei o quê, e o gajo tem o poder para me lixar a vida completamente se quiser. O gajo pode me lixar completamente a vida, pode me mandar para a cadeia e fico lá 25 anos. E nos Estados Unidos pode-me mandar matar. Isto é ridículo. Quer dizer, o melhor é acabar com os tribunais. E claro, a resposta é, bom, calma aí, né? É claro, os tribunais é um risco e os juízes são preconceituosos e cometem erros, e há erros jurídicos famosos, mas precisamos dos tribunais e, portanto, só temos que ajeitar cuidadosamente a instituição, punir os juízes quando eles se portam mal e ajeitar a instituição de tal maneira que o juiz tenha altos incentivos para fazer o seu trabalho bem feito, mesmo que não tenha grande interesse na justiça propriamente dita, mas tenha interesse na sua carreira, né? Portanto, temos a profissão razoavelmente montada, né? Portanto, precisamos disso apesar dos riscos. Aqui acontece a mesma coisa, é claro, ter meios de comunicação instantâneos como nós temos hoje em dia, estou no Brasil, estou em Portugal, estamos a gravar uma entrevista, estamos conversando e estamos olhando um para o outro e tudo isso é maravilhoso. E é claro que os meios de comunicação que nós temos hoje em dia são maravilhosos e nunca como hoje foi possível uma pessoa publicar livros e artigos de uma maneira tão barata na internet. E portanto tudo isto tem aspectos positivos e que devem ser aprofundados e incentivados, só que tem aspectos negativos e precisamos olhar para eles com muita atenção. Eu vou introduzir agora aqui no debate Um outro tema que nós não falámos ainda, mas que eu penso que é crucial aqui para compreender o que é que eu tenho em mente, é que o debate político, tal como está organizado nas sociedades modernas, está inserido no setor de entretenimento. Tu ligas a televisão ou o YouTube ou o Twitter com a mesma frivolidade e falta de responsabilidade com que as pessoas fazem comentários acerca do último jogo de futebol, é assim que as pessoas falam de eutanásia, é assim que as pessoas falam de política, é assim. Está a saber? Aqui temos um problema e Este é um problema que, em termos de ciências cognitivas contemporâneas, nós sabemos exatamente qual é o problema aqui. O meu exemplo favorito é o exemplo do célebre teste da Linda. O teste da Linda é o seguinte, nós escrevemos uma pessoa que na universidade tinha um certo empenho, que era feminista, que estudou filosofia, que tem assim um certo conjunto de características. E depois me dizemos, ok, 10 anos depois, o que é que é mais provável? E damos à pessoa 3 listas de coisas. O que é que é mais provável? Aquela seja isto, ou aquela seja isto e isto, ou aquela seja isto e isto e isto. A teoria das probabilidades básica é, a terceira é a menos provável de todas. Porquê? Porque quanto mais conjunções tu pões numa coisa num campo de probabilidades, mais improvável é. Quer dizer, a probabilidade da pessoa ser A e ser B e ser C é menor sempre do que a probabilidade de ser apenas A, ou B ou C. Mas como o conteúdo do A e do B e do C casa muito bem com o protótipo que eles construíram da Linda, que é uma rapariga ativista pelos direitos das mulheres, que estuda filosofia de esquerda, e como depois a lista do ABC é tudo coisas que caem dentro do protótipo, eles direitinho vão para o
José Maria Pimentel
C.
Desidério Murcho
Ok? E claro, mas o Leonardo Aguirre isso é ridículo, matematicamente isso é errado. A probabilidade é A, não é o C. Ok? Qual é a minha leitura disto? Se aquilo fosse um exame na universidade para eles serem aprovados no doutoramento, eles não erraram. Estás a perceber? Porque a pessoa apunha-se num contexto cognitivo de atenção cuidadosa. Mas como é que funcionam os testes que os psicólogos fazem? Pagam 20 dólares a um gajo, a um grupo de estudantes. Pá, vocês têm aqui 20 dólares para preencher esta coisa. E os gajos preenchem aquilo enquanto estão a pensar no fim de semana e com o namorado. E a
José Maria Pimentel
ideia é essa, não é mesmo? Não foi de poder apanhar desprevidos. A ideia não
Desidério Murcho
é essa, o que eles querem é apanhar a pessoa informalmente. Mas qual é a lição fundamental aqui? Que é uma coisa que o Heath, no livro dele, Inviteman 2.0, que ele aprofunda e que ele tem toda a razão. Para mim foi iluminante ler esse livro, acho que devia estar traduzido em português. A ideia dele é... A lição que tiramos daqui é que o exercício da racionalidade humana precisa de um contexto adequado. Se não temos um contexto adequado, os seres humanos são terrivelmente maus a raciocinar. Então é todos os viés cognitivos e emocionais e os ódios, tudo isso vem ao de cima. Portanto, o ponto crucial aqui é este, é que tu colocas as pessoas todas no Twitter ou no Facebook ou no YouTube a falar e depois elas falam as leiras porque o ambiente cognitivo é inadequado. Sem dúvida. E porquê é que é inadequado? Porque é um ambiente que está anexado ao entretenimento. Estás a perceber? Não é uma biblioteca, não é uma universidade, não é uma sala de estudo, é entretenimento. Portanto, no mesmo jornal de supostamente referência, como o Guardian ou o New York Times, em que tu vês a primeira e segunda notícia, coisas muito sérias sobre o vírus e sobre o Trump e sobre não sei o quê. Mal clicas para vir um bocadinho mais para baixo, lá vem o futebolista que casou com não sei o quê, a chica que não sei o quê, que cortou o cabelo e foi à cabeleireira. É logo o que tens. E porquê? Bom, porque se não tivésisse isso aqui, não é entretenimento, e se não for entretenimento, as pessoas não vão lá. Portanto, nós temos aqui um problema que é um problema de contexto, percebes? É um problema de contexto cognitivo. As pessoas não são capazes de tomar decisões adequadas na gritaria, no meio da gritaria e no meio do entretenimento. Isso não funciona. E isto está provado, cientificamente não funciona. Nós sabemos que os seres humanos são terrivelmente maus a raciocinar. Deixa-me contar-te uma piada do Joseph Heath, que ele conta no livro dele. A piada é a seguinte, é um gajo que é abduzido, como o pessoal lhe diz acusar, com as palavras inglesas mal traduzidas para o português. A pessoa foi raptada, abduzida, A pessoa foi raptada por extraterrestres. Os extraterrestres estão ali e tal e os extraterrestres pensam que são uma espécie esquisita de animais extraterrestres que eles descobriram. Eles não fazem ideia que são seres inteligentes, nada disso, está a saber? Então os gajos estão ali e preparam-se para abrir o vivo, para ver como é que o gajo é lá por dentro. O gajo começa a gritar... Opa, mas o que é que vocês estão aqui a fazer? Eu sou inteligente como vocês e não sei o quê... E os gajos ficam surpreendidos. Afinal, a espécie humana, isto não é só um animal, nem coisa nenhuma. Não, não, nós somos inteligentes, mas já fomos à Lua, para o amor de Deus. Como é que és capaz de provar que és inteligente? É para ser lógico, uma coisa qualquer. Já sei, diz o extraterrestre. Fazia uma conta de matemática. Claro que faço, considero que não é problema. E o gajo diz, multiplica lá 228 vezes 49. Claro que é o problema, é para tacar papel e lápis. O extraterrestre olha para ele e diz, Papel e lápis? Vocês fazem matemática com papel e lápis? Nós fazemos com o cérebro. O problema aqui é que nós nem nos apercebemos que somos tão estúpidos que sem papel e lápis ninguém é capaz de fazer uma conta de multiplicar 327 vezes 88. Estás a me dar ideia? Portanto, o que é que isto diz? Isto diz de uma maneira andótica e engraçada que o contexto, o meio em que nós estamos, cognitivamente é tudo. Sem os instrumentos cognitivos adequados, os seres humanos são macacos autênticos. É uma desgraça complexa. E sem
José Maria Pimentel
inteligência coletiva, não é? Ou seja, sem articulação. Claro.
Desidério Murcho
E tudo isso faz parte do meio, o meio cognitivo. Sim. E o problema é que o meio cognitivo da participação política... Portanto, eu concordo contigo no seguinte, ok? Eu dou-te de bandeja o seguinte. Participação política epistemicamente responsável? Sou todo a favor. O problema é que a participação política, tal como ela se tem configurado neste início do século XXI, é uma participação política epistemicamente irresponsável não por culpa direta pessoal da pessoa, estás a perceber? Eu não estou a culpar as pessoas, não é? O que eu estou a dizer é, é por culpa do contexto epistémico em que a pessoa está colocada. É um contexto tóxico. É um contexto em que a pessoa não consegue exercer a sua racionalidade. Não é um contexto de biblioteca, de sala de seminário, de análise, cuidadosas das coisas, ouvir civilizadamente uma outra pessoa. Não é esse contexto. É
José Maria Pimentel
um contexto de entretenimento. Tens razão. Estás a tocar num ponto importante. Eu não seria era tão absolutista ou tão radical nessa distinção porque acho que é até difícil dizer se há alguma atividade humana que subsista sem ter um seu quê de entretenimento. Ou seja, nós estamos a ter esta conversa porque nos é agradável e nos estimula intelectualmente, não é? E portanto tem muito de entretenimento associado e a política sempre teve e em certo sentido muitos dos defeitos da política vêm daí, mas também a sustentação da política vem daí, os programas de debates, troca de ideias, tudo aquilo é estimulante. Aqui
Desidério Murcho
claramente foi-se longe demais talvez, não é? Porque as redes sociais... Exatamente. A chave é fomos longe demais. Pensa uma vez mais nos tribunais. Há certos aspectos do tribunal em que também serve de entretenimento, num certo sentido. Tu gostas de ver um tribunal bem montado, mas os próprios tribunais se estabelecem em alguns casos, nada de imprensa. Porquê? Bom, porque sabem que o caso é de tal maneira complicado que trazer a imprensa para a sala do tribunal, para a sala de audiências, é um perigo para uma decisão que sequer justa. Aqui é a mesma coisa, portanto eu concordo contigo, é claro que há um certo... Repara, o meu exemplo favorito aqui são os colóquios académicos. Eu por acaso não ligo muito isso, porque já fiz muito, sei não sei o quê, já Estou um bocado farto disso. Mas agora que veio esta coisa do vírus e já não há colóquios reais. A
José Maria Pimentel
malta está chateadíssima.
Desidério Murcho
A malta está chateada. Para mim é uma maravilha porque não me dá trabalho. Porque eu perdi imenso tempo em viagens e as pessoas convidavam-me de por aí não sei onde e eu dizia, é pá, ir de Pristina ao Brasil é uma loucura. Já sabes como é que é o Brasil, não é? De uma cidade a outra é um avião-viagem. Quatro horas. E eu, eipa, que chatice do caralho. Agora convida-me e não sei de onde. Claro, tranquilo, porque faço aqui um caso de não perco o tempo da viagem. Mas as pessoas queixam-se. As pessoas queixam-se. Epa, que chatice, não sei o que e tal. Porquê? Porque é esse aspecto do entretenimento. As pessoas gostam de ir aos colóquios, de conhecer, ver os colegas, conhecer colegas novos, de falar pessoalmente com pessoas que não conheciam pessoalmente. Portanto, há um certo aspecto de entretenimento. E eu concordo com isso. Todas as profissões têm isso. Presumivelmente os colóquios dos médicos também têm isso, os colóquios dos engenheiros, dos físicos, dos economistas, etc. Só que o trabalho técnico do economista não é feito nesse ambiente. A pessoa vai ali, expõe um pouco o trabalho que ele fez, e depois as pessoas vão jantar e bebem uns copos, mas o trabalho foi feito lá atrás. Agora, Claro, esse ambiente também é importante, talvez estimule... Cá está. É uma questão de incentivos e desincentivos. A pessoa tem aquela vaidade de ir lá apresentar no colóquio a investigação que ele fez, a oficina de agrpo chata para caraças que ele fez durante seis meses com os colegas, com os cinco colegas andou ali seis meses a batalhar, armado e maluco no laboratório mas ele tem aquela coisa de não, mas quando eu apresentar isto no Cloak o pessoal vai ficar louco isto vai ser uma beleza. Ok. É os tais incentivos e desincentivos a funcionar bem dada a natureza humana ridícula, não é?
José Maria Pimentel
Não, é justamente os incentivos, exatamente. Eu pergunto-me se grande parte do progresso não tem exatamente a ver com... Do progresso intelectual catapultar determinadas atividades para ambientes que são prazerosos desse ponto de vista, não é? Ou seja, em que tu estás a fazer uma coisa que é estimulante, é complexo e cria, no fundo, um bem público, mas que também te dá os incentivos porque te dá prestígio, te dá a oportunidade de falar com outras pessoas e uma série de coisas. Ou seja, grande parte do desafio talvez esteja aí. E talvez esteja também noutra coisa que eu queria perguntar, o que é que tu achas? Eu ia dizer que este problema era complexo, mas depois tu dizes que eu usei a palavra complexo, que o mundo é complexo desta vez. E este problema também talvez tenha aí outra faceta, que é o facto de... Uma das razões por que todos estes sistemas funcionam bem, ou seja, a academia, a ciência, a política, feita pelas elites naquilo em que funcionava bem, que nunca... Lá está, como tu dizias há pouco, estava longe de ser perfeito e acho que há várias coisas que se podem melhorar aí. Isso alimentava-se também das pessoas estarem a fazer aquilo que se chama em teoria dos jogos, jogos repetidos, ou seja, tu estás lá a longo prazo e portanto num jogo repetido, num jogo, ou seja, em interações repetidas em que tu não estás para o longo prazo, tu és muito mais cooperante e justifica-se teres um determinado tipo de atitude, de mindset, ou seja, isto vai ao encontro daquilo que tu falavas há bocadinho, bastante diferente. E neste novo paradigma de política ultra participada, o que acontece muitas vezes é que quando tu estás nas redes sociais, o que te apetece é mandar um bitado qualquer, dizes estes tipos são uns imbecis, ou pior, e faz um retweet ou um post ou uma coisa qualquer do género, e vais-te embora para casa e não tens qualquer contacto com aquilo. E uma das coisas que eu acho que tem imenso potencial, e aqui casamos os dois temas que eu há bocadinho separava, para simultaneamente resolver este problema, catapultar a democracia para um nível superior ao que estava mesmo antes deste problema surgir, é tu trazeres as pessoas, que lá está, antes não estavam no espaço público mas agora estão, trazê-las para um espaço em que elas são obrigadas a discutir umas com as outras, de forma civilizada, ouvindo as pessoas que sabem, sendo forçadas a aduzir argumentos lógicos e a serem questionadas nas suas premissas, e tudo isto implica tempo, não é? E há várias iniciativas muito interessantes a esse respeito. O caso de moedas, há uns episódios falava da iniciativa do Macron, que ele fez uma espécie de assembleia cidadã que no fundo vai buscar pessoas a vários... É uma amostra aleatória da população, portanto vai buscar pessoas de todos os tipos de preferência e de todo tipo de formação. Na Irlanda eles fizeram uma coisa muito interessante, fizeram para vários temas e fizeram sobretudo para o tema do aborto, por exemplo, e aí o resultado foi extremamente interessante, porque eles ouviam, tinham que ouvir pessoas com opiniões fundamentadas, fossem elas quais fossem sobre aqueles temas, tinham que discutir entre elas e de repente esta lógica perversa que existe nas redes sociais desfaz-se, precisamente por isso, porque as pessoas estão ali e têm que, são forçadas a estar num, tu à pecada usavas uma palavra diferente, mas estão forçadas a estar num mindset diferente, mais adequado e já não estão no estado emocional em que estavam, já não estão a ser vítimas dos vieses que são vítimas nas redes sociais e de repente tu produzes uma síntese positiva, se quiseres. Sim,
Desidério Murcho
eu penso que isso são notícias muito otimistas. Se conseguimos fazer coisas desse género, se conseguimos criar instituições dentro das instituições democráticas que ouçam as pessoas... Não
José Maria Pimentel
é só ouvi-las, desculpa interromper-te, não é só ouvi-las, é obrigá-las a vir falar. É dar-lhes poder. É que não é só dar-lhes poder, tu dás-lhes poderes às pessoas, mas obrigas-las a virem cá, justificar-se,
Desidério Murcho
ouvir, falar e depois falar. Exato, tu colocas as pessoas num contexto epistémico em que elas são obrigadas a exercer, a fazer um exercício cuidadoso da racionalidade. O que nós temos nos meios de comunicação modernos é o oposto disso. É um exercício perverso da racionalidade. Portanto, se nós criarmos instituições em que as pessoas fazem o exercício cuidadoso da racionalidade, eu acho que isso é extremamente vantajoso E é democrático nesse sentido. Imagina que, como fizeram na Irlanda, e tu estavas aqui a explicar, portanto tu fazes uma amostra aleatória da população garantindo que há representatividade. Exato. No sentido em que tu olhas para a estatística da população e tu sabes, olha, nós temos 5% de pessoas que são assim, temos 10% de pessoas que são assim e vamos escolher aleatoriamente as pessoas de maneira a que sejam representativas destes vários grupos sociais que nós temos na nossa sociedade. E depois colocas as pessoas num contexto epistémico adequado e das às pessoas a informação científica e técnica adequada e estas pessoas agora vão tomar decisões e essas decisões têm poder político. Eu acho isso excelente. Eu acho que isso é o género de coisa que me parece promissora. O género de coisa que me parece extremamente promissora. Então talvez seja essa uma das soluções para os problemas de hoje em dia. Mas Eu penso que não chega. Sim, dificilmente resolve tudo, sim. Quer dizer, eu penso que o contexto comunicativo contemporâneo precisa de uma revisão profunda. A irresponsabilidade epistémica que é comum nos meios de comunicação modernos está a chegar a limites, assim, inaceitáveis. E eu penso que é tempo de pôr travão a isso. Uma vez mais, tal como eu falava dos tribunais há pouco, quer dizer, nós, uma instituição imaterial que nós prezamos na civilização de raiz europeia, digamos assim, nos países industrializados modernos, de raiz europeia, porque a China é industrializada mas não é de raiz europeia e não tem isso, é a liberdade de expressão. Essa é uma das instituições imateriais que nós prezamos. Mas a liberdade de expressão está a dar um resultado terrível com o abuso da liberdade de expressão das pessoas nas redes sociais hoje em dia. Portanto, precisamos de reencontrar um equilíbrio aqui. Um equilíbrio entre liberdade de expressão sim, mas só com responsabilidade epistémica. Porque o meio cognitivo em que nós nos colocámos devido à comunicação tóxica em que nós estamos e que no fundo se tu pensares bem, e isso é uma coisa que também está manifesta no livro do Joseph Heath que eu mencionei aqui, o Enlightenment 2.0, começou com o quê? Com a própria publicidade porque os publicistas foram os gajos dramados, porque foram os primeiros a dar-se conta do impacto económico positivo que tinha o conhecimento de psicologia cognitiva. Claro. Se queres ver, psicologia cognitiva aplicada, logo na pré-história da psicologia cognitiva, é na publicidade. É quando eles começaram a perceber. E o Joseph Fisk dá exemplos de publicidades narrativas antes do impacto da psicologia cognitiva na publicidade, e tu vais para aquilo e dizes, mas isto é, eu não sabia que se fazia publicidade desta maneira porque aquilo era narrativo, tinha um texto articulado, cuidadoso, a explicar porque a razão é que era uma boa ideia a pessoa comprar aquele produto. Isto é ridículo hoje em dia! Não tem nada a ver com articulação verbal sequer. Ok? É tudo com base em todas as limitações e todas as fraquezas cognitivas humanas que os publicistas aprenderam por meio da psicologia cognitiva. Então nós temos toda uma indústria. A primeira indústria que reagiu às fraquezas cognitivas humanas no sentido de explorá-las foi a indústria da publicidade. E depois, por arrasto, tens toda a indústria da comunicação moderna, que por sua vez, por arrasto, também acaba por afetar a comunicação política moderna. Então tu tens esta história terrível daquilo que é na verdade uma exploração de fraquezas cognitivas humanas, que começa com a publicidade. Isso tem que acabar. Quer dizer, nós temos que encarar a exploração das fraquezas cognitivas humanas com o mesmo horror com que encaramos a escravatura, com todo o respeito pela escravatura. E eu sei que por vezes as pessoas exageram um bocado, o que eu acho ofensivo, exageram um bocado com a palavra escravatura e dizem que isto é a escravatura e não sei o quê. E a escravatura é uma coisa demasiado séria, real e concreta para estarmos a usar a palavra dessa maneira tão leviana, digamos assim. Mas nós precisamos de olhar para a prática corrente e normal hoje em dia da exploração desavergonhada das fraquezas cognitivas humanas, que estão documentadas, nós sabemos quais são, estão cientificamente documentadas as fraquezas cognitivas humanas. E no entanto continuamos a permitir que legalmente essas fraquezas cognitivas humanas continuem a ser exploradas pelos canais de comunicação. É isso que nós precisamos de porcobro. Como? Não sei. Presumivelmente a pouco e pouco. E ainda aprendendo com a experiência e ver como é que nós conseguimos ter os ganhos de que tu falavas da comunicação moderna, que dá voz a pessoas que não tinham voz e tudo
José Maria Pimentel
isso. E da liberdade.
Desidério Murcho
E da liberdade de expressão. Mas ao mesmo tempo conseguir manter esses ganhos mas conseguir eliminar tanto quanto possível os defeitos que têm. E o defeito, se quiseres dar-lhe o nol, o defeito é este, é a exploração das fraquezas cognitivas humanas.
José Maria Pimentel
Boa. Acho que é uma excelente maneira de terminarmos. O que é que achas? Acho ótimo. Já vai longo. Já vai longo.
Desidério Murcho
Lembras-te do livro? Eu recomendo mesmo o Enlightenment 2.0, do Joseph Heath. Excelente. Tem tudo a ver com o que nós estávamos a discutir.
José Maria Pimentel
E eu já tinha ouvido falar e nunca li, portanto eu próprio já estava a ficar curioso.
Desidério Murcho
É, lê, vale a pena. Talvez até isso estimule um editor português a traduzir e a publicar em Portugal. Eles publicaram um outro livro do Joseph Heath que eu não li, não sei se é bom, calculo que sim porque ele é um excelente filósofo. E a minha recomendação é essa, o Enlightenment 2.0, onde ele defende a importância de termos uma, ele chama isso, de ter uma política da racionalidade. O que ele quer dizer com isto é não podemos permitir instituições e práticas que exploram de uma maneira sistemática as fraquezas cognitivas humanas.
José Maria Pimentel
Sim, até porque essa racionalidade é um recurso escasso, não é?
Desidério Murcho
Exatamente. É muito
José Maria Pimentel
por aí. Ok, olha, excelente. Zider, muito obrigado. Esta conversa foi muito enlightening. Gosto
Desidério Murcho
de conversar contigo,
José Maria Pimentel
pá. Então é um excelente livro para terminar. É, acho que sim. Este episódio foi editado por Martim Cunha-Reio. Visitem o site 45graus.parafuso.net barra Apoiar para ver como podem contribuir para o 45 Graus, através do Patreon ou diretamente, bem como os vários benefícios associados a cada modalidade de apoio. Se não puderem apoiar financeiramente, podem sempre contribuir para a continuidade do 45 Graus avaliando-o nas principais plataformas de podcasts e divulgando-o entre amigos e familiares. O 45 Graus é um projeto tornado possível pela comunidade de mecenas que o apoia e cujos nomes encontram na descrição deste episódio. Agradeço em particular a Paulo Peralta, João Baltazar, Tiago Leite, Carlos Martins, Joana Faria Alves, a família Galaró, Corto Lemos, Margarida Varela, Gustavo, Gonçalo Monteiro, Felipe Caires, Miguel Marques, Nuno Costa, Nuno Pinheiro, Francisco Armando Gildo, Mário Lourenço, João Ribeiro e Miguel Vassallo. Até ao próximo episódio!