#99(a) Desidério Murcho - “Todos devíamos saber mais de Lógica para pensarmos melhor”

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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o Corem de 5°. Neste episódio o convidado é Desidério Murcho, professor de filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto, no Brasil, e que é autor de mais de uma dezena de livros, sobretudo nas áreas da lógica, ética e filosofia da religião. Esta foi uma conversa muito longa, o que, vou percebendo, tende a acontecer quando entrevisto filósofos. Ao mesmo tempo, a conversa tem duas partes claramente distintas e por isso decidi dividi-la em dois episódios. Este que estão a ouvir e outro que vai sair na semana que vem. Nesta primeira parte falámos de lógica, a propósito do livro que o convidado publicou recentemente, chamado precisamente Lógica Elementar. A lógica é uma área que nasceu originalmente na filosofia, com Aristóteles, mas que deu um grande salto só a partir do final do século XIX, sendo que é hoje estudada na matemática e aplicada em áreas tão diferentes como a programação ou a linguística. Na filosofia, a lógica, na verdade, é tanto uma área de estudo como uma ferramenta que serve para conseguir raciocinar bem e que, por isso, se presta a ser aplicada para tratar problemas filosóficos de ramos tão diferentes como a ética, por exemplo, ou a epistemologia ou a metafísica. Nesta primeira parte, falei então com o desidério sobre o porquê é importante para todos nós termos noções de lógica para conseguirmos pensar melhor E falámos também da história, da lógica, da relação desta com a ciência e da diferença entre dedução e indução entre vários outros assuntos. Espero que gostem. Este é um tema por vezes árido, mas se há pessoa que o consegue tornar interessante é o desidério que junta, como vão perceber, a profundidade de um filósofo à vivacidade de um apresentador de televisão. Para terminar, um agradecimento aos mecenas da última quinzena, João Mendes Ferreira, João Ribeiro, José Correia Neves e Mário Lourenço. Desiderio, Muito bem-vindo ao podcast.
Desidério Murcho
É um prazer estar aqui contigo. Eu
José Maria Pimentel
convidei-te para o podcast para falarmos de lógica, lógica filosófica e outros destinos onde vamos parar nesta conversa. E é um tema interessante porque a ideia que me dá é que a impressão que nós temos, a impressão que quem se interessa, apesar de tudo por filosofia, tem é que a área da lógica é uma área um bocado esotérica, num certo sentido, e num outro sentido bastante opaca, que a pessoa sabe que tem muitas aplicações diretas em áreas de ponta, como inteligência artificial, por exemplo, até por ser muito matizada, mas precisamente por ser a lógica contemporânea muito matematizada, a pessoa tende a achar que não tem um impacto direto, seja na nossa vida, seja, se quisermos, na sociedade, e na maneira como é gerido o discurso na sociedade. Mas tu tens uma visão um pouco diferente, não é?
Desidério Murcho
É, e não é só para vender o meu livro, atenção, tenho uma visão um bocadinho diferente porque realmente acredito que a lógica deveria ser mais bem conhecida da maior parte das pessoas porque realmente desempenham um papel importante, não apenas nas várias atividades profissionais e mesmo na nossa vida pessoal, como eu diria que é um ingrediente importante de uma pessoa que se considera culta no século XXI. Quer dizer, nós consideraríamos que uma pessoa no século XXI, enfim, que teve a sorte de ter a formação escolar básica e tudo isso, que não seria aceitável que ela não tivesse a mínima ideia do que é, por exemplo, a teoria da evolução. Mas no entanto, aceita-se que uma pessoa, muitas vezes até com uma formação superior em algumas áreas, tenha uma ideia, aliás como tu falaste um pouco, um pouco tecnicista, excessivamente matematizada na lógica, o que impor a lógica para um gueto, como se fosse meramente um instrumento técnico de algumas áreas extremamente técnicas, que nós até prezamos mais enquanto utilizadores de instrumentos de inteligência artificial e coisas desse género, mas não pensamos que aquilo está diretamente relacionado com a nossa vida. Mas eu penso que isso é uma perspectiva inadequada. Todos nós inevitavelmente raciocinamos todos os dias e além disso avaliamos os raciocínios de pessoas que têm impacto na nossa vida. Sei lá, Estou a pensar em políticos, estou a pensar em campanhas publicitárias. E no entanto não temos instrumentos adequados para avaliar cuidadosamente se esses raciocínios que nós próprios fazemos ou aos quais nós somos submetidos, se esses raciocínios são realmente adequados ou não. E eu concordo que uma abordagem excessivamente matematizada ou técnica da lógica acaba por provocar uma perplexidade que eu vejo em várias audiências, que é a pessoa até sabe o que é a lógica, até teve uma certa formação lógica nomeadamente na sua profissão como economista ou como matemático ou uma coisa desse género mas a pessoa pensa que aquilo é uma coisa puramente matemática que não tem nada a ver com frases reais da língua portuguesa, digamos assim ela pensa que tem a ver com pês e quês e com aqueles símbolos malucos da lógica e ela não vê, ela não consegue fazer a ponta entre isso e a linguagem real que nós usamos. E isso eu penso que é uma destrução indesculpável do que realmente a lógica é. Para fazer uma analogia, é um pouco como se a pessoa pensasse que a aritmética não tem nada a ver com contar bananas. Bom, a aritmética diretamente não tem nada, num certo sentido, a ver com contar bananas, mas precisamos da aritmética, entre outras coisas, para contar bananas. E aqui acontece um pouco a mesma coisa. É claro, a lógica tem desenvolvimentos importantes, tem interesse artificial, e está matematizado, e está muito desenvolvida, e é importante para nós fazermos os computadores atuais e tudo isso, mas a lógica inevitavelmente é de facto, quer as pessoas queiram, quer não, é de facto usada diariamente quando as pessoas raciocinam. A única diferença é...
José Maria Pimentel
Implícito ou explicitamente. Exatamente.
Desidério Murcho
Já se sabe que estão a usando e procuram usá-la melhor ou se pelo contrário a usam de uma maneira intuitiva. É um pouco como a gramática, não é? Uma pessoa não precisa ter conhecimento de gramática para na realidade, inevitavelmente estar a usar a gramática todos os dias quando fala. E aqui é a mesma coisa. Boa,
José Maria Pimentel
então esse é excelente. Vamos pegar um exemplo da gramática, não é? Porque o problema na gramática da pessoa não ter noções de gramática é, precisamente por a usar dessa forma intuitiva, muitas vezes dar erros inadvertidamente. Isso acontece-nos a todos, não é? Porque todos nós esquecemos algumas coisas inevitavelmente da gramática que aprendemos na escola.
Desidério Murcho
Só que no caso da lógica, e a lógica de facto é uma gramática, só que é a gramática do pensamento, digamos
José Maria Pimentel
assim, a gramática do raciocínio.
Desidério Murcho
É uma gramática muito mais profunda do que... De maneira que quando a pessoa erra em lógica, não é como a pessoa errar-se no tempo verbal. Errar em lógica significa que a pessoa não tem provas adequadas para a conclusão a que chegou. E isto é uma coisa muitíssimo mais séria do que simplesmente a pessoa enganar-se numa regra qualquer da gramática.
José Maria Pimentel
Sim, mas para ti vai dizer isso a um linguista que se calhar tem uma visão diferente.
Desidério Murcho
Pois, talvez. Não,
José Maria Pimentel
até agora estava a meter contigo. Mas era interessante, se desse um exemplo de situações em que essa espécie de iliteracia lógica trai as pessoas.
Desidério Murcho
Ainda que há uns anos tive uma situação curiosa com uma jornalista, que eu infelizmente peço desculpa, mas esqueci muito o nome, eu acho que era para a revista Visão, mas não tenho bem a certeza. E ela fez-me uma série de perguntas por e-mail, eu respondi-lhe algo não me lembro exatamente qual era o tema, pensei que era qualquer coisa relacionada com a ética e depois às tantas ela escreveu uma barbaridade e eu quando vi aquele impresso fiquei aterrorizado com o meu nome ali envolvido e escrevi-lhe de volta a dizer, pá, isto não é assim. E a barbaridade vai estar presente neste exemplo que eu vou dar. Vou dar um exemplo hipotético, mas que está diretamente relacionado com uma coisa real que me aconteceu. E o exemplo hipotético é o seguinte, imagine que uma pessoa chega perto de ti, vocês estão a conversar, estão a beber uma cerveja, e a pessoa diz, epá, os animais não têm direitos porque não têm a deveres. Tu ouves aquilo, os animais não têm direitos porque não têm a deveres. Ok, a pessoa compreende imediatamente, ok, a conclusão, óbvia, é os animais não têm de dereitos e a razão que a pessoa invoca é porque não têm de deveres. Mas aí tu perguntas-me, mas como é que uma coisa leva à outra? E aí vê-se que o que a pessoa tem em mente é um princípio mais geral que é quem não tem deveres, não tem direitos. Este simples facto de nós nos apercebermos que faltava aqui qualquer coisa que fizesse a ligação estava aqui uma permissão escondida, estava aqui uma ideia escondida já ganhamos terreno aqui. Porquê? Porque a pessoa já foi obrigada a explicitar essa ideia. E agora, surpresa das surpresas, esta ideia é claramente falsa. As pessoas têm a mania que... E foi esta ideia que a jornalista escreveu na revista e que eu fiquei preocupadíssimo. Por uma razão qualquer, que eu desconheço, que eu penso que tem a ver com psicologia cognitiva, com a ideia de padrões. As pessoas pensam que há aqui um padrão qualquer que faz com que direitos e deveres estão diretamente associados dessa maneira. Ou seja, a pessoa só tem direitos exclusivamente porque tem deveres. Ora, quando nós nos confrontamos com isto, um mínimo conhecimento de lógica permite imediatamente levantar uma objeção muito simples. E a objeção simples é outra vez um raciocínio, uma inferência, mas que neste caso tem a vantagem de não partir de um pressuposto falso. E essa inferência seria, bom, se só tem direitos quem tem deveres, então os bebés não têm direitos. Mas isso é falso. Logo, também é falso que só tem direitos quem tem deveres. E este raciocínio que eu apresentei agora de passagem é um raciocínio válido, tal como o primeiro também era válido, só que o primeiro é válido baseado numa falsidade. Uma das premissas, uma das ideias de partida é falsa. E este agora é também válido, que é um conceito técnico da lógica que nós podemos falar aqui um bocadinho o que é que isso quer dizer, mas a diferença é que nenhuma destas frases, nenhuma destas afirmações de partida é falsa. E mais, são afirmações que o nosso interlocutor com certeza que aceita porque são perfeitamente razoáveis não é o género de coisa que nós não estamos a pedir-lhe primeiro acreditar em Deus e depois aceitar a nossa conclusão nós estamos a pedir-lhe para ele aceitar uma coisa banal que é que os bebés obviamente têm direitos, apesar de não terem deveres. Qual é o dever que o teu bebé tem de seis meses? Fazer qualquer uma das frausas, não é?
José Maria Pimentel
Exato, exato. Não, quer dizer, na verdade, isto está-me a lembrar do episódio que eu gravei com o Pedro Galvão em que falávamos de ética. A ética usa precisamente muitos destes instrumentos para conseguir ter discussões difíceis de uma maneira organizada e há filósofos da área da ética que exploram isso até às últimas consequências, a parte dos direitos por exemplo na questão do aborto, até que ponto é que é defensável o aborto ou para quem defende o aborto também é defensável matar recém-nascidos, por exemplo, e há filósofos que chegam a defender isso. Ou seja, isto para dizer, até é possível comprar essa associação de direitos a deveres, mas isso também leva a outras implicações, que é ter que explorar todas as situações em que há seres que não podem ter deveres porque ainda não têm consciência para isso. Porque no fundo isso permite fazer os dois caminhos, permite fazer o caminho de dizer ok, é evidente que isso não faz sentido e portanto esse argumento não faz sentido ou dizer porque isso até faz algum sentido, vamos então explorar todas as situações em que se possa aplicar um raciocínio semelhante.
Desidério Murcho
O caso da lógica também historicamente é uma coisa curiosa, porque a lógica, digamos, num certo sentido eu diria que foi vítima do seu próprio sucesso. Isto é um pouco paradoxal, mas eu penso que historicamente isso aconteceu, porque se tu pensares de uma pessoa qualquer com uma formação superior, mesmo até já ao século XIX, mas sobretudo no século XVIII, qualquer pessoa, fosse um médico, fosse qualquer um jurista, qualquer pessoa, inevitavelmente estudava Lógica na Universidade. E isso fazia parte do currículo de qualquer formação superior. Acontece que depois houve dois movimentos que, digamos, conspiraram para acabar por acontecer a mesma coisa. Um movimento foi o movimento antilógico, no certo sentido, que era um movimento em grande parte associado à própria revolução científica e aos novos métodos e às novas ideias científicas, que olhava com desconfiança para todos aqueles conteúdos curricular que vinham da Idade Média, no certo sentido. E a lógica era um deles. Antilógica dedutiva aristotélica, não é? Exatamente. E, portanto, com razão, rejeitavam um ensino da lógica, que era uma lógica, digamos, esclarezada, uma lógica antiquada, uma lógica que estava de facto ultrapassada, que era a lógica aristotélica, e que ainda para mais a lógica aristotélica, ao longo dos séculos em que ela foi ensinada nas universidades europeias sofreu o destino terrível de ser cada vez mais caricaturada de maneira que quando a pessoa vai a ler o próprio Aristóteles fica surpreendido de que aquilo não é aquela loucura que as pessoas ensinavam nas universidades e nas escolas é uma coisa muito mais sensata e muito mais razoável e sobretudo muito mais pequenina, quer dizer, porque as pessoas acabavam por esticar as coisas para aquilo dar dois ou três semestres leativos, as pessoas esticavam com promenores irrelevantes que na lógica propriamente tida do Aristóteles, sem sequer lá estão. Então houve esse aspecto curioso. É melhor explicar
José Maria Pimentel
qual era a lógica de Aristóteles, que no fundo foi a que vigorou, até salvo erro, o século XIX, não é?
Desidério Murcho
Sim, era a lógica predominante até o século XIX. Depois, a partir do século XIX, acontece um fenómeno muito curioso, que é os desenvolvimentos da própria matemática que começam os matemáticos, ou pelo menos alguns matemáticos que começam a ficar preocupados com os fundamentos da própria matemática e com os raciocínios dedutivos que eles fazem fora, digamos, da parte propriamente matemática que eles faziam. Imagine uma pessoa que faz aula degebra, uma pessoa que faz geometria. Quer dizer, quando a pessoa está a fazer cálculos especificamente da geometria, a pessoa usa os cálculos da geometria. Mas quando ela tem que fazer uma inferência dedutiva qualquer, o que é que ela fazia? Ela dizia, bom, isto segue-se daquilo. A pessoa não tinha um princípio matematizado, digamos, que explicasse por que razão é que aquela inferência específicamente é uma boa inferência. Era uma intuição. A pessoa olhava e dizia, isto é assim. E alguns matemáticos começaram a ficar preocupados com isso e começaram a tentar trazer rigor à matemática. O fenómeno curioso a partir de finais de séculos anuais foi a matematização da lógica aconteceu ao mesmo tempo que a logicificação da matemática. A matemática tornou-se mais lógica, a lógica tornou-se mais matemática. As duas coisas acabaram por confluir. E ao fazer isso, uma das surpresas históricas curiosas é que a lógica de base, a partir da qual nós depois construímos as outras lógicas, a lógica de base não é a lógica aristotélica, era a lógica dos históicos que tinha ficado esquecida durante aqueles séculos todos. Ainda hoje poucas pessoas sabem, poucas pessoas têm uma certa consciência de que a lógica foi inventada na Antiguidade grega, no pensamento europeu, por Aristóteles e tudo isso. Mas poucas pessoas sabem que, por aí, 50 anos depois de Aristóteles, os estoicos fizeram uma segunda lógica, que é diferente da lógica aristotélica e que essa sim é a base de todas as lógicas contemporâneas, incluindo é a lógica que faz correr hoje em dia os nossos computadores. É essa lógica que está a funcionar, não é a de Aristóteles. A lógica de Aristóteles é uma lógica de classes, é uma lógica acerca de todos os brasileiros são simpáticos ou todos os portugueses são europeus, uma lógica para frases deste género.
José Maria Pimentel
É o velho silogismo, não é?
Desidério Murcho
Sim, aquilo que nós hoje chamamos de silogismo. Isto também é uma curiosidade histórica interessante não sei se sabes que a palavra portuguesa silogismo vem da palavra grega silogismos diretamente mas a palavra grega silogismo sabes o que quer dizer de facto? Não. Dedução, apenas. Dedução, só quero dizer dedução. Aristóteles estava a falar de dedução e ele restringiu a dedução a uma certa classe muito pequenininha de deduções. Mas ele só chamava aquilo de dedução, Nada mais. Mas como aquela classe específica de deduções que foi tratada por Aristóteles ganhou muita fama, nós começámos a chamar Cilogismo àquela classe específica de deduções. Então, isto às vezes provoca confusão. Sabes como Alguns alunos e alguns investigadores que vão ler textos de filosofia ou textos de história de lógica, uma coisa qualquer do passado e era muito comum no passado as pessoas chamarem de cirurgismo a qualquer dedução até há séculos eu não havia visto isso acontecer e às vezes as pessoas perguntam mas isto não é um cirurgismo? As pessoas estão a dizer que isto é um cirurgismo. Não, isto não é um cirurgismo num certo sentido.
José Maria Pimentel
Sim, no sentido original. No
Desidério Murcho
sentido original não é um cirurgismo, porque a palavra só quer dizer dedução, nada mais. Ok? Então isto é bem curioso. Mas estávamos a dizer que a lógica de Aristóteles é uma lógica muito pequenina que tem a ver com estas palavras, que é a lógica ciologística que muitas pessoas conhecem, e aquilo inclui apenas 256 formas de raciocínio, das quais a maior parte delas são inválidas, quer dizer, é um número muito pequenino de formas, dessas 256, há um número pequeníssimo de formas que são válidas e só para termos uma comparação, quer dizer, na lógica estoica que foi feita depois de Aristóteles, qual é o número de formas dedutivas? Bom, nós passamos de 256 para infinito. Infinito, por assim dizer, é até um saltinho, não é? E porquê? Porque a lógica de Aristóteles, ela não está construída... Repara, uma coisa importante da língua, e que é provavelmente um dos saltos quânticos da humanidade, não é? Quando O Homo sapiens entrou pela primeira vez na via da língua sintaticamente articulada, que é até uma coisa curiosa para ser estudada arqueologicamente e tudo isso. Quando é que isso aconteceu? É uma coisa que os arqueólogos discutem, como é que isso está acontecido. Porque não surgiu diretamente com o Homo sapiens. O Homo sapiens apareceu no planeta sem linguagem sintaticamente articulada, articulada e depois de repente aparece a linguagem, que é a chamada revolução cognitiva, não é? Aparece a linguagem sintaticamente
José Maria Pimentel
articulada. Sim, sim, há quem associe à consciência, por exemplo. Exatamente. Ora
Desidério Murcho
bem, um dos aspectos que a lógica de Aristóteles não tem e que faz parte de qualquer linguagem sintaticamente articulada e que a lógica dos históricos tem é precisamente a capacidade para formar um número infinito de novas formações. Tu tens um método de formação de frases com base em operadores mesmo que tenhas só duas frases iniciais só com elas e com os operadores que tu tens tu agora formas o número infinito delas. Na lógica de Aristóteles isto não acontece, então é uma lógica enfim, que tem várias deficiências, tem coisas brilhantes também e eu ainda hoje não pardo-me sempre que eu leio as passagens de Aristóteles em que ele apresenta os conceitos fundamentais, nomeadamente o conceito de validade, e essa passagem eu cito no meu livro, eu não paro de ficar surpreendido, como é que é possível a pessoa descobrir... Claro, para nós hoje aquilo é uma coisa banal, o conceito de validade, mas descobrir do zero é uma coisa estranha, entendes? E sobretudo até se pensares que na Antiguidade Grega não havia estudos linguísticos, não é? Quer dizer,
José Maria Pimentel
o próprio Aristóteles foi... Não, ele construiu do nada, não é?
Desidério Murcho
Exatamente, do nada, não havia sequer. Ele próprio foi o primeiro a fazer... Ele próprio diz isso, não é? É, exatamente. Ele próprio diz isso. Ele próprio diz, olha, em todas as outras áreas, na Física, na Biologia, não sei o quê, na Astronomia, Ele baseou-se nos trabalhos dos seus contemporâneos, mas no caso lógico ele disse que não havia nada. Tive que fazer do zero. E isso é de facto surpreendente.
José Maria Pimentel
Talhá vale a pena explicar-se o que é validade neste contexto.
Desidério Murcho
A validade neste contexto é importante explicar porque a palavra validade é usada popularmente se significa apenas verdade, ou é uma coisa interessante, ou é uma coisa de valor. Mas no contexto da lógica e da matemática a palavra validade tem um significado muito específico e significa apenas que as premissas de um raciocínio qualquer, que são os pontos de partida no raciocínio, estão de tal maneira organizadas juntamente com a conclusão, que não há maneira alguma das premissas serem verdadeiras e a conclusão ser falsa. É isso que nós queremos dizer com validade. De maneira que, uma vez que, se o raciocínio for válido, isso não é a única característica que um raciocínio ou uma inferência tem de ter para ser boa ou urgente, para usar uma palavra semitécnica, mas se o raciocínio for bom, uma das condições necessárias é a validade. Não é a única condição, porque há relacioncinhos válidos que são uma porcaria. Mas a validade é uma das condições necessárias. E a validade é aquilo que é o objeto de estudo propriamente dito da lógica formal. Só estuda propriamente a validade. Se nós depois quisermos estudar as outras propriedades, aí já temos outros recursos que não a lógica formal propriamente dita, que é essa tal lógica que está matematizada. E aí está a validade. Portanto, a validade é aquilo que nos permite, com base naquilo que nós conhecemos, que é, imagina-se que uma pessoa descobre um conjunto de coisas e, portanto, a pessoa tem um conjunto de premissas, e a validade é aquilo que nos permite, com base naquilo que nós conhecemos, descobrirmos aquilo que não conhecíamos. A importância da validade é esta.
José Maria Pimentel
Aliás, isso é um bom ponto porque aí é que entra a versão dos cientistas e dos filósofos daquela época como o Francis Bacon à resolução aristotélica, precisamente porque ela só funcionava com base nos ingredientes de que tu já dispunhas, nessas premissas, enquanto que a ciência usa muito mais uma lógica indutiva e, portanto, empírica, não é? De exploração do mundo e de tirar padrões a partir daí. É mais ou menos isto, não é? Estou a descrever bem.
Desidério Murcho
Sim. A lógica aristotélica, ao longo do tempo, foi atacada por várias razões em vários setores. E um dos aspectos é que em plena Revolução Científica, digamos, havia uma certa concepção da maneira como se deveria fazer ciência, que era a concepção Aristotélica herdada da Idade Média. E segundo essa concepção, o raciocínio deveria ser a partir de princípios gerais para casos concretos. Acontece que a ciência é feita ao contrário em grande parte. E portanto havia um ataque, digamos, à metodologia aristotélica por se considerar que essa metodologia era apriorística. E de facto, um dos aspectos que eu acho mais interessante e surpreendente da Revolução Científica é que É uma inversão de tal maneira contra a natura que talvez seja isso que explica porque razão é que um instrumento tão poderoso para o bem-estar da humanidade, que é a ciência, tenha surgido tão tarde na história da humanidade. Repara, nós tivemos carradas de civilizações, os maias, os egípcios, a China clássica, nunca ninguém descobriu a ciência. Ok, eles tinham alguns setores com algum desenvolvimento, por exemplo, a astronomia era importante por causa dos calendários, os calendários eram importantes por causa das colheitas, a própria geometria, os gregos, o próprio Aristóteles diz que os gregos herdaram a geometria dos egípcios que tinham a geometria precisamente para poderem medir os terrenos antes de vir o Nilo a alagar aquela coisa toda, para saber onde é que estava o terreno do Chico e do Manelio Augusto. Em todas essas civilizações tu tens realmente alguns pequenos, pequenas ilhas, pequenos átomos, digamos, pequenos núcleos de desenvolvimento científico. Mas uma revolução científica e um pensamento científico mais genérico, como aquilo que aconteceu na Europa a partir do século XVII, isso não tens. Isso é de facto uma coisa, uma raridade. E uma especulação interessante é que é uma raridade porque é de certa maneira contra a natura. E um dos aspectos de ser contra a natura é este, é que exige uma humildade epistémica que é muito diferente daquilo que nós estávamos habituados com os filósofos. Os filósofos eram aquela coisa de que... Eles eram os donos dos princípios gerais. Agora era só uma questão de deduzir a partir dos princípios gerais a maneira como o mundo funciona. Faz-me lembrar aquela andota, não é? Em que está a chover e o gajo sai de casa tranquilamente sem guarda-chuva e o amigo pergunta e eu digo, está mas tu não levas guarda-chuva? E ele diz, não, não, segundo as minhas previsões não está a chover porque segundo os princípios fundamentais os meus princípios fundamentais da astronomia não chovem hoje portanto não me interessa percebes? Quer dizer, É aquela ideia de que primeiro tu começas pelo céu e depois fazes um conjunto de deduções e testes caros à Terra. E a revolução científica é um bocado ao contrário, que é que fazes coisas muito modestas. Muito modestas. Fazes as experiências do plano inclinado, medes cuidadosamente, registras cuidadosamente e tudo isto... Eu às vezes até me pergunto se não houverá aqui até um preconceito social, que é a ideia de que tu tens a filosofia e tens a ciência pré-científica, digamos assim, pré-galidaica, associada às classes elevadas, aristocráticas, que não podiam sujar as mãos, não é? E depois de repente tens a ciência real do galileu em que o gajo tinha que sujar as mãos, pá!
José Maria Pimentel
Sério? Sim, sim, sim. Não, completamente, aliás, é interessante falares disso porque eu gravei recentemente um episódio com o Henrique Leitão, que é historiador de ciência, e ele falava precisamente disso. E segundo ele, um dos fatores relativamente esquecidos para a descolagem da Revolução Científica, chamemos-lhe assim, que também é um termo historiograficamente disputado, foi precisamente a associação das elites, digamos assim, intelectuais às classes técnicas. E ele dava precisamente o exemplo do Galileu e do facto dele ir falar com os tipos dos canhões dos barcos e perceber como é que ele funcionava na prática e só essa experimentação, só essa ligação a quem fazia aquilo na prática é que lhe permitiu depois conceptualizar uma série de coisas que seriam impossíveis de uma forma puramente abstrata. Exatamente.
Desidério Murcho
Uma das coisas que eu admiro muito no projeto iluminista, e em particular no enciclopédio de Hidro, e isso é uma coisa que poucas pessoas sabem, que o enciclopédio de Hidro era extraordinariamente não elitista. E porquê? Porque ele ia pegar em artesãos, especialistas a fazer, por exemplo, cadeiras e muitas vezes a pessoa quase não sabia, enfim, não tinha aquela literacia para conseguir explicar-se adequadamente mas ele pegava numa pessoa, ia conversar com ele e construía um argumento para a enciclopédia baseado no conhecimento prático de como se fazia uma cadeira
José Maria Pimentel
bem feita. Curioso, não fazia ideia disso.
Desidério Murcho
É, poucas pessoas sabem disto acerca da... E como tu sabes, hoje em dia, felizmente, isto já passou um bocado de moda, mas estava em moda há aqui há umas décadas, dizer mal do iluminismo, não é? Tem toda a gente a dizer mal. Quer dizer, muitas vezes, sem sequer conhecer adequadamente o projeto libertador imenso que foi o iluminismo. Não quero dizer que não tenham tido coisas erradas e tudo isso, tudo tem coisas erradas, mas este é um dos aspectos extraordinariamente positivos do iluminismo, em particular da enciclopédia do Dida Roux, e que poucas pessoas sabem, e que tem diretamente a ver com isso que estavas a dizer. É aquela ideia um bocado elitista de que o intelectual não pode sujar as mãos na terra, não pode sair de casa para apanhar sol, não pode ficar bronzeado. A pessoa tem que estar só junto dos livros e não tem nada a ver com fazer experiências científicas, com sujar as mãos, com ir para o laboratório. E uma das coisas curiosas deste trabalho, digamos, mais chão, mais podestre, e era isso que eu te estava a dizer antes, é que isto exige, obriga, uma modéstia epistémica do Caraças. E porquê? Porque erramos o tempo todo, percebes? Nós só não erramos quando estamos ali, é tudo princípios, é tudo livro, citamos o livro e o autor e o período, não sei o quê. Ali nunca se erra, percebes? Agora, quando tu vais fazer coisas reais e queres montar um computador ou queres fazer um programa de inteligência artificial para reconhecer rostos humanos estás o tempo todo a errar. E depois corriges os erros, se fores inteligente, não é? Aprendes com os erros, não é? Mas isto é um bocado humilhante, estás a ver? E, portanto, eu penso que esse terá sido um dos fatores que levou as pessoas a ter uma imensa resistência pela revolução científica. E a lógica de Aristóteles sofreu um bocado com isso, porque as pessoas que eram, digamos, os heraldos da nova maneira de pensar olhavam para a lógica de Aristóteles como, digamos, era praticamente o instrumento central da velha maneira de pensar. E portanto a Vigna está fora. Bom, em um certo sentido a lógica das tautas não tem nada de especial que nós possamos aprender hoje com ela. Tem um interesse meramente histórico. Está completamente ultrapassada, tal e qual como a sua física.
José Maria Pimentel
E teve o problema também de teres chegado numa versão caricatural àquela altura, não é que tu aludias há bocadinho? Exatamente, porque trouxemos coisas piores ainda do que elas eram originalmente, não é? Sim, sim, é muito comum isso acontecer. Mas é engraçado isso que tu falas, por isso levarmos-nos-e até a outras questões. Porque, de certa forma, até ressoa com algumas coisas que se mantêm na contemporaneidade. Porque uma das coisas que a indução mostra, ou que a lógica indutiva mostra, é que nós somos francamente limitados, nós enquanto indivíduos, e não é por acaso que a ciência é uma empresa coletiva. Coletiva não quer dizer que coletivizada e anonimizada. Há excelentes cientistas, e é bom nós reconhecê-los, mas todos nós sabemos que temos um saber limitado porque a realidade é demasiado complexa para uma só pessoa a poder apreender. Já me vais dizer também a tensão que existia, mais tarde, já depois da Revolução Científica, entre a filosofia empiricista de base anglo-saxónica e a filosofia continental que era mais, se não em substância, pelo menos em espírito, essa lógica antiga mais introspectiva, racionalista e menos empírica e de contato com a realidade. Na
Desidério Murcho
verdade, há aqui também um mistério histórico curioso. Eu penso que David Hume, que exerceu uma influência gigantesca na filosofia de língua inglesa a partir do século XVIII, foi talvez o filósofo que mais influenciou o pensamento filosófico britânico. Depois, nós temos um período que é relativamente restrito, apesar de ter durado mais de um século, mas é um período muito limitado, muito bem delimitado do pensamento filosófico britânico, que é o período do idealismo hegeliano, que teve de facto um grande impacto no pensamento filosófico britânico inicialmente com o Bradley e Greene, depois com o MacTaggart e outros o último que representa tanto é o Collingwood, que já é contemporâneo de Russell e que é até uma figura bem interessante porque quando se lê os textos de Collingwood Parece que estás a ler um texto dos séculos XIX. Quando vais ler a data, mas isto foi escrito em 1930? O gajo parecia que tinha a cabeça lá no passado. Uma coisa esquisita, não é? Mas é o último grande dos idealistas britânicos. Ora, mas tirando esse período que está muito bem delimitado do idealismo britânico e que no fundo e curiosamente quase que numa imagem de espelho acaba por ser ainda uma reação a David Hume e isso é visível em Green e Bradley, eles diziam explicitamente que eles procuravam uma filosofia digamos mais humanista porque estavam um bocado preocupados com a entrada brutal da ciência na filosofia, digamos assim. Que no fundo era o espírito do próprio David Hume. Era a ideia de dar valor à ciência, à experimentação e a levar a sério a experiência humana e tudo isso. Agora, o que eu acho curioso nisto É que David Hume errou, mas errou feio no que respeita à indução, do meu ponto de vista. E, no entanto, o seu impacto foi largamente positivo, eu penso. Eu penso que há aspectos do impacto de David Hume no pensamento filosófico britânico que é negativo, nomeadamente a ideia de que existe um problema da indução, coisa que eu penso que é uma fantasia filosófica, não existe problema da indução, que tal como ele o formulou, que é só uma confusão. O problema da indução é a ideia de que há uma dificuldade fundamental em justificar uma inferência indutiva que não há no caso da inferência dedutiva. Isso é o que se chama o problema da indução em D21. A ideia é que tu consegues justificar por que razão é que tu inferes, por exemplo, o modus ponens, por que razão é que o modus ponens é válido, o modus ponens é se uma coisa é então outra, reafirmas a primeira, então concluís a segunda. Sim. E a ideia é que isto... Não há nenhum problema de fundamentação aqui mas quando tu fazes uma indução e tu concluís que vais lançar um dado por exemplo e fazes a previsão indutiva de que a probabilidade de sair o número 3 é 1 sexto, que isto agora levanta aqui um problema que é especial, filosófico, acerca de o que é que justifica a tua conclusão, ok? Que não consegues justificar adequadamente a tua conclusão indutiva, ok? Sim, é. E eu penso que isso é uma fantasia, penso que não existe problema. No
José Maria Pimentel
sentido de que teoricamente nunca tens a certeza absoluta da... Exatamente. Quando raciones indutivamente, sim. Exatamente. Portanto,
Desidério Murcho
o que é curioso é isso, percebe? Por um lado eu penso que ele errou feio em algumas coisas fundamentais, nomeadamente no chamado problema da indução, mas apesar de tudo teve aquele impacto que estavas a referir, que é, ele foi um dos responsáveis por uma filosofia um pouco mais com os pés assentos na terra, que é a filosofia britânica. Mesmo falando da filosofia britânica bem delimitada do idealismo britânico, Mesmo o idealismo britânico é uma coisa muito mais com os pés assentos na terra do que o próprio idealismo hegeliano original, digamos assim. David Hume, eu concordo contigo neste aspecto. Se nós quisermos fazer essa despistagem da diferença entre a chamada filosofia continental, que é um certo estilo de fazer filosofia e a chamada filosofia analítica que é um certo estilo diferente de fazer filosofia, talvez uma das raízes da diferença seja de facto o impacto que David Hume teve no pensamento britânico. E esse impacto foi largamente positivo, dizia eu, apesar de eu pensar que o David Hume é responsável por algumas coisas que me parecem nada positivas, mas teve o impacto positivo de empurrar os filósofos britânicos para uma filosofia que fosse um pouco mais com os pés assentos na terra, digamos assim. Que desconfiasse um pouco de grandes generalizações, grandes sistemas filosóficos grandiosos, muito palavrosos e sobretudo muito afastados dos resultados científicos. Então eu penso que esse foi o impacto positivo que teve David Duham no pensamento britânico, com Deus pelo
José Maria Pimentel
menos. Se calhar vale a pena, nós já falamos aqui várias vezes de dedução e indução, vale a pena fazer aqui uma pausa, para quem está a ouvir, para reorganizar aqui os conceitos?
Desidério Murcho
É, eu acho que sim, até porque é muito importante as pessoas compreenderem qual é a natureza dessas duas formas centrais de raciocínio ou inferência eu estou a usar estas duas palavras como sinónimas raciocínio e inferência e essas são as duas grandes classes de raciocínio a dedutiva e a indutiva mas qual é a diferença fundamental? Bom, há várias importantes, mas eu vou falar de uma apenas que eu penso que essa é a mais importante para os nossos ouvintes, que é o raciocínio dedutivo é o género de raciocínio que nós fazemos na matemática e é um raciocínio que é puramente conceptual no sentido em que se faz exclusivamente pelo próprio pensamento e faz-se exclusivamente com base no significado dos próprios termos. Nós definimos, no caso da matemática, por exemplo, definimos curiosamente a linguagem matemática que usamos e com base nisso faz-se os cálculos. E não precisamos de ir olhar para o mundo, pegar num telescópio ou num microscópio ou fazer uma experiência no laboratório, não precisamos de nada disso, simplesmente fazemos os cálculos com base nos termos curiosamente definidos na nossa linguagem. Isso é de...
José Maria Pimentel
E os termos, desculpa interromper, esses termos, ou seja, esses ingredientes resultaram aos próprios da observação do mundo? Podem ter resultado, em muitos casos, com certeza, Sim. Acontece
Desidério Murcho
apenas é que o trabalho inferencial que tu vais fazer com eles é independente dessa observação do mundo. É feita com base apenas na linguagem.
José Maria Pimentel
Exato, exato. Porque já estão estabelecidos em quatro princípios gerais.
Desidério Murcho
Exatamente. E talvez o ponto aqui, assim, a maneira mais simples de explicar isto é o seguinte. Pense na diferença entre a frase nenhum casado é solteiro e a frase nenhum casado é feliz. Bom, a primeira frase nós já sabemos que é verdadeira. Porquê? Devido ao significado das palavras. Nenhum casado é solteiro. Claro, dado o significado da palavra casado. Dado o significado da palavra solteiro, nós não precisamos de ir consultar qualquer coisa nos jornais ou na internet para descobrir se é verdadeiro ou é falso que nenhum casado é solteiro. Mas, quando a pessoa afirma que nenhum casado é feliz, isto agora é empírico. É empírico no sentido em que não há uma maneira puramente linguística de a pessoa descobrir se é verdadeiro ou falso. A pessoa tem que olhar para o mundo, tem que fazer inquéritos de rua, sei lá, qualquer coisa assim. A pessoa tem que olhar para o mundo. Ora, esta é a diferença entre a dedução e a indução. No caso dedutivo, nós sabemos de uma maneira puramente analítica, digamos assim, puramente linguística, que se as premissas são verdadeiras, a conclusão também é verdadeira. Nós sabemos isso de um ponto de vista puramente linguístico. Não interessa a informação do mundo que tu venhas trazer, que tu descubres amanhã, etc. Isso é tudo irrelevante. A partir do momento que sabes que é válido, vai continuar a ser válido e acabou-se a conversa e não há mais nada a falar. Agora, a indução é completamente diferente, porque a indução tem um caráter empírico. A indução depende da informação de fundo que tu tens sobre o mundo. E, portanto, os raciocínios, as inferências, as conclusões indutivas que tu vais construir dependem em grande parte da informação que tu tens sobre o mundo. De maneira que se alguma dessas informações está errada ou se tu descobres informação nova isso pode cancelar, por assim dizer, o teu raciocínio anterior. Eis um exemplo muito simples. Eu já dei o exemplo do dado. É um exemplo simples de previsão intuitiva. Eu tenho um dado na mão e digo-te assim, olha, vou lançar o dado, qual é a probabilidade que tu achas que tem de sair o número 2? E claro, tu sabes, probabilidade básica de tu atuar. A probabilidade de sair o 2 é, por simples, 1 sobre 6, porque o dado tem 6 lados e, portanto, é 1 sexto. E eu digo-te, ah, ok, parece uma previsão razoável. Mas agora imagino que tu descobres que eu comprei o dado naquelas lojinhas dos mágicos e o dado está viciado. Ahá! O que é que aconteceu agora à tua provisão indutiva? Foi cancelada por exemplo. Agora tu dizes... Agora não sei. Não sei qual é a probabilidade de sair do número 2. Estás a ver a diferença? Isto nunca acontece no caso de dedutivo. Se tu fazes uma dedução e é válida, acabou-se a conversa. Não interessa o que é que tu descobres amanhã. Agora, na indução não. Aqui está também aquele aspecto da humildade que eu estava a falar há pouco. É um aspecto diferente, mas é a mesma humildade aqui. Estás a ver? Nós temos de ter a humildade de estar cuidadosamente a registar o mundo e a ver como é que as coisas são para ver se aquela coisa destrói os nossos raciocínios anteriores. Tem para ali alguma informação empírica surpreendente que vai dar cabo daquilo que nós vimos feito antes.
José Maria Pimentel
Até porque o mundo é demasiado complexo, para uma pessoa poder apreender com 100% de certeza. E o outro exemplo que me estava a ocorrer relacionado com isso, menos do dia a dia, é que são as alterações climáticas. Há uma série de padrões que indicam que houve ação humana. Hoje em dia temos 99, 99% de certeza. Mas no limite estamos a fazer uma indução, no limite nós estamos a assumir que as coisas vão continuar a comportar-se como se comportaram até agora daqui para frente e em princípio vão, mas estamos sempre... A realidade pode sempre mostrar-nos que não é assim e há várias áreas, neste caso não será, mas noutras áreas acontece isso.
Desidério Murcho
E não apenas aqui, José, é que olha o que está a acontecer com o vírus. Exato. Acontece que um dos grandes desafios contemporâneos da comunicação de ciência ao grande público é a primeira coisa que o grande público tem que saber é da incerteza da ciência. Porque do ponto de vista do grande público, e muitas vezes os próprios meios de comunicação vendem as coisas dessa maneira, que é bom, ou o cientista realmente acerta a 100% e aquilo está tudo direitinho e nós aí podemos ter confiança.
José Maria Pimentel
Ou então uma bocaria já.
Desidério Murcho
Ou então não, deitamos no list que é a mesma coisa do que um gajo a fazer a dança da chuva. Percebe? E isto é uma falsa dicotomia. Isto é um falso dilema. As coisas não são dessa maneira. Nós podemos acertar mais ou acertar menos e podemos ter maior probabilidade de acertar ou menor probabilidade de acertar. Portanto, a medicina não é infalível. Mas tem uma muito maior probabilidade de acertar do que a homeopatia, que é uma fraude. Mas a homeopatia acerta às vezes.
José Maria Pimentel
É, é isso, esse ponto é muito importante. Deixa-me voltar à lógica dedutiva, que tu falavas há bocadinho, porque a questão da linguagem também cria aqui algumas limitações, porque a linguagem tem uma lógica inerente, te permite estabelecer apenas com base na linguagem uma conclusão certa, todos os solteiros não são casados, como sabe o Herodícias há bocadinho. A linguagem também é bastante desorganizada, não é? Por ser uma criação humana e muitas vezes tem fatores de contexto que tornam difícil aplicar de uma forma direta a lógica ao estudo da linguagem, ou por outro, ao estudo de declarações, não é? Determinadas frases que são ditas, mas que ou são ditas com uma palavra que é mais ambígua, ou são ditas num determinado contexto e, portanto, é preciso conhecer esse contexto para perceber o que é que se está a estipular ali. Portanto, muitas vezes o que acontece na prática, ou pelo menos é a ideia que me dá, é que não são tantas assim as situações em que tu consegues utilizar a lógica dedutiva de uma maneira direta.
Desidério Murcho
Eu diria que só consegues fazer isso perante alguns filósofos que já escrevem previamente tendo em mente a forma lógica das coisas que estão a defender. E portanto eles já escrevem aquilo pré-formalizado, digamos assim. A lógica dedutiva, nomeadamente os elementos fundamentais, centrais, iniciais da lógica nomeadamente a lógica clássica ou qualquer outra lógica não clássica, mas falando aqui da lógica clássica que é aquela que eu apresento no meu livro, esses elementos iniciais são, do ponto de vista da complexidade matemática, triviais. Aquilo que está ao nível da aritmética que nós aprendemos no ensino primário, não tem nada especial, não tem ali nenhumas operações algébricas complicadas e não tem nada disso, é tudo muito simples. Acontece que existe um certo preconceito contra a lógica porque a lógica é ensinada numa área que é vista por muitas pessoas como uma área das humanidades que é a filosofia e portanto a ideia é que a filosofia deveria ser uma coisa não matematizada ou não científica ou uma coisa qualquer assim e portanto isso levanta uma certa resistência que é mais psicológica do que outra coisa, porque a dificuldade técnica, digamos, ou matemática da lógica é quase nenhuma, não tem dificuldade nenhuma especial. Mas onde realmente está a dificuldade é naquilo que tu estavas a dizer, onde realmente está a dificuldade. Eu dou vários exemplos disso no meu livro. Onde está a dificuldade é nós pegarmos de um texto de Kant ou de um texto de Platão e nós vemos claramente que ele está a querer chegar a esta conclusão X mas como é que é exatamente o raciocínio dele? Como é que ele chegou lá? A conclusão é esta. Até mesmo, como é que ele chegou a esta conclusão? Não é fácil ver quais são exatamente as premissas, qual é exatamente o caminho inferencial que o levou a chegar àquela conclusão. Esse trabalho é um trabalho muito mais difícil do que a parte técnica da lógica. A parte técnica da lógica é trivial, não tem nada de especial. É uma coisa que te pode ensinar a uma criança de 12 anos. Mas uma criança de 12 anos não vai conseguir fazer esse trabalho com um texto de Platão ou de Aristóteles ou seja de quem for. Essa de facto é a parte difícil da lógica. Depois desse trabalho ter sido feito, a parte técnica da lógica que é aquilo que vai dizer se a inferência que tu reconstruíste e atribuíste ao autor se essa inferência é válida ou não. Essa parte, saber se a inferência é válida
José Maria Pimentel
ou não, é trivial. Claro, claro, claro. O trabalho de campo é que custa, não é?
Desidério Murcho
Exatamente, o trabalho de campo é que custa. Boa expressão.
José Maria Pimentel
Sim. É isso. Aliás, eu estava no outro dia até a ler um texto sobre o ensaio sobre a liberdade do Mill, do John Stuart Mill, que fazia precisamente esse trabalho de dissecar os vários argumentos que ele usa e a sensação que tu ficas é precisamente essa, os argumentos estavam todos lá, tu tinhas-los compreendido, mas é bastante diferente perceber, em tratos gerais, ou compreender exatamente como é que cada um está ligado, porque isto faz também poder compreender melhor se eles estão corretos ou não e quais são as forças e fraquezas que eles têm. Já lá vamos ao Stuart Mill, mas antes disso queria dar um pulo outra vez à lógica mais indutiva, chamemos-lhe assim, para falar de outro tema que tu me pediste, para falar que é a questão do Theorem of Bayes e a utilidade concreta que ele pode ter no nosso dia-a-dia, isso está muito ligado à visão indutiva. Porquê é que é importante sabermos mais, ou usarmos mais, o teorema de Bayes? Ou melhor dizendo, não é tanto o teorema de Bayes em si, que não é particularmente polémico ou complexo, mas sim a sua utilidade enquanto mecanismo de compreensão da realidade e até de decisão.
Desidério Murcho
É, poucas pessoas conhecem um pedaço que eu acho que é muito interessante da história, do pensamento, que é o facto do reverendo Thomas Bayes, que era um matemático amador, ele não era um matemático profissional, e na verdade aquilo que nós temos hoje e que chamamos de teorema de Bayes não é o teorema tal como ele o formulou
José Maria Pimentel
é uma adaptação foi
Desidério Murcho
uma adaptação depois foi formulada ou reformulada de uma maneira mais adequada por matemáticos posteriores mas poucas pessoas sabem que o Thomas Bayes estava reagindo a David Hume. É curioso. Ele é contemporâneo de David Hume e estava reagindo a David Hume. Ele achava que havia qualquer coisa de bizarro naquela mania que David Hume tinha de desconfiar da indução e ele considerava, com razão, que o conhecimento que nós obtemos por via indutiva e por via da experiência, quer dizer, nós temos que conseguir dar um tratamento matemático para explicar como é que nós vamos acrescentando conhecimento à medida que vamos obtendo novas informações. Quando nós olhamos para o mundo e vamos adquirindo novas informações com base no mundo, essas informações vão fazer vários tipos de coisas com as crenças anteriores que nós tínhamos, com as ideias anteriores que nós tínhamos. Vão, por exemplo, colidir com algumas delas, o que significa que vamos ter que abandonar algumas. Vão obrigar a reformular outras ideias que nós tínhamos, de por aí fora, ok? Portanto, este trabalho, que informalmente é muito óbvio, a pessoa vê que é isto que faz, que é isto o impacto que têm as informações novas que nós recolhemos do mundo, mas o ponto crucial aqui era como é que nós damos um tratamento mais matemático a estas informações novas que nós recolhemos do mundo. E em particular, como é que nós fazemos a atualização, o update, como hoje está mais na moda de dizer, porque é mais chique falar em inglês, como é que nós fazemos a atualização das nossas previsões indutivas? E isso é crucial. Porque, repara, aquele exemplo que eu tenho do dado. Tu olhas para o dado, não tens nenhuma ideia prévia acerca do dado e tu fazes uma previsão intuitiva puramente matemática neste caso. Contas os lados do dado, são 6, pegas na tua experiência geral das coisas, que é, tu estás habituada a que quando as pessoas lançam um dado o dado não comece a voar ou não explode ou um caso desse género. Portanto, a tua experiência geral do mundo é que quando tu lanças um dado o dado rebola umas quantas vezes e uma das faces fica para cima. E portanto tu olhas, né? Pegas nessa tua experiência geral, pegas na parte puramente matemática, que é ter 6 faces, e concluís muito obviamente, fazes uma previsão intuitiva muito óbvia, que é a probabilidade de seres o número 2 é 6. Mas agora eu digo-te, ok, eu comprei o dado numa loja de mágicos, que vende aquelas coisas todos que eles fazem em truques. E a preocupação do Baze é como é que eu agora faço a atualização da minha crença, a atualização da minha previsão intuitiva anterior. Eu primeiro fiz uma previsão intuitiva, que é a probabilidade é 1 sexto, mas agora não é mais 1 sexto. E agora como é que eu matematicamente faço isso? A habilidade dele é essa, é ele conseguir encontrar uma forma matemática de fazermos essa atualização das nossas previsões intuitivas. O exemplo canónico que é dado muitas vezes é uma pessoa que faz um exame qualquer de rotina e esse exame de rotina dá positivo a uma certa doença. Aquele resultado significa que há uma certa probabilidade de ter a doença. Então sabe-se que aquela doença tem uma certa incidência na população e sabe-se que quando a pessoa acusa positivo aquilo também tem uma certa probabilidade de significar que a pessoa realmente tem a doença porque o exame também falha por vezes. E agora a questão é, uma pessoa fica preocupada, imagina que é uma doença extremamente grave a pessoa fica preocupada e decide repetir o exame. A pessoa diz, é melhor repetir para ter a certeza. Agora, assim, intuitivamente nós compreendemos, se eu repetir o exame agora e der negativo, a gente respira de alívio, ficamos ok, está tudo ok, deu negativo. Mas se der positivo, o que é que a gente faz? E é aí que o tirema de Bayes é iluminante, porque a maneira como nós calculamos as probabilidades Está matematicamente bem conhecida e está matematicamente estabelecida pelo Tirama de Beis. O ponto crucial do Tirama de Beis é que ele dá-nos a medida matemática exata conhecida à probabilidade anterior de ter a doença dado o exame positivo e conhecida a estatística do número de pessoas por 10 mil habitantes, por exemplo, que têm a causa da doença, quando nós repetimos o exame, o Tirema de Beijos diz-nos exatamente agora, e se o segundo exame saiu positivo, diz-nos exatamente qual é a probabilidade, digamos, atualizada, o update, faz-nos o update da probabilidade. Nós agora passamos a saber qual é a probabilidade depois do segundo exame. E se fizermos um terceiro exame e voltar a sair positivo, o TMI de base também nos diz. E uma das surpresas aqui é que, mesmo com um exame médico que é, por exemplo, 90% eficaz, no sentido em que só em 10% dos casos é que nos dá falsos positivos. Mas em 90% dos casos, quando o exame diz que a pessoa tem doença, a pessoa realmente tem doença. Mesmo com o exame que seja 90% eficaz e uma doença relativamente não rara, por exemplo, uma doença que afete 100 pessoas em cada 10 mil, que é uma doença que não é nada rara, porque as doenças raras é do género 100 pessoas no milhão, ok? E mesmo assim não é tão rara assim. Com dados deste género A pessoa intuitivamente pensa que vai já fazer o testamento e a mesma pessoa pensa que está... E não é assim. O tiromadobês vai-te dizer que a probabilidade de teres a doença continua a ser extraordinariamente baixa mesmo que o teste seja muito bom. Se a probabilidade inicial de ter a doença por mil habitantes ou por 10 mil ou por 100 mil habitantes for uma probabilidade muito baixa, então mesmo que o exame tenha positivo, a probabilidade de teres a doença continuaria a ser extraordinariamente baixa. Isto é contra-intuitivo. Nós pensamos imediatamente que agora tenho 90% de chance de ter doença. Fiz o exame, tenho 90%! Isto não é assim! Agora, claro, isto é um exemplo para ilustrar a ideia, mas qual é, digamos, a moral daqui? A ideia geral, a lição geral que teremos daqui? A lição geral é que, E essa é a importância do Tirema de Peixe. Ela ensina-nos a atualizar adequadamente as nossas previsões indutivas com base em novos dados indutivos. E isto é fundamental para o desenvolvimento do conhecimento. Porque, como se tu estivesse a dizer, o mundo é complexo, o mundo é dinâmico, não é estático, não está paradinho. E, portanto, nós inevitavelmente formamos o melhor que podemos e o melhor que sabemos um conjunto de crenças indutivas, fazemos um conjunto de previsões indutivas acerca do que é que vai acontecer amanhã e acerca de como é que é melhor fazer as coisas e agora surge-nos um dado novo que nós consideramos relevante e agora temos uma maneira matemática de incluir esse dado novo nos nossos cálculos para fazer a atualização adequada da nossa previsão intuitiva. De maneira que isto é completamente fundamental para a compreensão do mundo em que vivemos. O mundo empírico em que todos nós vivemos.
José Maria Pimentel
É interessante nesse aspecto, porque põe muita tónica em tu não teres uma certeza absoluta, sobretudo em situações de incerteza o conhecimento é limitado e portanto estabelece uma determinada probabilidade que até pode ser muito elevada, mas não é 100%, e isso em certo sentido até vai contra a nossa mente evoluída em alguns aspectos, porque nós temos muita tendência para pensar nas coisas binariamente e estranhar, a probabilidade é estranha nesse sentido. É difícil comportarmos-nos de forma probabilística, porque nós estamos muito mais confortáveis até ao formar opiniões. Já lá vamos, estamos muito mais confortáveis em formar uma opinião contra ou a favor. É muito difícil formar uma opinião cadenciada de provavelmente sim ou provavelmente não. E o tirima de béis é interessante nesse aspecto.
Desidério Murcho
Exatamente, quer dizer, nós temos um certo maniqueísmo natural na nossa maneira de pensar, que é o tudo ou nada.
José Maria Pimentel
Exato, porque é muito mais confortável.
Desidério Murcho
É mais confortável, é mais simples, é mais fácil. Só que para termos uma compreensão adequada do mundo e para termos uma compreensão adequada daquelas coisas que são para nós relevantes nutrição, estilos de vida mais saudáveis, longevidade, doenças agora como estamos a ver com este vírus para nós sabermos reagir adequadamente a estes desafios que o mundo nos põe nós temos de aprender a pensar probabilisticamente. A probabilidade é o guia da vida, como diziam os iluministas do século XVIII.
José Maria Pimentel
Quem dizia isso não sabia.
Desidério Murcho
Porque a probabilidade foi desenvolvida a partir do século XVIII com os cálculos mais elementares de probabilidade, com coisas como dados e coisas assim, que é para onde começa a teoria da probabilidade, depois a teoria da probabilidade vai se desenvolver matematicamente ao longo dos séculos, até chegar à maturidade que nós temos já no século XX. E a teoria da probabilidade é o ingrediente matemático central do raciocínio indutivo bem feito. Não esgota, no sentido em que tu não tens, digamos, uma solução probabilística para as dificuldades indutivas, as dificuldades do raciocínio indutivo. Não dá uma solução do género que tens aqui a receita, faz o bolo. Não é assim. Mas é um ingrediente necessário para tu possas fazer previsões indutíveis ou generalizações indutivas bem feitas. Vais ter que ter um elemento probabilístico aqui. E portanto nós avançamos muito desde o tempo do David Newman e das dúvidas céticas que ele tinha acerca da indução. Nós hoje temos induções seguras, mas cá está, são seguras quê? A 100%? Não, não são seguras a 100%. Segura a 100% na verdade nem sequer a dedução ou a matemática é segura a 100%. Isto é uma ilusão curiosa. É que se tu vais na direção, digamos, de um ceticismo muito pronunciado de David Newman respeito à indução, se quiseres fazer a mesma coisa relativamente à dedução também fazes. Entende? Por exemplo, vou dar um exemplo muito simples. Cirologismo disjuntivo. Cirologismo disjuntivo é uma coisa que é conhecida desde os estoicos, é uma forma muito básica de inferência e é uma coisa que diz-se assim a Joana ou está em Paris ou está em Londres ela não está em Paris logo está em Londres isto é intuitivamente óbvio para toda a gente é válido intuitivamente para toda a gente e isto é válido na lógica clássica ou uma coisa ou outra mas não a primeira ou logo a segunda ok? Há lógicas em que isto é inválido. Em lógicas para consistentes isto é inválido. Agora põe-te a pergunta, mas então, afinal, é válido realmente ou não é? E tipicamente os matemáticos hoje em dia, os matemáticos que trabalham em lógica dizem é bom depende da lógica. Que é uma resposta um bocado... Sim, sim. És de estar para cá. É um bocado... Que raio! Depende da lógica? O foguetão vai cair ou não? Depende da física que tu tens. Claro. A pessoa fica a saber o que raio é esta. Bom, mas isto para dizer o quê? Para dizer que se a pessoa realmente for na direção do ceticismo de David Hume no respeito à indução, então se quiseres levantar dúvidas à dedução também levantas. E as dúvidas agora são as seguintes. Olha, nós temos várias teorias lógicas de lógica dedutiva contemporâneas. Temos a lógica clássica, claro, que é aquela que começa na Antiguidade Grega e depois desenvolve-se e atinge a maturidade a partir de finais do século XIX para início do século XX, mas depois temos essas lógicas paraconsistentes, tens as lógicas intuicionistas, tens carradas lógicas, lógicas difusas, tens carradas lógicas notivas hoje em dia. Qual delas é verdadeira? Ninguém sabe. Então, acabou a fita, estás na mesma.
José Maria Pimentel
Mas essa não unicidade da lógica hoje em dia tem que ver com o quê? Será que era outra pergunta que eu te queria fazer? É com a complexidade da realidade?
Desidério Murcho
Em parte, sim. Mas é também com o facto de a nossa ânsia de generalidade é como prometeu, não é? Dando-nos mal com a nossa ânsia de generalidade. A questão é a seguinte, se tu fazes uma lógica para um domínio relativamente restrito de raciocínios e restringes cuidadosamente as coisas, que é o que acontece na lógica clássica, restringes qual é o teu domínio de aplicação, ok, aquilo funciona perfeitamente bem. A questão é que quando olhas para as restrições e dizes assim E se eu não aceitar esta restrição A? Ou se eu não aceitar a restrição B? E aí, mais uma vez, é muito fácil Por isso, de repente, faz outra lógica Agora vê o problema, que é Poxa, agora tenho estas duas lógicas como é que eu sei qual delas é que é? E o ponto é, a resposta digamos pragmática, que é aquilo que em grande parte os matemáticos que trabalham em lógica dão, é a resposta mais razoável que é dizer isto não é uma questão de ser uma lógica correta e outra incorreta. Qual é o domínio de aplicação aqui? Vais aplicar aqui os fenómenos inferenciais que tu vais querer modelar são estes? Tem estas características? Ok, então usa uma lógica paraconsistente que é melhor. Não tem este? Ok, então usa uma lógica difusa que é melhor. Então usa uma lógica... Estás a ver? O pragmatismo dos lógicos contemporâneos às vezes soa a uma pessoa que tem formação filosófica um pouco chocante, mas num certo sentido é uma atitude muito científica, entende-se? Que é um pouco pragmática, que é, pá, olha, se calhar não há uma lógica universal. É por isso que eu estava a falar da ânsia de generalidade. Nós queríamos ter a lógica totalmente universal para todo o género de raciocínio dedutivo. Se calhar isto é um mito. Se calhar não existe tal coisa.
José Maria Pimentel
Sim. E tem que ver justamente com essa questão da complexidade da realidade. Complexidade aqui no sentido de ser uma conjugação de um infinito de dimensões que tornam impossível ter uma teoria única.
Desidério Murcho
Aliás, a própria ciência dá-nos uma certa ideia de uplicidade. Porque é um certo truque, percebe? Porque na realidade, quando tu vais falar com as pessoas que realmente trabalham na prática e tu dizes assim, olha, a física... Seja a física clássica de Newton, seja a física da Relatividade, está muitíssimo bem, e está, sobretudo a física da Relatividade, muitíssimo bem fundamentada e testada e tudo isso, e cada vez que se testa funciona muito bem. Mas quando tu vais aplicá-la para fazer uma coisa qualquer real, ou mandar uma coisa para Marte, na prática tu vais estar a ajustar, de vez em quando ajustas uma vírgula, de vez em quando ajustas para a esquerda, depois dás mais um empurrãozinho para a direita. Não é aquela precisão que nós imaginamos. Quer dizer, a precisão e o rigor das ciências é em grande parte, digamos, um artefacto da maneira como nós funcionamos. Aquela
José Maria Pimentel
convivência com o erro que o Thomas Kuhn falava, não
Desidério Murcho
é? Que eu acho que é uma das experiências fundamentais. Aliás, uma das marcas da inteligência da humanidade, ou pelo menos daqueles elementos da humanidade que têm alguma inteligência, é aprender com os erros. Aprender com os erros. E cá está, isto volta a impor de novo para o tiramadubase, entendo? Que é precisamente esta a ideia. Eu quero saber aprender com os erros. A minha previsão pode estar errada. Eu agora descobri um dado em perigo novo que mostra que está alguma coisa errada a minha previsão. E agora, como é que eu faço a correção? É isso que o tiromotiv base
José Maria Pimentel
ensina. E o tiromotiv base, em certo sentido, ensina também a não... Ensina-te a corrigir a tua expectativa, mas a não sobrecorrigir. Ou seja, tu tinhas aquela expectativa, ou te laías, se tivesse ido consultar os dados, e Não convém sobrecorrigi-la lá porque deu resultado positivo, porque na prática a probabilidade efetiva não é aquela. E isso é giro porque, por exemplo, isso tem aplicações interessantes na nossa vida quando conjugas isso com alguns viéses cognitivos que nós temos. Por exemplo, porquê que o ser humano é tão dado a ver milagres ou ovnis ou coisas mais ou menos paranormais onde elas não estão. Porque nós no fundo estamos a confiar nos nossos cientistas 100%. Se nós tivermos um raciocínio meio Bayesiano de perceber há uma probabilidade bastante baixa, vamos supor, de um ponto de luz a mexer no céu, no céu escuro, ser um óvnio. Portanto, se eu vir um ponto escuro a primeira vez é bastante pouco provável que seja. A probabilidade atualizada dessa experiência continua a ser bastante baixa.
Desidério Murcho
Exatamente. Essa é uma das lições fundamentais do teríma de Bayes e o Carl Sagan colocou isso de uma maneira memorável. Ele disse que para afirmações estrondosas precisamos de provas estrondosas. O que isso quer dizer é que se fazes a afirmação que tens uma doença e essa doença é extraordinariamente rara a prova de que tens essa doença tem que ser tanto mais forte quanto mais rara é a doença. E isso para nós é um bocado contra-intuitivo. A nossa tendência é bom. A doença é muito rara, mas eu fiz o exame. O exame tem 99% de chance de acertar. Eu estou tramado. Não. Se a doença for muito rara, mesmo que faças o exame e tenhas 99% de taxa de sucesso, a probabilidade real de tu tens de ter a doença é que continua muito baixa. Portanto acontece a mesma coisa aqui com os exames que estávamos a dar. Quando a pessoa vê uma luz no céu, qual é a probabilidade de ser um ovni? É muito baixa. Agora, o que custa também a compreender da mentalidade comum é que talvez seja de facto um ovni.
José Maria Pimentel
Sim, exato, sim, sim. Não é zero, claro. Não é
Desidério Murcho
zero, talvez, só que precisas de mais provas, precisas de observar melhor, precisas de ver melhor.
José Maria Pimentel
O problema do teorema de Bayes na prática, e eu já vi essa crítica ser feita, é que também ele próprio de uma forma mais meta, ou a utilização dele de uma maneira mais meta, pode ser vítima dessa nossa visão binária. A partir do momento em que tu começas a pensar dessa forma, é difícil tu não caires num excesso de confiança no próprio raciocínio que está subjacente e esqueceres-te que ele depende da probabilidade base, da probabilidade anterior, que em muitos casos não é conhecida. Nesse caso, do Isa Médica é sabido, mais ou menos estabelecida, que os x% da população têm uma doença qualquer. Mas há muitos casos em que não é, e tu estás a fazer uma guesswork, E aí também podes cair no outro extremo. Claro, claro, claro. É preciso ter atenção a isso.
Desidério Murcho
Nós temos que saber domesticar de uma certa maneira a nossa ignorância. Fazemos a estimativa mais razoável da que nós conseguimos fazer, mas é preciso não esquecer que é uma estimativa. Agora, deixa-me falar de um segundo caso, ou uma segunda lição, que eu penso que é muito importante, e que na verdade foi uma das coisas que o próprio Thomas Baise sublinhou, mas a sua aplicação matemática é bem mais difícil. Mas era uma das preocupações do Thomas Baise e eu penso que é um aspecto muito interessante. E que nos diz muito acerca do mundo contemporâneo e sobretudo com este mundo extraordinariamente polarizado politicamente, em que tu tens pessoas da extrema para um lado e tens as pessoas da extrema para o outro e há uma grande dificuldade em nós conseguirmos sequer comunicar uns com os outros. E isto é uma dificuldade de lógica real porque quando nós estamos a falar de indução isso é uma coisa que torna-se muito mais manifesta, acontece também no caso de dedução, como eu disse muito brevemente ao falar das lógicas não clássicas, mas no caso da indução é muito mais óbvio. E o que é óbvio é o seguinte, é que eu estou a falar contigo e se nós discordamos de um ponto qualquer, as nossas crenças de fundo interferem e muitas vezes nós nem nos apercebemos quais são essas crenças. Mas, claro, tu fazes uma afirmação que para ti parece-te uma coisa assim em termos intuitivos mas que tem uma certa probabilidade razoável e essa mesma afirmação eu acho que aquilo é a coisa mais improvável que eu ouvi na vida. E porquê? Bom, porque o meu conhecimento de fundo ou as minhas crenças de fundo são diferentes das tuas e aí nós vamos ter uma dificuldade em comunicar. A boa notícia, e esta era uma das coisas que o Thomas Bay sublinhava e que eu penso que é uma das peças interessantes, a boa notícia é o seguinte, é que se ambos formos racionais no sentido de atualizarmos as nossas crenças à medida que aparecem novos dados no mundo, vai haver uma convergência ao longo do tempo. Vamos convergir ao longo do tempo. Isso é uma notícia feliz, está a ver? Isso é uma notícia feliz. Quer dizer, se formos pessoas de boa vontade, apesar de eu sou de uma direita extremamente conservadora e maluca, tu és de uma esquerda extremamente maluca igualmente, Mas se formos ambos genuínos e honestos, e de facto eu sou de direita, mas é porque eu acredito que aquilo realmente é o melhor para a humanidade, e tu és de esquerda porque também acreditas que aquilo é o melhor para a humanidade, mas temos crenças de fundo diferentes acerca do que melhor funciona no mundo para proteger as pessoas da pobreza, para dar saúde às pessoas, para dar educação de qualidade, apenas temos crenças de forma diferente. Mas se formos realmente honestos nessas nossas crenças políticas, se formos realmente honestos, à medida que formos olhando para o mundo e à medida que formos incorporando novas informações e à medida que formos fazer estudos científicos acerca de como é que nós conseguimos
José Maria Pimentel
melhorar a vida humana, as nossas posições vão convergir ao longo do tempo. Isto é uma notícia feliz. Sim, isso é interessante, isso que dizes. Na prática, infelizmente, acaba por haver... Isso é um problema de jogos repetidos, não é? Ou seja, tu começas com uma probabilidade muito diferente e depois precisas de vários jogos, ou seja, várias iterações, para haver essa convergência. E muitas vezes não há tempo para haver essa convergência, embora do ponto de vista cultural e civilizacional tenha havido essa convergência em alguns temas, a questão da democracia, por exemplo, há coisas que hoje em dia, algumas delas começam a ser questionadas, mas também é outro tema interessante, mas são mais ou menos inquestionadas e que resultam dessa convergência. Mas na prática, muitas vezes é difícil haver esse diálogo e as pessoas estarem no mesmo espaço e irem fazendo essa atualização das suas próprias previsões, sem ter noção disso, para gerar essa convergência. É um problema, acho eu, da democracia atualmente. Até porque muitas vezes as pessoas partem para... E são as redes sociais hoje em dia que lembram esse problema, as pessoas partirem para tomar posições sobre um determinado tema em relação ao qual não sabem muito de uma maneira muito apressada e sem justamente dar ao trabalho de pensar nele com algum cuidado. Bom,
Desidério Murcho
até porque em muitos casos conta muito mais a expressão da tua identidade tribal, política, do que propriamente ser a tese que estás defendendo é verdadeira ou falsa. É por isso que se d inversões curiosas no discurso político ao longo das décadas. Quer dizer, as mesmas pessoas que são de uma certa área política e que eram extremamente críticas da ciência e que para elas era tudo cunho e era tudo faia rabam e era tudo assim e a ciência era a mesma coisa do que a magia e ainda... Que ótimo, a homeopatia, hoje em dia já são todas pró-ciência e já são todas contra a relativização da ciência. Porquê? Bom, porque a outra fação política foi nessa direção, foi na direção de relativizar a ciência e dizer que qualquer chico esperto sabe a mesma coisa que um cientista e, portanto, por uma questão só de identidade política, a pessoa mudou o bico ao prego, não é? Exato, exato. Então é preciso não esquecer que uma parte significativa do discurso político é desonesto neste sentido. As pessoas não estão honestamente a defender aquilo que genuinamente e honestamente pensam que é o melhor para a humanidade. Não, a pessoa está só a defender a sua tribo, ponto. E isto é extremamente desagradável, mas é verdade.
José Maria Pimentel
Mas isso põe em causa o teu postulado mais otimista de há bocadinho, não é? De que as
Desidério Murcho
pessoas... Não sei o que eu te disse, meu querido, que é preciso... Se as pessoas forem honestas... Ah,
José Maria Pimentel
ok, eu perdi. Peço desculpa. Peço desculpa, deixei passar isso, por
Desidério Murcho
suposto. Houve condenção, eu disse desde o início. Sim. Se nós formos honestos, tu tens certa crença e eu tenho outra, e temos crenças de fundo diferentes. Mas se honestamente acreditamos nessas coisas, discordamos porque temos crenças de fundo diferentes, mas ambos somos perfeitamente honestos nos nossos objetivos, que é melhorar a vida humana, então nós vamos convergir.
José Maria Pimentel
Mas essas crenças, a ligação dessas crenças de base às crenças aplicadas a um determinado assunto não podem ser tão rígidas de maneira a não permitir essa convergência. Vamos supor o exemplo de eutanásia, que falávamos no outro dia, ainda antes desta conversa. Se eu for crente, se eu acreditar em Deus e se acreditar que a vida foi dada por Deus, não é impossível. Mas se eu for um ortodoxo, eu diria que é quase impossível que eu venha a aceitar a eutanásia, mesmo que eu tenha empatia por aquela pessoa que está numa situação terminal e que os desejos seriam parar esse sofrimento e morrer, porque eu acho que a vida foi dada por Deus. Portanto, para mim, o único ente que pode retirar aquela vida é Deus, e não eu nem o médico.
Desidério Murcho
Bom, eu, sim, exemplos desse género costumam ser dados e isso é um pouco explorado até pelo trabalho em epistemologia do Alvin Plantinga e eu penso que as coisas não são assim tão pessimistas. Quer dizer, uma vez mais, se as pessoas tiverem boa vontade de realmente olhar com atenção e com sentido crítico para as suas próprias crenças eu penso que vamos conseguir chegar a uma convergência. É de facto uma questão de boa vontade. O que acontece muitas vezes é a identidade, digamos, tribal da pessoa que é muito mais importante para a pessoa do que propriamente a honestidade do ponto de vista, digamos assim, e de procurar um ponto de vista que tenha provas adequadas a seu favor e que seja genuinamente bem fundamentado e bem justificado. Portanto, sim, quer dizer, se tu me disseres que há aqui uma resistência psicológica fortíssima e há aqui um conjunto de viezes cognitivas que interferem e tornam o trabalho difícil? Eu concordo, claro que há. Mas isso significa apenas, do meu ponto de vista, que esses viezes cognitivos e que essas resistências psicológicas têm de ser cuidadosamente desmascaradas para que a pessoa tenha vergonha delas, tal e qual como uma pessoa tem vergonha de ser racista, por exemplo. E eu penso que esse trabalho não está a ser feito hoje em dia. Nós crescemos imenso no que respeito ao conhecimento dos viés cognitivos humanos a partir dos anos 70 do século XX, com os trabalhos de psicologia cognitiva e de pessoas que até trabalham noutras áreas, mas que depois começaram a trabalhar nessa área, que é o caso da economia, porque a
José Maria Pimentel
economia precisa de conhecer questões. O Kahneman e outros.
Desidério Murcho
É, o Kahneman e outros, que precisam de conhecer questões acerca de como é que as pessoas tomam decisões, etc. E o conhecimento imenso que nós obtivemos a partir daí não entrou ainda, digamos, no discurso público no sentido em que nós não compreendemos que somos poço de vieses cognitivos e, portanto, que a primeira atitude de honestidade que nós temos quando entramos num debate é perante a outra pessoa aportarmos a mão e dizermos, olha, somos os dois umas bestas, eu tenho os meus viés, tu tens os teus, vamos lá tentar fazer o melhor que conseguirmos, vamos tentar cooperar. E tu repara que quando se tem essa atitude as coisas funcionam razoavelmente bem. O desenvolvimento da ciência a partir do século XVIII é praticamente o milagre da humanidade. E se é uma coisa curiosa que as pessoas que estão fora das academias ou que não conhecem cientistas por vezes há uma certa tendência para pensar que o cientista é a pessoa completamente objetiva e completamente impersonal. O cientista é uma besta como tu e eu. A questão é que quando trabalham têm um conjunto de princípios éticos e metodológicos a que têm de obedecer, senão não conseguem fazer carreira. E o ponto é esse, quer dizer, todos nós somos bestas e temos vieses e somos idiotas, mas se nos esforçarmos, essa é notícia positiva eu acho, se nos esforçarmos e trabalharmos cooperativamente e encontrarmos plataformas de cooperação e plataformas de compreensão, nós somos capazes de ter uma convergência e às vezes, tu repara, podemos chegar a um ponto em que há divergências, mas que são divergências pacíficas, não é? Nós não temos que concordar todos com tudo. Nós podemos ter caras divergências. O meu exemplo favorito é o seguinte, imagina uma pessoa de outra geração, que foi educada de uma certa maneira e agora ouve falar esta coisa dos gays e eles casam e não sei o quê, a pessoa fica assim. É normal, eu acho, e psicologicamente compreensível, que a pessoa sinta assim uma certa coisa interior. Eu acho que isso é respeitável, não tem problema nenhum, mas ele não precisa de concordar. 100% de acordo, sim. Ele só precisa de olhar e dizer objetivamente assim é pá, realmente a mim custa, Mas eu realmente compreendo se a pessoa é daquela maneira. Quer dizer, ela vai ter a vida despedaçada porque ela não vai poder fazer a vida normal se não puder casar. Vai ter a vida completamente de pés para o ar, coisa que eu não tive, que eu pude casar com a minha mulher, pude fazer a minha vida, pude ter a minha reputação social e ela não pode. Portanto, a pessoa, por mais rígida que seja a maneira como ela foi criada, ela consegue chegar a um ponto em que ela consegue ter aquela bonomia de dizer, ok, sou a favor do casamento daquelas pessoas, ao mesmo tempo que continuar a dizer, pá, mas isso para mim é um bocado esquisito. Nós podemos chegar a um ponto em que há uma divergência que é pacífica.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. Aliás, eu concordo 100% contigo e parece-me que há um valor, que eu já não diria que é esquecido hoje em dia, mas que tem menos ênfase, que é justamente essa questão da tolerância nesse sentido lático. E implica a tolerância também com a opinião das pessoas. Ou seja, a sociedade boa é a sociedade que permite comportamentos plurais e não os restringe, mas tu não tens que obrigar todas as pessoas a celebrarem esses comportamentos. As pessoas têm a sua identidade, lá está, têm as suas experiências e tu forçares as pessoas a fazer essa convergência muitas vezes é contraproducente.
Desidério Murcho
Com certeza. Eu penso que uma das ideias que nós precisamos de tornar mais conhecida no mundo contemporâneo é o ideal do liberalismo clássico. Não todos os aspectos do liberalismo clássico. Porque o liberalismo clássico é uma resposta às guerras religiosas indetermináveis que agressaram na Europa. Imagina que é uma guerra que dura 100 anos. Bom, a guerra de 100 anos chama-se guerra de 100 anos porque durou 100 anos. Imagina a loucura! Duas gerações de seguida ou três, quatro gerações nascem e morrem na mesma guerra. Já é uma loucura completa. A Europa andou nesta desgraça durante séculos. Até os primeiros filósofos liberais como John Locke e outros terem formulado aquilo que é uma plataforma de desentendimento civilizado, digamos assim. É que dizer, nós não temos que concordar com tudo. Tu podes ser católico, eu sou protestanto, o outro é não sei o quê, o outro é não sei o quê... Nós não temos que concordar com tudo. Temos que conseguir garantir uma liberdade e uma tolerância no espaço público de maneira que as pessoas não se atropelem umas às outras. É só isso. Exatamente. Esse ponto é muito importante porque a
José Maria Pimentel
lógica subjacente a isso é que tu podes ter crenças privadas que podem estar em oposição a outras pessoas da mesma sociedade mas tu consegues construir uma sociedade sobre isso. E por isso é que tu tens... Aliás, é muito interessante porque o tema da religião, que é o tema que eu até já discuti no podcast, é a questão da existência de Deus, esse tipo de conversas que são conversas interessantes, para alguém como eu até atingiram-se se calhar outro extremo, em que são temas que praticamente não são discutidos, se tornam quase um tabu, mas que têm essa boa razão que está na base e que a pessoa hoje em dia já quase se esquece, mas que é precisamente deixar as pessoas terem as suas crenças, por muito bizarras que nos possam parecer e por muito erradas que nos possam parecer, respectivamente, não é? Está aos crentes e aos não-crentes, ou aos crentes de religiões diferentes, porque tu sabes de experiência histórica, civilizacional, que no momento em que aquilo foi matéria política as coisas correram mal.
Desidério Murcho
Exatamente. Podemos concordar e discordar em muitos aspectos. As coisas em que temos realmente de concordar e que não podemos discordar são os aspectos fundamentais dos direitos humanos, da proteção dos mais fracos, coisas que são de facto fáceis de concordar. Sim. Agora, em muitas outras coisas é fácil discordar e podemos conviver com essa discordância e isso não levanta problema. Podemos conviver com respeito e com essa discordância. Uma das coisas que me preocupa tremendamente no mundo contemporâneo e em particular em alguns ambientes, nomeadamente no ambiente académico, é que, quer dizer, tornou-se praticamente proibido ser de direita. Quer dizer, subitamente é como se ser de direita fosse ser imediatamente nazi. E isso é uma coisa muito estranha. Na academia norte-americana isso é muito discutido e formou-se até a Ethodox Academy, que é precisamente para lutar contra esse tipo de coisas, porque subitamente, no meio académico norte-americano, ser do Partido Republicano, que é um partido democrático, respeitável, com uma tradição, que lutou contra a escravatura e tudo isso, e subitamente ser do Partido Republicano é como se fosse a Nazi na universidade. Isto é uma coisa esquisitíssima.
José Maria Pimentel
Como é que é no Brasil já agora?
Desidério Murcho
Não é muito diferente. Curioso.
José Maria Pimentel
Em Portugal eu acho que a academia tem uma... A intelectualidade no geral tem como sempre e como em todo lado e por razões que são normais um viés à esquerda, não é? Ou seja, o intelectual não tem que ser de esquerda, mas é normal que o trabalho intelectual te gere uma predisposição progressista, digamos assim, no sentido de lado. E portanto, no fundo é preciso teres uma história, ou estás numa área específica, ou ter uma história familiar específica que tenha uma visão diferente. Mas acho que o contraste não é tão grande como nos Estados Unidos, sendo que nos Estados Unidos também foi uma evolução das últimas décadas, não foi sempre assim? Sim, quer dizer... O Jonathan Hyde, que é um dos tipos por trás do Heterodox Academy, conta essa história.
Desidério Murcho
Claro, exatamente. É uma coisa recente, tem a ver com essas coisas das políticas da identidade, porque a preponderância de pensamento de esquerda na academia norte-americana já existia há 20 ou há 30 anos só que as pessoas que eram de esquerda respeitavam as pessoas que eram do Partido Republicano quer dizer, achavam que isso faz parte da democracia e não tem nada de mal por isso infelizmente a pessoa é republicana, talvez nós a achemos aqui um bocadinho esquisito mas tudo bem, quer dizer, mas a pessoa é capaz de jantar com ela e... Mas nas últimas décadas isso tornou-se impossível, quer dizer, subitamente a pessoa quer do Partido Republicano em muitos casos perde o emprego, pura e simplesmente. E isso torna-se uma coisa pura e simplesmente bizarra, não é? Como é que eles imaginam o mundo? É só um partido?
José Maria Pimentel
Sobretudo produz fenómenos perversos como tu teres 70 milhões de pessoas a voer a votar no Trump que para essas pessoas, como de resto para muitos de nós, eu incluído, mas acho que muitas dessas pessoas estarão ainda numa situação mais miúpa em relação a essa realidade é completamente incompreensível. São realidades, lá está, na mesma sociedade, realidades a conviver que estão em planos completamente distintos. Mas é engraçado falares disso, porque isso relembra-me um aspecto que eu ia relaçar há bocadinho quando falavas da ciência. Gostava de saber o que é que tu achas em relação a isso. Eu acho que nós vivemos uma altura em que há uma confluência de várias tendências, uma das quais a internet e depois o crescimento das redes sociais, que de certa forma vieram baralhar o espaço público. E a ideia que eu tenho é que nós tínhamos convergido, nós, países do Ocidente, no sentido lato, tínhamos convergido num paradigma da democracia liberal que funcionava não porque fosse perfeito, mas porque de uma forma mais ou menos orgânica, quer dizer, partes obviamente não orgânicas, Partes do sistema tinham sido pensadas, mas outras resultavam da tradição e tinham resultado mais ou menos bem, levavam a que essas democracias liberais funcionassem bem, mas na prática assentando numa espécie de elite que ocupava o espaço público em articulação com o resto da sociedade. Então, tu tinhas uma democracia, mas na prática tinhas uma elite que ocupava o espaço público, elites de todo o tipo, políticas culturais, económicas, por aí adiante, e que no fundo funcionava como a infantaria da democracia, se tu quiseres. E, portanto, havia debate, havia debate de ideias, sempre houve debate de ideias, havia visões diferentes, mas entre essa elite e entre umas regras de jogo que tinham sido definidas, variando o consumo do país, com princípios mínimos, isto é mais verdade em países culturalmente homogéneos como Portugal, do que por exemplo no caso do Brasil ou no caso dos Estados Unidos, mas é mais ou menos verdade em todo lado. E de repente, com várias alterações que confluiram aqui, mas uma das... Porventura haverá outras e terás talvez outras ideias, mas uma das principais talvez deve ser as redes sociais, de repente o espaço público alarga-se, portanto há muita gente que não estava no espaço público e entra no espaço público, ou seja, passa a emitir opinião, passa a pensar sobre os assuntos, mal ou bem, do ponto de vista imediato, isto é um ganho democrático, não é? Porque passas a ter muito mais gente a interessar-se pelo debate político, mas ao mesmo tempo tens um efeito colateral que é criar bastante mais polarização, criar um debate de ideias mais superficial, mais extremado, mais radical, a ver ideias que lá está, que faziam parte das regras do jogo, aceitas pelas elites e que de repente são deitadas por fora. O Trump é um excelente exemplo disso, é um tipo que vem subverter várias regras que tinham sido aceitas, veja-se agora, por exemplo, o tempo que ele demorou a aceitar a derrota. E isso põe a nu a ausência de um sistema, ou pelo menos a inadaptação do sistema que existia na democracia para a realidade atual. Ao contrário, de certa forma, do que existe na ciência. O que a ciência fez foi conseguir criar um sistema que se sobrepõe aos defeitos dos indivíduos. E tu tens imensos casos de cientistas que eram péssimas pessoas e tentaram subverter todo o tipo de estudos e no final ganham a verdade. Umas vezes demorou mais tempo, outras vezes demorou menos tempo, mas ganham a verdade. Nós hoje em dia temos um desafio porque não é certo quem política muitas vezes vai ganhar a verdade. Exatamente.
Desidério Murcho
Eu concordo em grande parte com a televisão das coisas e é algo que eu próprio já manifestei em alguns casos. Quando caiu o muro de Berlim e foi por essa altura que o Foucault e a Ama depois publicou o livro dele, O Fim da História e oltimo Homem, a ideia que nós tínhamos precisamente era que tínhamos chegado a uma convergência que era basicamente a democracia liberal com apoios sociais e que isso era o intocável. Agora era só uma questão de discutir promenores e discutir coisas mais pragmáticas, mas a base fundamental era indiscutível. Já ninguém queria o comunismo, já ninguém era anticapitalista, já não havia essas coisas. E de repente tudo mudou. De repente vêm os creacionistas, que acham que a biologia não pode ser usada nas escolas, e depois vêm as pessoas da esquerda que acham que temos que acabar com o Microsoft e temos que acabar com as empresas todas e tem que ser tudo nacionalizado e que o mundo marxista é que é bom e as coisas mudaram radicalmente. E isto é um pouco assustador porque esta receita, digamos, liberal e a palavra liberalismo e a palavra liberal tornou-se um palavrão nos sectores mais radicais da esquerda contemporânea. E esta receita liberal, eu não vejo alternativa a esta receita liberal pura e simplesmente. O que é que nós vamos ter? Vamos ter guerras na rua entre criacionistas por um lado e bloco de esquerda por outro? Quer dizer, Eu acho isto um bocado preocupante politicamente. Eu concordo também com outro aspecto da tua análise, que é a ideia de que os meios de comunicação modernos trouxeram para o debate público pessoas que não tinham voz anteriormente. E isto destruiu a grande ilusão democrática, o apeseudo à democrática que se tinha. Eu penso que grande parte das conquistas económicas e civilizacionais e de justiça social que nós tivemos no último século deveu-se a uma elite, o que tu estavas a dizer, a uma elite política e comunicacional e uma elite de pessoas que realmente, digamos, dirigiam a democracia. E dirigiam a democracia nessa direção de apoios sociais, de justiça, de instituições melhores, mais estabilidade, mas era uma elite. E claro, o povão votava, mas o discurso público estava viciado à partida, porque o discurso público era controlado por jornalistas que pertenciam a essa elite, os próprios políticos, os canais televisivos, os canais jornalísticos, tudo isso estava controlado por uma elite. A partir do momento em que aparece um novo meio de comunicação, que são os meios de comunicação modernos da internet, de repente o que é que as pessoas descobrem? Descobrem que afinal o povão não gosta nada da democracia liberal e não gosta nada dessas coisas. Gosta basicamente de guerras. As pessoas... É preciso não esquecer uma coisa que é muito importante dizer. A mim, e provavelmente a ti, causa-te um certo desconforto ver as pessoas a espumar pela boca e a gritar umas com as outras mas as pessoas gostam disto é o grande problema é esse as pessoas gostam disto as pessoas gostam do sangue nas ruas as pessoas gostam de espumar entende? Porque repara as pessoas fazem isso com o futebol, por amor de Deus. As pessoas agridem-se com o futebol. Os seres humanos, a menos que sejam devidamente educados, são basicamente predadores perigosos e predadores tribais. É uma coisa extremamente perigosa. E, portanto, nós tivemos um conjunto de conquistas, direitos das mulheres, legislação antirracista, etc. Ou um conjunto de conquistas que resultaram de uma certa ilusão de democracia, porque no fundo não era bem uma democracia. Era uma democracia no sentido de que as pessoas votavam, mas as escolhas. Aquilo que as pessoas podiam votar, as escolhas já estavam pré-definidas e pré-limitadas. Agora que a seleca se abriu, a maneira mais clara que eu tenho de pôr isto é o seguinte, eu não acredito que as conquistas fundamentais, tanto da medicina pública, como do ensino público, como conquistas fundamentais de justiça social, que nós obtivemos a partir da 2 Guerra Mundial, eu não acredito que essas conquistas fossem possíveis hoje. Entende? Porque tu chegas à rua e dizes olha, agora nós vamos fazer vacinação universal, vamos acabar com o polio. Tu tens logo malucos no Twitter e no Facebook e nas ruas a manifestar-se contra e dizem que é uma conspiração dos laboratórios capitalistas. É para acabar... Quer dizer, não se consegue mais fazer nada. É extremamente difícil. E o pior é que as pessoas que fazem essas manifestações nem sequer é, na maior parte dos casos, e esta é a minha especulação, nem sequer é porque acreditem genuinamente naquilo que se são a dizer. É porque simplesmente aquilo faz parte da maneira que elas têm de ter uma voz pública. As pessoas são vaidosas, querem ter uma voz pública e repara o que acontece hoje em dia nos meios de comunicação. Quanto mais chocantes forem as afirmações daquele rapaz, o Ventura, mais ele aparece nos meios de comunicação. E é por isso que ele faz aquelas afirmações mutadas, por isso ele não acredita nelas. Ele faz essas afirmações porque é isso que lhe dá votos. Nos meios de comunicação contemporâneos há uma guerra de cliques. É extremamente difícil de tu ganhar dinheiro nos meios de comunicação atuais muito mais do que era quando havia apenas jornais e televisão. Porque hoje em dia a internet é como se fosse um modelo da televisão é um modelo dos cliques e da publicidade e portanto tens que ser sensacionalista e portanto o sensacionalismo é o que está a ganhar e é o que invadiu os jornais respeitáveis, o New York Times todos esses jornais ou são sensacionalistas ou, precisamente, perdem ainda mais leitores. E, portanto, o que é que uma pessoa como o Nuno Ventura descobre? É uma coisa de possível. Se ele ser às maiores barbaridades do mundo, as pessoas ligam, clicam, ligam a televisão, vão ver o canal, vão ver o vídeo no YouTube. Isso é o que ele precisa. Portanto, é assim que as coisas funcionam hoje em dia. O Trump, em grande parte, ganhou por causa
José Maria Pimentel
disso também. Sim, o Trump é o inventor. Ele
Desidério Murcho
dizia tudo o que era contrário. Quando ele ganhou, eu lembro-me ainda perfeitamente quando foi as eleições, foi uma coisa muito engraçada. Eu fui dormir tranquilo da vida, não sei o quê. Convincido que a Clinton ia ganhar, não é? Porque o New York Times, toda a gente anunciava que a Clinton ia
José Maria Pimentel
ganhar. Sim, sim, claro, o que foi que me aconteceu também. Tranquilo,
Desidério Murcho
não sei o quê. Passam os três dias, vou lá no New York Times. O quê? Ganhou o
José Maria Pimentel
Trump.
Desidério Murcho
Eu pensava que era uma, sei lá, que algo tinha acontecido especial. Quer dizer, os próprios jornalistas e os próprios previsores e aqueles técnicos todos achavam o discurso do Trump de tal maneira estrambólico que nem acreditavam que as pessoas pudessem votar naquilo. Mas a realidade acerca da natureza humana é esta. Nós pomos um certo verniz educativo nas coisas, pomos um certo verniz civilizacional nas coisas, mas o grosso da população, infelizmente, a melhor coisa que nós podemos fazer ao grosso da população é tirar-lhes o poder para que um poder iluminado possa ajudá-las a elas. Se forem elas a tomar decisões acerca das suas próprias sociedades, serão decisões terríveis para elas próprias. Essa
José Maria Pimentel
é uma tese provocadora, não é? E não é
Desidério Murcho
por causa dos cliques. E
José Maria Pimentel
não é por causa dos cliques. Está aqui perdida no meio de uma conversa. O meu receio com essa tese é, nós, a visão da elite iluminada, do Espírito Esclarecido e outras versões, foi uma visão que caiu por terra não por acaso e teve muito boa gente a defendê-la, com o Romuald Thomas Jefferson, por exemplo, que tinha uma ideia... Com o próprio Mill? Com o próprio Mill, exatamente, tinham visões desse género. E depois acabou por cair, por terra, porque se percebeu que a natureza humana também se aplica a essa elite, não é? Ou seja, o sistema anterior, quando eu digo sistema anterior, é o sistema em que nós vivemos atualmente, não é? Ele está desadaptado, não é? Já não está adaptado à realidade, que era um sistema em que tu tinhas uma elite que fazia parte do sistema, mas que tinha uma ligação ao eleitorado, portanto o eleitor votava e portanto tinha a possibilidade de remover governos, não tinha, era uma decisão direta nos governos, esse sistema funcionava precisamente porque essa elite era... Respondia ao eleitorado. Quando ela não respondeu, isso funcionou mal. E por isso é que se percebeu que em teoria tu podias ter uma espécie de despedaço clarecido, mas na prática isso nunca funcionava porque a natureza humana é demasiado perversa para isso acontecer tanto de um lado tanto de outro. Aqui o que me parece neste caso é que primeiro nós temos aqui algo de bom, ou seja, eu sei que é visível, eu sei que o que se vê, o que dá mais nas vistas é o mau, ou seja, é tu teres pessoas, sei lá, vais estar a abrir as caixas de comentários dos jornais e ver as enormidades que se dizem, ver muitas manifestações na rua e treta por uma linha. Mas a verdade é que tu produziste um efeito que me parece inegavelmente positivo que foi interessar pela polis muita gente que vivia a sua vida praticamente à margem. E isso não parece mau. Esse é um aspecto bom. Depois, claro que o problema é que... Mas isto podem ser dores de crescimento do sistema e de resto há casos históricos semelhantes até com a invenção da imprensa, embora, tendo em conta as guerras a que conduziram, não sejam necessariamente inspiradores, ou seja, podem ser inspiradores a prazo, mas tiveram consequências imediatas não muito felizes. Mas dizia isto, podem ser dores de crescimento em que tu, nesta fase inicial, as pessoas, não há uma filtragem dessa informação e portanto o que tu vês é as pessoas aderirem às opiniões mais simplistas e às opiniões mais mais radicais e dessa forma bastante tribal, mas para todos os efeitos aquilo que me parece é que tu podes construir aqui uma síntese que é melhor do que o que existia antes. Tu precisas é de novos mecanismos de mediação e depois também há a questão dos jornais. Os jornais, ou seja, as médias, faziam esse papel de mediação que agora deixaram de fazer, ou fazem bastante menos. No fundo, como estão a concorrer com Facebook e Twitter e afins, têm que jogar o jogo do clickbait, têm eles próprios que jogar esse jogo, mas tu precisas de novos mecanismos de mediação, mas que não passem para o lado de lá e que sejam ditatoriais, digamos assim, que sejam uma espécie de... Pois,
Desidério Murcho
nós temos aqui dois aspectos diferentes aqui. Em primeiro lugar, a palavra democracia é muito plural em casa de diferentes coisas, em diferentes contextos E um dos aspectos da palavra democracia é o aspecto eleitoral da democracia, que eu penso que é o pior da democracia. Outro aspecto da democracia é a ideia associada à justiça e direitos humanos. Esse é o melhor da democracia. Muitas vezes quando as pessoas usam a palavra democracia é isso que elas têm em mente. Têm em mente um sistema qualquer que não seja ditatorial, que não oprime as pessoas, que não explora as pessoas, que tenha respeito pelos direitos humanos, que procura igualdade entre géneros, por exemplo, que condena o racismo e tudo isso, que tenha tolerância religiosa e ideológica, etc. Essa é a parte boa, é aquilo que quando as pessoas usam a palavra democracia é aquilo com o qual eu concordo. Agora, a outra parte da palavra democracia é a parte eleitoralista da palavra, que é as pessoas elegerem pessoas. E aí vem a parte que eu estava a falar, que é que durante um certo período histórico, enquanto havia um conjunto de filtragens que estavam muito bem montadas, aquilo em que as pessoas podiam votar já estava quase pré-determinado a partir e, portanto, elas não podiam votar muito mal de qualquer maneira. E portanto os votos delas, ok, davam-nos uma ilusão de que era o povo que estava a mandar nas coisas. Na verdade não era, era uma pequena elite. Essa elite, seja por razões profissionais, porque eram pessoas genuinamente preocupadas com o bem comum, seja porque eram um pouco pressionadas se a governação não fosse muito boa, perdiam as próximas eleições, seja por uma razão, seja por outra, mas houve um conjunto de elites governativas a partir da Segunda Guerra Mundial que realmente construíram uma Europa que é um exemplo de tolerância, de democracia, de justiça, de direitos humanos, essas coisas. E isso foi tudo muito positivo. Mas agora, agora temos uma situação completamente nova em que as pessoas conseguem dar voz eleitoral a radicalismos políticos que ameaçam destruir o próprio equilíbrio delicado das instituições que nós conseguimos ao longo de vários séculos de experiência política. E esse equilíbrio é este, é que nós por um lado não queremos cair em governos populistas como foi populista o governo de Mussolini, é uma coisa que poucas pessoas sabem, o governo foi populista, o governo de Hitler foi populista. Portanto, nós não queremos cair nesse tipo de populismo que acaba por prejudicar o povo que os apoia. E também não queremos o déspota esclarecido, porque como tu estavas a dizer, a maior parte das vezes ele é mais déspota do que esclarecido. A maior parte das vezes, não é? E é um risco muito grande quando nós temos um déspota, até mesmo que seja esclarecido, porque depois as coisas começam a correr mal e nós não temos mecanismos institucionais pacíficos para tirar o gajo de lá. A única maneira é ao tiro, não é? Isso é muito mais complicado. E
José Maria Pimentel
porque o mundo também lá está. O mundo é demasiado complexo para um derrotar só ou mesmo um conjunto. Exatamente.
Desidério Murcho
Quer dizer, uma das coisas bonitas das instituições que nós recebemos nos nossos anos passados é o caso agora do Trump. Que se é uma mesta completa, pacificamente tem que sair de lá e acabou-se a conversa. E nem sequer é preciso puxar por uma arma. Isto é bonito. Há dois séculos não era assim. Ela agarrava-se com unhas e dentes e havia uma guerra mesmo. Seria a única maneira de o tirar de lá. Portanto, nós temos um conjunto de instituições que foram fruto de ajustes cuidadosos ao longo dos séculos da experiência política. O que estou a dizer é que estas instituições que nós temos precisam de ser reforçadas e repensadas relativamente ao mundo contemporâneo do clickbait e ao mundo contemporâneo das opiniões políticas tribais e corrosivas e tóxicas. Esse é um aspecto. O outro aspecto é que nós herdámos uma ideia um pouco, digamos, lírica a que tu deste voz na tua intervenção aqui, que é a ideia de que é coisa maravilha, a intervenção pública, chama-se isso por vezes o republicanismo aristotélico, que é a ideia de que se as pessoas participarem da polis, se as pessoas participarem da vida política, que isso é bom, que isso é realmente a genuína democracia. A genuína democracia é que toda a gente tem uma voz a dizer quando a gente vai decidir se legalizamos o aborto ou não legalizamos o aborto, se legalizamos a eutanásia ou não legalizamos a eutanásia, e depois fazemos um referendo, e depois fazemos um debate na televisão, e depois não sei o quê, e depois o povo escreve coisas. Olha que beleza! E tudo isto é mentira. Ok? E tudo isto é mentira no sentido de que algumas pessoas que estudam esses assuntos realmente têm uma palavra a dizer relevante e construtiva e que vai ser positiva para a sociedade e vai ajudar a sociedade a melhorar, são os especialistas que trabalham nas áreas e que estudaram essas coisas, a generalidade das pessoas, vai acontecer duas coisas. Em primeiro lugar, vão dizer barbaridade só em termos de clickbait e só em termos do seu próprio sucesso no Twitter e de seguidores no Twitter, porque é aquilo que lhes dá fama porque as pessoas são vaidosas. E em segundo lugar, e nisto acho tudo desempírico, se acha sobre isto, as pessoas corrompem-se quando fazem política. Corrompem-se no sentido em que tornam-se desagradáveis, tornam-se hooligans. Tal e qual como os partidários do Sporting ou os partidários do Benfica ou de outros clubes qualquer. As pessoas tornam-se extremamente tribais e extremamente desagradáveis.
José Maria Pimentel
Mas isso é válido para todos, também para as elites, se quiseres, não é?
Desidério Murcho
Mas o ponto crucial é que se nós conseguirmos fazer instituições... Um dos meus exemplos preferidos é o exemplo da medicina. Poucas pessoas sabem que a medicina era uma camada de assassinos até o século XIX.
José Maria Pimentel
Matavam mais do que...
Desidério Murcho
Eu lembro de ser estudante e eu achar graça à arrogância de Descartes. Toda a gente mais ou menos conhece a história de Descartes. Descartes foi convidado pela rainha da Suécia, que aliás era uma excelente filósofa, não é? Que era talvez melhor filósofa do que o próprio Dakar, levantou-lhe objeções de morte que o Dakar... Depois de muitas respostas, o Dakar teve que confessar Ah pá, está bem, olha, eu não sei responder a isto Eu não tenho resposta nesta objeção, não é? Mas, quer dizer, o Dakar foi para a Suécia e dava aula às 5 da manhã, lá que é, imagina, aquele frio danado da Suécia, era de noite ainda e não sei o quê. E o gajo apanhou pneumonia. E uma das coisas que eu achava engraçado quando era estudante, ao ler cinco coisas sobre Dakar e tudo isso, é que o gajo, a Rainha pôs imediatamente ao dispor dele o médico oficial da corte, quer dizer, o médico dela, o médico que falava ao serviço do senhor da carte, que ela tinha convidado o homem para ir lá e tudo isso. E ele recusou, recusou, não há nada médico, e fazia o seu próprio tratamento. Receitava o tratamento e o seu criado aplicava-lhe o tratamento. Eu lembro-me de ser estante de ler e dizer-lhe, mas o gajo era maluco, o gajo receita o seu próprio tratamento. O que é que o gajo sabia de medicina? Mal sabia eu que naquele tempo a medicina era tão má, mas tão má que realmente aquilo que ele estava a fazer era perfeitamente razoável porque o médico, o suposto médico da corte não sabia mais acerca do corpo humano nem acerca da pneumonia nem acerca das doenças do que ele e portanto, o que é que aconteceu a ele como aconteceu a Carradas e todas as pessoas naquele tempo quando ele finalmente já estava tão doente que já não era capaz de, ele próprio, fazer o seu tratamento. O médico finalmente entrou em cena e qual era o curativo principal dos médicos naquele tempo?
José Maria Pimentel
Sangrar. Sangria.
Desidério Murcho
Exato. Chamam-lhe sangria. Sangrava o gajo. Quer dizer, claro que morreu mais depressa ainda, não é? Portanto, isto só para dizer, isto é muito engraçado, e é grave, mas é engraçado. Mas é só para dizer o seguinte. Eu estava a dar o exemplo da medicina. A medicina era uma completa fraude até ao dialbar do século XX, até a se tornar científica, até porque nem sequer havia ativido os germes. As pessoas não sabiam que havia germes sequer. Portanto, tudo o que é doenças infecciosas, aquilo que passava debaixo da nariz, eles não sabiam nada. Mas tinham mesmo aquele prestígio todo, tinha aquela atitude de elite, aquela coisa toda. Era só aparência. Eles, na verdade, não sabiam nada de especial e matavam mais pessoas do que salvavam. Uma pessoa que tivesse doente em meados do século XVIII ou mesmo já no final do século XIX era preferível não ir ao médico, até porque o médico andava infectado com as doenças dos outros doentes todos, era preferível não ir ao médico do que ir. A probabilidade de morrer ou de ficar pior indo ao médico era mais elevada do que se não fizesse nada e precisamente o corpo ao reage ou não reage e a pessoa, oh, safa ou não safa e acabou-se. Mas isto mudou. Hoje em dia temos uma medicina maravilhosa. Temos coisas que eram impensáveis no tempo de Descartes. Operações de coração aberto, transplante de órgãos. Quer dizer, Temos um conhecimento microscópico dos órgãos humanos, dos germes, temos vacinas. É uma coisa inimaginável. Portanto, a doença evoluiu muito. Mas os médicos continuam a ter um poder gigantesco. Eu vou ao médico, o médico diz uma coisa e eu sigo aquilo mais ou menos religiosamente e eu apesar de tudo ainda tenho uma certa formação posso ir à procura de informação médica na internet revistas académicas e tudo isso sobretudo se ela me der uma indicação um bocado mais exótica e esquisita mas a população que tem outras qualificações académicas que não tem as qualificações académicas que eu tenho, fica muito mais vulnerável. E, no entanto, a profissão funciona bem. São casos raros de malevolência médica. Eu nem sequer me lembro de nenhum caso recentemente. De más práticas de negligência médica, sim, e são algumas. As pessoas erram, enganam-se, mas são relativamente reduzidas. Dado o poder imenso que eles têm sobre a vida de um ser humano, que está completamente desprotegido perante o médico, a taxa de sucesso da maneira como a instituição médica está construída é muito boa. Uma das lições aqui no respeito à instituição médica é que funciona muitíssimo bem. E é, digamos, o ideal do déspota esclarecido é um pouco... Foi concretizada na profissão médica. E há outras profissões que são assim também. Quer dizer, há um elevado grau de profissionalismo por parte dos médicos, o respeito que eles têm pelos pacientes, o cuidado que eles têm, a prática médica é cuidadosamente vigiada para que eles não abusem do poder imenso que eles têm sobre as pessoas. E claro, haverá sempre coisas que podem e que devem ser melhoradas. Em Portugal, há uns anos, houve o escândalo dos laboratórios que pagavam coisas aos médicos para os médicos receitarem medicamentos de um certo laboratório em vez de outro laboratório, coisa que é proibido noutros países, nomeadamente nos Estados Unidos. Os laboratórios não podem pagar coisas aos médicos por razões óbvias. Claro, claro. E, portanto, há sempre questões que nós podemos melhorar na profissão médica. Mas eu uso a profissão médica como um exemplo, precisamente porque o médico é uma espécie de um déspotas coercido, no sentido em que ele tem bastante poder, mas esse poder é benéfico e é bem usado. Nós precisamos de ter instituições deste género. Em princípio, é claro que há erros e tudo isso. Porque a questão aqui, e isto é muito importante aquilo que disseste, a questão aqui é que a vigilância é contínua. Isto não é automático. Isto não é como um programa de computador que a gente programa, põe aquilo a funcionar e vai dormir. Não, a vigilância é contínua. Se tu baixares as defesas, mais cedo ou mais tarde a medicina vai dar errado. Tens de continuar. E basicamente aqui a maneira como nós desenhamos as instituições tem que ter em atenção aquilo que funciona em termos de incentivos e desincentivos. Se tu tiveres uma instituição, seja política ou mesmo profissional, e cujo incentivo principal, e é praticamente único, seja o desejo benemérito de fazer bem à humanidade, isso vai dar errado. Isso não é assim a psicologia humana. Sim, algumas pessoas como Nelson Mandela são dessa maneira, ok? Mas a generalidade...
José Maria Pimentel
Sim, mas não ganha escala assim, claro.
Desidério Murcho
Claro, isso não escala, quer dizer... Não tens que pensar em termos de curva de galso. Tens os psicopatas do lado, não é? Aqueles maluquinhos completos, não é? E depois tens as pessoas realmente como o Peter Singer ou Nelson Mandela, que são realmente anjos na Terra, mas depois tens o grosso da população, que nem é psicopata nem é particularmente angélico, portanto a pessoa basicamente responde aos seus interesses. Se conseguir conciliar os seus interesses com uma coisa positiva, que até a pessoa se sente bem com isso, melhora. Mas basicamente a pessoa responde aos seus interesses. Portanto, nós temos que construir as profissões e as instituições de tal maneira que a pessoa normal, a pessoa comum, respondendo aos seus interesses, não consegue fazer mal à sociedade e pelo contrário, para atender aos seus próprios interesses, tem que fazer bem à sociedade. 100% de acordo. Isso é o ideal. Ora, nós temos isso em algumas profissões. A profissão médica, os engenheiros, a mesma coisa. As pontes andam por aí a cair. Portanto, nós precisamos de aprender isso e fazer a mesma coisa noutras profissões, em particular na profissão de político. Ora, a profissão de político, nós herdámos aqui várias distorções na profissão de político, porque repara, a sanção que o político sofre é a sanção eleitoral. Mas o problema é que se ele tomou medidas que vão prejudicar as pessoas daqui a 15 anos, já é tarde demais. Quando as pessoas começarem a sentir na pele o prejuízo, já ele fez o mal que fez e, de repente, já ele tem um emprego numa empresa pública qualquer ou numa empresa privada qualquer que tinha negócios especiais com o Estado. Portanto, nós precisamos de repensar muito bem e cuidadosamente a profissão de política e a maneira como a profissão está montada. E hoje em dia é basicamente um conjunto de amadores, algumas pessoas muito bem intencionadas, eu não duvido disso, eu não duvido que haja ministros e primeiros ministros e presidentes e deputados que são pessoas que realmente, genuinamente querem o melhor para a população e procuram fazer o melhor. Mas cá está, isso é o Nelson Mandela lá de política. É a generalidade. Estão ali para seguir a sua carreira, ganhar o seu dinheiro e fazer a sua vida e depois ao fim de semana ir divertir-se com os amigos, não é? E o problema é que não temos os incentivos e os desincentivos do lugar certo. Legisla-se da maneira completamente mais arbitrária e louca que seja possível imaginar porque não há esse incentivo. Isso é uma coisa que tem que ser estudada cientificamente, curiosamente com sociólogos, com pessoal que faz ciência política. Isto para dizer o quê? Para dizer que eu não acredito que uma saída baseada nos moldes democráticos e eleitoralistas que nós temos hoje em dia, que isto tenha um grande
José Maria Pimentel
futuro. Então deixa-me responder à tua provocação. Porque estamos aqui a falar de duas coisas diferentes. Nós tínhamos um modelo antigamente que tinha várias coisas boas, ao ponto de ser a melhor coisa que tínhamos criado, mas tinha vários defeitos e eu sou cada vez menos fã daquela frase célebre do Churchill. Ou por outra, resigno-me cada vez menos com a frase célebre do Churchill, que é a democracia é o melhor sistema, depois de todos os outros com os seus defeitos. É evidente que é, depois dos outros que já existiram, mas não quer dizer que não se possa construir melhor. Mas apesar de tudo, há aqui duas coisas. Uma é reconhecer os defeitos que o sistema tinha, e que se calhar em tempos de bonança não eram tão visíveis, mas estavam lá. Outra questão é as virtudes que o sistema tinha ou aquilo que funcionava bem no sistema e que com as alterações que houve no terreno entretanto deixaram de funcionar assim tão bem. Portanto, no fundo nós temos aqui dois desafios. Esse desafio que tu levantaste, estou 100% de acordo, mas já existia. Mas depois há o desafio contemporâneo, que é o desafio criado por ventura, alterações culturais, quer dizer, confluências de várias tendências históricas que vinham, umas económicas, outras sociais, outras até políticas, mas também pela questão das redes sociais, e que é causado, parece-me, por sobretudo, duas coisas que deixavam de funcionar como funcionavam. Um, era essa espécie de elite que respeitava determinadas regras do jogo. Lá está, porque como era uma elite e, no fundo, estavam nesse jogo no longo prazo, também beneficiavam dessas regras e, de repente, isso é subvertido e os Trumps ou os Andrés Venturas da vida entram em jogo, subvertem completamente essas regras, dizem coisas só para provocar e toda a gente fica apanhado desprevenido. E por outro lado, os mecanismos de mediação que tu tinhas de informação que faziam com que notícias falsas ou notícias simplistas ou informação que não era científica ainda fosse transmitida para as pessoas e portanto tu não vias nos jornais antigamente, ou na maioria dos jornais, atenção, sempre houve tabloides e sempre houve jornais simplistas, mas havia um crivo, não é? E nem toda a informação ia passar às pessoas. Hoje em dia tu não tens isso, não é? Isso criou aqui um problema que alimenta informação falsa, alimenta visões deturpadas da realidade, alimenta radicalismos, alimenta uma série de coisas. Mas ao mesmo tempo, e esse era o meu idealismo, como é que tu dizias? Republicanismo Aristotélico, não é? Ao mesmo tempo, isso aliado também a um aumento da literacia, não é? Isto vai beber também o aumento da literacia, trouxe muita gente para o espaço público. E eu percebo as tuas críticas de que o país ideal não é necessariamente o país em que toda a gente participa, como se fosse Atenas, como se fosse a Atenas clássica. Mas acho difícil disputar que é melhor, ou que um país melhora, quando mais gente entra no espaço de discussão pública e mais gente se interessa pelos assuntos. Até porque, mesmo com esses defeitos da democracia liberal existente, atual, existente antes destas mudanças, mesmo com os virtuses do respeito pelos técnicos, pelos especialistas em determinadas áreas, há ali um equilíbrio tênue em que esses especialistas nunca funcionaram de forma completamente solta, liberta do resto da população. Ou seja, a medicina não dá torto e não entras em teorias eugénicas e coisas do género, também porque há uma espinha dorsal democrática e de... Accountability, falta uma expressão correta em português, em relação ao eleitorado e de vigilância, mesmo daquilo que os especialistas dizem. E isso é mais visível ainda em áreas de, sei lá, como economia, por exemplo, em que a realidade concreta é bastante mais difícil de discernir e, portanto, o especialista vale menos do que nas ciências, não é? E, portanto, aqui, a minha dúvida é como é que nós conseguimos, sem perder este ganho, que me parece que é um ganho de teres mais gente a entrar no espaço público, reconstruir instituições que permitam não entrar nesta lógica das pessoas terem crenças completamente infundadas e visões radicais em relação às coisas. E isto antes de irmos às melhorias da democracia, que me parece que é outra... Quer dizer, podemos fazer as duas numa assentada, não é bem entendido, não é? Mas eu acho que há aqui um problema que antes de melhorarmos a democracia temos que restituir ao Estado original, se quiser.
Desidério Murcho
Pois, eu penso que há um ponto de vista muitíssimo comum, não é? Quer dizer, a ideia, precisamente, que se chama por vezes o republicanismo aristotélico, não é? Que é a ideia de que a participação política enobrece as pessoas e é bom que as pessoas participem nas decisões que afetam os seus próprios destinos e as suas próprias sociedades, é a ideia das pessoas se autogovernarem, digamos assim. É um ideal que eu partilhei durante muito tempo até começar a ler algumas coisas e ter mudado radicalmente a opinião. E eu penso que, uma vez mais, esse ideal é produto de uma elite intelectual que não olhava com atenção para os verdadeiros e genuínos interesses das pessoas mais comuns. Os verdadeiros e genuínos interesses das pessoas mais comuns não é propriamente estar a decidir coisas acerca das leis e da sociedade e não sei o quê. Eles querem basicamente ter uma vida boa. E a ideia de que a participação nos processos políticos e ter que estudar as coisas relativas a decisões que isso teria, digamos, que seria uma coisa agradável para essas pessoas é empiricamente infundada e é previsivamente falsa. O ponto crucial aqui é que... Eu compreendo o teu ponto de vista, porque eu já tive esse ponto de vista, não é? É como se nós projetássemos um pouco a nossa postura perante o povo, digamos. O meu exemplo favorito, estás a perceber? Isso percebo, percebo onde quero chegar sim. O meu exemplo favorito aqui é o 25 de Abril de 1964 em Portugal. Foi uma coisa maravilhosa, é uma coisa que me comove ainda hoje. É claro que teve coisas menos maravilhosas e tudo isso, mas no cómputo geral foi uma coisa maravilhosa, um povo mantido na miséria por um ditador analfabeto e bruto e aquelas coisas... Bom, ele era professor universitário, mas é possível ser analfabeto e ser professor universitário, como se sabe. E que era uma besta completa, não é? E manteve o povo na miséria, fez perseguição política e, quer dizer, teve algumas coisas boas. Ele pacificou o país porque havia um clima louco em 1928, quando ele tomou o poder, não é? De terrorismo e tudo isso. Mas o ponto crucial é que o 25 de Abril foi uma coisa maravilhosa. Mas qual era a ânsia principal do povo real, do povo comum, com o 25 de Abril? As pessoas mais humildes. Não era propriamente a participação política. O que as pessoas querem é uma vida melhor, Zé. Claro. Queremos todos. Queremos melhor saúde, melhor educação, melhores empregos, férias melhores, um carro melhor. É isso que as pessoas precisam. A ideia de que as pessoas querem um debate político na televisão e que isso é importante para elas e querem ler o Express ao público ou o Diário de Notícias e que isso é importante para elas e querem escrever artigos no Diário de Notícias. Quem é que escreve artigos no Diário de Notícias? É meia dúzia de macacos da elite como tu e eu. Não é a maior parte das pessoas. Não é que queiram escrever e não possam, é que não têm interesse nisso têm interesse em comprar uma moto nova, têm interesse em comprar umas calças novas têm interesse em comprar o telemóvel da última geração, novo, ponto final não têm interesse em estar a escrever um artigo num jornal acerca de se vamos aprovar a eutanásia ou não. Então eu penso que, em primeiro lugar, há aqui uma certa projeção que seria até interessante estudar empiricamente e cientificamente, mas penso que é uma certa projeção elitista. Nós pensamos que isso é importante, porque é importante para nós, e pensamos que é importante para o resto dos mundos. Isso provavelmente é uma ilusão. Provavelmente isso é uma ilusão, ok? E agora a segunda parte da minha posição é a seguinte, é que provavelmente essas pessoas têm a razão. Num certo sentido é que... Quer dizer, a que propósito é que eu hei-de preocupar-me com os promenores de como é que se faz uma operação ao coração. O mundo, já disseste umas cinco vezes que o mundo é muito complexo. Isso é o teu complexo de economista, o mundo é muito complexo. Que é desculpa dos economistas para dizer que as previsões falham. Estou a brincar contigo. É
José Maria Pimentel
um bocado verdade.
Desidério Murcho
Mas já te disseste que o mundo é muito complexo. Mas agora repara. Precisamente porque o mundo é muito complexo, um dos itens fundamentais que permitiu a enorme riqueza que as sociedades industrializadas têm no século XXI e que não se compara, mesmo que recursa a um século e meio, não se compara com a riqueza que as pessoas tenham há 150 anos.
José Maria Pimentel
Sim, sim, é isso. O nível de riqueza que nós temos hoje.
Desidério Murcho
Por um lado. Por outro lado, Essa enorme complexidade do mundo tem a ver com a divisão do trabalho. Ora, o nível de riqueza que nós temos hoje em dia é o fruto de duas coisas fundamentais. Por um lado, o conhecimento acrescido que nós não tínhamos antes e por outro lado a divisão do trabalho. Mas agora quando olhas outra vez para o conhecimento acrescido que nós temos no século XXI que não tínhamos no século XIX deve-se a quê? Outra vez à divisão do trabalho. Entende? Eu ilustro isto com um exemplo muito simples. Na passagem do século XIX para o século XX, a Sociedade Mundial de Matemáticos fez o seu encontro centenário, como fizeram agora outra vez na passagem do século XX para o XXI. E no seu encontro centenário, convidaram o David Hilbert, que era um matemático que tinha uma visão de abrangência de todas as áreas matemáticas. E na publicação dele, que ficou célebre e que ainda hoje é seguida cuidadosamente, ele explicou o estado da arte da matemática do seu tempo e os problemas em aberto mais urgentes e que mais precisavam da atenção dos matemáticos e que precisavam ser resolvidos. E têm sido resolvidos ao longo do século. Quando se vai da passagem do século XX para o século XXI, eles voltaram a fazer o encontro secular da Associação Mundial dos Matemáticos e agora queriam fazer a mesma coisa, que foi um sucesso porque o artigo do Hilbert tornou-se entretanto um artigo memorável, ainda hoje é um artigo lido, um artigo histórico importantíssimo. Então vai lá à procura do Hilbert hoje. Tiveram que pegar em 5 matemáticos diferentes. Ninguém sabe toda a matemática hoje em dia. Ninguém! Não há ninguém! Não há uma pessoa, não há possível! Porque a matemática cresceu exponencialmente e isso é impossível. Ora, no entanto, continuamos a ter matemática e continuamos a ter progresso matemático e tudo isso. Mas como? Com a divisão do trabalho. Mas a divisão do trabalho tem um preço a pagar e esse preço a pagar é a pessoa que sabe de uma coisa e não sabe da outra. Ora, no que respeita à política nós estamos a ir um pouco como aquela mentalidade medieval que... A idade da pedra em cima. Exatamente. Vamos todos ser felizes, fazemos uma quinta com uma casinha, uma galinha e uma vaca e essa é que é a economia que funciona. Eis a má notícia. A economia de sobrevivência Não funciona. Trabalhas 16 horas por dia e ficas pobre a vida toda. O que funciona não é a economia de subsistência, é a economia distribuída. É a economia especializada. Em que o gajo que sabe fazer a capa do telemóvel não sabe fazer o microprocessador e o gajo sabe fazer o microprocessador e não sabe fazer o auto-falante e o gajo sabe... Para ir por aí fora, para ir fora, para ir fora... É assim que produzimos riqueza e é assim que produzimos conhecimento. Porquê é que na política nós continuamos a agarrar-se à idade da pedra? Eu acho isto curioso. Repare, eu só estou a fazer uma pergunta. Porque eu vejo a dificuldade imediata que tu provavelmente vais colocar, que é, mas espera lá, mas não tem de haver de alguma maneira algum poder de síntese e de coordenação? Nós temos de alguma maneira de ter uma certa visão de síntese e de conjunto? Sim, eu concordo com isso. Mas olha o caso dos matemáticos. Uma pessoa a fazer isso é extremamente difícil. Portanto, ser várias pessoas a fazer isso eu acho que é muito mais razoável.
José Maria Pimentel
Mas a tua implicação para a política é que nós acreditamos que podemos todos discutir todos os temas?
Desidério Murcho
Bom, é que podemos todos discutir todos os temas politicamente relevantes. E isso parece implausível.
José Maria Pimentel
Hum. Mas sempre foi implausível. Sempre foies, tu és. Sério? Não foi sempre, mas... Hoje é
Desidério Murcho
muito mais do que era.
José Maria Pimentel
Mas há 20 anos era quase tanto como é hoje, para o
Desidério Murcho
estado atual das coisas. Só que, repara, quando as coisas estavam mais calmas, Era mais fácil a voz dos especialistas terem força política. Porque era mais fácil o ministro da saúde reunir-se com uma equipe de médicos que lhe dizia, olhe, nós temos que organizar a saúde pública do país, temos que fazer uma campanha nacional de vacinação disto e disto e daquilo, e era mais fácil o ministro ouvir aquelas pessoas, ouvir aqueles técnicos fazer os seus estudos, pedir estudos e fazer a política. Hoje em dia, meu Deus, meu Deus, quer dizer, as pessoas não querem sequer usar a máscara na rua. Manifestam-se contra isso. E o ponto crucial aqui é, Porquê é que elas se manifestam contra isso? É por causa do incómodo da máscara? Ah, a máscara também me incomoda, então eu me prefiro não andar com a máscara na rua, claro. A máscara incomoda muita gente. Mas o ponto é que as pessoas que se manifestam contra a máscara não é devido à máscara. É uma maneira de aparecerem publicamente e de manifestarem o seu tribalismo. É tal e qual como as pessoas que se manifestam pelo Benfica, é a mesma coisa. São viéses cognitivos tribais terríveis nos seres humanos. E nós aceitamos isso como se fosse normal. E depois a pessoa faz uma manifestação na rua com 20 macacos e aparece logo imediatamente na televisão a Phil Maus e as pessoas a gritar na rua porque isso dá cliques, porque isso dá vendas. Então é um círculo vicioso terrível que nós temos aqui. E repara que tu há pouco falaste um pouco disso e falaste do passado e disseste muito brevemente. Já havia tabloides. Mas olha bem o que é que acontecia. Os tabloides estavam marginalizados do discurso público. Sempre houve tabloides e sempre venderam mais do que jornais chamados de jornais de referência. Só que era como se não existissem. Só que agora não se pode mais fingir que não existem porque essas pessoas que escreviam antes os tabloides agora vão para o Twitter, vão para o Facebook, vão para o YouTube e agora aqueles poliincisos que agora têm ainda mais exposição do que tinham antes e agora subitamente já não podemos fingir que essas coisas não existiam mas sempre, sempre existiram essas coisas só que foram sistematicamente oprimidas e agora não
José Maria Pimentel
E com defeitos também, atenção, essa espécie de jugo das elites e ostracização de algumas pessoas porque não correspondiam àquilo que era tido como adequado, também tinha, porque no meio cultural havia pessoas que simplesmente porque não correspondiam àquilo que era designado como o cânone eram postas de lado, eram colocadas de lado e fora do sistema, precisamente porque o sistema também ele próprio não era muito democrático. Agora, aqui neste caso há uma limitação que é que ocorre desde logo, é que essa elite também não é estanque. Bem, não só a diferença entre a elite e o resto não é ela própria discreta, discreta no sentido binário, ou seja, todos nós queremos é viver bem, no fundo, não é? Podemos ter um lado de interesse intelectual e de interesse pelo bem comum maior ou menor, mas quer dizer, todos, tirando lá se está um ou outro santo, todos nós no fundo temos sempre uma maior parte que é de interesse próprio e de gostar de viver bem. Mas também há outro lado, que tem que ver com a própria matéria-prima de quem está no espaço público e quem se interessa por esses temas e de quem compõe essas, chamemos-lhe assim, elites, não é? E aquilo que a internet veio possibilitar e que não existia antes, esse parece-me que é um ponto que é preciso reconhecer, é que muitas pessoas que antigamente, pelo meio em que nasciam, não tinham acesso a esse espaço, passaram a ter acesso. Ou seja, havia pessoas que nasciam num determinado meio intelectual ou económico e estavam fora desse sistema e por causa da internet passam a poder aderir a esse sistema e por essas mesmas redes sociais que geram discurso lixo também passa muito discurso de qualidade e com qualidade que em certo sentido nunca teve, não querendo julgar em causa própria mas a conversa que nós estamos a ter agora seria impossível ter há 10 ou 20 anos por uma série de coisas, porque se não isso e nas redes sociais, se calhar... Quer dizer, nós não nos conhecemos através das redes sociais, mas pronto, mas se calhar de uma maneira indireta e não estaríamos a gravar pela internet desta forma, não é? Portanto, há aí o efeito positivo que também não convéi deitar fora, não é? Não convéi deitar o bebê com água do banho, digamos assim.
Desidério Murcho
Claro, com certeza, precisamos encontrar um equilíbrio. O meu exemplo favorito aqui é os tribunais. Às vezes digo assim, já viste bem a loucura que é os tribunais. Que estupidez é aquela? Um gajo qualquer ou uma gaja, veste uma roupa qualquer Ou lá os ingleses põem uma peruca e não sei o quê. E o gajo tem o poder para me lixar a vida completamente se quiser. Porque o gajo pode me lixar completamente a vida. Pode me mandar para a cadeia e fico lá 25 anos. E nos Estados Unidos pode me mandar matar. Isto é ridículo. Quer dizer, o melhor é acabar com os tribunais. E claro, a resposta óbvia. Bom, calma aí, né? Quer dizer, É claro, os tribunais é um risco e os juízes são preconceituosos e cometem erros, e há erros jurídicos famosos, mas precisamos dos tribunais. E, portanto, só temos que ajeitar cuidadosamente a instituição, punir os juízes quando eles se portam mal e ajeitar a instituição de tal maneira que o juiz tenha altos incentivos para fazer o seu trabalho bem feito mesmo que não tenha grande interesse na justiça propriamente dita, mas tenha interesse na sua carreira. Portanto, temos a profissão razoavelmente montada. Precisamos disso apesar dos riscos. Aqui acontece a mesma coisa, é claro. Ter meios de comunicação instantâneos, como nós temos hoje em dia, estou no Brasil, estou a estar em Portugal, estamos a gravar uma entrevista, estamos conversando e estamos olhando um para o outro e tudo isso é maravilhoso. E é claro que os meios de comunicação que nós temos hoje em dia são maravilhosos e nunca como hoje foi possível uma pessoa publicar livros e artigos de uma maneira tão barata na internet, não é? E portanto tudo isto tem aspectos positivos e que devem ser aprofundados e incentivados, só que têm aspectos negativos e precisamos olhar para eles com muita atenção. Eu vou introduzir agora aqui no debate um outro tema que nós não falámos ainda, mas que eu penso que é crucial aqui para compreender o que é que eu tenho em mente. É que o debate político, tal como está organizado nas sociedades modernas, está inserido no setor de entretenimento. Tu ligas a televisão ou o Youtube ou o Twitter com a mesma frivolidade e falta de responsabilidade com que as pessoas fazem comentários acerca do último jogo de futebol, é assim que as pessoas falam de eutanásia, é assim que as pessoas falam de política, é assim. Está a saber? Aqui temos um problema e este é um problema que, em termos de ciências cognitivas contemporâneas, nós sabemos exatamente qual é o problema aqui. O meu exemplo favorito é o exemplo do célebre teste da Linda. O teste da Linda é o seguinte, nós escrevemos uma pessoa que na universidade tinha um certo empenho, que era feminista, que estudou filosofia, que tem assim um certo conjunto de características. E depois dizemos, ok, dez anos depois, o que é que é mais provável? E damos à pessoa três listas de coisas. O que é que é mais provável? Que ela seja isto, ou que ela seja isto e isto, ou que ela seja isto e isto e isto. A teoria das probabilidades básica é a terceira é a menos provável de todas. Porquê? Porque quanto mais conjunções tu pões de uma coisa num campo de probabilidades, mais improvável ela é. Quer dizer, a probabilidade da pessoa ser A e ser B e ser C é menor sempre do que a probabilidade de ser apenas A, ou B ou C. Mas como o conteúdo do A, B e C casa muito bem com o protótipo que eles construíram da Linda, que é uma rapariga ativista pelos direitos das mulheres, que estuda filosofia de esquerda e como depois a lista do ABC é tudo coisas que caem dentro do protótipo, eles direitinho vão para o
José Maria Pimentel
C.
Desidério Murcho
Ok? E qual é a minha reação? Isto é ridículo, matematicamente é errado. A probabilidade é A, não é o C. Ok? Qual é a minha leitura disto? A leitura disto é se aquilo fosse um exame na universidade para eles serem aprovados no doutoramento, eles não erraram. Estás a perceber? Porquê? Porque a pessoa punha-se num contexto cognitivo de atenção cuidadosa. Mas como é que funcionam os testes que os psicólogos fazem? Pagam 20 dólares a um gajo, a um grupo de estudantes Pá, vocês têm aqui 20 dólares para preencher esta coisa. E os gajos preenchem aquilo enquanto estão a pensar no fim de semana. E a
José Maria Pimentel
ideia é essa, não é? Eles são feitos para ter apanhado os colegas. E a ideia não
Desidério Murcho
é essa. O que eles querem é apanhar a pessoa informalmente. Mas qual é a lição fundamental aqui? Que é uma coisa que o Heath, no livro dele, Enlightenment 2.0, que ele aprofunda e que ele tem toda a razão, não é? Para mim foi iluminante ler esse livro, acho que devia estar traduzido em português. A ideia dele é... A lição que tiramos daqui é que o exercício da racionalidade humana precisa de um contexto adequado. Se não temos um contexto adequado, os seres humanos são terrivelmente maus a raciocinar. Então, todos os viéses cognitivos e emocionais e os ódios, tudo isso vem ao de cima. Portanto, o ponto crucial aqui é este, é que tu colocas as pessoas todas no Twitter, no Facebook ou no YouTube a falar e depois elas falam as leiras porque o ambiente cognitivo é inadequado.
José Maria Pimentel
Sem dúvida. E porquê
Desidério Murcho
é que é inadequado? Porque é um ambiente que está anexado ao entretenimento. Estás a perceber? Não é uma biblioteca, não é uma universidade, não é uma sala de estudo, é entretenimento. Portanto, No mesmo jornal de supostamente referência como o Guardian ou o New York Times, em que tu vês a primeira e segunda notícia, coisas muito sérias sobre o vírus e sobre o Trump e sobre não sei o quê, mal clicas para vir um bocadinho mais para baixo, lá vem o futebolista que casou com não sei o quê, a chica que não sei o quê, que cortou o cabelo e foi à cabeleireira. É logo o que tens. E porquê? Bom, porque se não tivesse isso aqui, não é entretenimento, e se não for entretenimento, as pessoas não vão lá. Portanto, nós temos aqui um problema, que é um problema de contexto, percebes? É um problema de contexto cognitivo. As pessoas não são capazes de tomar decisões adequadas na gritaria, no meio da gritaria e no meio do entretenimento. Isso não funciona. E isto está provado, cientificamente não funciona. Nós sabemos que os seres humanos são terrivelmente maus a raciocinar. Deixa-me contar-te uma piada do Joseph Heath, que ele conta no livro dele. A piada é a seguinte, é um gajo que é abduzido, como o pessoal diz acusar, com as palavras inglesas mal traduzidas para o português. A pessoa foi raptada, abduzida. A pessoa foi raptada por extraterrestres. Os extraterrestres estão ali e tal, e os extraterrestres pensam que são uma espécie esquisita de animais extraterrestres que eles descobriram. Eles não fazem ideia que são seres inteligentes, nada disso, está a saber? Então os gajos estão ali e preparam-se para abri-lo vivo, para ver como é que o gajo é lá por dentro, não é? O gajo começa a gritar. Epá, mas eu... Que que vocês estão aqui a fazer, pá, e tal? Mas eu sou inteligente como vocês e não sei o quê e os gajos ficam surpreendidos. Mas isso, afinal, a espécie humana, isso não é só um animal, nem coisa nenhuma. Não, não, nós somos inteligentes, nós já fomos à Lua, para o amor de Deus, mas... Como é que és capaz de trocar com as inteligentes? É para ser lógico, uma coisa qualquer. Ah, já sei, diz o extraterrestre. Faz aí uma conta de matemática. Claro que faço! Com certeza que não é o problema! E o gajo diz, epá, multiplica lá 328 vezes 49. Claro que com certeza! Taca o papel e o lápis! E a estrutura está a olhar para o papel e o lápis? Vocês fazem matemática com papel e lápis? Nós fazemos com o
José Maria Pimentel
cérebro!
Desidério Murcho
O problema aqui é que nós nem nos apercebemos que somos tão estúpidos que sem papel e lápis ninguém é capaz de fazer uma conta de multiplicar 327 vezes 88. Estás a perceber a ideia? Portanto, o que é que isto diz? Isto diz de uma maneira anedótica e engraçada que o contexto, o meio em que nós estamos, cognitivamente é tudo. Sem os instrumentos cognitivos adequados, os seres humanos são macacos autênticos. É uma desgraça como é.
José Maria Pimentel
Isso é inteligência coletiva, não é? Ou seja, sem articulação.
Desidério Murcho
Claro, e tudo isso faz parte do meio, o meio cognitivo. Sim. E o problema é que o meio cognitivo da participação política, portanto eu concordo contigo no seguinte, eu dou-te de bandeja o seguinte, participação política epistemicamente responsável, sou todo a favor, o problema é que a participação política tal como ela se tem configurado neste início do século XXI, é uma participação política epistemicamente irresponsável, não por culpa direta pessoal da pessoa, estás a perceber? Eu não estou a culpar as pessoas, não é? O que eu estou a dizer é, é por culpa do contexto epistémico em que a pessoa está colocada. É um contexto tóxico. É um contexto em que a pessoa não consegue exercer a sua racionalidade não é um contexto de biblioteca, de sala de seminário, de análise cuidadosa das coisas ouvir civilizadamente uma outra pessoa, não é esse contexto, é um contexto de entretenimento
José Maria Pimentel
tens razão, estás a tocar num ponto importante Eu não seria era tão absolutista ou tão radical nessa distinção porque acho que é até difícil dizer se há alguma atividade humana que subsista sem ter um seu quê de entretenimento. Ou seja, nós estamos a ter esta conversa porque nos é agradável e nos estimula intelectualmente. E portanto tem muito de entretenimento associado e a política sempre teve e em certo sentido muitos dos defeitos da política vêm daí, mas também a sustentação da política vêm daí. Os programas de debates, troca de ideias, tudo aquilo é estimulante. Aqui claramente foi-se
Desidério Murcho
longe demais talvez, não é? Porque as redes sociais... Exatamente. A chave é, fomos longe demais, pensa uma vez mais nos tribunais. Há certos aspectos do tribunal em que também serve de entretenimento, num certo sentido. Tu gostas de ver um tribunal bem montado, mas os próprios tribunais estabelecem em alguns casos nada de imprensa. Porquê? Bom, porque sabem que o caso é de tal maneira complicado que trazer a imprensa para a sala do tribunal, para a sala de audiências, é um perigo para uma decisão que sequer justa. Aqui é a mesma coisa, portanto, eu concordo contigo, é claro que há um certo... Repara, o meu exemplo favorito aqui são os colóquios académicos. Eu, por acaso, não ligo muito isso, porque já fiz muitos e não sei o quê, já estou um bocado farto disso. Mas agora que veio esta coisa do vírus e já não há colóquios reais no português... A malta está chateada disso. A malta está chateada, para mim é uma maravilha, porque não me dá trabalho, Porque eu perdi imenso tempo em viagens e as pessoas convidavam-me para ir a não sei onde. E ir para cima ao Brasil é maluco. Já sabes como é que é o Brasil. Tu não soubesse de uma cidade a outra e é um avião-viagem. Quatro horas. E eu, eipa, que chatice do caralho. Agora convidam-me e eu saio. Claro, tranquilo, porque faço aqui em casa e não perco o tempo da viagem. Mas as pessoas queixam-se, as pessoas queixam-se é pá que chatice, não sei o quê e tal e tal porquê? Porque é esse aspecto do entretenimento, as pessoas gostam de ir aos colóquios, de conhecer, ver os colegas, conhecer colegas novos, falar pessoalmente com pessoas que não conheciam pessoalmente, há um certo aspecto de entretenimento. E eu concordo com isso, todas as profissões têm isso, presumivelmente os colóquios dos médicos também têm isso. Os colóquios dos engenheiros, dos físicos, dos economistas, etc. Só que o trabalho técnico do economista não é feito nesse ambiente. A pessoa vai ali, expõe um pouco o trabalho que ele fez e depois as pessoas vão jantar e bebem uns copos mas o trabalho foi feito lá atrás agora claro, esse ambiente também é importante talvez se estimule cá está, é uma questão de incentivos e desincentivos a pessoa tem aquela vaidade de ir lá apresentar no colóquio a investigação que ele fez a investigação chata para caraças que ele fez durante seis meses com os colegas, não é? Com cinco colegas, andam ali seis meses a batalhar armado e maluco no laboratório. Mas ele tem aquela coisa, não, mas quando eu apresentar isto no Colloquium o pessoal vai ficar louco. Isto vai ser uma beleza. Ok. É os tais incentivos e desincentivos a funcionar bem, dada a natureza humana ridícula. Não,
José Maria Pimentel
é justamente os incentivos, exatamente. E eu pergunto-me se grande parte do progresso não tem exatamente a ver com o progresso intelectual catapultar determinadas atividades para ambientes que são prazerosos desse ponto de vista, não é? Ou seja, em que tu estás a fazer uma coisa que é estimulante, é complexo e cria, no fundo, um bem público, mas que também te dá os incentivos porque te dá prestígio, te dá oportunidade de falar com outras pessoas e uma série de coisas. E eu acho que, ou seja, grande parte do desafio talvez esteja aí. E talvez esteja também noutra coisa que te queria perguntar, viu? O que é que tu achas? Eu ia dizer que este problema era complexo, mas depois tu dizes que eu usei a palavra complexo sexta... Que o mundo é complexo sexta vez. E este problema também talvez tenha aí outra faceta, que é o facto de... Uma das razões por que todos estes sistemas funcionam bem, ou seja, a academia, a ciência, a política, feita pelas elites naquilo em que funcionava bem, que nunca... Lá está, como tu dizias há pouco, estava longe de ser perfeito e acho que há várias coisas que se podem melhorar aí, Isso alimentava-se também das pessoas estarem a fazer aquilo que se chama em teoria dos jogos, jogos repetidos. Ou seja, tu estás lá a longo prazo e portanto num jogo repetido, num jogo, ou seja, em interações repetidas em que tu não estás para o longo prazo, tu és muito mais cooperante e justifica-se teres um determinado tipo de atitude e de mindset, lá está, ou seja, isto vai ao encontro daquilo que tu falavas há bocadinho, bastante diferente. E neste novo paradigma de política ultra participada, o que acontece muitas vezes é que quando tu estás nas redes sociais, o que te apetece é mandar um bitado qualquer, dizes estes tipos são uns imbecis, ou pior, e faz um retweet ou um post ou uma coisa qualquer do género e faz-te ir embora para casa e não tens qualquer contacto com aquilo. E uma das coisas que eu acho que tem imenso potencial, e aqui casamos os dois temas que eu há bocadinho separava, para simultaneamente resolver este problema, catapultar a democracia para um nível superior, ou que estava mesmo antes deste problema a surgir, é tu trazeres as pessoas, que lá está, antes não estavam no espaço público mas agora estão, trazê-las para um espaço em que elas são obrigadas a discutir umas com as outras, de forma civilizada, ouvindo as pessoas que sabem, sendo forçadas a aduzir argumentos lógicos e a serem questionadas nas suas permissas e tudo isto implica tempo, não é? E há várias iniciativas muito interessantes a esse respeito. O Carlos Moedas há alguns episódios falava da iniciativa do Macron, que ele fez uma uma espécie de assembleia cidadã que no fundo vai buscar pessoas a vários... É uma amostra aleatória da população, portanto vai buscar pessoas de todos os tipos de preferência, de todo tipo de formação. Na Irlanda eles fizeram uma coisa muito interessante. Fizeram para vários temas e fizeram sobretudo para o tema do aborto, por exemplo, e aí o resultado foi extremamente interessante, porque eles ouviam, tinham que ouvir pessoas com opiniões fundamentadas, fossem elas quais fossem sobre aqueles temas, tinham que discutir entre elas, e de repente esta lógica perversa que existe nas redes sociais desfaz-se, precisamente por isso, Porque as pessoas que estão ali têm que ser forçadas a estar num... Tu à bocado usavas uma palavra diferente, mas estão forçadas a estar num mindset diferente, mais adequado, e já não estão no estado emocional em que estavam, já não estão a ser vítimas dos vieses que são vítimas nas redes sociais, e de repente tu produzes uma síntese
Desidério Murcho
positiva, se quiseres. Sim, eu penso que isso são notícias muito otimistas. Se conseguimos fazer coisas desse género, se conseguimos criar instituições dentro das instituições democráticas que ouçam as pessoas... Não é
José Maria Pimentel
só ouvi-las, desculpa interromper-te, não é só ouvi-las, é obrigá-las a vir falar é dar-lhes poder é que não é só dar-lhes poder, tu dás-lhes poder, dás-lhes pessoas, mas obriga-las a virem cá justificar-se,
Desidério Murcho
ouvir, falar e depois falar com tu exato, tu colocas as pessoas num contexto epistémico em que elas são obrigadas a exercer, a fazer um exercício cuidadoso da racionalidade. O que nós temos nos meios de comunicação modernos é o oposto disso. É um exercício perverso da racionalidade. Portanto, se nós criarmos instituições em que as pessoas fazem o exercício cuidadoso da racionalidade, eu acho que isso é extremamente vantajoso e é democrático nesse sentido. Imagina que, como fizeram na Irlanda, e tu estavas aqui a explicar, portanto tu fazes uma amostra aleatória da população garantindo que há representatividade. Exato. No sentido em que tu olhas para a estatística da população e tu sabes, olha, nós temos 5% de pessoas que são assim, temos 10% de pessoas que são assim e vamos escolher aleatoriamente as pessoas de maneira a que sejam representativas destes vários grupos sociais que nós temos na nossa sociedade. E depois colocas as pessoas num contexto epistémico adequado e das às pessoas a informação científica e técnica adequada e essas pessoas agora vão tomar decisões e essas decisões têm a poder político. Eu acho isso excelente. Eu acho que isso é o género de coisa que me parece promissora. É o género de coisa que me parece extremamente promissora. Então
José Maria Pimentel
talvez seja essa uma das soluções para os problemas de hoje em dia. Mas eu penso que não chega. Sim, dificilmente resolve tudo, sim.
Desidério Murcho
Quer dizer, eu penso que o contexto comunicativo contemporâneo precisa de uma revisão profunda. A irresponsabilidade epistémica que é comum nos meios de comunicação modernos está a chegar a limites assim inaceitáveis e eu penso que é tempo de pôr travão a isso. Uma vez mais, tal como eu falava dos tribunais há pouco, quer dizer, nós, uma instituição imaterial que nós prezamos na civilização de raiz europeia, digamos assim, nos países industrializados modernos, de raiz europeia, porque a China é industrializada mas não é de raiz europeia e não tem isso, é a liberdade de expressão. Essa é uma das instituições imateriais que nós prezamos. Mas a liberdade de expressão está a dar um resultado terrível com o abuso da liberdade de expressão das pessoas nas redes sociais hoje em dia. Portanto, precisamos de reencontrar um equilíbrio aqui. Um equilíbrio entre liberdade de expressão, sim, mas só com responsabilidade epistémica. Porque o meio cognitivo em que nós nos colocámos devido à comunicação tóxica em que nós estamos e que no fundo se tu pensares bem, isso é uma coisa que também está manifesto no livro do Joseph Heath que eu mencionei aqui, o Enlightenment 2.0 começou com o quê? Com a própria publicidade, porque os publicistas foram os gajos dramados, porque foram os primeiros a dar-se conta do impacto económico positivo que tinha o conhecimento de psicologia cognitiva. Claro. Se queres ver psicologia cognitiva aplicada logo na pré-história da psicologia cognitiva é na publicidade. É quando eles começaram a perceber... E o Joseph Frith dá exemplos de publicidades narrativas antes do impacto da psicologia cognitiva na publicidade. E tu olhas para aquilo e dizes mas isto é... Eu não sabia que se fazia publicidade desta maneira porque aquilo era narrativo, era... Tinha um texto articulado, cuidadoso, a explicar porque a razão é que era uma boa ideia a pessoa comprar aquele produto. Isto é ridículo hoje em dia! Não tem nada a ver com articulação verbal sequer, ok? É tudo com base em todas as limitações e todas as fraquezas cognitivas humanas que os publicistas aprenderam por meio da psicologia cognitiva. Então nós temos toda uma indústria. A primeira indústria que reagiu às fraquezas cognitivas humanas no sentido de explorá-las foi a indústria da publicidade. E depois, por arrasto, tens toda a indústria da comunicação moderna, que por sua vez, por arrasto também, acaba por afetar a comunicação política moderna. Então tu tens esta história terrível daquilo que é, na verdade, uma exploração de fraquezas cognitivas humanas, que começa com a publicidade. Isso tem que acabar. Nós temos que encarar a exploração das fraquezas cognitivas humanas com o mesmo horror com que encaramos a escravatura, com todo o respeito pela escravatura. E eu sei que por vezes as pessoas exageram um bocado, o que eu acho ofensivo, exageram um bocado com a palavra escravatura e dizem isto é escravatura e não sei o quê. E a escravatura é uma coisa de massa séria e real e concreta para estarmos a usar a palavra dessa maneira tão leviana, digamos assim. Mas nós precisamos de olhar para a prática corrente e normal hoje em dia da exploração desavergonhada das fraquezas cognitivas humanas, que estão documentadas, nós sabemos quais são. Estão cientificamente documentadas as fraquezas cognitivas humanas. E no entanto, continuamos a permitir que legalmente essas fraquezas cognitivas humanas continuem a ser exploradas pelos canais de comunicação. É isso que nós precisamos de porcobro. Como? Não sei. Presumivelmente a pouco e pouco. Ainda aprendendo com a experiência e ver como é que nós conseguimos ter os ganhos de que tu falavas da comunicação moderna, que dá voz a pessoas que não tinham voz e tudo isso.
José Maria Pimentel
E da liberdade, sim.
Desidério Murcho
E da liberdade de expressão. Mas ao mesmo tempo, conseguir manter esses ganhos, mas conseguir eliminar, tanto quanto possível, os defeitos que têm. E o defeito, se quiseres dar-lhe o nome, o defeito é este, é a exploração das fraquezas cognitivas humanas.
José Maria Pimentel
Boa. Acho que é uma excelente maneira de terminarmos. O que é que achas? Acho ótimo. Já vai longo. Já
Desidério Murcho
vai longo. Lembras-te do livro? Eu recomendo mesmo o Enlightenment 2.0, do
José Maria Pimentel
Joseph Fiske. Excelente.
Desidério Murcho
Tem tudo a ver com o que nós estávamos a
José Maria Pimentel
discutir. Não, eu já tinha ouvido falar e nunca li, portanto eu próprio já estava a ficar curioso.
Desidério Murcho
É, leia, vale a pena. Talvez até isso estimule um editor português a traduzir e a publicar em Portugal. Eles publicaram um outro livro do José Fide que eu não li, não sei se é bom, calculo que sim porque ele é um excelente filósofo. E a minha recomendação é essa, é o Enlightenment 2.0, onde ele defende a importância de termos uma, ele chama a isso, de ter uma política da racionalidade. O que ele quer dizer com isto é, não podemos permitir instituições e práticas que exploram de uma maneira sistemática as fraquezas cognitivas humanas.
José Maria Pimentel
Sim, até porque essa racionalidade é um recurso escasso, não é? Exatamente. Ok, olha, excelente, Zidero, muito obrigado, esta conversa foi muito enlightening. Gosto
Desidério Murcho
de conversar contigo, pá. É
José Maria Pimentel
um excelente livro para terminar. É, acho que sim. Este episódio foi editado por Martim Cunha Rio. Visitem o site 45graus.parafuso.net barra apoiar para ver como podem contribuir para o 45 Graus, através do Patreon ou diretamente, bem como os vários benefícios associados a cada modalidade de apoio. Se não puderem apoiar financeiramente, podem sempre contribuir para a continuidade do 45 Graus, avaliando-o nas principais plataformas de podcasts e divulgando entre amigos e familiares. O 45 Horaos é um projeto tornado possível pela comunidade de mecenas que o apoia e cujos nomes encontram na descrição deste episódio. Agradeço em particular a Paulo Peralta, João Baltazar, Tiago Leite, Carlos Martins, Joana Faria Alves, a família Galaró, Corto Lemos, Margarida Varela, Gustavo, Gonçalo Monteiro, Felipe Caires, Miguel Marques, Nuno Costa, Nuno Pinheiro, Francisco Hermano Gildo, Mário Lourenço, João Ribeiro e Miguel Vassallo. Até o próximo episódio.