#94 Filipe Nobre Faria - Os limites evolutivos da (nossa) moral liberal

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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45°, primeiro episódio da nova temporada que já é a quarta. E a abrir as hostilidades o convidado é Felipe Nobre Faria, doutorado em Teoria Política pelo King's College London e professor na Universidade Nova de Lisboa, onde investiga nas áreas da filosofia política e da ética. Conversámos a propósito do livro recente do convidado, chamado The Evolutionary Limits of Liberalism, ou seja, os limites evolutivos do liberalismo. Junta, por isso, a filosofia política à biologia evolutiva, precisamente dois assuntos que estou farto de discutir no 45°, mas que, que me lembre, não tinham sido simultaneamente temas no mesmo episódio. Resumidamente, No livro, o Filipe faz uma análise à sustentabilidade da moral liberal, típica das democracias ocidentais, à luz da teoria evolucionista de Darwin. Por moral liberal, entenda-se aqui a primazia dada ao indivíduo, ou seja, aquele conceito alargado que está tipicamente na base das ideologias dos principais partidos do sistema nos países ocidentais e não só, e que defendem tipicamente, de forma mais ou menos absoluta, princípios como a democracia, os mercados livres, o Estado de Direito, direitos civis e direitos humanos, secularismo, igualdade de género e igualdade racial, internacionalismo, liberdade de expressão, etc. Na sua análise, o Filipe tenta então medir diretamente a fitness evolutiva, ou seja, a adaptabilidade, desta moral à luz da seleção natural. Ou seja, tenta avaliar em que medida é que um grupo cuja moral se baseia no primário da liberdade individual gera ou não coesão e promove ou não a natalidade. E as conclusões, como já vão ver, não são as melhores para o paradigma liberal. Este é um trabalho oportuno porque ajuda a enquadrar a raiz de alguns dos desafios que o modelo liberal enfrenta atualmente. Sejam eles as ameaças vindas de dentro, como a ascensão dos movimentos populistas e antissistema, sejam eles as ameaças que vêm de fora, como por exemplo a aparente perda de força das democracias no plano internacional, face a Estados autocráticos como a China ou a Rússia, que com uma visão de longo prazo ou menores prioridos éticos, parecem muitas vezes ser mais eficazes. Preparem-se, como todas as conversas filosóficas, que nos forçam a revisitar as fundações das nossas convicções, este foi um episódio desafiante e, por vezes, admito, talvez algo confuso de acompanhar, tal o número de dimensões em cima da mesa e a complexidade de assuntos como estes. No final, embora discorde vários aspectos da tese do Flip, foi sem dúvida uma conversa muito estimulante e de que me lembrei várias vezes nos dias a seguir. Antes de passarmos à conversa, queria anunciar-vos que vem aí a segunda edição do Pods, festival de podcasts que se realizou pela primeira vez no ano passado. Em 2020, a edição possível terá lugar de 2 a 8 de novembro e vai repartir-se entre sessões ao vivo e outras online, sendo que estas últimas acabam por ser boas para quem não vive em Lisboa, onde se vai realizar o festival. Para já, vão a pods.pt, assim como se diz, e votem no 45 Horaos para o Prémio do Público, se acharem que merece, claro. E pronto, vou deixar-vos com o Felipe Nobre Faria. Antes disso, queria só aproveitar para agradecer aos quase 20 ouvintes que se tornaram mecenas do podcast durante este período de ausência. Em particular, agradeço o apoio generoso do Francisco Feijó Delgado, Miguel Vassal, Isabela Oliveira, Pedro Vieira e Cristiano Tavares. Até à próxima! Filipe, muito bem-vindo. Obrigado por ter aceitado o convite. Muito obrigado, é um prazer estar aqui. Começo por te pedir para resumires a tese do teu livro. Muito bem, o meu
Filipe Nobre Faria
livro genericamente analisa a sustentabilidade do paradigma liberal à luz da teoria evolutiva. E, para desvendar já a conclusão do livro, conclui que o liberalismo não é sustentável porque é mal adaptativo. Ora, o que é que isto quer dizer? Isto quer dizer que o liberalismo, como moralidade, não é capaz de gerar capacidade adaptativa para os grupos que abraçam esta moralidade, ou seja, o liberalismo é incapaz de gerar taxas de natalidade altas e de produzir coesão grupal, o que é necessário para a sustentabilidade de uma ideologia ou moralidade. Há luz,
José Maria Pimentel
desculpa interromper-te, há luz do modelo em que tu te baseias que é o modelo de seleção multinível, não é? Portanto, numa lógica de seleção de grupo. Sim, embora não dependa disso
Filipe Nobre Faria
especificamente. Ah, ok, Essa era uma das perguntas que eu tinha.
Filipe Nobre Faria
É possível chegar a esta conclusão sem usar o modelo de seleção de grupo. Nós podemos chegar a esse ponto mais tarde. Porque a visão dominante entre os pensadores evolutivos é que a moralidade tem uma função e a função é gerar adaptação através da cooperação entre indivíduos, em grupos. Ou seja, esta é a função da moralidade. Se a moralidade não atinge esta função, então está a fazer algo mal. Porque a moralidade não tem uma outra função que não seja esta do ponto de vista evolutivo. Certo. E como tal, se o liberalismo não é capaz de cumprir esta função, então moralidades não liberais mais adaptativas deverão substituir o liberalismo. E eu cheguei a esta conclusão através da aplicação do modelo de seleção de grupo ou como é conhecido hoje da seleção multinível. Provavelmente vou-lhe chamar de seleção de grupo porque
Filipe Nobre Faria
é mais fácil
Filipe Nobre Faria
para as pessoas perceberem porque a seleção multinível é de facto uma versão mais sofisticada da seleção de grupo, mas não deixa de ser um modelo de seleção de grupo, tal como Charles Darwin o postulou. Ora, para fazer isto, para chegar a esta conclusão, o livro pega num debate das últimas décadas, que é um debate muito característico no paradigma liberal, que é um debate entre mais Estado ou mais Mercado. Ou seja, mais Estado ou menos Estado, se nós quisermos colocar a coisa. O que tem sido mais ou menos o debate das últimas décadas no paradigma liberal. Portanto, isto é um debate entre liberais porque ambos acham que a sua opção é a que satisfaz mais as preferências das pessoas, ou as pessoas satisfazem melhor as suas preferências através da democracia, do Estado ou através do mercado e portanto estamos todos familiarizados com este duelo constante nas nossas democracias liberais nas últimas décadas. E eu concluo que ambos estão equivocados. Pois o problema está naquilo a que eu chamo a ética da satisfação de preferências liberal, que é maladatativa. Ou seja, os liberais estão a tentar maximizar as preferências das pessoas, através de meios diferentes, uns acham que deve ser através do Estado, outros através dos mercados livres. Tanto estamos aqui, no fundo, a contrapor a democracia liberal com o liberalismo de mercado. Exato. E as duas fazem um combo, mas oscilam de um lado para o outro. E eu concluo que, apesar da democracia liberal e do liberalismo de mercado serem ambos bons a satisfazer preferências, acho que eles complementam-se e não são problemáticos desse ponto de vista, muito pelo contrário, acho que eles são bons a satisfazerem as preferências dos indivíduos, O problema está nessa ética, porque a ética da satisfação de preferências liberal é mal adaptativa e através da evolução cultural, ou seja, através do processo de seleção de culturas e de moralidades, devemos esperar a substituição do liberalismo por outros modelos morais e institucionais que sejam mais adaptativos e que cumpram a função da moralidade melhor do que o liberalismo. E genericamente esta ideia espero
José Maria Pimentel
que tenha sido suficiente para... Sim, sim, sim. Resumiste-te muito bem porque abriste quase todos os pontos que eu queria depois explorar mais à frente. Ótimo, ótimo. Portanto, era mesmo isso que eu queria. Só antes de avançarmos, se calhar vale a pena escolher uma questão conceptual. Para quem nos está a ouvir, porque o termo liberal ou liberalismo é muito polissémico. Quando tu falas de liberalismo estás a usar no sentido lato, portanto, abarcando toda a tradição, no fundo, tudo aquilo que é influenciado pela tradição liberal do iluminismo, seja um liberalismo mais social ou até quase uma social democracia que nós tendemos a associar mais à esquerda, seja quase um libertarismo ou libertarianismo de mercados livres que nós tendemos
Filipe Nobre Faria
a associar mais à direita, não é? No fundo é essa a ideia. Exato, exatamente isso. Ou seja, não estou a fazer uma distinção específica entre o liberalismo social, onde supostamente
Filipe Nobre Faria
há um papel para o Estado e para a comunidade para libertar os indivíduos, eu não estou a distinguir do liberalismo clássico, onde o Estado se limita a fazer a supervisão dos mercados para que os indivíduos possam satisfazer as suas preferências através do mercado e através da troca comercial, etc. Não estou a fazer essa... Há um tronco comum que é a liberalismo e é isso que permite que nós chamemos ao liberalismo liberalismo e depois tem as suas vários troncos, não é verdade? Os vários métodos de atingir a liberdade individual e a igualdade individual. A própria interpretação da liberdade e da igualdade vai mudando, mas o liberalismo é uma tradição com um tronco comum. É dessa tradição que eu estou a falar, ou seja, eu não estou a especificar qualquer ramo do liberalismo. O que eu estou a dizer é que Esta ética, a ética da satisfação de preferências liberais é uma ética que é transversal a todos os liberalismos, se quisermos colocar a coisa desta forma. Ou seja, é a ideia de que os indivíduos devem ser livres para perseguirem a sua noção de boa vida, o seu conceito de vida, sem coerção, sem serem manipulados, por assim dizer. E, portanto, mas só para esclarecer este ponto, para quem nos está a ouvir,
José Maria Pimentel
Quando tu falas de liberalismo, tu dirias que na maior parte dos países ocidentais, independentemente do governo que está em funções do espectro partidário, a principal matriz moral é a liberal e, no fundo, da democracia liberal e de mercados mais ou menos livres independentemente do grau da intervenção do Estado, não é? Exato. Portanto, quando tu falas da desadaptação do liberalismo enquanto modelo moral, estás a aplicar esse diagnóstico, no fundo, em maior ou menor grau a quase todo mundo ocidental e não só, não é? Mas para usar essa simplificação. Exato. Podemos
Filipe Nobre Faria
chamar isto de bomba atómica, não é verdade? Exato.
José Maria Pimentel
Não, é isso mesmo. Então se calhar vamos... Já vamos falar da moral, até porque eu suspeito que vai surgir naturalmente pelo caminho, mas há uma das... Pelo menos uma dos teus argumentos que em relação ao qual eu discordo relativamente. Porque, no fundo, tu estás a usar a lógica do modelo de seleção de grupo, e eu até tinha planeado ir mais a fundo no modelo, enquanto fator explicativo ou não para a evolução humana, porque como sabes é um tema muito controverso e ainda recentemente com o Paulo Gamamota falei disso, mas acho que se calhar não vale muito a pena, pelo menos para já irmos lá, até porque como tu próprio estavas a dizer, tu não estás tão interessado nisso, no fundo o modelo é útil independentemente da discussão entre os biólogos, se quisermos
Filipe Nobre Faria
é qual for a validade. Sim, se
Filipe Nobre Faria
quiseres podemos falar um pouco sobre o porquê de eu achar que o modelo não é o mais importante, apesar de ser importante no sentido em que nos permite articular determinados argumentos, mas não é o mais importante porque, ou seja, no livro eu mostro que em Biologia Evolutiva há vários modelos que explicam a evolução do altruísmo, ou seja, aquilo que alguns chamam a evolução da moralidade, e que basicamente se centram em... Uns estão do... Preferem um modelo de inclusive fitness ou de... Portanto, em português seria a aptidão inclusiva
José Maria Pimentel
do William Hamilton. Via seleção de parentesco, não é?
Filipe Nobre Faria
Exatamente, onde o altruísmo evolui para a defesa daqueles que têm genes semelhantes aos nossos, ou seja, evolui precisamente porque é adaptativo defender aqueles que têm genes ou que partilham a maior parte dos genes connosco e depois há aqueles que defendem a seleção de grupo, que acham que é verdade que de facto as pessoas tendem a proteger aqueles que são geneticamente semelhantes, mas há também um processo de grupo que não se cinja apenas e só a esse modelo.
José Maria Pimentel
E no fundo não seria, desculpe interromper-te, no fundo o argumento é que Não é possível explicar o grau gigantesco, se quisermos, de altruísmo para que a espécie humana está predisposta apenas com seleção de parentesco, não é? Apenas com inclusive fitness.
Filipe Nobre Faria
Exatamente, exatamente. No entanto, o mesmo argumento se pode aplicar à seleção de grupo. Podíamos dizer, como é que nós podemos encontrar altruísmo para com pessoas do outro lado do mundo se o nosso altruísmo é
Filipe Nobre Faria
de grupo?
Filipe Nobre Faria
O argumento é muito semelhante. No entanto, aquilo que nós temos de averiguar não é necessariamente se as pessoas têm ou não esse altruísmo com pessoas fora do seu grupo, mas se é adaptativo ou não fazê-lo. Porque vai haver
José Maria Pimentel
muito... Mas o problema da seleção de grupo, aplicado à biologia, é perceber como é que aquilo pode ter surgido, não é? Ou seja, os opositores não negam que ela seria, que ela podia ser adaptativa, eles negam de acordo com os condicionantes que existem. No mundo natural ela pode ter surgido. Sim. Porque os grupos não estão separados, as pessoas fazem um batota, uma série de coisas.
Filipe Nobre Faria
Sim, sim, os opositores do modelo acham que é improvável. Exato, exato. Porque, pelo menos esta era a ortodoxia a seguir à 2 Guerra Mundial, com Richard Dawkins, com Williams, entre outros, em que basicamente eles diziam que o seleção-grupo não podia funcionar porque dentro dos grupos os egoístas iriam sempre prevalecer em relação aos altruístas e como tal esse modelo não podia funcionar. E optavam pelo modelo do William Hamilton, da seleção de parentesco, que na ótica deles é um modelo mais individualista. Mas o próprio William Hamilton, quando fez a revisão do seu modelo, chegou nos anos 70, chegou à conclusão que não havia grande diferença entre o modelo de seleção de parentesco e o de seleção de grupo. E são modelos de facto muito semelhantes e por isso é que hoje em dia se considera que há um processo de equivalência, quer num quer no outro. Ou seja, isto para dizer que eu podia ter escrito este livro com o modelo de seleção de parentesco, mas achei que a seleção de grupo, e neste caso a seleção de multinível, permite explicar o processo de uma forma mais intuitiva do que o outro modelo. Não significa que o outro modelo seja errado, apenas que este modelo
Filipe Nobre Faria
que eu usei parece-me ser mais intuitivo, mais explicativo. E penso que chega mais facilmente às pessoas. Certo. E é verdade. Seja como for, independentemente disso, aplicado à cultura humana, a
José Maria Pimentel
tua tese, e é uma tese acho mais ou menos inquestionável, com tudo o resto igual, e esse aqui para mim é que é o auxílio da questão, é que grupos humanos ou comunidades humanas mais coesas, com tudo o resto igual, têm uma vantagem face às comunidades humanas menos coesas, não é? E o que tu argumentas é que o liberalismo, por ser individualista, por ter uma moral individualista, diminui essa coesão e, portanto, torna esses grupos mais fracos, digamos assim, menos adaptados face aos grupos mais coerentes. Estou a resumir bem, não é?
Filipe Nobre Faria
Sim, sim, genericamente penso que é isso. Pronto,
José Maria Pimentel
e agora, tu falas de duas vias pelas quais isso acontece. E em relação à primeira, Eu tenho algumas reservas até em relação ao próprio interesse dela, porque tu falas da reprodução, ou seja, de se o liberalismo torna ou não mais provável os grupos, no fundo, terem taxas de natalidade elevadas. Quando nós entramos no terreno da política, a questão da natalidade, tem uma série de coisas que se lhe liga, mas parece evidente que quando os países... Há uma espécie de descontinuidade, portanto, quando os países se tornam desenvolvidos, as pessoas por várias razões deixam de funcionar naquela lógica de sociedade agrícola e passam a querer ter menos filhos, em termos médios. Mas quando nós discutimos a validade do modelo da ordem liberal, eu diria que mais do que se ela faz as pessoas querem ter mais ou menos filhos, pode interessar a questão da coesão, que já lá vamos, essa sim eu acho que tem muito que se liga, mas também quanto a prosperidade é que ela gera e se ela, por exemplo, para usar uma lógica estritamente quase biológica, ou seja, de números, em que medida é que ela se espalha para o resto do mundo? E o que nós temos visto na tradição liberal é que ela se foi propagando, ou seja, começou a Inglaterra, depois França, Estados Unidos, ou Inglaterra, Estados Unidos, França e depois começou-se a espalhar até Portugal e podemos argumentar que Portugal chegou numa primeira vaga no século XIX e depois acabou por chegar de vez já na segunda metade do século XX depois do 25 de abril, portanto na prática, no fundo o que eu quero dizer aqui é, se nós tivermos uma perspectiva mais lata da reprodução e não apenas reprodução biológica de pessoas que têm filhos, mas reprodução cultural, o liberalismo a esse nível parece bastante bem sucedido. Sim, ok, pronto. Há aí
Filipe Nobre Faria
vários pontos que nós temos que unpack, como costumo dizer. Bom, o primeiro ponto parece-me ser esta dicotomia entre gerar riqueza material e condições de vida e gerar aptidão reprodutiva. São duas questões diferentes e é verdade que no senso comum, mas não só no senso comum, também por exemplo na economia, durante muito tempo a moeda de troca que nós entendemos era a utilidade, não é verdade? Sim. E na política, tu disseste muito bem, nós tendemos a perguntar como é que vamos maximizar o PIB, como é que vamos criar mais riqueza, porque esse parece ser o nosso telógio. Esse é o nosso telógio. É a maximização de riqueza, de bens, para o nosso bem-estar. Há uma lógica hedonista por trás disto. Pode ser não necessariamente hedonista, mas que
José Maria Pimentel
permite às pessoas... De bem-estar, não é? Ou seja, as pessoas vivem mais tempo. A pessoa não tem que dizer que o que interessa é apenas o material para... Sem dúvida, sem dúvida. Evidentemente, desse ponto de vista, o modelo liberal foi... O modelo liberal e não só, atenção, instituições como as universidades, ou seja, o ensino, a ciência, uma série de coisas. Sem dúvida,
Filipe Nobre Faria
sem dúvida. Eu refiro-me ao material porque o material é uma espécie de uma base para depois essa satisfação de preferências se desenvolver. E, de facto, o liberalismo, nesse sentido, teve sucesso e é um caso de sucesso, obviamente, parece-me que é inegável. E é por isso que outras civilizações, nomeadamente podemos falar da China, podemos falar da
José Maria Pimentel
Turquia,
Filipe Nobre Faria
absorvem determinadas práticas liberais que tiveram sucesso. Isso faz todo o sentido. No entanto, abraçar determinadas práticas não significa abraçar o liberalismo. Portanto, falarmos de uma China liberal...
José Maria Pimentel
Por exemplo, no caso da China, sim.
Filipe Nobre Faria
Podemos falar de uma China que abraçou os mercados de uma determinada forma. Não podemos falar de uma China que abraçou o liberalismo.
José Maria Pimentel
Claro, claro, sim, concordo. E a
Filipe Nobre Faria
mesma coisa podemos dizer de outras grandes civilizações ou outros grandes espaços geopolíticos. Como tal, aquilo que eu queria dizer é que nós temos que separar esse sucesso daquele que é o sucesso da Biologia Evolutiva, Mas isto não é apenas uma questão de disciplina, ou seja, a biologia evolutiva vai olhar para outro sítio. Não é apenas isso. Aqui a questão é que a moralidade e as instituições, como nós discutimos logo à partida, para o pensador evolutivo, têm a função de gerar não bem-estar, mas adaptabilidade, capacidade reprodutiva no tempo. Mas isso, desculpa
José Maria Pimentel
interromper-te, mas isso é um bocadinho aquela falácia naturalista, não é estar a assumir que aquilo que rege a natureza e aquilo que regeu a nossa evolução é aquilo que nos interessa hoje em dia, o que não é necessariamente, não é?
Filipe Nobre Faria
Isso é uma posição interessante em meta-ética porque há quem considere que... Mas é isso na célebre divisão entre o facto e o valor, não é? Que não se pode passar do facto para o valor porque eles estão… ou seja, essa visão é uma visão que tem sustentado o liberalismo. É muito comum que o modelo liberal postule que há uma separação intrínseca entre o facto e o valor e não se pode passar de uma para outra e daí a falar-se naturalista. Mas há outras correntes filosóficas, por exemplo há a corrente aristotélica, a corrente aristotélica, funcionalista, que considera que o facto em si mesmo já nos diz aquilo que é normativo. Ou seja, se nós abraçarmos uma lógica aristotélica, há um telos na natureza e esse telos já tem uma capacidade normativa. Um objectivo, sim. Exatamente. Ou seja, disseste muito bem que se nós nos basearmos na falácia naturalista e na separação entre facto e valor, de facto, podemos dizer, Bom, mas não interessa para nada porque eu posso perfeitamente achar que determinada moralidade nos vai levar à extinção, mas eu valorizo outras coisas. Eu valorizo o bem-estar, valorizo a liberdade individual e como tal, para mim isso é perfeitamente irrelevante, ok? Se isto nos levar à extinção, tudo bem, eu permaneço no meu campo moral. Não, mas,
José Maria Pimentel
oh Filipe, eu percebo o que tu queres dizer, mas isso é um... Ou seja, levando este argumento a um extremo, é óbvio que ele tem alguma relevância. Imagina que surgiu uma moralidade diferente, que era uma espécie de liberalismo com um twist, que lhe dava extrema prosperidade, mas zero natalidade. As pessoas tornavam-se todas treas. É evidente que, até mesmo numa lógica consequencialista de números, isso teria muito que se lhe dissesse porque basicamente ia conduzir ao fim da espécie humana. Mas tudo o que não seja esse extremo, aí já não parece que isso seja a nossa preocupação maior. Se estamos a gerar mais números ou se estamos a gerar mais prosperidade, caso contrário, por estar-se a melhor em África do que se está na Escandinávia, não é? Eu nem tu achamos, acho eu, que se está melhor em África ou na América Latina, ou seja, em países menos devolvidos do que se está no primeiro mundo com todos os seus defeitos. No fundo, a minha objeção tem a ver com isso. Estou
Filipe Nobre Faria
a tentar perceber exatamente qual é o ponto em que tu estás a apoiar. Tu mantens-te na separação entre o facto e o valor, ou seja, nós percebemos que de facto este modelo é do ponto de vista evolutivo menos eficiente do que um outro modelo qualquer, mais tradicional, mais orientado para o grupo. No entanto, este modelo que nós temos gerou determinadas condições que nós preferimos em relação a outras e como tal vamos valorizar o nosso modelo em relação a outros. Penso que percebi bem a tua...
José Maria Pimentel
Sim, quer dizer, para pegar até nessa decisão de facto-valor, não estava a esperar de ir por aí, confesso, mas é interessante para isto. Eu diria que os factos naturais, se quiseres, e os factos naturais aqui podem ser simultaneamente a maneira como funciona a biologia, mas também as características inatas, por exemplo, de comportamento que a espécie humana tem, isso tem muito que ver com aquela questão dos valores, esses factos naturais são úteis enquanto medida do possível. E, portanto, nós não nos podemos afastar a indemasia disso. E, portanto, não te podes afastar a indemasia dos constrangimentos reprodutivos, porque senão arriscas-te a que a população acabe daqui a umas gerações, porque deixas de conseguir reproduzir. E do ponto de vista da moral, esse também é outro ponto importante, não te podes afastar excessivamente dos constrangimentos que são as nossas tendências inatas, evoluídas, porque vais criar uma moral completamente artificial à qual as pessoas não são capazes de aderir. Para dar um exemplo, a Revolução Cultural na China, por exemplo, foi uma manobra desse género em que basicamente se tentou virar a sociedade duas vezes e criar uma coisa tão tão tão estranha que as próprias pessoas intrinsecamente rejeitaram essa mudança porque mexia em coisas tão inatas e tão do cor, tão do centro da nossa maneira de ser, como a ligação entre pais e filhos, ou a separação de famílias. Aliás, eu creio que tu no livro até dás um exemplo giro dos kibbutz, não é? Exatamente, em Israel, que é um ótimo exemplo disso também. Mas é isso. Ou seja, fora isso, fazer equivaler a moral aos factos naturais, seria dizer que não houve progresso moral, por exemplo. Mas isso levar-nos-ia para outra conversa, que não era o meu objectivo aqui, atenção.
Filipe Nobre Faria
Bem, pois, isso levar-nos-ia
Filipe Nobre Faria
para uma outra discussão. Se
José Maria Pimentel
não te importares fazemos um detour para voltar à questão da coesão de grupos. Não te importares, mas diz o que quiseres dizer. Sim, sim, sim.
Filipe Nobre Faria
Eu percebo aquilo que tu estás a dizer, ou seja, o que me parece aqui é que nós estamos habituados a pensar na moralidade de um ponto de vista mais kantiano, ou seja, de um ponto de... No sentido em que a moralidade é algo que nós fazemos não necessariamente através do estudo do mundo natural, que depois nos vai dizer como é que devemos, como é que nos devemos comportar, mas através de determinados postulados racionalistas que pertencem ao outro mundo, pertencem como Kant diria, ao mundo da liberdade.
José Maria Pimentel
Sim, mas não é de todo esse o meu ponto, Filipe, não é mesmo esse o meu ponto. O que eu digo aqui é só, imagina por absurdo, o que é que é preferível? Uma sociedade que gera 10 filhos por casal, vamos assumir que eram casais, para simplificar, para não complicar excessivamente, mas que tenha um nível de vida e de liberdade... Mas nvel de vida, para não entrar em considerações morais. Apenas nível de vida, de bem-estar no limiar da subsistência, portanto bastante baixo, ou uma sociedade que gere apenas dois filhos em média por casal, mas que tenha um nível de bem-estar bastante mais elevado. Eu diria... Isto que eu estou a fazer, obviamente, é um juízo de valor e, portanto, é discutível, mas eu diria que porque, sem dúvida ou segunda, não é? Esse é um dos grandes méritos
Filipe Nobre Faria
do modelo liberal. Claro, mas aí tu terias de, se fosse de facto, ou seja, aceitando essas duas premissas, que há uma sociedade com condições de vida bastante piores mas com muito mais capacidade reprodutiva e uma outra sociedade com capacidades de vida melhores mas que não consegue gerar essa mesma reprodução, nós podemos efetivamente escolher entre uma e outra e achar que uma é preferível em relação à outra e temos essa liberdade. Agora, aquilo que eu faço no livro é mostrar que nós não temos assim tanta liberdade para escolher a sustentabilidade da nossa moralidade, porque se a função da moralidade é gerar adaptabilidade, se é essa a função, então aquilo que nós queremos, passa a expressão, é quase irrelevante. Nós até podemos dizer, eu prefiro esta em relação à outra, mas eu não posso dizer esta é mais sustentável do que a outra, Porque isso não faz muito sentido. Agora, é claro que quando nós começamos a escolher entre uma e outra, temos que perceber porque é que valorizamos uma em relação à outra. Mas também temos que aceitar as implicações. Estou-te a perceber. Nós podemos ter que chegar à conclusão que, ok, eu prefiro esta sociedade com uma natalidade baixa, mas eu percebo que esta sociedade não vai durar muito
José Maria Pimentel
tempo. Eu prefiro-a.
Filipe Nobre Faria
A outra é mais sustentável.
José Maria Pimentel
Então é isso mesmo. Então vamos falar do ponto de vista da sustentabilidade. Eu até diria para nos focarmos mais na questão do efeito sobre a sustentabilidade, do nível de coesão do grupo, até mais do que a questão da reprodução, para não nos perdermos numa espécie de rabbit hole, que é interessante intelectualmente, mas que acho que pode ser menos útil para esta conversa. Aí eu também discordo de ti, em certo sentido, embora eu acho que tu faças uma série de pontos relevantes, já lá vamos, em relação aos efeitos potenciais do individualismo da moral liberal sobre a coesão do grupo, se calhar a maneira mais fácil de explicar isto é o que tu dizes faz sentido. Tu dizes a moral serve para dar coesão aos grupos, eu te diria mais, a moral serve para permitir que os grupos ganhem escala, é aquilo que diferencia as sociedades humanas, sobretudo a partir do homo sapiens, é que conseguiram ganhar a escala. E a religião, por exemplo, é nesse sentido a melhor criação da moralidade porque permite ganhar uma escala gigante. Porquê que permite ganhar a escala? Porque tu, sabendo que tu és cristão, encontras um tipo a centenas de quilómetros de distância que também é cristão e tu sabes que vocês praticam a mesma moral e, portanto, permite estender aquela comunidade geograficamente num espaço muito maior do que não tem moralidade nenhuma ou tem uma com base em valores mais leves, digamos assim. Agora, sendo certo que a moralidade evoluiu para dar coesão aos grupos, portanto para permitir que os grupos funcionem unidos e cooperem de forma até muitas vezes extrema, o ambiente, ambiente aqui no sentido de lado, para que a nossa moralidade evoluiu, não é o mesmo em que nós vivemos agora. E é por isso que eu discordo da tua tese. Não discordo completamente da tua tese, não. Eu acho que há pontos muito relevantes em relação a potenciais fatores de insustentabilidade do liberalismo, mas o que me parece é a nossa moral inata, ou seja, as nossas predisposições cognitivas, sobretudo ao nível das emoções, para vários valores que nos vêm do ambiente em que a nossa espécie evoluiu, foram adaptações naquele tempo, mas não são adaptações agora. Por exemplo, eu acho que uma das coisas para que a seleção multinível pode ser útil, explicar, nem é tanta cooperação, no sentido em que tu... Eu acho que a cooperação tu até consegues entender enquanto um fenómeno derivado da questão de tu privilegiares as pessoas que partilham géneros contigo e também de uma lógica de reciprocidade. Então tu cooperas comigo, eu para a próxima vou cooperar contigo, se tu não cooperas eu não coopero, mas por exemplo a enorme propensão dos seres humanos para formarem grupos, por exemplo, até em condições em que não faz sentido nenhum, então podes separar grupos, ainda no outro dia falava disso aqui no podcast, podes separar grupos de forma quase aleatória, grupos de pessoas e elas tendem a criar uma união entre si, sem terem características que as unam à partida, tendem a criar uma união entre si e um antagonismo em relação a outro grupo, portanto esse grupismo que nós temos é intenso e acho que pode ser explicado por essa lógica pela seleção de grupo. Agora, essa moral, o que me parece, e acho que o modelo liberal e não só, mas outras instituições mostram isso, é que torna-se inadaptada, já não é uma adaptação à medida que as sociedades vão desenvolvendo, não só o mundo agrícola, pós-revolução agrícola, mas sobretudo ao mundo industrial moderno em que tu tens, e tu até tens uma série de exemplos disso, sei lá, a aversão aos imigrantes, por exemplo. Não é dizer que esse nosso, como é que diz o Jonathan Haidt? Essas papilas constativas morais, não é? Não quero dizer que essa nossa... Que a nossa atenção a uma ameaça externa seja completamente risível, não é? Obviamente que faz sentido que um país controle o volume de imigração que ocorre, mas ele é muito exagerado porque no fundo cria na nossa mente um perigo que muitas vezes não corresponde à realidade. A mesma coisa em relação às drogas leves, por exemplo. A intuição do ser humano médio é pensar, é proibir, vamos proibir aquelas pessoas que são desviantes da moral do grupo e que não estão a cooperar com o grupo. Na prática, o que a realidade mostra é que essa não é a melhor maneira de resolver o assunto. A mesma coisa em relação ao livre comércio. A nossa intuição evoluída é a protecionista. É a produção local e não fazer comércio com externos. O que os últimos dois séculos ou três séculos mostraram é que isso é um jogo de soma positiva e todos estamos a ganhar com comércio livre. Portanto, o meu argumento no fundo é, já vai longo, desculpa demorar tanto tempo, o meu argumento é o liberalismo justamente, o liberalismo e não só, o liberalismo e outras instituições da contemporaneidade, justamente por diminuírem ou mitigarem essas nossas propensões morais, conseguem gerar um modelo que é mais próspero, mas também eu diria mais sustentável porque mais adaptado ao mundo atual do que uma moralidade mais tradicional e mais coletivista. Ok.
Filipe Nobre Faria
Parece-me que aquilo que tu estás a tentar aludir é a teoria do mismatch. Sim, exatamente. Ou seja, nós evoluímos num determinado contexto e agora estamos neutro e como tal já não faz muito sentido que agora tenhamos determinados comportamentos. Isto é uma teoria com a qual eu concordo parcialmente, mas é uma teoria que é levada a determinados extremos e o extremo a que nós podemos chegar é que estamos a viver num mundo completamente distinto daquele que vivemos há... Mas eu não disse isso! Eu sei, eu sei, eu sei. Eu não disse isso. Eu sei, eu sei. Mas chega-se muitas vezes a este ponto. Ou seja, já não faz sentido ter grupos, já não faz sentido este processo de in-group versus out-group e como tal o liberalismo já mostrou que traz uma determinada prosperidade e como tal nós estamos cheios de mismatches, estamos cheios destes viés que vieram. Eu acho que nós somos bastante mais plásticos do que isso, ou seja, há um lado em nós que é inato, ou seja, é hardwired, mas nós também temos uma capacidade plástica ao nível moral e cultural que nos permite adaptar a novos contextos. Sim, sim, Mas o meu ponto é esse. E como tal, esse mismatch não é tão grave quanto isso. Ou seja, nós não devemos depreender imediatamente que se as pessoas estão a ter determinados comportamentos que foram adaptativos no passado e agora são estranhos porque são antiliberais, nós não devemos chegar à conclusão que aquilo que eles estão a fazer é um mismatch, não faz sentido nenhum. Porquê? E para isto temos que entender o conceito de fitness, de aptidão. O conceito de aptidão é um conceito que é intrinsecamente relativo. Relativo em que sentido? Relativo no sentido em que não interessa muito se um grupo está a crescer ou não, interessa que um grupo cresça mais do que outro, ou seja, é um processo relativo, porque no tempo, o que acontece é que quando um grupo, de uma forma sustentável, continua a crescer mais do que outro, ele vai suprimir o outro grupo. E isto acontece para além do nosso bem-estar. Dois antropólogos que eu gosto bastante, que são um dos pioneiros da gene culture co-evolution, que em português seria...
José Maria Pimentel
Co-evolução entre os genes e a cultura.
Filipe Nobre Faria
Exatamente. Só que o problema de não dar muitas aulas em português, os termos não vêm imediatamente à cabeça. Mas eles têm uma frase muito interessante em que eles dizem que é extraordinário que as sociedades ocidentais tenham conseguido criar toda esta capacidade de gerar bem-estar, mas são incapazes de transformar esse bem-estar em capacidade
José Maria Pimentel
reprodutiva. Sim, mas eu não acho isso estranho. Eu percebo o que queres dizer, mas a questão é, o que nós fomos... Quer dizer, nós não temos dados para concluir isto para lá de qualquer dúvida, mas o que os dados mostram país após país é quando os países se desenvolvem materialmente as pessoas com as nossas características inatas, não é? Estamos a falar da psicologia humana transversal. As pessoas deixam de querer tantos filhos porque deixam de estar numa lógica... Quer dizer, há um lado de diminuição da mortalidade, há um lado de diminuição de uma lógica que nem é sequer do ambiente evolutivo, é até do ambiente pós-revolução agrícola, feudal, de filhos enquanto ajuda à subsistência, portanto uma mão de obra, e passas a estar numa lógica em que tens filhos apenas por gostar de ter filhos, não é? E sim, é verdade, também há uma lógica mais hedonista, se tu quiseres, da pessoa desfrutar a vida, que é uma lógica que é... Quer dizer, não é provavelmente um produto da evolução, ou é um sub-produto da evolução, se nós
Filipe Nobre Faria
quisermos. Sim, sim. Claro, é verdade, ou seja, aquilo que tu estás a dizer é algo que é perfeitamente observável. As pessoas têm melhores condições, mas não parecem ser as melhores condições que fazem com que as pessoas tenham menos filhos. Parece-me que é um processo de progressão dos valores liberais, ou seja, é um processo cultural. Eu no livro, há uma parte em que eu falo do Friedrich Hayek, a teoria dele, ele é um liberal clássico, muito famoso, e a teoria dele é que os grupos liberais vão prevalecer na seleção de grupo precisamente porque são capazes de produzir mais riqueza material e como tal têm mais riqueza material e têm capacidade para ter mais filhos. Em vez de terem dois filhos agora têm capacidade para ter cinco ou seis ou sete e vão prevalecer em relação a outras sociedades que não abraçam o mercado e como tal têm altas taxas de mortalidade, são incapazes de ter grandes populações. A minha crítica à análise dele é precisamente que ele acha que a vontade de ter filhos é independente dos valores de uma sociedade, o que me parece que é uma falácia completa. Ou seja, a ideia de que nós temos filhos apenas para ajudarem na produção, não é? Que muitas vezes as pessoas dizem, agora não têm filhos porque eles agora são mais um custo do que uma ajuda.
José Maria Pimentel
Certo, e agora do ponto de vista material é absolutamente errado.
Filipe Nobre Faria
Exato, mas se nós saímos do mundo liberal, não é assim que as pessoas pensam em relação aos filhos. Os filhos são um bem em si mesmo.
José Maria Pimentel
Eu acho que se pensa mais os filhos como um bem em si mesmo
Filipe Nobre Faria
no mundo liberal do que no... Não, eu acho que não. Eu acho que O ênfase na bondade moral de ter filhos está em determinados sítios onde há uma moralidade mais
José Maria Pimentel
tradicionalista. Mas isso é por... Ou seja, como tu própria dizias, a moral surge para fazer as pessoas terem determinados comportamentos para o grupo, adaptativos. E, portanto, tu crias essa moral para fazer com que as pessoas tenham filhos porque os filhos são um meio para a subsistência do grupo, no mundo liberal, no mundo
Filipe Nobre Faria
desenvolvido. Calma, não colocaria a coisa dessa forma. As pessoas não têm filhos porque são um meio de subsistência para o grupo. Têm filhos, em primeira instância, porque maximiza a sua aptidão. Ou seja, depois as nossas interpretações do porquê que eles estão a fazer isso é que pode variar. Tu poderás dizer, bom, eu acho que é porque as pessoas têm filhos porque olham para o meio que as rodeiam e percebem, bom, agora se calhar tenho que ter cinco filhos porque vão trabalhar aqui na agricultura, mas agora já não é preciso, mas outras sociedades podem ver os filhos como uma questão de prestígio, por exemplo, ter 10 filhos é uma questão de prestígio e de estatuto social em relação a ter só um ou dois filhos. Sim,
José Maria Pimentel
depende, mas isso tu vês, sim, sim, sim, em algumas moralidades tu vês isso, na moralidade católica, por exemplo, e não só
Filipe Nobre Faria
tu vês... Precisamente,
Filipe Nobre Faria
precisamente. E, portanto, parece-me que aqui, o problema aqui está em que muitas vezes nós analisamos esta questão de uma perspectiva liberal, porque nós estamos a viver num mundo liberal e pensamos e respiramos liberalismo e a nossa... Eu costumo dizer que a moralidade é uma coisa muito viscosa, nós não largamos a nossa moralidade muito facilmente e ela está feita precisamente para isso, porque se nós pudéssemos descartar a nossa moralidade, sem mais nem menos, ela não tinha efeito nenhum, não é? Claro, claro. Portanto, ela é viscosa. E, aliás, este é um dos problemas do livro, que é estar a lidar com esta viscosidade da moralidade, que é nós que vivemos em sociedades liberais e que respiramos liberalismo, pensamos como liberais. Eu não estou imuno a isso, atenção, não estou a dizer que sou imuno, nem pouco mais ou menos. Mas é muito complicado, depois nós fazemos toda esta desconstrução para percebermos como é que outras pessoas pensam a
José Maria Pimentel
questão da matalidade e a questão de ter filhos
Filipe Nobre Faria
e o que é que os motiva a ter filhos. E aqui voltamos à questão central do livro que é o liberalismo ao dizer, ao não pregar, ao não promover ou não impor a boa forma de vida, a boa vida, está a deixar um vácuo para os indivíduos escolherem aquilo que eles querem. E esse é outro dos pontos do livro, que é as pessoas para agirem em determinadas formas olham para o grupo. O que é que o grupo está a fazer? E neste caso as pessoas estão a olhar para as classes altas, para as elites, o que é que as elites estão a promover e estão a tentar imitá-las. Portanto, isto é um processo que nós encontramos em quase todas as sociedades, que é as pessoas olharem
José Maria Pimentel
para as suas elites e
Filipe Nobre Faria
tentarem imitar porque é uma questão de status e quando
José Maria Pimentel
as nossas elites dizem... E porque te poupa o trabalho,
Filipe Nobre Faria
não é? Poupa-te o trabalho e descobreres o caminho por ti próprio. Exatamente, Exatamente. E como tal, o que é que nós encontramos nas elites hoje em dia? Liberalismo. Poucos filhos. Poucos filhos, exatamente. As pessoas investem na sua carreira, querem subir na vida e não enfatizam a questão dos filhos, enfatizam muito mais a questão da liberdade financeira, da emancipação, de inúmeros pontos e as pessoas depois imitam essa lógica.
José Maria Pimentel
Mas deixa-me... Eu acho muito interessante aquilo que tu dizes sobre a viscosidade da moral, e o facto de nós obviamente estarmos a tentar analisar uma coisa por fora estando dentro dela, isso é absolutamente verdade, mas o exercício que eu estou a tentar fazer aqui é seguir a tua abordagem, ou seja, não acho que Seja interessante para nós usar aqui argumentos deontológicos que fazem parte do liberalismo como questões de justiça ou questões de liberdade individual, por exemplo, o direito à diferença, à pessoa ser como quiser, que são tudo valores que eu partilho e que fazem parte do liberalismo, mas lá está, são menos... São no fundo fins em si mesmo, não é? São valores menos... Que é menos possível abordar numa lógica consequencialista. A minha ideia aqui é mesmo seguir a mesma lógica consequencialista que tu segues no livro, não é? No caso, em termos de fitness, não é? Em termos de adaptabilidade dos vários modelos. E eu estava a te ouvir, estava a pensar uma coisa em relação à tese do IEC e ao modelo que tu propunhas e o que eu diria aqui é que a maneira como tu estás a olhar para isto esquece, parece-me uma coisa que mais do que olhar para os dados e ver qual é o nível de natalidade, mesmo natalidade líquida, porque também importa obviamente a mortalidade, mas mesmo natalidade líquida dos países...
Filipe Nobre Faria
Sim, do crescimento, essencialmente. Sim,
José Maria Pimentel
exatamente, do crescimento populacional, importa perceber quais são as condições para essa natalidade. Porque no fundo o que muda é que as pessoas agora, nesta fase, não querem ter muitos filhos. Mas se de repente as pessoas quisessem ter mais filhos, os países que tu terias com maior capacidade para, ou as comunidades, quisesses para sustentar um número de crescimento populacional elevado, seriam os países mais prósperos.
Filipe Nobre Faria
Exato. Estás a perceber o que eu quero dizer? Eu estou a perceber o que é que tu queres dizer.
José Maria Pimentel
Mas o mesmo liberalismo que gera a prosperidade, estás a perceber que não é possível ter o bolo e comê-lo, não é? Eu percebo aquilo que tu
Filipe Nobre Faria
queres dizer, agora o meu ponto é que quando nós chegarmos a esse ponto já vai haver uma promoção grupal da natalidade que não é liberal e aí estamos num outro paradigma. Sério? Não, sério? Eu não estou a dizer, deixe-me só a clarificar então, eu não estou a dizer que, aliás eu mostro isso num livro, na parte final, em que eu digo que, de facto, determinados elementos do liberalismo trouxeram capacidade adaptativa. Por exemplo, o argumento que o Hayek dá em relação à Revolução Industrial, em que basicamente ele mostra que com a Revolução Industrial as populações europeias expandiram-se a tal ponto que conseguiram colonizar e expandirem-se para boa parte do mundo. E, portanto, isto é um exemplo claro de que o liberalismo tem capacidades adaptativas. Mas o meu argumento é diferente. O meu argumento é que isso aconteceu porque houve um ponto onde o liberalismo ainda não estava cristalizado, estava numa fase embrionária em que se misturou com uma moralidade tradicional, ou seja, De repente tivemos uma capacidade tecnológica que nunca tínhamos tido antes, mas ainda estava embrulhada numa moralidade tradicional. E o meu argumento é que aí de facto houve um processo adaptativo e parece-me que aí é claro. Agora, depois o liberalismo prosseguiu a sua transformação cultural, ou seja, não se manteve apenas e só numa espécie de progresso tecnológico, ele quis progredir também ao nível da moral para que determinados valores se tornassem standard nas sociedades liberais. E com o tempo nós chegámos a esse ponto, onde de facto a pessoa média, ou pelo menos a pessoa média educada, adere aos valores do liberalismo, genericamente. Se nós falarmos com uma pessoa que tem um curso universitário, 99% dos casos, se calhar estou a exagerar, mas vamos encontrar uma pessoa liberal ou genericamente liberal.
José Maria Pimentel
Sim, liberal neste sentido de lado.
Filipe Nobre Faria
No sentido de lado, precisamente. É sempre no sentido de lado aqui. Quando não for, eu aviso.
José Maria Pimentel
Exato, é mais fácil assim. Eu percebo esse teu argumento, mas acho difícil de sustentar isso, porque tu estás a fazer o malabarismo de dizer que o liberalismo serviu para catapultar as sociedades ocidentais para a prosperidade, mas na verdade, naquela altura, não era bem o liberalismo que moralmente comandava as forças e isso só veio a acontecer depois, mas só veio a acontecer depois qual era a força propulsora.
Filipe Nobre Faria
Aqui há uma nuança importante, que é... Eu não disse que o liberalismo não estava a comandar as forças, o que eu quis dizer é que o liberalismo não conseguiu mudar tudo de um dia para o outro. Claro.
José Maria Pimentel
Que é algo distinto, não é verdade? Claro, mas o que mudou naquele período foi o surgimento de uma moral, uma moral, quer dizer, de uma dividência de ideias liberais que foram o que fez aumentar a prosperidade nessas sociedades. Se não
Filipe Nobre Faria
tivesse havido isso, não tinha havido aumento de prosperidade. Mas determinados valores demoraram muito tempo a serem implantados, não é verdade? Portanto, nós olhamos para os founding fathers americanos, que estavam a pregar liberalismo, mas nós olhamos para a vida deles e a vida deles não era uma vida liberal.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. Em vários sentidos até. Em vários sentidos.
Filipe Nobre Faria
Não vale a pena dar vários exemplos. Demorou muito tempo para que os valores do liberalismo se implantassem nas sociedades ditas liberais. E nós vivemos durante muito tempo com os benefícios tecnológicos sem... Ou seja, e a progredir lentamente,
José Maria Pimentel
obviamente. Eu percebo o que
Filipe Nobre Faria
queres dizer. Mas não estávamos neste ponto. Aquilo que eu quero dizer é que estamos a chegar a um ponto em que, de facto, se está a cristalizar o liberalismo a um nível meta e quando chegamos a esse ponto estamos a introduzir memes, para usar uma expressão do Richard Dawkins, estamos a introduzir memes mal adaptativos na
José Maria Pimentel
sociedade. Um vírus, em vez de ser uma adaptação. Exatamente. Contribua para a continuidade e crescimento deste projeto no site 45graus.parafuso.net barra apoiar. Veja os benefícios associados a cada modalidade e como pode contribuir diretamente ou através do Patreon. Obrigado. É possível pensarmos na realidade atual, mas a realidade atual não é gerida apenas por uma moral liberal. Se nós pensarmos nas nossas famílias, os princípios morais que regem o nosso comportamento com a nossa família não são liberais, são de empatia, de altruísmo para com os nossos pais, nossos irmãos, nossos filhos, como é evidente, mas até nossos primos, até nossos amigos, de preferência deles em relação a quem está de fora, de rejeição de uma lógica de mercado, aliás tu até falavas disso no livro, de se de repente propuseres à tua mãe pagar-lhe o jantar ela vai ficar um bocado ofendida porque não faz sentido. Então até essa mesma moral não liberal, se nós quisermos, continua a existir nos dias de hoje e no fundo. O argumento que eu faço, e esse por isso é que eu dizia há bocadinho, que independentemente de eu discordar da tese geral, concordo com subteses, e uma delas é essa, e que de resto tem sido discutido por vários autores, é que pode haver de facto uma ameaça às sociedades que adotam uma moral cada vez mais liberal em que tu deixas de ter eventualmente coesão, crias uma atomização da sociedade. Aliás, é interessante porque essa é uma crítica normalmente feita a nível político mais até pela esquerda em relação à aquilo que se chama a mercantilização da sociedade, ou seja, uma lógica de mercado que, lá está, ainda não entra nas famílias, mas estenda a uma série de áreas da sociedade. Mas é curioso porque se a pessoa pensar alguém que venha de uma moral mais tradicional, chamemos-lhe assim, pode estender a mesma crítica a outras características da sociedade contemporânea, como por exemplo a primazia dada à liberdade individual, ao direito à diferença, que falávamos há bocadinho, que obviamente do ponto de vista absolutamente estrito não é adaptativo para o grupo, porque estás a diminuir a coesão do grupo a partir do momento em que tens pessoas diferentes. Portanto, tudo o que são as liberdades individuais, para que nós formos abrir muito espaço nas últimas décadas e até séculos, são nesse sentido estrito de grupo não adaptativo. E até o próprio Estado Social. O que o Estado Social faz é libertar-te das amarras, para o bem e para o mal, da comunidade em que tu estás inserido. Até à essência do Estado Social tu tinhas que viver da ajuda das tuas famílias, da ajuda dos teus amigos, da ajuda da igreja, ou o que fosse. A partir do momento em que surge o estado social, tu estás mais autossubsistente, o que eu acho maioritariamente uma coisa boa, mas, como nós falávamos ainda em OFF, tem esse trade-off, em que pode gerar uma atomização da sociedade.
Filipe Nobre Faria
Claro, claro. Bom, é importante assalientar que o meu livro não é um livro normativo, ou seja, é um livro que visa identificar um problema através de determinados instrumentos evolutivos, obviamente, visa identificar um problema, mas deixa a questão em aberto, ou seja, eu não proponho políticas públicas ou seja o que for. Portanto, qualquer discussão para além da análise do problema, vai ser uma discussão normativa, obviamente, que tem a ver com o facto de nós podermos valorizar a vida, a vida no sentido grupal do termo, no sentido de expansão, ou não, ou acharmos que a liberdade individual tem primazia em relação a esse processo. Mas, não me importa nada de fazer essa discussão, obviamente, embora o livro parou ali. Eu costumo
Filipe Nobre Faria
dizer que esta
Filipe Nobre Faria
é a primeira parte da minha tese. A primeira parte é identificar o problema, a segunda parte já lida com filosofia moral e com argumentos que vão tentar mostrar que algumas coisas são mais importantes do que outras. E que, como tal, algumas mudanças serão necessárias.
José Maria Pimentel
Eu percebo perfeitamente. Por isso é que eu te disse há bocadinho que estava a seguir a tua lógica consequencialista, chamamos-lhe assim, e não a focar-me numa lógica mais normativa, como estavas a chamar, em que nós dizemos que há coisas que queremos ter, independentemente das consequências que têm, portanto podemos dizer que não me interessa que uma sociedade liberal gere menos descendência porque as pessoas têm direito à sua liberdade ou têm direito a que haja justiça social ou sei lá, para usar um absurdo, imagina tu tens, para usar o exemplo absurdo, Imagina dois grupos humanos que são, entre tudo o resto, igual com a única diferença que há um grupo que decide matar todos os velhos e todos os deficientes, por exemplo. Do ponto de vista estritamente adaptativo, este grupo vai ser beneficiado. No entanto, nós rejeitamos isso deontologicamente porque o direito à vida, neste sentido, é um direito absoluto e, portanto, que não é legítimo fazer isso, independentemente disso ser benéfico ou não para o grupo. E, no fundo, é o que nós, é esse tipo de valores que regem as sociedades humanas. E depois podemos dizer que eles, mesmo numa lógica consequencialista, esses valores são adaptativos. Mas pronto, mesmo não indo por aí, por isso é que eu digo que eu percebo o que queres dizer, a pessoa não precisa de entrar nesse terreno mais normativo em que podemos continuar a defender o liberalismo porque O diagnóstico que tu fazes é interessante discutir independentemente disto, não é? Porque, e esse aliás é um ponto curioso que acontece com muitas instituições humanas, por exemplo, a democracia é defendida das duas formas. Os argumentos pró-democracia são aduzidos com base nos dois tipos de argumentos, não é? Tu dizes que a democracia é um sistema mais justo porque dá às pessoas todas a possibilidade de participar, mas também dizes, a ética democrática diz também que é um sistema mais eficaz, que é um sistema que vai gerar governos mais, vai gerar melhor governação no longo prazo, governos mais tais, mais adaptativos.
Filipe Nobre Faria
Eficaz em que sentido? Essa que é a grande
José Maria Pimentel
questão. Claro, claro, mas percebes o que
Filipe Nobre Faria
eu quero dizer? Sim, sim,
Filipe Nobre Faria
claro. É usado por dois tipos de lógica para sustentar. Em última instância, quando nós dizemos que determinadas instituições
Filipe Nobre Faria
são mais eficazes, temos que perceber o que é que normalmente se quer dizer com isso e se nós analisarmos os discursos políticos hoje em dia, quando as pessoas estão a tentar definir determinadas instituições, o que elas estão a tentar fazer é encontrar meios para maximizar determinados valores, neste caso são os valores liberais, ou seja, temos, precisamos de um PIB maior, porquê? Porque já gerar mais condições para as pessoas fazerem as suas preferências.
José Maria Pimentel
Ou só, por acaso não concordo com isso, acho que é só isso, mas não é só. Uma das coisas boas do desenvolvimento humano nos últimos séculos é que tu consiste em criar jogos de forma positiva e, portanto, teres uma melhoria, por exemplo, a melhoria do aumento da prosperidade, o aumento do PIB, é uma coisa que beneficia toda a gente, independentemente da tua moral. Não quer dizer que beneficie da mesma forma, mas beneficia toda a gente.
Filipe Nobre Faria
Um dos grandes problemas com a questão da biologia evolutiva, ou seja, analisando esta questão do ponto de vista da biologia evolutiva, é precisamente a questão da fitness. É que a fitness é, como eu disse há pouco, uma questão relativa. Ou seja, esses zero-sum games não são possíveis neste caso. Neste caso, se alguém se está a reproduzir mais do que
José Maria Pimentel
eu, eu estou a perder em relação àquela pessoa. Ah, esses positive-sum games é que não são possíveis. Sim, esses positive-sum games. Exatamente, sim. Mas essa é justamente uma das limitações que eu acho que existe nesta análise, estritamente de uma lógica evolutiva, é que a evolução funciona numa lógica de zero-sum game, de jogo de soma nula, mas o que as instituições humanas, o que a cultura humana consegue criar que a genética não consegue, digamos assim, são jogos de soma positiva. Jogos em que tu consegues criar situações que beneficiam toda a gente e, assim, os mercados livres, nem sempre, logicamente, não é? Mas enquanto a instituição permita justamente fazer isso, porque o comércio é bom para ambas as partes. Ok, mas o que é que é
Filipe Nobre Faria
isto a com beneficiar de toda a gente? Imaginemos que as pessoas têm toda a possibilidade de ter melhores salários, de fazerem aquilo que querem, de sentirem-se melhores na vida, é isso?
José Maria Pimentel
Sim, por exemplo, sim. Tem mais liberdade. Ok. No caso, é que é o que acontece sempre, não é claro que isto tem limitações, mas é... Muito bem.
Filipe Nobre Faria
Ou seja, nem sequer é uma questão que eu abordo muito no livro, porque para avaliar a sustentabilidade de um modelo não é assim tão relevante. É mais relevante para nós darmos razões para que um determinado modelo exista, razões normativas, mas é menos relevante para averiguar a sustentabilidade de um paradigma. Pois,
José Maria Pimentel
mas eu por acaso aí discordo, mas mesmo que tu penses na... Mesmo em termos estritamente evolutivos, não é? Quer dizer, estritas e estritamente evolutivas talvez não, mas mesmo em termos consequencialistas, tu teres população humana com
Filipe Nobre Faria
uma longevidade maior, que é um resultado deste jogo de soma positiva, é uma coisa positiva. Sim, mas ter longevidade maior sem capacidade reprodutiva não vai...
José Maria Pimentel
Não, não, não, com tudo o resto é igual, atenção! Com o resto é igual. Não vai muito longe. Com o resto é absolutamente igual, portanto, mantens a taxa de natalidade, mas aumentas a esperança de vida das pessoas. Isso a partir daí é positivo, a não ser que nós queiramos ter uma lógica absolutamente biológica de dizer o que interessa é o ritmo que se propaga à espécie, independentemente dos seus membros viverem um dia, um mês, um ano, dez ou cem.
Filipe Nobre Faria
Ou seja, aquilo que tu queres dizer, parece-me, é a não ser que nós adotemos uma perspectiva funcionalista da moralidade, então há outras considerações que são mais importantes. Mas lá está,
Filipe Nobre Faria
mas aí estamos
Filipe Nobre Faria
constantemente a cair no lado normativo. Pois é, eu não acho que seja puramente... Percebo o que queres
José Maria Pimentel
dizer, mas não acho que seja puramente normativo. Mas isso é outra discussão que de resto é um tema que eu já falei no podcast, que é a questão do progresso. Isso entrou um bocado na questão de se existe progresso ou não existe. Eu acho que existe justamente por motivos como este, mas é sempre possível relativizá-lo, não é? É sempre possível
Filipe Nobre Faria
dizer... Eu também acho que existe. O que é o progresso é algo onde nós podemos variar, ou seja... O que
José Maria Pimentel
é que tu achas que é o progresso?
Filipe Nobre Faria
Tu podes achar que o progresso é, por exemplo, o progresso que nós encontramos no modelo liberal, portanto, o progresso significa a maximização das liberdades individuais?
José Maria Pimentel
Não, não, sem liberdade. Só esperança de vida, minimização do sofrimento, bem-estar, longevidade. São critérios relativamente objetivos. Mas isto é uma discussão da meta-ética, eu sei, isto não é um termo naturalmente determinado.
Filipe Nobre Faria
Sim, eu posso concordar em alguns desses parâmetros, mas não concordar noutros. Por exemplo, se nós pensarmos na questão da sustentabilidade, por exemplo, tu poderás dizer, bom, se a sustentabilidade estiverem à oposição a determinados pontos que eu considero fazerem parte intrínseca do progresso, então eu prefiro estes pontos do que a sustentabilidade. Não estou a dizer que é isso que estás a defender, mas podrias eventualmente fazer isso. Enquanto que eu poderia dizer não, a sustentabilidade e a expansão da vida é parte intrínseca do progresso e como tal alguns trade-offs vão ter de acontecer em relação àquilo que nós consideramos que é progresso.
José Maria Pimentel
Sim, há aqui um argumento que eu já fiz há bocadinho que é no fundo da resiliência, se quisermos, dos sistemas. Nós podemos dizer que o liberalismo está a gerar um nível, mesmo nessa lógica estritamente biológica, que está a gerar um nível de natalidade mais baixo, mas se fosse preciso, se houvesse de repente uma nova idade do gelo, uma pandemia pior do que esta ou alguma coisa desse género, o que tu ias ter era uma queda provavelmente nos países menos desenvolvidos da natalidade praticamente para zero, ou natalidade efetiva, porque até podia haver filhos mas não havia recursos para os tratar ou para... Imagina que havia uma idade do gelo para produzir condições de vida enquanto que os países mais próximos teriam condições para isso. Esse é o meu argumento há bocadinho. Mas isto te interessa para avaliar a sustentabilidade, não é? Concordo parcialmente com essa análise. Agora, o meu ponto é
Filipe Nobre Faria
que, depois dessa catástrofe ou dessa pandemia, nós veríamos outro modelo que não teria de cortar necessariamente por completo com o modelo liberal, mas que já seria... Ou seja, já seria uma mutação em relação ao liberalismo. Já não seria o
José Maria Pimentel
liberalismo propriamente dito. Não, não, desculpa, mas o meu ponto não é esse. O que eu estou a dizer é, para a sustentabilidade não interessa só medir o efeito médio, se nós quisermos, de determinado sistema valorativo, mas também a resiliência dele. E o que eu estou a dizer é que o modelo liberal até em média pode gerar menos filhos, mas é mais resiliente, como gera mais prosperidade, é mais resiliente e, portanto, se surgir uma crise, tu sabes que as pessoas agora só querem ter dois filhos em média por casal ou até ligeiramente menos mas tem um buffer, tem uma almofada para suster vários embates até não conseguirem ter esses dois filhos enquanto que em comunidades com menor prosperidade eles até podem estar a ter muitos filhos agora mas se de repente há um problema ambiental, um problema exógeno, deixam sequer de conseguir ter filhos. Percebes onde quero chegar?
Filipe Nobre Faria
Eu já percebi o ponto e não discordo completamente dessa análise, embora nós tenhamos de perceber que o liberalismo, como ele existe neste momento, é incapaz de gerar taxas de mentalidade que permitam que as suas populações se substituam. Depende
José Maria Pimentel
dos sítios, não é? Acho que nos países nórdicos
Filipe Nobre Faria
está acima. Em média, em média. Em Portugal, por exemplo, é bastante baixo, é um dos piores. Mas em média estamos normalmente abaixo e nos sítios onde estão ligeiramente acima, normalmente conseguem ir-se através da imigração, através da imigração de zonas do globo com determinadas normas sociais que permitem que as pessoas tenham muito mais filhos. Mas lá está, aí estamos a trazer pessoas com outras tradições, com outras culturas que vão depois influenciar o sistema precisamente porque estão a fazê-lo de uma forma mais adaptativa.
José Maria Pimentel
Ainda bem que falaste do teu exemplo português, porque era outro dos contra-argumentos que eu queria usar. Porque a tua tese, no fundo, recapitulando, é dizer que o modelo liberal cria uma moral individualística e, portanto, isso gera menos natalidade. E, embora isso tenha inegavelmente algum poder explicativo, ocorrem várias, mesmo nestas lógicas de tritamento da reprodução, ocorrem várias exceções, como por exemplo o caso português. O caso de Portugal e das culturas mediterrâneas, mas falamos do caso de Portugal especificamente, é de um país que dentro do mundo liberal é dos mais coletivistas. A nossa moral, em certa medida por sermos menos devolvidos, por o liberalismo ter chegado mais tarde e ser analisado na sociologia entre outras pessoas pelo Hofsted, que eu já falei várias vezes no podcast, é uma cultura mais... Não é coletivista a nível global, mas é coletivista entre os países liberais, entre os países do mundo ocidental. E, no entanto, tem taxas de natalidade das mais baixas. E dentro do mundo ocidental, se tu for ver os países que têm taxas de naturalidade mais elevadas, se não estou a erro, encontras os países nórdicos, creio que não estou a mentir, que são justamente dos países mais individualistas, nesta lógica.
Filipe Nobre Faria
Primeiro, eu nunca fiquei completamente convencido que Portugal era um país coletivista, não
José Maria Pimentel
individualista.
Filipe Nobre Faria
Esse é um ponto que se calhar merecia a discussão em
José Maria Pimentel
si mesmo. Mas está à vontade. A vantagem do podcast é que a pessoa pode falar do que quiser. Se quiseres abordar isso, está à vontade.
Filipe Nobre Faria
A minha experiência em Portugal é que as pessoas pensam muito de uma forma familista, ou seja, mas isto é diferente de coletivista. Uma coisa é ter comportamentos que são adaptativos ao nível do grupo maior. Outra coisa é ter comportamentos familistas. Mas
José Maria Pimentel
porquê é que te interessa mais o grupo maior? Não estou a perceber isso. Como? Porquê é que te interessa especialmente o grupo maior? Quer dizer, qual é o argumento ou o objetivo para nós definirmos em que nível é que definimos o grupo?
Filipe Nobre Faria
A relação ao grupo maior é porque normalmente o seter ispáribus, o tamanho é uma adaptação positiva, ou seja, grupos com tamanho maior têm maiores capacidades para a conhecer em relação a grupos mais pequenos. Mas o familismo, por exemplo, é uma forma de cooperação a uma micro escala. É a ideia de que eu vou cooperar com a minha pequena família, mas vou ser um free rider para toda a sociedade. E muitas vezes nessas análises isto é considerado coletivismo e a ausência de individualismo, mas não me parece que seja. Parece-me que isto é algo que faz com que as sociedades no seu todo funcionem menos bem ao nível do grupo. E portanto aqui teríamos de redefinir um pouco os parâmetros daquilo que consideramos individualismo e coletivismo. Isto para dizer que considero que Portugal é um país bastante individualista, neste sentido, as pessoas pensam muito na sua família e menos
José Maria Pimentel
no coletivo. Mas pensar na família não é pensar no próprio. A questão é que nós, por problemas que têm a ver com um baixo nível de capital social, que é outro conceito dessa área, temos dificuldade em criar grupos para lá do nível familiar ou para lá do nível da nossa comunidade, da nossa, sabe, bairro, amigos de escola, pessoas próximas.
Filipe Nobre Faria
Eu concordo que não é individualismo num sentido estrito, mas também o que é o individualismo no sentido estrito? Também há... Quer dizer, nós também temos que perguntar quem é esse indivíduo completamente atomizado que sente que está completamente... Ou seja, aquele indivíduo cosmopolita idealizado, não é? Quase uma caricatura. Onde é que ele está exatamente? Mesmo nos países do centro da Europa e do Norte da Europa, as pessoas sentem-se parte de uma determinada comunidade, a comunidade é mais alargada.
José Maria Pimentel
Claro, e somos um animal social, não é?
Filipe Nobre Faria
É mais alargada do que a nossa.
José Maria Pimentel
Mas ainda assim eu diria que uma das coisas que a evolução da moral nos últimos séculos fez foi não eliminar esse coletivo. Em certo sentido, até o aumentou, até o alargou, mas tornou essa pressão da moral mais leve. Mas, paradoxalmente, esse é um aparente paradoxo, se tu olhares para esses países chamemos-lhes mais individualistas, como os países nórdicos, por exemplo, eles são justamente países com níveis de capital social, ou seja, de confiança interpessoal, ou seja, níveis de cooperação entre as pessoas mais elevados. Precisamente. E isso parece-me adaptativo. Sim, porque
Filipe Nobre Faria
ele leva o grau de seleção para o nível do grupo e não necessariamente para o nível
José Maria Pimentel
da família. O que eu quero dizer é, tu se pensares em sociedades mais tradicionais, se pensares, sei lá, no Médio Oriente, por exemplo, se pensares bem à África, se pensares no extremo oriente, na China, mas sobretudo naqueles países tipo Vietnã, que tem as sociedades mais, chamemos-lhes coletivistas, elas parece-me também têm esse problema de escala. Porque o nível de capital social é o nível mais baixo em que as pessoas desconfiam umas das outras. Por exemplo, se tu fors a um... Se tu fors... Eu não sei se já estiveste na China, mas é muito giro a pessoa ir a um supermercado ou a um mercado e as pessoas estão-se a atropelar umas às outras. E a China, embora seja um país continente, um país gigante, tem uma unicidade cultural bastante grande. Etnicamente são quase todos Han, falam praticamente todas a mesma língua e, no entanto... É o maior etnostado no mundo. Exatamente, é o maior etnostado no mundo. E no entanto, o nível de capital social é relativamente baixo, ou seja, as pessoas, e isso dificulta as transações, dificulta a cooperação, isso cria dificuldades nas relações económicas entre as pessoas, que é uma coisa que existe em Portugal também se nós compararmos com países mais desenvolvidos. E portanto, no fundo, essa lógica de grupo, o que eu quero dizer é, parece-me que isso tem mais que se lhe diga, porque uma coisa é o grupismo, se quisermos chamar, que tem a ver com o sentimento de partilha moral, estritamente moral, de valores e cultural das pessoas que fazem parte do teu grupo e uma aversão a quem está fora. Isso é uma coisa. Outra coisa, que está em certo sentido um nível abaixo, mas que me parece mais importante, pelo menos do ponto de vista da prosperidade, é a questão da cooperação. E a cooperação entre as pessoas, porque a cooperação não precisa necessariamente disso, e a cooperação entre as pessoas é mais elevada nos países, em média, nos países mais individualistas, que me parece um paradoxo desta análise. A cooperação é mais elevada em países individualistas? Ou seja, o nível de capital
Filipe Nobre Faria
social, que é outro nome para confiança interpessoal, é mais elevado nesses países. Sim, podemos aceitar essa permissão. Eu não sei até que ponto é que na China não há confiança interpessoal.
José Maria Pimentel
Não é não haver, desculpa, é ser
Filipe Nobre Faria
mais baixa. Ou ser bastante
José Maria Pimentel
mais baixa. E eu não quero também prender um exemplo que eu estou aqui a sacar do nada, não é? Porque isto é mais um exemplo do que propriamente prova.
Filipe Nobre Faria
Sim, exato. Eu aqui teria de estar a argumentar com base nesses dados e não tenho a certeza que assim seja, ou seja, eu olhando para a China vejo um etno-estado enormíssimo, que obviamente com os problemas que um estado daquele tamanho tem, mas que, por exemplo, olhando para a questão das relações internacionais, é um estado em ascensão e muitos consideram que vai ser a próxima superpotência mundial, ou pelo menos uma das superpotências no mundo multipolar.
José Maria Pimentel
Mas aí não tem a ver, isso é verdade, mas isso já não tem a ver com o argumento da natalidade, não é? Aí tem a ver com o argumento da prosperidade mais
Filipe Nobre Faria
geopolítica. Sim, mas também tem. Ou seja, o Luxemburgo vai ter muitas dificuldades em conseguir
José Maria Pimentel
fazer face à China com a dimensão que tem. Certo, mas a natalidade na China diminuiu e até, aparentemente, por uma escolha não adaptativa dos líderes chineses. Claro, claro, claro. Com a imposição da política filiúdica.
Filipe Nobre Faria
Obviamente que sim, obviamente que sim. Mas no entanto, eles provavelmente também acharam que na altura não precisavam e agora já levantaram... Ou seja, há um processo de management na China, enquanto que no liberalismo não há um processo de management. As coisas são mesmo assim. E no dia em que, no modelo liberal, se começar a aderir a um processo de management, eu tenho muitas dúvidas que nessa altura estaremos a aderir a valores liberais. Pois, mas eu acho que é justamente
José Maria Pimentel
a ausência, não é ausência, mas é um processo de management mais diluído, eu acho que ele existe na mesma e tu apontas para isso no livro, que é mesmo nas democracias existem elites mais orgânicas, idealmente, mas existem, ou seja, pessoas que fazem o enquadramento, o framing, como tu lhes chamas, dos valores, mas eu acho que é justamente uma das vantagens do liberalismo neste sentido lá, até que é mais flexível do que outros regimes. Por exemplo, ao longo dos últimos séculos, várias vezes aconteceu que pessoas olharam para regimes autocráticos que estavam em ascensão e disseram, bom, estes tipos é que estão a fazer a coisa bem, não é? Porque nós aqui na democracia, com os nossos pico-inícios, com esta história da liberdade individual e democracia, criamos aqui um monte de empecilhos e estes tipos, e estes tipos podem ser a Alemanha nazi, pode ser a China atualmente, podemos falar da Rússia, pode ser a União Soviética, estava a faltar esse exemplo evidente, e no entanto o que a história tem mostrado é que esses regimes são pouco flexíveis, pouco adaptativos, pera, adaptativos aqui tem outro sentido, adaptáveis, não é adaptativos, é adaptáveis, são pouco adaptáveis a uma mudança de circunstância E portanto tu consegues, por exemplo, a União Soviética tu conseguias, e aliás é uma crítica que afeta a China também, para tu convergires com o paradigma atual, tu consegues chegar lá via planos que encarnais ou uma coisa do género. Mas para criar inovação já é bastante difícil, e eu suspeito que seja esse o caso. Claro que eu não posso provar isto, mas quando a pessoa olha para a China e diz aqueles tipos é que são safabem, a questão é que o regime autocrático é inevitavelmente pouco flexível porque está preso às elites que mandam. Esse é que é o problema. Eu parece-me que o teu argumento pode
Filipe Nobre Faria
ser invertido, ou seja, obviamente que os modelos não liberais, portanto a Rússia, a China, poderão perfeitamente dizer, olha para aqueles liberais, andam ali a viver há 200 anos naquilo e acham que aquilo é o fim da história e
José Maria Pimentel
andam enganados porque acham que aquilo é muito
Filipe Nobre Faria
adaptativo, adapta-se bem, é flexível e tudo mais. Ou seja, isto é uma história, é uma narrativa que nós, como liberais, gostamos de contar. Agora, nós olhamos para a história da humanidade, se nós quisermos, e o liberalismo é uma bolha, não é? É um período mínimo e, ainda por cima, nem sequer foi um período estável de 200 anos, houve ali momentos
José Maria Pimentel
em que
Filipe Nobre Faria
ele quebrou. E, portanto, obviamente nós gostamos, nós ocidentais, gostamos de enfatizar as partes que nós consideramos positivas no nosso regime. Isso é natural, digo eu, até tem a ver com a tal viscosidade da moralidade. Ou seja, parece-me que muita da objeção a determinados problemas do liberalismo vem desta viscosidade, das pessoas não quererem abdicar dos seus valores, porque se elas chegam a determinadas conclusões são obrigadas a repensar os seus valores. Isto é um processo doloroso do ponto de vista moral e do ponto de vista social. Nós não queremos enverdar por esse caminho. É
José Maria Pimentel
Uma espécie de dissonância cognitiva, não é?
Filipe Nobre Faria
Exatamente, ou seja, nós vivemos numa determinada sociedade que nos pede determinados comportamentos e determinadas crenças e depois nós internamente chegamos a um ponto onde, bom, mas eu já não consigo acreditar nisto. E, portanto, há muita resistência para que se perceba alguns dos problemas centrais do liberalismo. Por exemplo, a questão da seleção de grupo. Obviamente podemos falar da seleção de grupo do ponto de vista técnico, ou seja, estritamente do ponto de vista da biologia evolutiva, mas também podemos falar dessa questão do ponto de vista sociológico. Porquê a seleção de grupo cai em desuso a seguir à 2 Guerra Mundial? Não é? Nós podemos perguntar porquê que isto acontece? Porquê que de repente aparece o Richard Dawkins a promover o individualismo da self-esteem? É tudo uma questão de indivíduos? É só família e mais nada? Porquê que isto acontece naquele sítio? Obviamente que há argumentos científicos que foram dados, mas há ali um contexto sociológico, moral, de tal viscosidade da moralidade, que faz com que determinados modelos sejam mais aceitos numa determinada altura do que outras. Mas se nós olhamos para Charles Darwin, Charles Darwin não tinha dúvidas que era uma questão de situação de grupo. Porque sem essa competição entre grupos, a única coisa que nós temos é egoísmo, porque é a única coisa que vale a pena perseguir num mundo onde não há competição entre grupos.
José Maria Pimentel
E, atenção, isso faz sentido, não é? Porque nós... Há níveis de altruísmo na espécie humana que, de facto, são extraordinários e difíceis de explicar, não é? Claro, os kamikazes no Japão, por exemplo. Os kamikazes, sim, sim. Bem, esse então é um... Extraordinário.
Filipe Nobre Faria
Aliás, um antropólogo, o Henry Harpenden, estudou a proximidade genética entre os indivíduos da população japonesa e chegou à conclusão que eles têm uma proximidade genética de um neto para um avô. Ou seja, aquele cluster genético é tão concentrado que vale a pena alguém meter-se num avião e explodir-se contra um inimigo para defender aquela pula genética. E
José Maria Pimentel
do ponto de vista do parentesco, sim, engraçado. Ou
Filipe Nobre Faria
seja, funciona do ponto de vista do grupo e funciona do ponto de vista
José Maria Pimentel
do parentesco. Engraçado. Por acaso, nunca tinha apanhado isso, curioso. E depois de teres exemplos também, como aliás nós falávamos, não sei se foi em Office, já estávamos a gravar, de altruísmo sem qualquer relação de parentesco e até mesmo com o grupo muito difusa, não é? Que tu vês pessoas que doam dinheiro para campanhas internacionais. Sei lá, eu aqui no podcast, por exemplo, tenho um número relativamente grande, para lá de uma centena de mecenas, de pessoas que contribuem para o podcast e embora haja alguns benefícios associados é evidente, é de várias formas evidente que as pessoas o fazem por gosto em ajudar e não por ser um meio para um benefício que vão adquirir, o que é muito curioso, não é? Muito específico da espécie humana.
Filipe Nobre Faria
Claro. Aliás, outro dos grandes triunfos a seguir à Segunda Guerra Mundial é o triunfo da Rational Choice Theory, não é? Portanto, a ideia do indivíduo auto-interessado ou egoísta, se quisermos usar o termo, que visa maximizar a sua utilidade. E, portanto, é um paradigma, é um paradigma moral, estamos a viver no triunfo do liberalismo, não é? No pós-guerra e é interessante ver como as metodologias ou a epistemologia, se quisermos, é influenciada por esse side case.
José Maria Pimentel
Ah, esse, por acaso, nós não falámos disso porque eu quis falar do ponto principal do teu livro, o teu livro também aborda essa questão e quer dizer, diz uma coisa com que eu concordo em absoluto, que é a evolução mostra que a evolução, e mesmo sem evolução, a análise da psicologia humana mostra que há vários tipos de comportamento, há tipos de personalidades e, portanto, há muito poucas pessoas que respondem exatamente a esse modelo absolutamente racionalista da literatura, sobretudo da economia. Mas esse, na verdade, até é um... Essa tese do animal racional é muito específica de uma economia mais ligada ao liberalismo económico, não é? Mesmo dentro do modelo liberal, não é? Tu tens quem se oponha a isso, embora me parece até não sucorrendo dessa plurality of types, não é?
Filipe Nobre Faria
A pluralidade dos tipos. Dos tipos,
José Maria Pimentel
exatamente. Dos tipos de personalidade, diria eu, ou tipos de comportamento, que na verdade é o que faz sentido. E eu estava a te ouvir há bocadinho a falar do liberalismo e da... Voltando até aquele ponto que tu fazias há bocado, da expansão da moral liberal ter sido gradual e é interessante porque de facto nós vemos que mesmo hoje em dia ela não abarca tudo e uma das restrições à expansão da moral liberal que continua a revelar-se muito rígida e que muitos liberais neste sentido lato, seja de esquerda ou direita, são forçados a reconhecer que é um obstáculo difícil de transpor é a questão do... Que tem que ver com os grupos, é a questão do Estado-nação. A questão de que tu consigas criar a União Europeia enfrenta claramente essa dificuldade. Nós ainda não conseguimos criar democracias e não conseguimos criar uma democracia pan-europeia, não é? Não conseguimos criar um Estado Social pan-europeu. Temos dificuldades em criar sequer um orçamento pan-europeu, não é? E eu acho que isto tem que ver com a questão da moral de grupo para que tu chamas a atenção, não é? Como nós estamos feitos para viver em grupos, não é? Temos
Filipe Nobre Faria
dificuldades... Porque somos identitários, Ou seja, o nosso altruísmo termina onde a nossa identidade termina. E a partir desse momento, não estou a dizer que isto aplique-se a toda a gente, atenção, mas genericamente é isto que nós verificamos. E a União Europeia também, na minha ótica, tem feito uma peça de trabalho ao nível de mostrar aquilo que há em comum entre todos os cidadãos do mundo e acaba por passar uma mensagem de um contrato social de todos os cidadãos do mundo que se estão a unir na União Europeia, quando aquilo que teria, provavelmente, alguma ressonância entre os europeus era o enfatizar daquilo que há em comum entre os europeus. Esse ponto faz todo sentido, sim. Que é algo bastante distinto daquele liberalismo universalista que nós encontramos na União Europeia, que apesar de eles acharem que esse é o caminho a seguir, é o caminho que está a dificultar o processo de integração europeia. Pelo menos na minha ótica, mas esta é a minha análise.
José Maria Pimentel
Eu tendo a concordar contigo. É um jogo difícil entre as duas coisas. Porque tu precisas de diminuir as barreiras que existem entre os vários grupos, entre as várias comunidades, entre os vários estados-nação que existem na Europa, mas ao mesmo tempo tens que enfatizar, e isto vai ao encontro desse ponto, tens que enfatizar uma espécie de fronteira externa cultural entre a Europa
Filipe Nobre Faria
e o EU. Ou seja, falando da linguagem da seleção de grupo, estás a mudar o nível de seleção. Estás a dizer, agora o nível de seleção não é o Estado de Nação, agora o nível de seleção é a União Europeia. Uma
José Maria Pimentel
espécie de patriotismo europeu, não é? Exatamente, a direcção europeia. Primeiro é uma especialidade na história, mas é um facto, se nós pensarmos, há muitos tiros no pé. A maneira como foi gerida... Agora, é um detour face àquilo que nós estávamos a falar, mas a maneira como foi gerida a crise do euro, independentemente do nosso posicionamento político em relação ao assunto, em que tu tiveste um antagonismo gigantesco entre alemães e gregos, por exemplo, em que Alemães a viver na Grécia passavam um bocado e, sobretudo, gregos a viver na Alemanha passavam um bocado. Quer dizer, isso é destrutivo para a construção de uma moral europeia.
Filipe Nobre Faria
É um típico caso onde a seleção a um nível mais baixo destrói a seleção a um nível mais elevado. Tal como há pouco eu estava a dar o exemplo da família, se eu só me preocupar com a minha família, aquilo que é bom para a minha família não é necessariamente bom para a minha sociedade ou para a minha nação. E aquilo que é bom para a minha nação pode não ser necessariamente bom para a União Europeia E por aí adiante.
José Maria Pimentel
E é um caso em que a liderança, quem está no poder, que podia fazer aquele enquadramento que falávamos há bocadinho, por estar a gerir uma situação bastante difícil, mas com alguma inaptidão, geriu esse enquadramento da maneira errada ou influenciou da maneira errada em que gerou um antagonismo maior, em vez de gerar uma proximidade maior como, sei lá, como... Programa Erasmus, por exemplo, gera uma proximidade maior. Neste caso foi exatamente ao contrário. Claro,
Filipe Nobre Faria
claro. Não, concordo, concordo plenamente nesse sentido. Acho que a União Europeia tem dado muitos tiros no pé, precisamente por esta incapacidade de perceber que as pessoas poderiam estar abertas a uma identidade europeia que já existe de alguma forma, ou seja, já tem raízes construídas, mas não estão abertas à ideia da União Europeia como uma stepping stone
Filipe Nobre Faria
para um governo mundial.
Filipe Nobre Faria
Não estão abertas a essa ideia. E a União Europeia continuou durante muito tempo nessa linha, que encontramos em muitos autores, desde Habermasen a vários outros, mas que me parece ineficiente e do ponto de vista evolutivo há algumas explicações para isso.
José Maria Pimentel
Sim. Deixa-me voltar à tua tese, agora desviámos um bocadinho, voltar à tua tese em relação ao liberalismo, queria-te perguntar outra coisa. O que é que tens a dizer de outro argumento que eu acho que pode ser feito em relação à tese da sustentabilidade das instituições liberais, que é o facto de o liberalismo, entre outras coisas, ter conduzido a um nível de conflito mais baixo. Obviamente nós temos dois casos muito conspicuos, primeira e segunda guerra mundial, mas se analisarmos o global de conflitos, de número de mortes, de até guerras civis, que acho que são especialmente importantes neste contexto, porque são guerras num grupo que se divide em dois ou mais, não é? Mas tipicamente são guerras num... Exato. Não é? Não sei lá, guerra civil espanhola, não é? Um país que se dividiu de repente em dois, não é? Claro. Em dois grupos. Fações. Duas fações, exatamente. E o liberalismo, entre outras coisas, parece diminuir o número de guerras civis. Se calhar não concordas com esta tese.
Filipe Nobre Faria
Pois, é uma tese que merece alguma análise, obviamente. É uma análise cuidada, porque podemos estar a confundir o telos do liberalismo com a sua eficiência a atingir as telas. Ah, pode ser uma inépcia do liberalismo, é isso que queres dizer? Não sei, não sei. Agora, o que me parece é que pegando nesta, numa análise evolutiva, há uma boa explicação para a permanência das guerras, ou seja, se calhar, racionalmente, seria melhor nós dizermos, bom, porquê que não concordamos todos em não enverdarmos por conflitos sangrentos? Bem, eu não vou dizer que não beneficiam ninguém, porque numa guerra eventualmente alguém vai ganhar. Mas que são... Sim,
José Maria Pimentel
mas podem ser um jogo de soma negativa, num mínimo de nula, de certeza. Podem
Filipe Nobre Faria
causar danos irreparáveis, não necessários. Porquê que nós não concordamos com determinadas coisas e parece-me que uma explicação central é precisamente o carácter relativo da fitness, da adaptação, que é mesmo que não existissem guerras entre grupos, uns grupos estariam a crescer mais do que outros e a partir do momento em que há um grupo a crescer mais do que outro, começa a exceder a sua caring capacity, a sua capacidade... Como é que eu poderia dizer isto? Caring capacity? Bom... Começar a
José Maria Pimentel
cuidar? Eu não sei, eu nunca tinha ouvido essa expressão.
Filipe Nobre Faria
A caring capacity é capacidade para se continuar a expandir. E a partir de uma determinada altura os grupos começam a colidir apenas e só por existirem diferenças de crescimento. E aí aqueles que estão a crescer menos só têm uma hipótese de parar aquele processo que é, bem, então vamos para a guerra se não conseguimos vencer pelos números vamos para a guerra e portanto é um jogo muito muito delicado quando nós percebemos a questão deste ponto de vista.
José Maria Pimentel
É, mas a questão é que, nessa aula escrevi, tratamento evolutivo, sim, mas aquilo que a história mostrou que tu consegues criar é um jogo de soma positiva em que diminuindo o número de guerras consegues criar mais prosperidade para todos. Claro que estamos sempre a voltar ao mesmo ponto de discórdia.
Filipe Nobre Faria
Sim,
José Maria Pimentel
já descobrimos esse ponto. Esse ponto...
Filipe Nobre Faria
E aqui o meu ponto central é que do ponto de vista da fitness, da análise biológica, não podemos dizer que há um jogo de soma positiva. Porque se um grupo estiver a crescer mais... A não ser que todos os grupos estejam a crescer exatamente da mesma forma, o que seria algo extraordinário e inusitado.
José Maria Pimentel
Mas tu tiveste um aumento da população, um aumento muitíssimo grande da população humana no mundo, não é? Nesse sentido...
Filipe Nobre Faria
Sem dúvida, mas de forma desigual. Ou seja, de forma desigual, mas com conta que cresceu
José Maria Pimentel
exatamente ao mesmo nível. Não, mas espera aí, mas aqui o que interessa para o outro grupo é quanto é que tu consegues reproduzir. Só interessa se reproduzes mais do que outro nessa lógica relativa se os recursos forem os mesmos para todos, se os recursos forem fixos. Não estou a ser claro naquilo que eu estou a
Filipe Nobre Faria
dizer. Aquilo que eu quero dizer é que se nós tivermos dois grupos, na sala de aulas é mais fácil porque podemos pôr um grupo, pôrmos outro grupo, geramos alguma teoria dos jogos e chegamos a determinadas conclusões. Vamos imaginar dois grupos. Um está a crescer a uma determinada taxa. O outro também está a crescer, mas está a crescer a uma taxa maior. Ou seja, nós podemos dizer que estão os dois a crescer, é bom, do ponto de vista evolutivo, extremamente evolutivo. Estamos a esquecer as economias e o bem-estar e tudo mais. No entanto, no longo prazo, aquele que está a crescer mais vai dominar o outro, Ou seja, vai invadir o espaço do outro e se a dinâmica não se alterar, um vai ser selecionado em relação ao outro.
José Maria Pimentel
Sim. Não percebi o que foi que eu quis dizer. Não sei se consegui tornar a questão
Filipe Nobre Faria
clara. E este processo... Ou seja,
Filipe Nobre Faria
em algum ponto os recursos vão extinguir, não é? E claro. Sim. Como é que separa este processo? É muito complicado, não é? É muito
Filipe Nobre Faria
complicado fazer... E se calhar não separa porque faz parte da natureza, que não separa. Mas isto levanta, obviamente, questões filosóficas, questões... Perguntas morais em relação a isto, que são muito interessantes e algumas delas eu tenciono desenvolver no meu trabalho.
José Maria Pimentel
Nós falámos desta questão da moral liberal conviver com outras morais na sociedade e nós vemos isso em que é muito visível, quer dizer, de uma maneira mais ou menos intensa, uma moral mais tradicional, chamemos-lhe assim, ou mais próxima da nossa... Isto é discutível, mas mais próxima das nossas tendências inatas, coexiste com valores liberais nas sociedades contemporâneas. Para pegar no trabalho do Jonathan Haidt, que tu falas também no livro, a questão do respeito pela autoridade, a questão da preocupação com o grupo, a questão daquilo que ele chama de santidade, que tem a ver com uma pureza, muitas vezes ligada à moral sexual e a outras coisas, são valores que convivem, que nos passe que na moral pública, digamos assim, ou na moral mais geral, é dominado por valores liberais. Tu dirias, por exemplo, que uma implicação da tua tese é que esses subgrupos que têm essa moral diferente, nós vemos por exemplo em Portugal, os católicos por exemplo, tenderão a ter no mínimo um misto entre uma moral liberal e uma moral mais deste tipo. E portanto tu dirias que por exemplo grupos, ou nos Estados Unidos é mais evidente, não é? Sei lá, ou até mesmo no Brasil, quer dizer... Os
Filipe Nobre Faria
amish, os mormon, etc.
José Maria Pimentel
Exatamente, exatamente. Então tu dirias que... Os subgrupos. Exatamente, que estes subgrupos são mais sustentáveis e tenderão a aumentar de dimensão, e já agora... Dimensões, eu diria
Filipe Nobre Faria
que sim. E prosperidade? Bem, isso é uma questão... Penso que é uma questão matemática e de lógica. Ou seja, esses grupos, por exemplo, o caso dos Amish, via estatísticas, eles duplicavam a sua população a cada geração.
José Maria Pimentel
Sim, tu refez isso no livro.
Filipe Nobre Faria
Eu não tenho os números na minha cabeça agora, mas eles estão a crescer exponencialmente e não são precisos assim tantos anos, do ponto de vista evolutivo, tantos anos para uma população daquelas tornar-se maioritária. Que É
José Maria Pimentel
uma população geométrica.
Filipe Nobre Faria
E a partir do momento em que se tornam maioritários e tornaram-se maioritários precisamente porque aderiram a uma moralidade que do ponto de vista evolutivo funciona, A partir desse momento é pouco provável que, a partir do momento que eles têm poder dentro das próprias instituições, eles não vão alterar as instituições por dentro e acabarem com o modelo liberal, por exemplo, porque eles não acreditam naqueles valores. Eles estão a viver dentro daquela sociedade,
José Maria Pimentel
mas eles não acreditam naqueles valores. No caso do BMC é mesmo o mundo à parte, não é? Esse é um bom exemplo nesse sentido. Exatamente, eles
Filipe Nobre Faria
rejeitam determinadas tecnologias, eles não acreditam naqueles valores e, portanto, e tu falaste do caso português, disseste que supostamente determinados grupos vão ter mais filhos do que outros, o que me parece que faz algum sentido dizer que esses grupos, com o tempo, vão se tornar maioritários e vão ter cada vez mais influência na política da sociedade e, como tal, vão também influenciar a sociedade nesse sentido, as instituições vão mudar para se adaptarem a eles e neste caso, se por exemplo, as pessoas liberais que estão nas profissões liberais, nas universidades, como CEOs, etc, essas pessoas não têm filhos, não é muito difícil de perceber que aquelas pessoas que estão a carregar o liberalismo não vão estar cá nas próximas gerações, não digo na próxima geração, mas no futuro. E como tal, é um processo de seleção. É não ser que influenciem culturalmente os filhos dos outros. Podem influenciar, mas sempre que influenciarem, os outros vão deixar de ter filhos. E, portanto, vai haver um ponto em que eles não vão conseguir influenciar porque aqueles que estão a continuar a crescer vão dominar sobre os outros. Ou seja, se eles venderem, entre aspas, uma moralidade mal adaptativa a determinadas pessoas, essas pessoas vão desaparecer também, mas
José Maria Pimentel
os outros que não
Filipe Nobre Faria
compararem a moralidade vão continuar a crescer. Espera, estás a dizer desaparecer? Não é bem desaparecer, é ter uma natalidade mais baixa.
José Maria Pimentel
Mas esse também é outro ponto interessante. Se o liberalismo mal adaptativo ou não mal adaptativo se estender a todo o mundo o problema desaparece, porque tens uma natalidade relativamente baixa mas já não há outros grupos.
Filipe Nobre Faria
Bem, sim, em última instância terminamos com determinadas filosofias antinatalistas, como por exemplo de um colega da África do Sul, o David Benatar, em que Ele defende que é melhor nunca ter nascido e que a promoção da natalidade é um mal em si mesmo, porque ele diz que viver... Ele é um utilitarista e considera que a vida tem muito mais sofrimento do que prazer e não faz sentido nenhum trazer pessoas à vida. Eu acho que já
José Maria Pimentel
apanhei isso alguns, de facto. Acho que já apanhei isso alguns. Devia ser com ele, acho que já apanhei um artigo sobre isso. Pronto,
Filipe Nobre Faria
é um argumento interessante, sem dúvida, mas...
José Maria Pimentel
Um bocadinho extremo, não é? Mas aí já é normativo, não é? Já lá está, como dizias há bocadinho. Aí já é normativo. Olha, Filipe, gostei imenso desta conversa. Para terminar, queria só fazer uma ou duas perguntas mais, quer dizer, não é bem olhar para a frente, mas saindo da filosofia para a contemporaneidade, se quisermos. Porque uma coisa que rapidamente salta à mente quando a pessoa lê o teu livro e ao discutir contigo a tua tese, imagino que também esteja a passar pela cabeça de quem nos está a ouvir, é em que medida que este diagnóstico que tu fazes ajuda a explicar os desafios atuais do mundo liberal, não é? Nomeadamente a questão do populismo, chamemos-lhe assim, e outros desafios, mas falando se calhar do populismo especificamente que contraria no fundo muito daquilo que é da moral liberal. Contraria... Dizer que é antidemocrático é um extremo, mas é, pelo menos, anti-elites da democracia e é, muitas vezes, anti-comércio livre. E é, muitas vezes, sobretudo se for mais à direita, anti-liberdades de costumes e, portanto, uma moral mais liberal, se nós quisermos chamar. Tu achas que este surgimento desta ameaça tem que ver com a fraqueza do liberalismo que tu identificas? Penso que sim. A resposta simples
Filipe Nobre Faria
é sim. É um sintoma. É um sintoma do problema, sim. Parece-me evidente, claro. E o Karl Polanyi já tinha escrito sobre isso. Quando as sociedades se tornam disembedded, quando as sociedades se tornam demasiado atomizadas, perdem o sentido de identidade, deixam de ter normas coletivas para cada indivíduo seguir o seu caminho, A partir desse momento surgem movimentos que tentam re-embed society, tentam de novo ligar os indivíduos uns aos outros para que eles possam funcionar de um ponto de vista grupal adaptativo contra as mais variadas ameaças e tu já já já mencionaste algumas delas portanto a migração em massa, portanto o que é que eles queixam-se mais do que queixam-se das elites corruptas. Comportamentos imorais. Comportamentos imorais, precisamente. E o Karl Polain dizia que isto tanto podia acontecer num populismo mais conservador como até mesmo uma esquerda mais comunitária, por assim dizer. Exato, exato. E que depois eles acabavam por se tocar, porque estão a reagir contra problemas semelhantes. E parece-me que o Carlos Poland tem alguma razão neste ponto. Aquilo que nós estamos a assistir parece-me ser uma certa reação, não no sentido pejorativo do termo, mas uma certa insatisfação com a destruição de identidade, por assim dizer. Há uma atomização onde as pessoas já se estão a sentir desconfortáveis e começam a se sentir atraídas por aquele outro discurso mais risco, mais revolucionário, por assim dizer.
José Maria Pimentel
Sim, mais de enfatização do grupo. Eu estava a ouvir, por exemplo, se pegarmos nas dimensões do Jonathan Haidt, por exemplo, eu diria que o populismo mais direita tenderá a ir reativar aquelas dimensões da lealdade ao grupo, da autoridade e da santidade que falávamos há bocadinho, da pureza, enquanto que à esquerda vê-se esse comunitarismo mais numa lógica de empatia, não é? O harm principle, não sei como é que a pessoa há de dizer isso em português, não é? O fundo proteção, não é? Proteção dos maltratados ou dos que estão em baixo.
Filipe Nobre Faria
Proteção e o mal, portanto evitar o mal, proteger, etc.
José Maria Pimentel
Contra as desigualdades, por exemplo, e também uma questão de justiça, nomeadamente justiça económica. O fator que nos faltava aqui é o da... Aquilo também elenca, o da liberdade, que é justamente aquilo que está mais ligado à ética liberal core, que é mais individualista, que no fundo é o que sobra desta equação.
Filipe Nobre Faria
A liberdade é interpretada por várias ideologias ou por várias moralidades de forma distinta, não é? Uma liberdade comunitária diz que só há liberdade ou que o indivíduo só é livre estando integrado num grupo. Nós podemos ir buscar Aristóteles mais uma vez, não é? O homem é um animal social e é um animal político e ele não pode ter liberdade fora desse contexto comunitário. O liberalismo, de alguma forma, está em oposição a esta lógica. Não necessariamente que qualquer liberal vá negar a importância da comunidade, mas do ponto de vista normativo tende a desvalorizar a importância da comunidade em relação ao indivíduo. Sim, sim.
José Maria Pimentel
Não, a palavra liberdade é bastante polissémica, não é? Como estamos a
Filipe Nobre Faria
falar no livro. Exatamente, exatamente.
Filipe Nobre Faria
Podemos fazer mais um podcast só a discutir
José Maria Pimentel
os conceitos de liberdade. Sim, sim. Tudo isso ao contrário. Olha, agora sim, mesmo para terminar, terias alguma coisa a dizer em relação a possíveis medidas para aumentar a sustentabilidade das democracias liberais? No livro tu fazes só o
Filipe Nobre Faria
diagnóstico, eu sei. Exato. É uma pergunta interessante. É fácil, não é? É uma pergunta... Guardaste mesmo a mais difícil para o fim, não é verdade? Exato. Tu achas que estava a acabar. Bem, à partida parece-me que é preciso começar a pensar a sociedade liberal de um ponto de vista mais crítico. Acho que temos que começar por aí. Temos que começar a pensar nos prós e nos contras da sociedade liberal, aquilo que ela trouxe. Temos que saber também que há trade-offs, não vamos poder ter tudo. Ou seja, para termos o benefício da sustentabilidade não podemos ter todos os outros benefícios que consideramos importantes para um modelo liberal. Esse ponto é importante. E acho que o mais importante é mesmo termos noção de que há um problema e que temos que o resolver. Claro que há a tal posição antinatalista, não é? Que poderá dizer, bem, mas não há problema
Filipe Nobre Faria
algum, não é? É só implodir, né? Tudo bem, tudo bem.
Filipe Nobre Faria
E também podemos discutir se há ou se não há. Eu considero que há, provavelmente por achar que a sustentabilidade e a afirmação da vida são importantes e fazem parte do significado da vida. Embora haja pessoas que provavelmente acham que não. Claro,
José Maria Pimentel
mas isso podemos dar de barato, podemos assumir que
Filipe Nobre Faria
todos partilhamos essa... Sim, em filosofia raramente podemos dar algo
José Maria Pimentel
de... Nada se dava barato,
Filipe Nobre Faria
claro. Exatamente. Raramente podemos dar isso, porque aparece-me um antinatalista à frente e de repente eu já não estou a falar a mesma linguagem.
José Maria Pimentel
Exato. De repente perdeste um pressuposto comum, não é? Perdeste um denominador comum e tens que ir um nvel abaixo.
Filipe Nobre Faria
Exatamente. E portanto, assumindo que, neste caso, estamos no mesmo barco e que percebemos que há, de facto, um problema de desequilíbrio nas nossas sociedades, penso que... Aquilo que eu sugeria era fomentarmos grupos de pensamento para pensarmos como é que podemos resolver este problema de uma forma civilizada. Esperemos que não aos gritos uns com os outros. Nesse aspecto podemos ir buscar o melhor da tradição liberal, não é? A tradição do diálogo e de uma certa racionalidade, até o ponto em que ela é possível. E seria isso que eu recomendava. Acho que temos que primeiro perceber que há um problema e agora vamos dialogar em vez de entrar, em vez de começarmos a gritar uns com os outros. Sim, sim,
José Maria Pimentel
sim. Uma boa maneira de terminarmos. Olha, o livro, lembras-te? O
Filipe Nobre Faria
livro, precisamente. Eu vou recomendar um livro que ainda não saiu, vai sair agora em setembro. Eu ainda não o li, mas já sei tanto sobre o autor que, portanto, já sei o que está no livro. O livro é o último livro do Joe Hendricks, que é um antropólogo evolutivo. Canadiano? Eu não sei se ele é canadiano, acho que é americano. Estou
José Maria Pimentel
a ver no Google, mas... Sim, mas ele é professor em Harvard, portanto...
Filipe Nobre Faria
Exatamente. E o livro chama-se The Weirdest People in the World, How the West Became Psychologically Peculiar and Particularly Prosperous. Como o Oeste se tornou psicologicamente peculiar e particularmente prospero. Mas tem mesmo que ver com o que falámos aqui. Exatamente. Aquilo que ele vai mostrar é que A Igreja Católica, através de determinadas políticas e determinados incentivos morais e institucionais, criou o liberalismo, ou criou aquilo que nós definimos como o liberalismo, que é esta noção de os indivíduos que se veem como agentes autónomos, ou seja, ele não está a dizer que foi a Igreja Católica que produziu o liberalismo. Claro, eu percebo. Às vezes as pessoas acham que há uma oposição entre os dois.
José Maria Pimentel
Mas no fundo gerou uma mudança, não é uma mudança moral? Exatamente! Que depois gerou isso. Gerou uma mudança
Filipe Nobre Faria
moral e institucional que nos trouxe até aos dias de hoje. Interessante. E que é muito importante perceber como é que a Igreja formou esta personalidade estranha, que é esta personalidade individualista, the weirdest people in the world.
José Maria Pimentel
E weird é giro porque é weird, estranho, mas é pegar naquele acrónimo que é muito usado na psicologia, que quase que tem a ver com a investigação a ser feita normalmente com pessoas que são, não são provavelmente o paradigma da humanidade mas são estudantes universitários, portanto, normalmente são ocidentais, são países democráticos, não é? No fundo, valores liberais, não é? É aquilo que nós falámos aqui. Excelente. Olha, boa sugestão, fiquei muito curioso de ler. Visitem o site 45graus.parafuso.net barra apoiar para ver como podem contribuir para o 45graus, através do Patreon ou diretamente, bem como os vários benefícios associados a cada modalidade de apoio. Se não puderem apoiar financeiramente, podem sempre contribuir para a continuidade do 45 Graus avaliando-o nas principais plataformas de podcasts e divulgando-o entre amigos e familiares. O 45 Graus é um projeto tornado possível pela comunidade de mecenas que o apoia e cujos nomes encontram na descrição deste episódio. Agradeço em particular a Paulo Peralta, Eduardo Correia de Mato, João Baltazar, Rui Oliveira Gomes, Salvador Cunha, Tiago Leite, Joana Faria Alves, Carlos Martins, Corto Lemos, Margarida Varela, Gustavo e Gonçalo Machado Monteiro. Até ao próximo episódio.