#88 Sofia Miguens - Uma viagem pela Filosofia Contemporânea
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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o
45°. Neste episódio estou a conversa com Sofia Miguens, que é professora
catedrática do Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do
Porto e com investigação sobretudo nas áreas da filosofia da mente, linguagem
e ação. Este episódio tem uma coincidência muito peculiar por trás. Já
há cerca de um ano que tinha convidado a Sofia para o
podcast, no entanto fui adiando a conversa até uma suposta e eventual
lida minha ao Porto. Ideia essa que acabou por ter mar em
não acontecer. Entretanto, em fevereiro passado, fui a Nova Iorque lembram-se quando
ainda dava para viajar? E numa passagem por uma livraria local à
procura de um livro na secção de filosofia que, note-se, não encontrei
salta-me à vista um volume de espessura imponente numa edição impecável da
Harvard University Press. Na lombada lia-se o título The Logical Alien, o
alienígena lógico, e por baixo do título estava um nome familiar, Sofia
Miguéns. Foi ainda mais uma coincidência até porque o livro acabava de
ser publicado. Esta coincidência incrível levou-me a retomar o contato com a
Sofia e poucas semanas depois, a pandemia veio tornar a solução que
eu originalmente tinha posto de lado, na única disponível, ou seja, gravarmos
à distância. E assim surgiu este episódio, e ainda bem, como vão
perceber. Convidei a Sofia para o 45° porque há muito que queria
abordar em mais detalhe algumas das questões da área da filosofia da
mente em que ela se começou por especializar. Como vão perceber, Uma
vez que o leque de interesse da convidada dentro da filosofia contemporânea
é particularmente alargado, a nossa conversa acabou por se estender por outros
terrenos. Abrimos as hostilidades a discutir uma peculiaridade da filosofia contemporânea que
já me vem a intrigar há algum tempo. O facto de coexistirem
na filosofia, que se faz hoje em dia abordagens e estilos distintos,
por vezes tão distintos que nem parecem vir da mesma área do
conhecimento. Há várias maneiras de classificar estas diferenças de estilo, mas a
distinção mais comum que costuma ser feita é entre a chamada filosofia
analítica e a filosofia continental, as quais correspondem também, e não por
acaso, a tradições linguísticas específicas. Desta discussão partimos para discutir outro tema,
um tema eterno, a relação da filosofia com a ciência. Será que
são no fundo a mesma coisa ou, pelo contrário, são irremediávelmente incompatíveis?
Na segunda parte da conversa, perto dos 40 minutos, saltámos para problemas
mais concretos da área de investigação da convidada, como por exemplo o
chamado Problemamente Corpo. Finalmente, no último trecho da conversa, tivemos ainda tempo
para discutir outro tema, outro tópico, quente destas áreas. O campo crescente,
composto tanto por filósofos como por cientistas, que declara que, por muito
que nos custe, tudo indica que não temos, na verdade, livre-arbítrio. Esta
foi uma das conversas mais desafiantes que gravei até hoje. A Sofia
domina muito bem os temas mais complexos da filosofia contemporânea e cada
resposta, como vão perceber, vem recheada de ideias que nos deixam a
pensar. Falo por mim que terminei com mais dúvidas do que tinha
no início. Como os temas que discutimos são complexos e têm algum
jargão à mistura, decidi deixar aqui uma espécie de introdução a alguns
conceitos de que vamos falando. Se preferirem saltar este introito e mergulhar
diretamente na conversa, é só saltar os próximos 4 minutos. Ainda aí?
Ora bem, então, na primeira parte, em que discutimos os dois estilos
de fazer filosofia, são referidos os nomes de uma série de filósofos.
Mas não se percam por aí porque é sobretudo a discussão de
fundo que interessa. Na segunda parte da conversa, começámos então pelo chamado
Problema Mente-Corpo, que é um problema clássico da filosofia da mente. É
um debate muito antigo entre filósofos, sobretudo desde Descartes, e trata de
responder a uma pergunta simples. Existe uma natureza distinta entre a matéria
de que é feito o nosso cérebro, que é parte do nosso
corpo, e a nossa mente? É essa mesma mente que nos permite
pensar, ser conscientes e viver a experiência subjetiva de sermos nós próprios?
Longe vão os tempos do dualismo que Descartes defendia, que via a
alma como sendo externa ao corpo, mas a verdade é que continuamos
longe de conseguir explicar, por exemplo, porque é que temos consciência. Este
debate tem várias matizes, mas há uma decisão muito conhecida. De um
lado estão os chamados fisicalistas, que como o nome indica têm uma
perspectiva da mente enquanto sobretudo física e, portanto, dizem que no dia
em que a ciência compreender completamente a neurofisiologia do nosso cérebro, automaticamente
iremos também compreender a mente. Já do outro lado está o campo
daqueles que afirmam que a nossa experiência subjetiva, aquilo que no jergão
filosófico se chama os qualia, é, lá está, específica do sujeito e
por isso nunca poderá ser compreendida a partir de fora. Alguns dos
filósofos mais conhecidos deste último campo propuseram umas chamadas experiências de pensamento,
muito conhecidas no meio, e que procuram precisamente suscitar a intuição em
nós de que é impossível compreender a mente só através do cérebro.
Falámos de três destas experiências de pensamento durante a conversa, como por
exemplo a experiência do zombie filosófico de David Chalmers, e que basicamente
argumenta que, em teoria, é possível imaginar a existência de um ser
humano zombie, ou seja, alguém que sem a autoconsciência e as sensações
que nós associamos à nossa mente, mas que se comporta exatamente como
qualquer ser humano normal. Por isso, diz ele, uma vez que nós
não conseguimos entrar na mente dos outros, não há maneira de ter
100% de certeza que não vivemos rodeados de zombies, ou seja, que
somos a única pessoa com consciência e que os outros não são
simplesmente seres com comportamento eficaz, exatamente igual a nós, mas que no
fundo, lá dentro, não têm nada de experiência subjetiva. No outro campo,
dos tais fisicalistas, há um nome que discutimos em maior detalhe, Daniel
Dennett, porque foi sobre a teoria dele que a Sofia fez a
sua tese de doutoramento. Curiosamente, não sei se se lembram, este é
o mesmo Daniel Dennett, de cuja teoria do humor falei logo no
início da minha conversa com o Ricardo Aroujo Pereira, que publiquei no
ano passado. Finalmente, no último trecho da conversa, discutimos então a questão
do livre-arbítrio e a posição daqueles que afirmam que não o temos.
Imagino que a muitos de vós pareçam uma posição bizarra. Afinal de
contas, todos sentimos que somos donos das nossas escolhas, como por exemplo,
a testar a ouvir este podcast em vez de estar a ouvir,
sei lá, uma música do Justin Bieber. No entanto, há muitos filósofos
e cientistas importantes que defendem exatamente esse ponto. Eles argumentam que a
partir do momento em que deixamos de acreditar que existe uma espécie
de alma separada do corpo e, sobretudo, se acharmos que a nossa
mente é simplesmente um fenómeno emergente da matéria física de que é
feito o nosso cérebro, seremos forçados a admitir que a nossa mente,
tal como o nosso cérebro, as nossas células e qualquer ser vivo,
está sujeita às leis da física e essas leis, mesmo que não
achemos que são deterministas, dificilmente vão obedecer ao nosso controle. Uma perspectiva
otimista, portanto. Mas não desanimem porque a discussão foi bastante mais animadora
do que isto. E pronto, deixo-vos então com a Sofia Miguens. Enjoy!
Ora, Sofia, muito bem-vindo ao podcast. É um prazer estar a falar
contigo, embora à distância.
José Maria Pimentel
Acho que fazia sentido começar por uma coisa que julgo que ainda
não falei no podcast e até é um aspecto para o qual
eu amanheci relativamente tarde, julgo que até muitas pessoas não estarão familiarizadas
com ele e que para mim foi muito útil, embora eu julgo
que ainda não o compreenda completamente bem, eu não compreendo essa distinção
completamente bem, porque me permitiu começar a perceber porque é que há
algum tipo de filosofia que me é bastante natural e atraente e
outro tipo de filosofia que me é muito pouco natural, embora continuo
a ter curiosidade em relação a ela. Que é a distinção que
existe na filosofia contemporânea, que não será obviamente estanque mas que tem
algum poder explicativo, entre aquilo que se chama a filosofia analítica e
a filosofia continental, ou seja, a filosofia analítica que é basicamente feita
sobretudo nos países anglo-saxónicos e a continental de tradição alemã e francesa.
Se calhar passava-te já a palavra. O que é que é isto,
o que é que é esta distinção e quão importante é que
ela é ainda hoje em dia?
Sofia Miguens
Ah, essa é uma pergunta muito grande e se calhar eu vou
tentar confundir as tuas ideias ainda mais. Eu digo de onde venho,
eu próprio trabalho desde sempre em filosofia analítica, epistemologia, filosofia da mente,
filosofia da linguagem, filosofia da ação e aliás pode-se dizer que eu
faço parte de uma geração que cá em Portugal tentou difundir a
filosofia analítica porque não era a nossa tradição cultural, filosófica, não era
a nossa tradição dominante aqui no sul da Europa. Aqui no sul
da Europa, tradicionalmente, a forma de fazer filosofia estava muito marcada pelo
pensamento francês e também, talvez até indiretamente, pelo pensamento alemão. Ok, vou
falar, digamos, enquanto pessoa que ensina filosofia contemporânea agora e que tenta
chamar a atenção para a produtividade de não sermos exclusionistas, quer dizer,
não olharmos exclusivamente para a filosofia que se faz em inglês, ou
para a filosofia que se faz em francês, ou para a filosofia
que se faz em alemão. Se estamos a falar de tradições, a
tradição analítica é tradição de Frege, Russell, Wittgenstein, são os early analytic
philosophers e é uma tradição fundadora, importantíssima na filosofia contemporânea. Se estamos
a falar de filosofia continental, por um lado, no século XX, estamos
a falar de fenomenologia, de autores como Husserl e Heidegger, mas podes
andar um pouco para trás e pensar em autores como Kant, como
Hegel, como Nietzsche, como Marx, Schopenhauer, Kierkegaard. Ok, isso de uma forma
esquemática. Agora, tu tens problemas filosóficos. Eu tendo a ver esses problemas
filosóficos como questões que nós temos que esclarecer para nós mesmos. Eu
não estou a falar aqui de coisas, de assuntos demasiado eruditos ou
de assuntos históricos. Se um problema filosófico é um problema real, tem
de ser um problema para mim e para ti aqui e agora.
Como diria o Thomas Nagel, um filósofo americano que eu gosto muito.
Problemas como, por exemplo, nós estamos a pensar, estamos a falar um
com o outro, será que somos bubbles isoladas nas nossas mentes ou
será que há um mundo fora da nossa mente? O que é
o certo, o que é o errado, o que é justo fazer,
como é justo viver, como é possível, imagina, que sons ou marcas
signifiquem alguma coisa, como é possível que algumas coisas sejam belas, como
é que é sequer possível nós podermos pensar, se isto são problemas
filosóficos, são problemas para nós agora e quer os filósofos analíticos, quer
os filósofos continentais, qualquer filósofo que seja um bom filósofo lida com
estas questões. Basicamente, repara, são questões acerca do que é pensar. Pensamento,
pensar sobre pensamento é o que fazem quer os filósofos analíticos, quer
os filósofos continentais se forem bons. Agora, em termos não tanto culturais,
mas de problemas da filosofia, põe-se uma questão que é de alguma
maneira, que se sobrepõe, que é a questão da língua. Tu disseste
que nós identificávamos a filosofia analítica com a filosofia que se faz
em inglês. Repara que eu mencionei os iniciadores da tradição analítica, Frege,
Russell, Wittgenstein, pelo menos Frege e Wittgenstein nem sequer falavam inglês. Portanto,
Wittgenstein sempre disse, sinto-me completamente estrangeiro em inglês. Portanto, são filósofos de
língua alemã. Basicamente, se tu pensares na filosofia contemporânea, na grande filosofia
contemporânea, quer na filosofia continental, quer na filosofia analítica, tu tens muitos
dos grandes nomes que vêm simplesmente da filosofia de Mítala-Europa, quer dizer,
são filósofos da tradição de língua alemã. Vamos tentar dar um passo
atrás relativamente a essa animosidade que é sobretudo linguística e cultural e
tem a ver talvez com uma contestação da dominação do inglês e
tentar ver as coisas em termos de o que é que se
está a fazer em termos de filosofia?
José Maria Pimentel
Jugo também que quando a pessoa fala em filosofia analítica, no fundo
nós já não estamos a falar da filosofia analítica original do Wittgenstein,
por exemplo. É aquilo que lhe sucedeu e eu acho, embora eu
conheça-o muito pior do que tu, que ele até tinha muitas marcas
lá, idênticas à daquilo que nós hoje em dia chamamos de filosofia
continental. E portanto se calhar analítica não é o melhor termo, não
é o termo que ficou. Mas a ideia que eu tenho, a
impressão que eu tenho, é que embora os problemas sejam os mesmos
no limite, no fundo a filosofia trata sempre do mesmo, são problemas
complexos, podem ser metafísicos, no limite podem ser éticos ou até políticos,
mas no fundo os problemas são mais ou menos sempre os mesmos.
Ainda assim, a impressão com que eu fico é que o ângulo
através do qual se olha para eles e até a maneira como
se definem esses problemas não é necessariamente a mesma e creio que
não tem só a ver até com a língua, quer dizer, por
exemplo, só para se calhar para concretizar isto. A ideia que eu
tenho, aquilo que me parece, é que a filosofia, é isto que
nós chamamos de filosofia analítica, ou seja, a filosofia contemporânea nos países
anglo-saxónicos está muitas vezes até organizada de uma maneira mais parecida com
as ciências. E nós até vamos falar de filosofia da mente, que
é um atuário, ou pelo menos uma das duas áreas, e que
obedece precisamente a essa lógica de compartimentalização, se quisermos, de organização. Há
uma abordagem que me parece mais próxima da ciência, se nós quisermos,
e muitas vezes até anda a par e passo, vamos falar provavelmente
dele também, do Daniel Dennett, que é um tipo que no fundo
está nos dois mundos, no mundo da ciência e no mundo da
filosofia. É uma abordagem que tenta ser sistemática e até é muito,
usa muito aquela lógica do, bom, nós temos estes três, vamos supor,
A, B e C, temos estes três princípios, vamos partir daqui e
organizar a coisa a partir dali, enquanto a impressão que eu tenho
é que a filosofia continental dá muito mais importância, por exemplo, a
aspectos históricos, está muitas vezes muito mais confortável em tirar implicações políticas,
por exemplo. E, aliás, Normalmente os filósofos da tradição continental, a ideia
que eu tenho é que tendem a ser mais políticos, muitas vezes
até mais extremistas, nos dois lados. Nós temos por exemplo o exemplo
do Heidegger, que era um tipo que esteve ligado ao partido nazi
e depois, coitado, bem ou mal tramou-se um bocado por causa disso.
Sofia Miguens
Queria pegar na ideia de trabalho filosófico, porque eu acho que tu
tens razão e aí eu devo dizer que tenho ainda hoje uma
enorme simpatia pela forma de trabalhar na filosofia analítica, porque não pela
rejeição da história e da importância da história, não porque na filosofia
analítica se trata só de lógica ou de uma fetichização da lógica.
A questão é que há formas diferentes de conceber o trabalho filosófico,
vamos lhe chamar trabalho filosófico. Por exemplo, Eu sei que tu tens,
que te confunde o aspecto demasiado idiosincrático da filosofia de alguém como
o Heidegger. Exato. Ok, a mim também, embora eu não me coiva
de ler o Zayn Moussaie e de tentar perceber o que é
que o Heidegger está a fazer. Agora, há formas diferentes, menos obscurantistas
ou menos cheias de jargão, ou menos... Podemos discutir muito aqui questões
acerca de texto e de linguagem, mas a forma mais comum na
filosofia analítica, tens toda a razão de concebê-lo como mais próximo da
ciência, como um joint work, como uma constituição modesta para um empreendimento
intelectual comum. Na filosofia analítica, na tradição, gosta-se muito da ideia de
piecemeal, portanto fazemos as coisas ponto a ponto. Aos
bocadinhos.
Pequenas coisas sistemáticas. Há um certo culto da modéstia, há um certo
culto das pequenas coisas precisas. Como é que eu posso ajudar aqui
no tratamento deste problema? Como é que eu posso tornar as coisas
precisas? Isso nem sequer é necessariamente, repara, muitas vezes a crítica a
partir de fora é que a filosofia analítica se identifica com a
lógica, isso não se identifica com a lógica, trata-se mesmo de uma
concepção do trabalho intelectual e daquilo que é o trabalho intelectual. Sim,
concordo. Reparem, no entanto, que esta questão é ela própria uma questão
para a filosofia e para qualquer filósofo. O que é que nós
queremos do trabalho intelectual, o que é que nós queremos do trabalho
conceptual, quer seja o trabalho conceptual filosófico, científico, quer seja, por exemplo,
o trabalho artístico, portanto, porquê é que nós sequer nos envolvemos nestas
sofisticadas atividades de argumentação e de conceptualização, porquê é que não nos
remetemos pura e simplesmente à nossa animalidade? Isso também será uma questão
a discutir. Mas sim, a filosofia analítica traz consigo uma concepção de
trabalho filosófico diferente da tradição continental usual. Mas repara, outras coisas que
tu disseste, identificação de filosofia analítica com os países onde se fala
inglês, como Estados Unidos e Inglaterra. Não é verdade, na Europa inteira
há muitos filósofos analíticos a trabalhar, na Alemanha, Itália, Escandinávia, portanto a
tradição analítica, e estou a falar só da Europa, mas estou a
tentar separar trabalhar em inglês do trabalhar em Filosofia Analítica. Nós podemos
trabalhar em alemão, em francês, em português e estar com esse espírito
da Filosofia Analítica. Há cerca da história, repara, aí já se pode…
Isso aí seria quase uma causa para mim, porque aí encontrei coisas
menos admiráveis do lado da filosofia analítica, nomeadamente enquanto estudante. Por exemplo,
aconteceu-me estar em aulas nos Estados Unidos e um professor, estava a
ensinar precisamente filosofia da mente, o Ned Block, perguntaram aos estudantes, vocês
conhecem os dois dogmas do empirismo do Quine, que é um artigo
dos anos 50, é um dos marcos da história da epistemologia dos
anos 50, e os alunos que eram todos jovens, brilhantes, estudantes de
filosofia analítica das melhores universidades americanas, por aí simplesmente dizem não. Nós
só conhecemos a literatura, conhecemos obsessivamente, meticulosamente a literatura dos últimos cinco
anos, estamos preparados para discutir tudo isto, mas se damos um passo
atrás a um artigo que não é um artigo qualquer, podemos dizer
que é tão importante como a crítica da razão pura para a
epistemologia do século XX, por isso simplesmente eles diriam que não se
conhece. Por isso, a questão da História não é só a questão
de se pensar filosoficamente sobre a história, como por exemplo um Hegel
ou um Marx fazem por excelência na filosofia continental e deixa que
te diga que há muita gente na tradição de língua inglesa a
trabalhar sobre o Hegel e sobre o Marx. Mas pensar sobre a
história não é só a questão de pensar sobre a história, é
a questão de como é que tu olhas para a filosofia contemporânea
e para a sua história. Vamos fazer uma comparação, uma comparação entre
um museu de arte contemporânea e um museu de arte antiga ou
de arte medieval, para pensarmos na diferença que a filosofia contemporânea e
a sua história fazem para nós. Imagina, quando nós chamamos um museu,
um museu de arte contemporânea, por exemplo, quando entramos no Mato, ou
no MoMA, ou no CCB, ou em Serralves, aquilo que lá está
não é só compilação histórica de informação, arquivo e memória, aquilo que
lá está fala-nos diretamente, somos nós. E eu vejo assim a história
da filosofia contemporânea e ponho aí filosofia analítica e filosofia que tu
chamaste de continental. Por exemplo, nos autores, os autores sobre quem escrevo
nesse livro sobre filosofia contemporânea, sejam Frege, Russell, Wittgenstein, ou Husserl, ou
Heidegger, ou Kant, ou Hegel, a minha convicção é que eles ainda
fazem parte de nós, fazem parte da nossa forma de trabalhar conceptualmente,
de pensar sobre o pensamento e de pensar sobre nós próprios. Não
são autores de museus, servem para os nossos problemas e isso é
que é a pedra de toque. Desculpa a imagem de museu, eu
sei que ninguém hoje pensa desta forma simplista sobre museus, ninguém pensa
assim sobre museus de arte antiga. Eu
José Maria Pimentel
acho uma boa analogia, sim. E parece-me, aliás, que estamos a tocar
no ponto mais interessante de comparação entre as duas e tu chamaste
a atenção a uma coisa que é verdade, que esta diferença não
é estanque, obviamente, e não é... Os dois compartimentos, o da analítica
e o da continental não são estanques, infelizmente que não são, o
meu ponto é que eles não deviam sequer existir, não é? Ou
seja, que é bizarro que eles existam, se quisermos, em certo sentido.
Mas aquilo que tu dizias, eu acho que toca, ou pelo menos
interceta, a grande dúvida que eu tenho, ou aquilo que é para
mim o grande mistério aqui, que me faz ter um bocadinho de
sentimentos ambivalentes em relação à filosofia continental, porque por um lado acho
estranho, mas por outro lado é evidente que está lá valor, não
é como é evidente, e às vezes chateia-me que me possa estar
a escapar disso. Aquilo que me parece ser o problema é que
tem a ver com aquela idiosincrasia que tu falavas no início. Os
grandes nomes da filosofia continental, Podemos ir lá atrás, até quando a
designação nem sequer existia, não é? O, sei lá, Kant ou Nietzsche,
por exemplo, ou... Mas mesmo nomes mais recentes como o Husserl e
o Heidegger. E os existencialistas, depois disso, têm, tipicamente, não são bem
escolas, ou seja, Cada um surge com uma visão muito idiosincrática, muitas
vezes até com um jargão próprio, da qual nós podemos tirar imenso
sumo, se quiseres pôs-la nessa analogia, mas como faz uso da metáfora,
não utiliza aquele tipo de sistematização, depois torna difícil que exista um
edifício construído sobre aquilo, ou que aquilo contribua diretamente para um edifício.
Não sei se percebes onde é que eu quero chegar. Sendo que,
por muito que nós gostemos de autores individuais, nós seres humanos relacionamos
de um para um e portanto gostamos de ler a obra de
alguém, até porque tem a personalidade daquela pessoa e a maneira de
pensar daquela pessoa, do ponto de vista de um corpo de conhecimento,
não é assim que ele avança, não é? Porque uma pessoa, por
mais brilhante que seja, dificilmente terá visto tudo. E aliás, e diga-se
aliás, é uma pergunta verdade, que muitos destes filósofos que nós estamos
a falar, eles próprios reconheciam isso porque muitas vezes, e depois isso
é até uma coisa que às vezes as pessoas não conhecem, eles
próprios muitas vezes mais tarde invertem ou mudam de opinião numa série
de temas e às vezes foi a opinião original deles que criou
mais herdeiros que fizermos do que a opinião final que já resultou
de uma revisão que os próprios fizeram porque estavam insatisfeitos com algum
aspecto da teoria original, que é também um aspecto curioso.
Sofia Miguens
Acontece aos melhores filósofos analíticos também, desculpem interromper-te. Por exemplo, pensa no
Hilary Putnam, que é um dos grandes filósofos analíticos do século XX,
começa na filosofia da física, passa pela filosofia da lógica, escreve sobre
ética, sobre filosofia da religião e algumas das ideias com as quais
ele mais marcou a história da filosofia do século XX, por exemplo,
o funcionalismo em filosofia da mente, foram ideias relativamente às quais ele
se retratou. Portanto, essa ideia de mudar de opinião acontece? Ah
José Maria Pimentel
Mas é cultural também, não é? Mesmo noutras áreas, sei lá, penso
no direito, por exemplo, é a mesma coisa, não é? Se leres
um escrito de direito escrito em Portugal, Espanha, França, Itália, é uma
coisa muito mais impenetravel para quem está de fora do que uma
coisa escrita em países anglos-saxónicos. Acho que isso tem um aspecto cultural
que vai para lá desta distinção que nós estamos a
Sofia Miguens
fazer aqui. Exatamente, as tradições intelectuais não incluem unicamente a filosofia.
Exatamente.
Tu tens certamente, chama-lhe isso uma obrigação de publicidade, ou uma obrigação
de argumentação pública, e que tu inscrevas isso no teu texto, sim
tens razão que isso faz mais parte de uma cultura pública de
língua inglesa, talvez, do que de uma cultura pública que cultiva mais
a literariedade, como por exemplo a cultura francesa. Não significa que depois
não encontres orientações, deixe-me chamar-lhes filosóficas, muito semelhantes a in pensadores que
escrevem francês e que escrevem inglês. Mas isso é uma questão interessante
porque é uma questão de bordo, de margem, entre filosofia como parte
específica da cultura da academia e a cultura em geral. Tens completa
razão nisso. Sofia,
José Maria Pimentel
antes de passarmos a falar da filosofia da mental, aproveitava para te
fazer uma pergunta relacionada com isto, que tem a ver com aquilo
que eu aludi à bocadinho, da filosofia, ao contrário de outras áreas,
de áreas mais empíricas do conhecimento, ter uma dependência grande de autores.
Ou seja, a filosofia é muitas vezes construída por autores. E, por
exemplo, se nós formos a uma livraria e pegarmos um daqueles livros
de introdução à filosofia ou de visão geral da filosofia, quase invariavelmente
eles são organizados por autores. Eu já vi uns que não e,
aliás, achei-os bastante melhores. Quer dizer, há muito valor que se pode
criar em precisamente evitar essa abordagem. Mas eles tipicamente são organizados por
autores e normalmente por ordem cronológica e não por ideias, se nós
quisermos, que é um aspecto curioso. Eu sempre que vejo esses livros
penso, e isso tem que ver com esta distinção que nós falámos,
mas acho que vai muito para lá disso, porque isso existe também
obviamente na filosofia analítica, eu penso que isso é uma limitação, no
fundo, da filosofia, ou seja, torna difícil quem está de fora perceber,
porque no fundo a ideia que a pessoa fica é que tem
que ler aqueles autores todos para conseguir discutir qualquer tema que seja.
Torna-se difícil perceber a relação entre eles, ou seja, perceber as ideias
que vieram de Aristóteles e Platão e aí dá-se logo uma decisão
que depois vai influenciar o resto da filosofia. De que maneira é
que elas alimentaram as ideias que lhes sucederam e qual foi o
percurso daquelas ideias, no fundo quais foram os debates que foram havendo
em relação àquelas ideias e o que é que no fundo continua
a ser muito útil em escritos antigos, mas o que é que...
Versus aquilo que se tenha vindo a tornar obsoleto, seja por aspectos
empíricos que se vieram a descobrir, seja por novas ideias, e essa...
Eu imagino que quem nos esteja a ouvir já se tenha deparado
com essa dificuldade, que é tentar... Eu sei que há autores que
têm feito até um exercício interessante de escrever livros até de introdutórias
à filosofia sem citar, acho que o Thomas Nagel fez isso, sem
citar nenhum autor, que é um exercício muito giro e eu acho
que tem a ver com este aspecto que eu estou a ler.
Sofia Miguens
De novo disseste muitas coisas muito interessantes numa pergunta só. Deixa-me dizer-te
primeiro, sim, na filosofia há autores e, por exemplo, se tu estás
a discutir, imagina, com amigos cientistas, isto pode ser qualquer coisa de
tremendamente perturbador. Porquê é que há de haver autores quando se trata
de trabalhar intelectualmente? Estamos todos envolvidos num mesmo empreendimento, esta ideia de
singularidade, de autoria, o que é que isto significa? Porquê é que
tem que haver um Kant, ou um Marx, ou um Nietzsche, ou
um Stanley K. Weld que estávamos a falar e não há simplesmente
a filosofia como há a física? Sim, isto é uma questão, mas
é uma questão que por acaso eu gostava de discutir no contexto
da linguagem e como nós nos relacionamos com a linguagem. Esse problema
da linguagem parece-me ser, é uma das minhas opções em filosofia, e
aliás, tu queres que eu fale filosofia da mente, mas eu não
queria falar filosofia da mente sem falar sobre filosofia da linguagem.
Então está à vontade.
A questão da linguagem, vamos relacioná-la com a questão dos autores. Pensa
naquilo que é dizer alguma coisa e pensa no que é ter
ou não ter uma voz quando se diz alguma coisa. A linguagem
é qualquer coisa que estava... Por exemplo, imagina o português. Estava aqui
muito antes de eu ou tu estarmos vivos, existirmos, estarmos aqui a
falar um com o outro. A relação de qualquer, chama-lhe um animal
humano, chama-lhe uma mente biológica como as nossas mentes, com a linguagem
não é alguma coisa que possa ser simplesmente concebido. Num primeiro momento,
nós, vamos dizer, entramos na linguagem numa linguagem que está pré-feita. John
McDowell, um filósofo sobre o qual tenho trabalhado bastante ultimamente, diz, Language
doesn't fall on us, ou
cai
sobre nós. Nós entramos na linguagem e nós falamos a linguagem tal
como ela está feita ou preparada para ser feita. E a forma,
se quiseres, primeira de nós fazermos isso é absolutamente rígida, é absolutamente
conformista. Tu usas a linguagem tal como a linguagem está lá preparada.
O espaço, vamos-lhe chamar de liberdade ou de claim ou de poder
dizer alguma coisa de singular ou de dizer alguma coisa de diferente
e esse espaço é importante intelectualmente em geral para a ciência, para
a filosofia, esse espaço no caso da filosofia vai traduzir-se na ideia
de autor eventualmente. Para já só queria fazer esta ligação entre porquê
que há autores em filosofia, porquê que não há um pensamento universal,
uma racionalidade universal e todos estamos a contribuir para ela, não interessa
que não me tenhamos. E parte da minha resposta a isso tem
a ver com esse passo de clima e de originalidade e de
tu habitares uma linguagem... Repara, as pessoas não habitam, por exemplo, o
português todas da mesma maneira. Tu podes começar a tua relação, presumindo
que o português é a nossa língua, com o português de uma
forma que te... Em que a língua é como se fosse uma
camisa de forças para ti, terminar numa situação em que tu estás
a fazer coisas novas e diferentes e singulares e originais com a
linguagem. Isto tem a ver com os aspectos pragmáticos e performativos da
linguagem que me interessam muito e que interessam, quer a filosofia analítica,
quer a filosofia continental. É aí um ponto comum. Mas isto terá
a ver com a ideia de autor. Claro que há muitos males
possíveis na ideia de autor e dou-te toda a razão quando ficas,
digamos, com arrepios perante certas idiosincrasias de certo jargão, de certa filosofia
contemporânea. Mas há coisas que não são intelectualmente especiandas na ideia de
autor, na existência de autor. E isso vai-nos conduzir em última análise
à razão pela qual a filosofia é diferente de ciência. Nós há
bocados comparávamos a filosofia com a ciência em termos de trabalho intelectual,
de modéstia, contribuição, joint work. A questão do autor leva-nos para outra
dimensão. Mas
Sofia Miguens
Não. Repara que nem toda a ciência é empírica, vais chamar à
matemática ou à lógica totalmente empírica e nem vais poder dizer, de
um ponto de vista filosófico, que a ciência e a filosofia se
distinguem absolutamente. Por exemplo, a Quine, que é um lógico, um filósofo
da ciência, um filósofo da linguagem, um filósofo da mente americana, muito
importante do século XX, defende pura e simplesmente a ideia, a que
ele chama, de uma continuidade de filosofia-ciência. Portanto, trata-se de, e é
aquilo que ele chama de uma naturalização da epistemologia ou mesmo uma
naturalização da ontologia, portanto, tens aí uma tese a ser defendida de
acordo com a qual o empreendimento intelectual é o mesmo, portanto, as
questões da filosofia seriam determinadas questões conceptuais, abstratas, fundacionais, que no caso
para ele teriam a ver com lógica, teriam-te os conjuntos, questões de
esclarecimento conceptual e linguístico, que apareceriam na continuidade da ciência. Portanto, no
caso, tens um filósofo como Quine no panorama contemporâneo que pura e
simplesmente rejeitaria totalmente esta ideia de que a filosofia e a ciência
são diferentes e essa é uma posição muito legítima. Sim,
Sofia Miguens
uma posição, no mínimo, muito desafiadora e deixe-me que te diga uma
coisa, foi uma posição epistemológica que influenciou muitíssimo na filosofia analítica, a
filosofia da mente, a filosofia da linguagem, a filosofia moral, portanto, grande
parte do bom trabalho que se fez, por exemplo, nessas três áreas,
na filosofia analítica nas últimas décadas, em grande medida, segue esse imperativo
coeniano de naturalização. Outras pessoas, precisamente a linhagem de filósofos como um
Frege ou Wittgenstein chamariam a essa ideia de uma ideia cientificista. E
cientificismo não é a mesma coisa que ter toda a admiração intelectual
possível pelo trabalho conceptual da ciência. Cientificismo, neste caso, é um erro
categorial de confusão de duas realidades diferentes. Seria a ideia de confundir
o trabalho, que para eles seria específico da filosofia, com o trabalho
da ciência. E agora aí a pergunta tinha que ser, mas então
se houver diferença ela deve-se a quê? E aquilo que nós teríamos
aqui que considerar é o put yourself into the picture, a ideia
de quando tu estás envolvido num empreendimento científico de objetividade, em última
análise podes conceber esse empreendimento como uma eliminação última da subjetividade, daquilo
que é o pensador ou o sujeito ou a variação possível de
perspetivas sobre o mundo, enquanto que no caso da filosofia vai estar
sempre em causa a natureza dessa subjetividade a ela própria, a natureza
do pensador de pensamentos comuns, como estas mãos são minhas, ou do
pensador que elabora uma teoria científica. Portanto, Isso será o princípio de
uma diferença entre filosofia e ciência. Vamos dizer assim, não podes eliminar
completamente o observador. Da forma como as coisas são no mundo, o
haver pensamento no mundo, embora faça parte do desejo científico de conhecimento
e também em grande medida do desejo da filosofia, um desejo de
objetividade, há um ponto limite dessa objetividade que é, se quiseres, a
existência do pensamento. E esse é o ponto em que, se quiseres,
a filosofia se junta à ciência ou há uma diferença entre as
investigações filosóficas e as investigações científicas. O Palácio do Thomas Nagel e
daquele maravilhoso pequeno livrinho de introdução à filosofia, esse é o problema
em que entra todo o valor do mundo para nós. O valor
ético, o valor estético, as questões normativas da justificação, portanto, nessa dobra,
vamos lhe chamar de subjetividade, do afinal, o pensador não ser o
irminável do quadro, nessa dobra vai aparecer o problema do como é
que pode haver coisas belas para mim, coisas boas para mim, pensamentos
que são verdadeiros e pensamentos que são falsos, coisas que são justificadas
e coisas que não são justificadas, porque essas coisas, chama-lhe da ordem
do valor e da normatividade, são coisas que não podem ser totalmente
observadas a partir de fora. Portanto, chegas a um ponto em que
Embates na parede, portanto, não podes ver tudo, inclusive a ti próprio,
no todo, a partir de fora. Não sei se conheces um outro
livro do Nagel que se chama The View from Nowhere, A Visão
de Lado Nenhum. Já
ouvi falar, sim.
Pelo facto de não poder em última análise haver uma visão de
lado nenhum, ou então, como diz o John McDowell, não poder haver
uma visão de esgalha em que tu olhas para o pensamento a
pensar e para o mundo a ser pensado pelo pensamento e é
como se tu estivesse de fora e não fizesse parte dessa realidade,
essas são más formas de conceber a relação entre pensamento e mundo.
E essa seria a razão pela qual, além de ciência, existiria filosofia.
José Maria Pimentel
Exato. Sim, sim, essa ainda é outra, exatamente. É que dizer, aí
claramente estamos a falar de um um aspecto diferente, não é? E
isso percebes, não é? Estamos a usar o mesmo termo. Agora, o
facto do campo de ação da filosofia e da ciência não serem
os mesmos, não parece que isso seja uma razão para eles não
dialogarem e não se ajudarem mutuamente. Pelo contrário, nós sabemos que, como
tu dizias, na filosofia tu fazes sempre parte da paisagem E é
impossível eliminar-te a ti própria da paisagem. Isso é ao mesmo tempo
uma limitação e ao mesmo tempo uma fonte de conhecimento ou pelo
menos de ideias. Do lado da ciência, que tenta justamente eliminar o
observador, também há limitações no sentido em que facilmente, e acho que
esse é um dos grandes papéis da filosofia, facilmente tu não estás
a perceber-te de que há determinadas fundações conceptuais que podem faltar àquilo
que tu estás a fazer ou não estás a ver o todo
e a relação de tudo e no fundo o papel da filosofia
aí é justamente organizar a informação, perceber o que é que falta,
fazer as perguntas certas, no fundo preocupar-se com as fundações. Por isso
é que eu percebo o argumento, mas eu acho que o argumento
de que filosofia e ciência não são iguais é precisamente o argumento
para haver um diálogo entre as duas e não o argumento para
as separar, para as segregar uma da outra.
Sofia Miguens
Não te preocupes que esse diálogo existe. Talvez neste momento exista mais
na filosofia analítica do que outras formas de fazer filosofia. Mas se
repara, também não vamos generalizar aqui quanto à filosofia dita continental, falaste
do existencialismo, Por exemplo, em aulas recentes eu tenho andado a fazer
uma… ok, eu que me assumo como filósofa, sobretudo analítica, tenho andado
a fazer uma história da fenomenologia, Husserl, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, então compara
só esses dois. Por exemplo, Merleau-Ponty era um psicólogo E era alguém
que, muito como os filósofos da mente hoje, estava completamente a par
das discussões da psicologia, discussões sobre gestalt, sobre natureza de comportamento, sobre
relações mente-cérebro, sobre natureza da inteligência e da consciência e da percepção
em última análise. Enquanto que um Sartre, ou depois outros filósofos posteriores
como um Derrida ou um Deleuze, ok, aí tens sim de facto
um maior ensimismamento da filosofia, tens ao menos um menor desejo de
diálogo com a filosofia da ciência, talvez por boas razões, mas basicamente
é preciso ir caso a caso e não considerar que, por exemplo,
na filosofia continental, em geral, há menos desejo de diálogo com a
ciência que na filosofia analítica. Mas repara que há certas áreas da
filosofia em que sem diálogo com a filosofia não há nada, se
tu estás a trabalhar em consciência, se tu estás a trabalhar em
lógica, se estás a trabalhar em filosofia da matemática, filosofia da física,
filosofia da mente, não há como... Podes não aceitar a tese koineana
da continuidade de filosofia-ciência. Isso já é uma questão diferente e epistemológica,
mas a ideia de que materiais só podem ser partilhados, acho que
ela se impõe naturalmente. Não há essas divisões artificiais na cabeça das
pessoas, das pessoas que trabalham bem entre filosofia e ciência necessariamente.
José Maria Pimentel
Então, mas se calhar tem uma boa ponta para falarmos precisamente da
filosofia da mente. Se calhar começava por-te pedir para, não sei, se
calhar, explicar o que é que é a filosofia da mente e,
sobretudo, mais do que isso, quais são os problemas em aberto na
filosofia da mente, ainda hoje, quais são os problemas que nos fazem,
que fazem os filósofos que se dedicam a esta área a ficar
acordados à noite.
Sofia Miguens
Eu tinha pensado dizer-te, mesmo antes de nós começarmos a conversar, que
a filosofia da mente, a ser que não me satisfaz. Não me
satisfaz sem Filosofia da Linguagem, sem filosofia moral, sem Filosofia da Ação,
que são áreas nas quais eu fui trabalhando cada vez mais para
alm da Filosofia da Mente. A Filosofia da Mente trata de consciência,
o que é ser consciente, o sentir-se ser, trata-se de representação e
intencionalidade, trata de compreender o que é para nós termos pensamentos ou
crenças como, por exemplo, está um tapete na minha frente ou 2
mais 2 são 4 ou Dom Afonso Henriques foi o primeiro rei
de Portugal, trata da natureza da consciência, da natureza da intencionalidade, da
natureza da ação por contraste com as coisas que são feitas por
ti. Por exemplo, tu queres mexer o teu braço, mexes o teu
braço por contraste com coisas que meramente acontecem, portanto meros acontecimentos no
mundo. Trata de questões, por exemplo, de identidade do teu self, daquilo
que faz com que tu te reconheças como um mesmo ser ao
longo do tempo. Por exemplo,
tu sou
Maria, eu sou Sofia, ao longo do tempo, repara, Por exemplo, nós
não estávamos lá conscientemente presentes a nós próprios quando éramos bebés e
vamos imaginar que há uma continuidade que de alguma forma se exerce
e que necessita de ser explicada e que para algumas pessoas tem
a ver com a autoconsciência. Portanto, a concepção lockiana de pessoa, a
ideia de que ser pessoa é identificar-se a si mesmo como si
mesmo, como uma mesma entidade ao longo do tempo e ser capaz.
Isso é muito importante para as nossas formas de vida humanas, porque
só isso é que nos torna capaz de falarmos nós próprios como
agentes, de dar razões das nossas ações. Mais problemas da filosofia da
mente, então consciência, intencionalidade, identidade pessoal, ação, questões de racionalidade, questões de
emoções. Repara, no fundo, e agora puxando a brasa a minha sardinha,
coisas que ainda me interessam muito, vais ter ao problema de como
é, o que é que a linguagem faz. O problema dos tipos
de mentes. Eu gosto de pensar na filosofia da mente em termos
de tipos de mentes. Isto é uma coisa, se quiseres, Dennettiana, eu
fiz a minha tese de doutoramento sobre o Dennett. Com tipos de
mentes eu quero dizer mentes humanas, mentes animais, mentes artificiais, o que
é que as aproxima, o que é que as diferencia. O Dennett,
como te disseste, é um filósofo muito próximo da ciência e por
isso muitas vezes mal quis-to pelos filósofos eles próprios, porque há muita
filosofia da mente atual que está mais próxima, estou a pensar por
exemplo em autores como o David Chalmers, o Yacov McKinney, que gostam
mais de lógica modal e de experiências mentais do que, por exemplo,
da psicologia empírica e da relação entre o que se faz em
filosofia da mente e o que se faz em ciência cognitiva. Portanto,
tens orientações muito diversas, mas nas orientações que me agradam mais em
filosofia da mente, esta ideia de tipos de mentes, vamos compreender, por
exemplo, qual é a grande diferença entre a mentalidade humana e a
mentalidade animal. O que é que faz de uma mente humana em
contraste, por exemplo, com a mente do meu cão, ou com a
mente do meu gato, ou então em contraste com o mindless purpose
do coronavírus, ok? Porque tu podes encontrar purpose, podes encontrar intencionalidade no
sentido de finalidade e de teleologia, por exemplo, na forma como nós
falamos do coronavírus. Aliás, o Dennett tem muita coisa a dizer acerca
dessa forma heurística de nós imputarmos mentalidade e inteligência, onde não necessariamente
a mentalidade está lá. Mas eu gosto de ver no núcleo da
filosofia da mente, à parte dessas orientações mais empirically minded ou essas
orientações mais formais que dividem os filósofos da mente, gosto de ver
no núcleo esta pergunta. O que é que é isto que nós
podemos dizer acerca do nosso tipo de mente? Nós não somos, para
usar agora comparações mais importantes, cultural e historicamente, não somos intelectos divinos,
Não temos, por exemplo, uma intuição intuitiva imediata de verdades conceptuais, sem
tempo nem espaço e sem inferência. Mas também não somos animais não
conceptualizadores, animais não capazes de generalidade, não capazes de universalidade. Portanto, somos
precisamente… os animais estão presos no aqui e agora perceptivo, se quiseres,
os outros
animais. Exato.
Repare que estas questões vão ser muito importantes para a ética e
para a ética animal. Uma das razões por que eu continuo a
apostar de filosofia da mente é que tu tens que trabalhar em
problemas acerca de consciência, de ciência, de ação, de comportamento, se não
queres ter um fundo shaky em ética. Em ética tu vais falar
de agentes, decisões, vais falar de racionalidade e muitas vezes como as
disciplinas são isoladas, tu vês mesmo os maiores nomes da ética contemporânea
a dizerem coisas extremamente objetáveis do ponto de vista da filosofia da
mente, por exemplo, coisas sobre consciência, sobre sensiência, sobre racionalidade, sobre inteligência.
Coisas sem as quais tu não podes trabalhar em ética. Bom, mas
então, nós estamos entre, portanto, não somos nem esse intelecto intuitivo divino,
se alguma vez alguma coisa assim existiu, nem um animal preso ao
aqui e agora. Portanto, nós temos capacidades conceptuais específicas e por isso
a nossa perceção, a nossa racionalidade e sobretudo a diferença que a
linguagem faz no tipo de mentes que são as mentes humanas, para
mim são problemas absolutamente centrais na filosofia da mente. E depois podes
tratar tudo o resto, podes tratar questões de racionalidade, de decisão, de
escolha, de emoções, de consciência, relações de consciência e linguagem, podes tratar
tudo o resto. E vais encontrar muitos problemas, também eram os problemas
do Sartre ou do Heidegger. Os problemas do autoconhecimento, do auto-engano, da
má-fé, da autenticidade para consigo próprio. Podes retomar esses problemas todos, Chamar-lhes,
por exemplo, problemas de self-knowledge e considerá-los no âmbito daquilo que pensas
que é um tipo de mente e o acesso dessa mente a
si. Sim,
José Maria Pimentel
eu concordo, atenção, eu disse sobretudo cérebro, é evidente que nós somos
o nosso corpo todo, não é? Mas o grande mistério, nós sabemos
que o centro da nossa cognição está no cérebro, independentemente dele ter
não só ramificações no resto do corpo, nós, entre outras coisas, temos
neurónios no resto do corpo, como a nossa forma de apreensão do
mundo ser através do corpo, isso é fundamental, mas quer dizer, para
todos os efeitos, aquilo que me parece, mas que o Rui se
estiver enganado, ser o grande mistério, é como é que do nosso
cérebro, como é que de um conjunto de neurónios e sinapses, ou
considerando, lá está, o próprio resto do corpo, surge uma mente que
é não só uma coisa que até hoje foi impossível de ligar
à nossa arquitetura do cérebro de uma forma direta, consegue-se saber se
tem correlações, mas não essa ligação, como tem aquele aspecto particular de
ser a nossa mente, ou seja, aquela história do What is it
like to be, não é? Há alguma coisa que é ser eu,
tal como há alguma coisa que é seres tu, não é? A
nossa autoconsciência e as matizes das nossas sensações, dos nossos sentimentos e
até do nosso próprio raciocínio, não é? No fundo, o mistério é
esse, acho eu. Corrisme se estiver enganado.
Sofia Miguens
Estás absolutamente certo e tudo o que tu disseste foi filosoficamente pesadíssimo,
não penses que tens as mãos limpas em termos de filosofia. Só
a ideia de que a nossa mente surge do nosso cérebro, ok?
Tudo isso já é resumir todo o problema para o qual estávamos
a usar os termos dualismo, epifanomenismo, materialismo, monismo. Portanto, essa forma comum
de nós falarmos, a nossa mente surge do nosso cérebro, já é
ela própria um posicionamento. Mas tu respondes à tua própria pergunta, portanto.
E se calhar pegaste mesmo as palavras que pelo menos eu prefiro.
O que é para mim ser eu? O que é para ti
ser o Zé Maria? O que é para mim ser a Sofia?
E em que é que isto do what is it like for
you to be, portanto, seres a pessoa que és, em que é
que isto se relaciona com a tua corporeidade e em particular com
o teu cérebro, chama a isso o problema do corpo. Portanto, formulado
assim, não estará certamente mal formulado. Deixa-me dizer-te aqui uma coisa, uma
relação entre a filosofia da mente e o que nós estávamos a
dizer antes, que tem a ver com algumas insatisfações minhas de trabalhar
só em filosofia da mente. Reparem, a mente, que interessa? A filosofia
da mente é minha ou é tua? É do Zé Maria ou
é da Sofia? Mas, por exemplo, um pensamento, como por exemplo nós
estamos a falar um com o outro, ou dois mais dois são
quatro, isso não é uma mente, é um pensamento que nós podemos
Sofia Miguens
Nós temos aqui alguma coisa que é comum e é tão ou
mais importante para aquilo que é, se quiseres, para um humano ser
humano ou haver pensamento no mundo, esta partilhabilidade dos pensamentos, chama-lhe de
proposições, chama-lhe de crenças, chama-lhe o que é para nós representar e
inferir, como esse aspecto se quiser pessoal, individual, psicológico, what is it
like to be, como é para mim ser eu. Esse é apenas
um dos muitos problemas da filosofia, portanto não me parece que se
deva engolir na filosofia da mente só porque estamos a falar de
mentes, tudo aquilo que são os problemas da filosofia de que falávamos
antes. Portanto, está claro este ponto. Portanto, as nossas mentes psicológicas individuais,
nossas ou de qualquer outro animal, possivelmente de agentes artificiais futuros, essas
mentes que se ligam à identidade pessoal, portanto para ti seres tu,
para mim ser eu, isso não é o mesmo que o pensamento,
no sentido em que o grande problema geral para a filosofia será
sempre pensar e ser, was heise denkend, como dizem os alemães, o
que é pensamento. E pensamento não é só mentes e precisamente a
relação entre uma coisa e outra é extremamente importante. E a linguagem
é muito importante nessa partilhabilidade dos pensamentos e por isso uma espécie
de redução dos problemas do que é pensar aos problemas da mentalidade
individual e psicológica parece-me ser uma forma não muito correta de funcionar
em filosofia da mente. Mas, de novo, se estamos na filosofia da
mente, eu gosto do Dennett, embora ele não seja mainstream, ok? Portanto,
não é mainstream porque ele tanto está na filosofia como na ciência
cognitiva e por vezes os filósofos preferem filósofos que são filósofos para
filósofos. E o Dennett vê o problema da filosofia da mente da
seguinte maneira. Como é que é possível que os pensamentos, portanto, realidades
semânticas, normativas, possibilidade de verdade e falsidade e os neurónios do meu
cérebro existam num mundo que é o mesmo. Portanto, tens de ter
aqui uma espécie de vértice, mundo, haver mundo, estar num mundo de
alguém e haver estas duas faces. Pensamento, chamo-lhes crenças agora, chamo-lhes consciência
se quiseres, e uma realidade física, biológica, aquilo que tu és enquanto
animal dotado de um cérebro. Uma das razões porque o Gannett me
agrada, mas isso também é completamente... Ele é polémico e isto chama-lhe
uma posição deflacionária, Ele não considera que a consciência seja o maior
problema aí. Tu tens uma quantidade de importantíssimos filósofos da mente atuais.
Imagina, Thomas Nagel com a sua famosa experiência de pensamento do morcego,
Frank Jackson com a famosa experiência de pensamento da Mary, a neurocientista.
Podemos falar destas experiências de pensamento de todos. Todas estas pessoas pensam
que aquilo que há de mais especial no problemamento corpo é a
consciência. Como diz o Thomas Nagel, é a consciência que torna o
problemamento corpo intratável. Não é um problema como um problema da redução
água H2O, em que nós passamos de uma conceptualização comum de uma
coisa e depois temos uma conceptualização científica e depois devemos perguntar o
que é realmente essa coisa de um ponto de vista ontológico. Redução
eu estou a usar aqui no sentido de filosofia da ciência, portanto,
de relação entre entidades e leis de um nível e entidades e
leis de um outro nível e a forma como tu fazes corresponder.
E o problema é como é que tu fazes corresponder a consciência.
A consciência seria qualquer coisa a mais, qualquer coisa de esquisito. Tu
poderias, por exemplo, ser um zombie. Estivemos aqui a falar este tempo
todo, não é?
José Maria Pimentel
do Chalmers, exatamente. Eu, por acaso, não... Sabes que essa... Bem, só
para explicar, corrija-me se eu não der... Se me faltar aqui algum
ingrediente, mas a experiência do zombie ou o enigma do zombie é,
no fundo, dizer que eu ou tu podemos nos comportar de maneira
absolutamente normal para qualquer pessoa que interage connosco, mas no fundo não
termos consciência, não é? No fundo, a ver esse... Não é sermos
completamente funcionais do ponto de vista do comportamento, mas não haver esse
what is it like to be, essa pessoa, dentro de nós. No
fundo é isso.
Sofia Miguens
Absolutamente. Mas repara que o que é estranho e até perturbador aí,
por mais que gostemos ou não gostemos dessa experiência de pensamento, que
é então um ser tão inteligente como tu, tão linguístico como tu,
tão conceptual como tu, exatamente igual ao Zé Maria, mas sem qualia,
sem interioridade, sem what is it like to be, a questão é
que eu nunca posso saber se tu não és isso, porque as
nossas mentes não vão nunca dentro, não alcançam nunca diretamente as mentes
de outra. E, portanto, aquilo que ele está a variar ou a
fazer ou a pôr em relevo com a experiência de pensamento do
zombie pode-lhe chamar o problema das outras mentes. O facto de nós
vivermos humanamente em comum, chama-lhe humanos com humanos, humanos com outros animais,
mas a nossa interface é comportamental e corpórea, e linguística. Portanto, nunca
será de outra maneira, não se trata de eu pôr o meu
dedo ou estender uma sonda, uma sonda conceptual para dentro da tua
mente. Como
José Maria Pimentel
Ele acha, creio eu, que a consciência é no fundo uma... Não
diria um subproduto, se calhar subproduto é um termo demasiado extremo para
isso, mas é uma consequência do desenvolvimento da inteligência, ou seja, ela
surge como uma espécie de efeito do aumento do desenvolvimento cognitivo e
não como uma coisa em si mesmo isolável. Eu acho que, embora
seja difícil de provar isso, mas eu acho que nós temos uma
série de... Por isso é que eu tendo a concordar que há
alguns filósofos que estão atrás do animal errado, essas coisas, e pegam
em problemas desses que são engenhosos, e já vamos falar se calhar
do neurocientista Mary, que é giro, mas também me parece mais ou
menos a mesma coisa, que não parece que vão continuar o caminho
certo, embora a pergunta em si, obviamente que é ultra interessante, e
há uma série de coisas que nós não sabemos. Agora, o que
é que nós sabemos? Nós sabemos que, por exemplo, se nós olharmos
para a natureza, nós sabemos que a consciência existe no mundo animal,
quer dizer, nós somos parte do mundo animal, como é óbvio, não
é?
Sofia Miguens
O Dan até aí diz uma coisa estranha, diz que só nós
humanos, porque somos linguística, seres linguísticos, é que somos conscientes no sentido
próprio, ok? Que é que para ele é o único sentido? Essa
autoinspeção linguística daquilo que do ponto de vista da nossa inteligência somos,
nós já podemos, vamos já dizer que ele diz muitas outras coisas
mais
sofisticadas que se pensa sobre consciência, Mas ele é daqueles, na filosofia
da mente contemporânea, que traçam um abismo entre nós e os outros
animais. Ele, como por exemplo um Donald Davidson, e isso, pelo que
eu estou a perceber, não te agrada. Não,
José Maria Pimentel
mais ou menos eu já tive essa posição, mas eu não acho
que as duas coisas sejam necessariamente compatíveis, ou seja, nós podemos dizer
que há uma descontinuidade a certo ponto, se nós quisermos, e ao
mesmo tempo admitir que existe um substrato que é contínuo, ou seja,
é evidente que entre a nossa mente e a de um chimpanzé
ou de um bonobo, que são os animais mais próximos de nós,
há uma descontinuidade no sentido em que a linguagem, desde logo, a
capacidade de planear o futuro, quer dizer, de enquadrar diversas opções, são
coisas que existem na mente humana e a existirem no chimpanzee existem
de uma maneira muito incipiente. Agora, existe uma continuidade, ou seja, se
tu partires de um ser unicelular até nós, admitindo que nós estamos
no pináculo do evolutivo, que também era outra questão, mas pelo menos
a este respeito aparentemente sim. Espera
José Maria Pimentel
Não, do ponto de vista da consciência. A evolução não tem um
objetivo, não é? Mas somos o único animal que tem consciência neste
sentido, ou pelo menos aparentemente. Mas isso não quer dizer que nós
não vejamos em uma série de seres proto-consciência e mesmo consciência em
outros aspectos. E mesmo no exemplo dos chipasés, ou até mais abaixo
disso, no exemplo dos cães, que eu tenho dois cães e vejo
neles, se por acaso são cadelas, vejo neles claramente aspectos que estão
num contínuo de consciência que depois vêm dar lugar a nossa obviamente
que elas não têm, muitas vezes, já tive até essa conversa no
podcast uma vez, porque as pessoas muitas vezes quando gostam dos animais,
imputam-lhes um nível de consciência que eles claramente não têm. É evidente.
Mas ainda assim, é óbvio que um cão tem muito mais consciência,
ou nesse contínuo, do que uma amígdala. Exatamente. E outro exemplo muito
mais próximo de nós, o exemplo das crianças, por exemplo, que é
muito giro. Tu veres um bebê desenvolver-se é veres aquele ser ganhar
consciência. Ele vai galgando as várias etapas. Eu tenho uma filha com
um ano e três meses e é muito giro. Ela agora, por
exemplo, já tem, Continua a ser uma proto-consciência, ela não tem capacidade
de planear o futuro nem nada que se pareça, mas tem ali
uma série de coisas que não tinha antes e vai adquirindo. Por
exemplo, ainda no outro dia vi uma coisa muito gira a propósito
da teoria da mente, que é no fundo nós percebermos...
Sofia Miguens
Tudo o que tu estás muito do lado do Dennett em termos
de quais são os bons problemas para pensar sobre a natureza do
mental. Para ele são esses problemas de continuidade. E isso te satisfaz
em vez de consciência dizer inteligência ou dizer awareness, porque Tudo o
que ele não quer dizer é consciência fenomenal ou qualia, qualquer coisa
de... Something completely different. Qualquer coisa que pode estar totalmente ausente quando
tens toda a inteligência, toda a racionalidade, todo o apercebimento a funcionar.
Porque essa é a intuição do lado dos zombies ou do lado
dos qualia, portanto do lado da consciência fenomenal. E essa o Dennett
rejeita. Mas tudo o que tu disseste, de novo, repara, as tuas
palavras são filosoficamente muito pesadas, em muitas pistas, tudo o que tu
disseste, por exemplo, sobre linguagem, sobre ir-se tornando mais progressivamente mais consciente,
pelo lado da tua filha, por exemplo, Tudo isso são coisas eticamente
muito pesadas, ok? Porque, por exemplo, se tu relacionas o ser pessoa
ou de uma pessoa com a autoconsciência... Mas
é diferente. Mas
tu acabaste de dizer que um humano quando nasce não é autoconsciente.
Sim,
Sofia Miguens
Pois, e a posição que tu tens aí é importantíssima para ires
para um lado ou para o outro em termos éticos. Mas só
para fazermos justiça ao Dennett, uma vez que eu disse que ele
é malquisto por muitos, nos lugares mais, digamos, mais filosofia pura da
filosofia da mente, o Dennett não me disse, a teoria da consciência
do Dennett tem pelo menos três departamentos diferentes. Um que tem a
ver com linguagem e com a ideia de Higher Order Theory, portanto
a ideia de que para tu falar de consciência no sentido próprio
tens que ter estados mentais sobre outros estados mentais, portanto trata-se de
uma relação, se quiseres, autoreferencial, agora usado o termo autoreferência sem tecnicismo,
Trata-se de uma autorrelação, trata-se da possibilidade de tudo ter os estados
mentais sobre os teus estados mentais com um grau de aprofundamento ou
de embebimento que o Dennett considera que só é possível em momentos
linguísticos. Portanto, parte da teoria da consciência dele é aquilo que no
jornal se chama Higher Order, uma teoria da consciência como crenças sobre
crenças próprias. Outra parte está entre a ciência e a filosofia, é
aquilo que se chama o modelo funcionalista do mental e que ele
desenvolve em comum com, por exemplo, psicólogos cognitivos. Aquilo que se chama
o Multiple Drafts Model é um modelo funcionalista, portanto a ideia, se
quiseres, de um software a correr no cérebro. Para dizermos agora isto
de forma curta, mas tem a ver com a investigação sobre cognição
e, portanto, aqui claramente não estás só a falar do lado da
filosofia, mas estás a falar da instituição de um centro virtual num
cérebro que faz processamento paralelo distribuído de informação. Portanto, não há nada,
digamos, natural na existência de um eu, não há nenhum centro pré-constituído
ou caído do céu, ou um bebê humano não nasce dotado daquilo
que será uma autorrepresentação complexa, que para o Dennett será um centro
virtual e ele próprio uma representação que ele quer considerar no âmbito
desse modelo funcionalista da consciência. E depois aquilo para que se olha
mais, quando se o critica, dizendo que ele é um eliminativista da
consciência, que pensa que todos somos zombies, é então uma ideia acerca
de qualia. Portanto, normalmente a palavra qualia utiliza-se para o que tu
chamaste de sentir-se ser. Eu sinto-me ser, sinto-me consciente, sinto-me pensante. E
o Dan é que desconfia da palavra qualia e considera que tudo
que está em causa quando nós falamos de qualia é incorrigibilidade no
nosso auto-acesso. Portanto, é nós não podermos estar enganados acerca daquilo que
estamos a ser. Por exemplo, eu sinto dor, eu não posso estar
enganado acerca de me sentir dor. Para a maior parte das pessoas,
isso seria prototipicamente um qualia, um qualia de dor. Para o Dennett,
a questão dos qualia é uma pseudo-questão. O que está aqui em
causa é o estatuto do auto-acesso e o estatuto da incorrigibilidade, da
tua incorrigibilidade no teu auto-acesso. O que
Sofia Miguens
Absolutamente, quer dizer, se tu estás a falar de mente e de
cérebro, não estás a fazer só filosofia. Há várias disciplinas da mente
e do cérebro, a filosofia é apenas uma delas. Os problemas da
filosofia da mente são apenas alguns dos problemas desse campo da mente-cérebro.
Mas, basicamente, isso. Não dissemos a coisa mais importante sobre o Dennett,
que é, se calhar, a ideia mais básica do Dennett em Filosofia
da Mente, é uma ideia que se calhar agradou mais a cientistas
cognitivos que a filósofos, a ideia de intentional stance ou a ideia
de estratégia intencional, ou atribuição intencional, que tem a ver com aquilo
que tu chamaste de teoria da mente. Portanto, tu seres um tipo
de mente que atribui mente a outros agentes ou outras coisas no
mundo. Aliás, atribuí-los puduradamente, porque às vezes para nós basta-nos ver uma
simulação de um rosto ou de um nariz, ou de dois riscos
e imediatamente sorrimos como se fosse um rosto humano. Portanto, nós reagimos
a muitas partes do nosso mundo, do nosso entorno, como se fossem
mentais. Essa atribuição de mentalidade e a complexificação nessa atribuição de mentalidade.
Por exemplo, tu tens coisas que são mentalmente previsíveis. Por exemplo, olhas
para um termostato e ele diz-te que está a calor. Tu podes
olhar para ele, ele pensa que está a calor. Isso é obviamente
metafórico, heurístico, mas é uma forma que nos serve para nos orientarmos
cognitivamente com muitíssimas coisas do mundo. Por exemplo, pensa, o coronavírus é
inteligente. Trata-se de uma estratégia heurística de atribuição de uma inteligência que,
presumivelmente, não está lá. Para tu chegares dessa atribuição, dessa intente synostance
de primeiro grau a um amante do nosso tipo, tu tens que
ter não apenas uma atribuibilidade de mentalidade, mas tu tens que ter
a seguinte situação. Tu pensas que P, por exemplo, e dizes que
P, estas mãos são minhas, depois tens uma mente que pensa que
tu pensas que P e que pensa que tu pensas que ela
pensa que P. E é aí que a linguagem faz diferença, ok?
Que a linguagem faz diferença do ponto de vista cognitivo. Portanto, a
linguagem será, se quiseres, essa tecnologia natural que faz com que as
mentes humanas se aprofundem do ponto de vista desta estratégia intencional. E,
portanto, de novo, para o Danity será um problema de comparar tipos
de mentes e as nossas mentes humanas aparecem, como tu disseste, numa
continuidade relativamente a muitos outros tipos de mentes, mas com essas especificidades,
muitas das quais, algumas das mais importantes, são devidas à linguagem. Não
que ele seja um grande filósofo da linguagem, ok? Ele não quereria
saber destes grandes temas da filosofia analítica inicial, da Russell, da Frege,
ok? Não quereria. Aliás, do ponto de vista epistemológico, metafísico, Dennett quer
ser tudo ao mesmo tempo. Quer ser um koiniano, quer ser um
wittgensteiniano e não temos que saber se isso é sequer coerente. Mas,
do ponto de vista das propostas específicas em filosofia da mente, penso
que continua a dizer coisas extremamente interessantes, orientadoras, para mim, no campo
da filosofia da mente.
Sofia Miguens
outros animais. Absolutamente. E, portanto, é uma forma de tocar naquele problema
que muitas pessoas, na filosofia, tocam de uma forma mais pura, que
é o problema da relação pensamento-linguagem. Tocá-lo de uma forma mais cognitiva.
Mas repara que, se calhar, aquilo que é mais desafiador no Dennett
é a ideia de que a inteligência pode ser só comportamento, pode
ser só acontecimento. A inteligência no sentido de racionalidade, adequação meios-fins, aquilo
que se chama normalmente de racionalidade instrumental, isso pode ser absolutamente comportamental
unicamente no sentido de ser uma adaptação reativa de um agente físico
resultante de evolução às solicitações do seu ambiente, sem teres que ter
desenvolvido uma interioridade. Portanto, inteligência pode ser não autorreflexiva ou não consciente.
Para o Dennis isso é extremamente... Mas
Sofia Miguens
que ele chama de psicólogos naturais não pensantes, então isso não são
os zombies? Sim. Seria sem dúvida uma boa objeção, mas repara que,
por exemplo, na filosofia da ação faz parte sempre da distinção entre
aquilo que nós fazemos e aquilo que simplesmente acontece, ok? Pensa numa
coisa que tu fazes, por exemplo, levantas um braço, isso pode ser
uma ação voluntária tua, exercício do teu livre-arbítrio, ou então se houver
um neurocientista manipulador que aciona diretamente o teu córtex, pode ser uma
coisa que te acontece. Fizeste
nada e o teu
braço levantou-se. Certo. Aquilo que o Dan é-te de estar a dizer
é que a inteligência, a tua inteligência, a tua racionalidade, mas a
tua, de um ser inteligente menos complexo que tu, começa por ser,
pode ser, puramente comportamental, puramente acontecimento. Portanto, toda essa presumção de que
nós, do ponto de vista da nossa inteligência, consciência, racionalidade, somos muitíssimo
especiais, tem que ser qualificada. Sim,
Sofia Miguens
Esta posição, Reparem, aquilo diz, isto não é um problema, isto são
muitos pequenos problemas e fazer de conta que estes vários problemas, que
são problemas acerca de comportamento, de ação, de linguagem, de auto-sondagem, de
modelos cognitivos, pensar que isto é um único problema, que é o
problema da superveniência da consciência fenomenal, por exemplo, a este mundo físico,
isso em si próprio já é uma má estratégia. Portanto, ele diz
que são vários os problemas, não é um. Mas
Sofia Miguens
E aí estávamos a falar de outros animais ou de outros seres
vivos, portanto, estávamos a falar, se quiseres, da forma como o problema
geral, que é o problema da natureza, da inteligência, da relação da
inteligência com o comportamento, começa muito antes da existência dos humanos e
aquilo, os princípios teóricos que ele utiliza, da estratégia intencional para pensar
na inteligência, se chama-lhe nessa história evolutiva do mental e da racionalidade,
vão ser os mesmos que tu vais continuar a utilizar para pensar
em ti próprio, conforme a que ele considera filosoficamente correta. O que
significa que tu pensas no mental, se quiseres, desde um ponto. Não
há humanos, não há sequer animais complexos, mas começa a haver free-floating
rationality. Portanto, começa a haver, se quiseres, purpose, começa a haver propósito,
há vida e há propósito. E esse mindless purpose para aquilo que
é, se quiseres, o nosso estado de coisas enquanto humanos, que é
nós nos preocupamos obsessivamente com o propósito, com a consciência, quer dizer,
nós não apenas pensamos, mas passamos a vida a pensar sobre o
nosso pensamento, agora figura tudo isso num contínuo. Portanto, isso que tu
és agora, essa preocupação com razões, preocupação com justificação, preocupação com fazer
ciência, com fazer filosofia, pensa nisso na continuidade desse surgimento daquilo que
aí é melhor dizer inteligência e racionalidade. E portanto a consciência seria
apenas um degrau a ser pensado de forma continuista. Claro que isto,
repara, pode-lhe chamar de anticartesiana. A ideia é, não temos aqui um
vir da alma e da consciência para fora a animar um corpo
automato. E também não tens a ideia de que aquilo a que
tu vais chamar essencialmente de tu próprio, a tua consciência, a tua
pessoalidade, a tua identidade pessoal, é absolutamente separável daquilo que é, cá
dizíamos só o teu cérebro, mas todo o teu corpo. Podes reencontrar
aí, por exemplo, Merleau-Ponty todo, voltando à filosofia continental, da importância do
corpo próprio para a natureza da inteligência, da importância da perceção para
a natureza da inteligência. Para pôr aqui um pouquinho dos debates epistemológicos
da inteligência artificial, e o Dennett é um daqueles filósofos que acha
que os debates epistemológicos da inteligência artificial são extremamente importantes filosoficamente. Quando
a inteligência artificial começa, nos anos 50, aquilo que estava mais pronto
a replicar da inteligência humana são as nossas tarefas simbólicas complexas. Imagina
fazer uma demonstração matemática ou jogar um jogo de xadrez. Aquilo que
é mais difícil e que é também constitutivo da inteligência humana é,
por exemplo, tu mexeres o teu corpo. Se alguém, imagina que estás
numa mesa com tábuas, com espaço entre elas, derramas um copo e
imediatamente afastas-te daquilo que é inteligência corpórea ou então o mero facto
de veres, de teres percepção.
Então,
se essas componentes da forma corpórea ou humana de ser inteligente no
mundo são muito mais dificilmente simuláveis ou replicáveis do que estas nossas
faculdades simbólicas complexas formais, como pensar logicamente ou fazer uma demonstração matemática.
Sim,
José Maria Pimentel
bem, depende, mas aí Eu percebo o que queres dizer e esse
é um ponto, aliás, uma das limitações da inteligência artificial é que,
da inteligência artificial geral, ou seja, comparável às nossas, é que provavelmente
aquele algoritmo tinha que interagir com o mundo através de um corpo
porque é assim que nós apreendemos o mundo e estamos feitos para
isso. Mas há outro aspecto da inteligência humana, que é se calhar
o mais difícil, comparativamente com esse da mais comparável a uma máquina
de calcular, que é o mais relacionado com a criatividade e com
a relação de ideias e com a extração de... Padrões. Padrões, exatamente.
Essa é que é... Esta é a questão da consciência. Ou da
mente. No fundo, lá está, é verdade que são uma série de
questões de uma só, e tu falaste já muito da racionalidade, mas
está mais do que comprovado que nós somos irracionais numa série de
aspectos e temos... E as emoções são uma espécie de... As emoções
não são necessariamente irracionais, mas são, como são meurística, formam uma adaptação
evolutiva a determinadas coisas, mas que não dão necessariamente a resposta certa
noutras situações, não é? E tudo isso é humano também.
Sofia Miguens
Claro, não, absolutamente. E quando eu digo racionalidade, digamos que a parte
mais interessante da racionalidade é a irracionalidade.
Exato, sim, sim.
E, Aliás, essa é uma questão. Tu não podes dizer que este
meu telemóvel é irracional ou que este ecrã que está na minha
frente é irracional ou que esta caneta é irracional. Eu posso dizer
que eu sou irracional ou que tu és irracional num dado momento,
num dado instante. Portanto, presumivelmente, só podemos dizer que só aquilo que
é racional pode ser irracional.
Certo, exato.
E essa será a forma como os problemas que estávamos a discutir
acerca de constituição ou evolução de mentalidade depois se vão relacionar com
racionalidade. E o que tu estavas a dizer sobre emoções, isso é
outro campo por excelência da filosofia da mente. Pensa no locus clássico
disso, que é David Hume. A ideia não é que as emoções
são irracionais e há uma parte pura da racionalidade. A ideia é
que o tipo de montagem cognitiva que nós somos, da nossa racionalidade,
fazem parte das emoções. Depois podíamos discutir muito mais se o David
dizia isso ou não, mas a ideia é que estás sempre a
ir atrás de uma concepção de racionalidade. Só aí é que faz
sentido. Há toda uma literatura fantástica sobre racionalidade e irracionalidade na ciência
cognitiva. Racionalidade e irracionalidade nos raciocínios teóricos, nos raciocínios práticos, em tarefas
de decisão. Olha, se calhar é um ponto em que isso se
cruza com as coisas que tu na economia estudas. Portanto, há os
paradigmas do heuristics and biases, as críticas a esses paradigmas, a teoria
Sofia Miguens
Todos esses pontos em que se estuda questões de racionalidade e de
irracionalidade são, há bocado falávamos da lógica, mas essas questões, esses modelos
da racionalidade são um outro desafio para aquilo que se faz dentro
da filosofia da mente, que é, nós temos concepções normativas do que
é ser lógico ou do que é ser racional E o problema
da filosofia da mente é saber como é que isso se relaciona
com os agentes biológicos, físicos, que nós somos, que os outros animais
são, que agentes artificiais são. Portanto, uma coisa é nós, por exemplo,
dizermos, de acordo com a teoria da decisão, ser racional a isto.
Por exemplo, escolher maximizando a utilidade esperada. Só que quando tu estás
no seguro terreno formal podes perfeitamente dizer isso, agora dizer como é
que isso se aplica a um agente cognitivo real ou sequer se
esse é um bom modelo de um agente cognitivo real, isso é
uma questão em aberto, ok? E é uma questão, repara, os filósofos
têm discutido muito essa questão também em termos de seria alguma vez
possível ou concebível demonstrar empiricamente a irracionalidade? Isso é um problema com
que vários cientistas cognitivos ou filósofos, ou psicólogos, chegaram a filósofos. Ok,
eu tenho estes resultados. Tenho estes resultados acerca, por exemplo, de percentagens
de sujeitos que respondem de uma forma irracional a este particular inquérito.
Por exemplo, irracional porquê? Porque não segue regras quanto a condicionais ou
que não segue aquilo que se aprende em teoria das probabilidades. Agora,
o que é que eu estou a dizer quando digo, por exemplo,
que a maioria dos sujeitos são irracionais? Isso é o princípio, digamos,
do território filosófico dos estudos da racionalidade, porque não há nenhuma resposta
pronta aí. Tu podes até dizer que a racionalidade natural é heurística,
nenhum modelo idealizador de racionalidade é de alguma forma real ou realista
acerca daquilo que nós realmente somos. Mas
Sofia Miguens
O que eu estou a dizer-te é que é sim debatível e
essa é a questão interessante. Nós temos bons, não temos forma de
nos orientarmos aqui sem termos teorias como a teoria da decisão racional
ou como lógica ou sistemas lógicos. Portanto, nós precisamos de modelos, senão
perdemos completamente a pensar. Claro. Senão o que é que haveria? Acontecimentos
de corpos no mundo, sons trocados, nós precisamos de modelos para pensar
sobre a nossa forma de sermos pensantes, a nossa forma de sermos
racionais, mas não está decidida à partida o que é que tu
vais considerar que ser racional é. Tudo isso de que falamos aqui
hoje, por exemplo, vai estar envolvido. Repara que falamos de lógica, falamos
de consciência, falamos de decisão, falamos da forma como raciocínios reais se
conformam ou não àquilo que são as regras da lógica ou da
teoria das probabilidades que tu aprendes num contexto de aula. Todas essas
questões, no fim de tudo isso, já agora pensando num livro há
bocado perguntaste-me coisas acerca de livros, o Nature of Rationality de Robert
Nozick, um filósofo de Harvard, seria aqui um ótimo livro, ele era
um filósofo da economia, um teórico da decisão racional, também estava muito
próximo de uma teoria evolutiva da racionalidade, seria um bom ponto onde
esta questão está discutida. Portanto, o problema da racionalidade é o que
tu vais discutir no fim de considerares todos estes modelos, a forma
como estes modelos te permitem pensar sobre a forma como tu pensas,
sobre a forma como tu ages, vais ter que considerar além disso,
por exemplo, aquilo que psicológico ou neurocientificamente tu vais aprender sobre as
emoções humanas, onde é que tu irias buscar um modelo prévio de
racionalidade a priori? Não pode, quer
Sofia Miguens
O que tu tens é observabilidade de princípios, casos concretos e depois
um vai e vem entre princípios e regras. Estou a dizer isto,
estou a pensar, por exemplo, no John Rawls na filosofia política e
na forma de pensar sobre justificação. Isto não serve só para pensar
na justificação num contexto de filosofia política, isto serve para pensar na
justificação em geral. E quando estás a falar de racionalidade estás a
falar de justificação em geral e daquilo que pode ser explicitado quanto
à justificação. E se tu não tens modelos prontos, e eu estou
a pôr as cartas em cima da mesa a dizer que eu
penso assim. Pô, tu pensavas de uma forma diferente. Mas se não
tens as cartas à partida, tudo o que tu tens é esse
vai-vem entre os casos em que tu tens intuições que te dizem
que eu penso exatamente assim, isto é racional, ou isto é lógico,
ou isto é justo, e o vai-vem entre os casos e os
princípios. Isso conduz-te a caminhos diferentes. Não,
José Maria Pimentel
mas essa questão... Esse é outro, esse RCT até me parece pior
do que o do zombie. Porque o do zombie é um bocadinho
mais discutível, esse parece mais evid... Quer dizer, nós não aprendemos a
ler ou a ouvir, nós aprendemos a agir no mundo como todos
nós sabemos. A experiência é essencial, qualquer experiência que a pessoa tenha,
por mais que nós leiamos ou por mais que nós ouçamos alguém
relatar uma coisa qualquer, só tendo aquela experiência, o desporto é o
caso mais evidente disso. Eu posso ler vários livros sobre jogar futebol,
só jogando futebol é que eu vou aprender aquilo. É evidente que
ela só a ler ou ouvir ou a estudar sobre a neurociência
das cores nunca saberia o suficiente para saber o que é sentir
uma cor. Se no outro paradigma nós evoluíssemos para um paradigma e
conseguíssemos, de facto, transmitir por via externa essa experiência às pessoas, aí
acho que ela saindo do quarto não iria aprender nada de novo.
Mas diz-me só o que é que tu achas e então podemos
deixar a coisa assim, mas só para quem nos está a ouvir,
a tua opinião é muito mais qualificada do que a minha em
relação a isto, portanto, acho que é muito mais útil para quem
nos está a ouvir.
Sofia Miguens
Repara que estas experiências de pensamento, nós falamos de três, o zombie
do Chalmers, a Mary do Jackson e o Thomas Nagel, o What
is it like to be a bat, são tudo experiências de pensamento
que procuram despoletar uma intuição que vai no mesmo sentido, que é
o caráter especial da experiência ou do squalia ou da consciência fenomenal.
E no caso do Jackson, Isso está enfatizado de uma forma mais
epistemológica, portanto o teu conhecimento teórico em terceira pessoa, portanto o teu
conhecimento científico acerca daquilo que é neurofisiologia da cor não te diz
ainda como é ver cor, como é ver vermelho.
Hoje? A
questão não é hoje, a questão é nunca. É como no caso
do morcego. Tu podes conhecer todos os factos físicos, como se costuma
dizer nestes contextos, acerca do córtex do morcego e da ecolocalização, nesse
caso. Mas isso não te fará experienciar o que é ser um
morcego. Portanto, tens aí um, chama-lhe um abismo ontológico entre terceira pessoa,
portanto, conhecimento de factos, e primeira pessoa, portanto, se quiseres experienciar a
partir de dentro aquilo que é a subjetividade da consciência.
José Maria Pimentel
que a consciência não está a respeitar. Exatamente, sim, sim, sim, sim.
Pois, quer dizer, é evidente que esse é um mistério, mas o
estranho seria isso, não é? Ou seja, todo o caminho que nós
já percorremos em termos de conhecimento da maneira de funcionar do mundo
e do nosso corpo e do nosso cérebro, isso parece-me um dos
passos seguintes. É obviamente, óbvio que é um passo que ainda hoje
está muito longe, continua a estar muito longe. E aliás, às vezes
houve uma onda muito, até recente, que... Recente, quer dizer, no fundo
estamos a vivê-la, de algum entusiasmo com inteligência artificial e afins, que
às vezes faz parecer que isso está próximo, quando na verdade está
muito longe de estar próximo. Essa compreensão está muito longe de estar
próximo. Mas, para ser minha, é muito mais provável ela surgir do
que haver qualquer coisa de misterioso na mente humana, não necessariamente uma
coisa dualista, não necessariamente a alma, mas qualquer coisa de misterioso que
fosse inexpugnável.
Sofia Miguens
Olha, uma experiência que nos podia levar mais longe por aí, imagina,
o download das capacidades de saber pilotar um helicóptero que acontece à
Trinity no Matrix. A ideia de que tu, em determinados contextos, isto
seria uma forma de tu tentares ir pelo outro caminho, ok? Alguém
que não quisesse fazer uma distinção abissal entre o saber de factos
e como é experienciar, poderia procurar trilhar um caminho como esse. Mas
repara que nós estamos aqui a falar de duas coisas diferentes. O
nosso interior físico, que é o nosso cérebro, e possivelmente onde poderia
ser feito supostamente esse download cognitivo de capacidades e o nosso interior
mental. Sim,
José Maria Pimentel
Pois não, foi um mistério. Então, pronto, mas vamos deixar este tema.
Queria só falar um bocadinho da questão do livro arbítrio porque, curiosamente,
aí eu até nem me sinto tão próximo desta visão mais fisicalista
ou materialista, que o risco de estiver a usar termos errados, porque
o jargão disso é complicado e nem sempre me é natural. Mas
no fundo, aquilo que me parece, não sei se... Eu acho que
isto não é... A correspondência não é unívoca, mas parece-me que filósofos
com uma perspectiva fisicalista em relação a esta questão da consciência, ou
seja, que a veem como não dissociável do corpo, quer que isso
queira dizer, e não veem um interesse tão grande na questão dos
qual e da experiência próxima, tendem, alguns deles pelo menos, a dizer
que nesse caso então, como todo o mundo natural resulta das propriedades
da física, então há um problema muito desagradável, mas incontrolável, que é
o facto de nós não termos livre arbítrio. Ou seja, no fundo,
nós podemos achar que estamos a tomar decisões, mas tudo aquilo está
a acontecer no nosso cérebro, por exemplo, os neurólogos estão a disparar
e até aquela experiência do Libet, uma experiência muito conhecida em que
o neurocientista conseguiu provar que quando nós decidimos fazer alguma coisa, na
verdade, milésimos de segundo antes, os nossos neurônios dispararam, ou seja, no
fundo o processo físico ocorreu antes, né?
Sofia Miguens
que decisão e livre-arbítrio se calhar podem ser coisas diferentes, talvez para
tu teres um comportamento de decisão, te basta aleatoriedade, ramificações do mundo
por entre os quais tu podes escolher e para tu teres essas
ramificações de situações, tu podes, por exemplo, ter o determinismo físico, que
é aquilo que perturba muito as pessoas que discutem o livre-arbítrio no
contexto do fisicalismo, não é absolutamente claro que esse determinismo ou determinismo
físico seja aquilo que é o mais importante para tu decidires se
tens livre-arbítrio ou não tens livre-arbítrio. Esta, aliás, é uma questão interessantíssima
na história da filosofia. Por exemplo, o Nietzsche aparece muitas vezes aqui
como um exemplo de alguém que classicamente teria negado que nós temos
livre-arbítrio. Então, penso hoje no Sam Harris, não sei se…
Sim.
Mas vamos ao Libet. O que é que exatamente o Libet faz
e o que é que exatamente o livre-arbítrio é? Tu dizes que
tens livre-arbítrio se fazes aquilo que queres de uma forma que não
é determinada por nada nem por ninguém. Ou então, se quiseres uma
distinção mais informal, nós temos livre-arbítrio se pelo menos algumas das coisas
que acontecem dependem de nós. Pensação up to us, essa up to
us-ness das coisas seria aquilo que nós queríamos ao querermos livre-arbítrio. Ou
então outras pessoas preferem dizer aqui que nós sabemos que temos livre-arbítrio
porque poderíamos ter agido de outra maneira. Nós sabemos que Quando nós
pensamos sobre nós próprios como podendo ter agido de outra maneira, por
exemplo, nenhum de nós apareceu aqui às três da tarde para conversarmos,
seria perfeitamente possível, portanto, dependeu de uma decisão nossa que as coisas
tivessem sido assim e não de outra maneira. Seria a ideia de
que precisas de possibilidades alternativas para a existência de livre-arbítrio. Portanto, desde
logo tu tens aqui coisas diferentes de que aparentemente tu precisas para
teres ou não teres livre-arbítrio. Determinismo ou não determinismo e a forma
como tu defines esse determinismo, nomeadamente se há uma questão acerca de
como o nosso mundo físico é, totalmente dependente de leis, e nós
como parte desse mundo físico também totalmente dependente de leis, ou tens
aqui uma coisa que é contrafactual, modal, possibilidades alternativas. As coisas poderiam
ter sido de uma forma alternativa tal, o Trump poderia não ter
ganho as eleições, a Hillary poderia ter ganho as eleições. Mas
Sofia Miguens
Eu deito aqui duas... Apontei para duas questões completamente diferentes, o determinismo
ou indeterminismo, tal como os físicos o discutem. E por outro lado
a questão dos contrafactuais, da forma como nós pensamos sobre coisas, tal
que as coisas poderiam ter sido de outra maneira, que pessoas diferentes
consideram de formas diferentes entrarem no Parlamento Livre Arbítrio. Portanto, tu tens
a nossa descrição fenomenológica informal. Ter livre arbítrio é fazer aquilo que
eu quero, depender de mim aquilo que eu quero e pode perfeitamente
ser que isto seja uma ilusão. Portanto, eu penso que faço aquilo
que quero, mas o mundo é tal que, por exemplo, o mundo
determinista, que é completamente ilusório, é apenas um reduto fenomenológico meu que
eu tenha feito aquilo que quero, porque realmente aquilo que eu fiz
foi absolutamente determinado. Ok, isto são os parâmetros e poderíamos fazer aqui
intervir muito mais da discussão filosófica, ética, metafísica do livre-arbítrio, mas o
Libet está a fazer outra coisa. O Libet é um neurocientista e
aquilo que ele está a fazer é, como tu disseste, comparar duas
coisas que desde logo interessa percebermos se são comparáveis. Tens sujeitos numa
situação experimental e estás a medir aquilo que seria a iniciação cortical
de uma ação de um sujeito cá fora no mundo. Portanto, se
quiser, estás a mexer com o cérebro das pessoas e estás a
pedir que as pessoas falem e apontem. São duas coisas conceptualmente completamente
diferentes. Tens o relógio na frente das pessoas e pede-se que, quando
lhe apetecer tomar uma decisão, ou quando lhe apetecer ter a intenção
de apontar, desde logo este parâmetro, esta instrução é bastante curiosa, quando
lhe apetecer apontar, então aponte e o ponteiro do relógio vai estar
num determinado ponto, então tu medes no tempo real do mundo cá
fora quando essa pessoa apontou e ao mesmo tempo no cérebro dessa
pessoa estarias a medir potenciais elétricos e a iniciação da ação no
cérebro dessa pessoa. E depois compararias, e ao comparar concluirias que a
iniciação cortical da ação foi anterior ao comportamento linguístico voluntário da pessoa
toda, da pessoa cá fora, e portanto essa pessoa não pode ter
livre-arbítrio, porque aquilo que a pessoa faz acontece só depois daquilo que
foi a iniciação da sua ação voluntária, controlada pelo seu cérebro. Bom,
isso é o que o Libet pensa, que estas experiências refutam o
livre-arbítrio, ou demonstram ou provam que nós não temos livre-arbítrio. O que
é que nós podemos partilhar? Podemos todos ler as descrições das experiências,
podemos todos ver o que é que esteve ali a ser feito
no mundo. Só o facto de tu estares a comparar uma medida
física, aquilo que se passa no teu cérebro com alguma coisa de
linguístico, como eu, um dizer, apontei às 5h30. O primeiro ponto aqui
é saber que comparabilidade há aí. Estás a falar de coisas completamente
diferentes no mundo, portanto de fenómenos elétricos e de frases. E estás
a considerar que há qualquer coisa como um tempo do mundo, que
seria o tempo em que tu medes o instante T e depois
o instante T' que dizes que o instante T é prévio ao
instante T' e, portanto, a iniciação da ação é anterior àquilo que
seria a suposta ação voluntária. Todos esses pontos têm que ser, desculpa
a palavra, desconstruídos conceptualmente. Aí tu estás a entrar em jogo com
aquilo que é para uma pessoa dizer alguma coisa, aquilo que… e
todo o problema mente-corpo, a relação da tua mente, neste caso, a
tua ação, decisão, intenção voluntária e o cérebro. Portanto, todo o problema
mente-corpo está aqui em jogo.
Sofia Miguens
é que tu sequer estás a chamar decisão? Para haver decisão não
tem que haver um eu, não tem que haver um tu do
sujeito. Em que sentido é que tu estás a identificar, um tu
enquanto sujeito, em que sentido é que tu estás a identificar o
eu que decide com aqueles acontecimentos numa parte do teu cérebro? Aí
é a parte em que, por exemplo, o Libet está a ser
completamente antropomorfista a considerar que qualquer coisa como um vocabulário que holisticamente,
desculpa a palavra, do ponto de vista global sobre o agente. Portanto,
nós pensamos, falamos, decidimos e isso são coisas que pessoas, que são
eles, fazem e isso aplica-se àquilo que nós globalmente, era isto que
eu queria dizer com o Holístico, somos. Por exemplo, tu dirias que
os teus neurónios falam? Tu dirias que os teus neurónios falam? Pela
mesma razão, dirias que os teus neurónios decidem? Tu dirias que os
teus neurónios falam português?
Sofia Miguens
Estás a exprimir muito bem o problemamento de corpo que temos estado
a discutir, não é? O mistério é esse, não é? Tu és
uma coisa muito espalhada no mundo e o ponto em que vais
poder dizer que coisas são feitas ou pensamentos são pensados ou frases
são ditas, talvez não tenhas uma espécie de localização espaço-temporal, que seria
uma espécie de um centro, que seria um eu que tu podrias,
por exemplo, ir procurar no teu cérebro para dizer isso. O que
não quer dizer que não estejas a falar de uma forma completamente
legítima acerca de ti própria quando dizes eu agarro o microfone ou
eu digo apontei para o relógio às 5h30. A questão é se
a decisão é qualquer coisa que é tua ou, por exemplo, é
um acontecimento, aquilo que está a ser medido naqueles particulares neurónios. Chama
a isto uma questão, uma das coisas a ser discutida na experiência
de Libet é como é que nós aplicamos esse vocabulário acerca da
decisão. Como é que nós aplicamos, por exemplo, o vocabulário alguém estar
a dizer alguma coisa. Por exemplo, decidi apontar agora. Mas
José Maria Pimentel
sabes que é engraçado porque, embora eu não fosse por aí, mas
é, mas isso é porque me falta, acabou isso conceptual para discutir
a questão nesses termos, mas a minha intuição em relação à experiência
dele e outras do género é que aquilo está de facto a
provar alguma coisa, mas não prova que nós não tenhamos livre-arbítrio, mas
não deixa de provar alguma coisa interessante. Primeiro o que é interessante
ali, eu não sei se isto já te aconteceu, mas eu já
tive experiências daquelas mesmo antes de ver o relato daquela experiência, e
aliás é um exercício giro. Estava a pensar nisso por acaso nos
últimos dias, porque iamos ter esta conversa, e não me consigo lembrar
exatamente de com o que é que isso acontecia. Os melhores casos
são os casos que têm que ver com vontades difíceis de controlar,
Ou seja, imagina, estás a comer sobremesa e tens ali um bolo
de chocolate ou uma coisa qualquer de género e estás naquela, vou
ou não tirar mais uma fatia e estás com a faca suspensa.
E estás absolutamente indeciso, isso já me aconteceu. E eu, nesse momento,
eu tenho noção de que eu decidi antes de ter consciência da
decisão. Quando eu me apercebo é uma fração de segundo e pode
até ser uma ilusão no limite. Calha ir ao encontro desta experiência.
No momento em que eu me apercebo já estou a cortar a
fatia. São milésimos de segundo mas há ali um...
José Maria Pimentel
eu não acho que esteja, ou seja, eu acho que no fundo
há aqui se calhar algum, lá está, como é que tu dizias
há bocadinho, uma desconstrução conceptual que é preciso fazer neste caso em
que nós, quando nós falamos de livre-arbítrio ou quando nós falamos de
consciência, ou quando nós falamos de nós, da nossa mente, estamos a
falar de uma série de coisas ao mesmo tempo. Nós sabemos hoje
em dia que a nossa mente tem, uma grande parte daquilo que
a nossa consciência interpreta como ações nossas ocorrem ao nível do inconsciente
e são de vários tipos. Tens ações, tens aquilo que nós poderíamos
chamar mais vontades deste género, no sentido de comer coisas com açúcar,
que nós sabemos obviamente que evoluímos para isso e portanto temos dificuldade
a resistir-lhes, temos as chamadas heurísticas, os vieses cognitivos, temos até do
ponto de vista mais psicodinâmico os traumas, ou não precisam de ser
traumas, mas coisas que vêm do nosso passado e que influenciam a
nossa maneira de agir sem que nós percebamos. E isso é evidente
que existe. Aqui neste caso, por exemplo, deste tipo de experiências, é
evidente que no momento em que nós estamos a agir, na grande
parte das nossas decisões, tem um aspecto inconsciente grande. Agora, onde não
me parece que seja possível dizer que nós não temos livre-arbítrio é
quando nós falamos, por exemplo, de planear o futuro, por exemplo, de
aquilo que tu lidias há bocadinho, de decidir não fazer. Essa
Sofia Miguens
Um filósofo que não gosta do problema do livre-arquítrio foi um lado
assim, o Daniel Dennett, que consideraria, ele tem um livro chamado Free
Will Worth Wanting e ele diz que o que importa para nós
é, por exemplo, liberdade política, liberdade de expressão, liberdade de escolha quando
se trata de alternativas e, por exemplo, de decisão entre essas alternativas
e isso não tem nenhuma relação direta com esta existência, com esta
relação suposta do determinismo ou indeterminismo físico com as coisas que dependem
de nós. Portanto, free will worth wanting Ele diria de caras, preocupa-te
com a tua liberdade política, preocupa-te com a tua liberdade de expressão,
porque repara que isto vai terminar por nos levar ao problema da
liberdade em vez do problema do livre arbítrio, que talvez seja um
problema político e ético da liberdade, que talvez seja uma melhor formulação
daquilo de que estávamos aqui a andar atrás do que o problema
de livre-arbítrio. Sim,
José Maria Pimentel
mas acho que até depende dele. Mas, por exemplo, agora estava a
ouvir falar e estava a pensar, por exemplo, Imagina o caso, o
exemplo que eu estava a dar há bocadinho, do bolo de chocolate,
ou o que fosse. A pessoa que está com a faca suspensa
sobre o bolo e que está a pensar corte, não corte, corte,
não corte, não corte, não corte, não corte, não me custa acreditar
que aquela decisão seja sobretudo uma decisão inconsciente. Ou seja, que no
fundo a decisão, o momento, seja inconsciente. Agora, a pessoa que daqui
a uns meses vai estar na mesma situação e a decisão que
ela poderá tomar, mesmo que ela seja influenciada por uma série de
fatores inconscientes, é determinada pelas escolhas que eu, ou tu, se fosses
essa pessoa, venhamos a fazer no futuro. Em relação, por exemplo, à
nossa relação com os doces, formos uma pessoa, por exemplo, com muita
tendência para comer coisas com açúcar. Percebes aquilo a que eu estou
a aludir, não é? Não,
Sofia Miguens
Pronto, estás a ver? Exatamente esse ponto. E depois falaste de outra
coisa muito clássica da filosofia da ação que tem a ver com
a forma como o teu eu é, em grande medida, constituído pelos
compromissos com o meu futuro. Isso significa que isso que nós podemos
dar como garantido um self não é, não só não é qualquer
coisa de una a priori, mas qualquer coisa de alguma maneira gerada
por um comprometimento em termos de ação, que aliás vai revelar uma
relação ela própria, racional ou irracional, de ti com os teus eus
futuros. E isso tudo provavelmente vai ter que entrar... Essas questões discutem-se
quando se fala de acresia. Acresia é um termo do Aristóteles para
falar de fraqueza da vontade. Tu ages contra o teu próprio melhor
juízo. É uma coisa muito comum entre os humanos. Nós somos constantemente
irracionais assim. Nós decidimos, o nosso melhor juízo diz-nos faz P e
nós fazemos não P. Nós agimos intencional e conscientemente, constantemente, contra o
nosso próprio melhor juízo. Agimos, não agimos? É uma espécie de toy
problem que nos faz pôr todas estas questões que estávamos a discutir
acerca de escolha, de intenção, de eu, de compromisso do eu consigo
próprio ao longo do tempo. De novo temos aquilo que há bocado
dizíamos quanto ao DNA Consciência, o espalhamento do que parecia um mega
problema em pequenos problemas e tratar esses pequenos problemas talvez seja a
forma mais produtiva de avançar aqui, termos a certeza que sabemos o
que é decidir ou o que é ser
Sofia Miguens
Ok. Entretanto, apareceram-me dois livros diferentes, como supostamente... Eu tinha de falar
do Stanley Cavell, do Claymore Wilson. Sim. Por ser um filósofo analítico
não... Ou pelo menos um filósofo de língua inglesa bastante distante de
uma certa imagem comum da filosofia analítica como afastada, por exemplo, da
arte ou da literatura. E ao mesmo tempo é um livro sobre
racionalidade e sobre a racionalidade enquanto claim, enquanto pretensão de verdade, sinceridade,
socialidade, portanto, sobre a forma como as questões normativas aparecem dentro das
nossas práticas linguísticas, das nossas práticas conceptuais. Esse livro de Stanley Cavell,
porque Stanley Cavell não tem sido muito estudado cá em Portugal, seria
uma espécie de anti-imagem de uma imagem dada uma filosofia analítica. Entretanto,
aqui apareceu o livro do Nozick, Nature of Rationality, natureza da racionalidade.
Pelos vistos são dois livros sobre Reason e Rationality, portanto, parece que
esse é um problema que, além de ser um problema de filosofia
da mente, como tu querias, porque é um problema que se liga
com a consciência, com a ação, com a personalidade, representação, mas transcende
a filosofia da mente, porque as questões da racionalidade, num instante, nos
levam à ética, à política, à metafísica. Aliás,
José Maria Pimentel
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