#88 Sofia Miguens - Uma viagem pela Filosofia Contemporânea

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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45°. Neste episódio estou a conversa com Sofia Miguens, que é professora catedrática do Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e com investigação sobretudo nas áreas da filosofia da mente, linguagem e ação. Este episódio tem uma coincidência muito peculiar por trás. Já há cerca de um ano que tinha convidado a Sofia para o podcast, no entanto fui adiando a conversa até uma suposta e eventual lida minha ao Porto. Ideia essa que acabou por ter mar em não acontecer. Entretanto, em fevereiro passado, fui a Nova Iorque lembram-se quando ainda dava para viajar? E numa passagem por uma livraria local à procura de um livro na secção de filosofia que, note-se, não encontrei salta-me à vista um volume de espessura imponente numa edição impecável da Harvard University Press. Na lombada lia-se o título The Logical Alien, o alienígena lógico, e por baixo do título estava um nome familiar, Sofia Miguéns. Foi ainda mais uma coincidência até porque o livro acabava de ser publicado. Esta coincidência incrível levou-me a retomar o contato com a Sofia e poucas semanas depois, a pandemia veio tornar a solução que eu originalmente tinha posto de lado, na única disponível, ou seja, gravarmos à distância. E assim surgiu este episódio, e ainda bem, como vão perceber. Convidei a Sofia para o 45° porque há muito que queria abordar em mais detalhe algumas das questões da área da filosofia da mente em que ela se começou por especializar. Como vão perceber, Uma vez que o leque de interesse da convidada dentro da filosofia contemporânea é particularmente alargado, a nossa conversa acabou por se estender por outros terrenos. Abrimos as hostilidades a discutir uma peculiaridade da filosofia contemporânea que já me vem a intrigar há algum tempo. O facto de coexistirem na filosofia, que se faz hoje em dia abordagens e estilos distintos, por vezes tão distintos que nem parecem vir da mesma área do conhecimento. Há várias maneiras de classificar estas diferenças de estilo, mas a distinção mais comum que costuma ser feita é entre a chamada filosofia analítica e a filosofia continental, as quais correspondem também, e não por acaso, a tradições linguísticas específicas. Desta discussão partimos para discutir outro tema, um tema eterno, a relação da filosofia com a ciência. Será que são no fundo a mesma coisa ou, pelo contrário, são irremediávelmente incompatíveis? Na segunda parte da conversa, perto dos 40 minutos, saltámos para problemas mais concretos da área de investigação da convidada, como por exemplo o chamado Problemamente Corpo. Finalmente, no último trecho da conversa, tivemos ainda tempo para discutir outro tema, outro tópico, quente destas áreas. O campo crescente, composto tanto por filósofos como por cientistas, que declara que, por muito que nos custe, tudo indica que não temos, na verdade, livre-arbítrio. Esta foi uma das conversas mais desafiantes que gravei até hoje. A Sofia domina muito bem os temas mais complexos da filosofia contemporânea e cada resposta, como vão perceber, vem recheada de ideias que nos deixam a pensar. Falo por mim que terminei com mais dúvidas do que tinha no início. Como os temas que discutimos são complexos e têm algum jargão à mistura, decidi deixar aqui uma espécie de introdução a alguns conceitos de que vamos falando. Se preferirem saltar este introito e mergulhar diretamente na conversa, é só saltar os próximos 4 minutos. Ainda aí? Ora bem, então, na primeira parte, em que discutimos os dois estilos de fazer filosofia, são referidos os nomes de uma série de filósofos. Mas não se percam por aí porque é sobretudo a discussão de fundo que interessa. Na segunda parte da conversa, começámos então pelo chamado Problema Mente-Corpo, que é um problema clássico da filosofia da mente. É um debate muito antigo entre filósofos, sobretudo desde Descartes, e trata de responder a uma pergunta simples. Existe uma natureza distinta entre a matéria de que é feito o nosso cérebro, que é parte do nosso corpo, e a nossa mente? É essa mesma mente que nos permite pensar, ser conscientes e viver a experiência subjetiva de sermos nós próprios? Longe vão os tempos do dualismo que Descartes defendia, que via a alma como sendo externa ao corpo, mas a verdade é que continuamos longe de conseguir explicar, por exemplo, porque é que temos consciência. Este debate tem várias matizes, mas há uma decisão muito conhecida. De um lado estão os chamados fisicalistas, que como o nome indica têm uma perspectiva da mente enquanto sobretudo física e, portanto, dizem que no dia em que a ciência compreender completamente a neurofisiologia do nosso cérebro, automaticamente iremos também compreender a mente. Já do outro lado está o campo daqueles que afirmam que a nossa experiência subjetiva, aquilo que no jergão filosófico se chama os qualia, é, lá está, específica do sujeito e por isso nunca poderá ser compreendida a partir de fora. Alguns dos filósofos mais conhecidos deste último campo propuseram umas chamadas experiências de pensamento, muito conhecidas no meio, e que procuram precisamente suscitar a intuição em nós de que é impossível compreender a mente só através do cérebro. Falámos de três destas experiências de pensamento durante a conversa, como por exemplo a experiência do zombie filosófico de David Chalmers, e que basicamente argumenta que, em teoria, é possível imaginar a existência de um ser humano zombie, ou seja, alguém que sem a autoconsciência e as sensações que nós associamos à nossa mente, mas que se comporta exatamente como qualquer ser humano normal. Por isso, diz ele, uma vez que nós não conseguimos entrar na mente dos outros, não há maneira de ter 100% de certeza que não vivemos rodeados de zombies, ou seja, que somos a única pessoa com consciência e que os outros não são simplesmente seres com comportamento eficaz, exatamente igual a nós, mas que no fundo, lá dentro, não têm nada de experiência subjetiva. No outro campo, dos tais fisicalistas, há um nome que discutimos em maior detalhe, Daniel Dennett, porque foi sobre a teoria dele que a Sofia fez a sua tese de doutoramento. Curiosamente, não sei se se lembram, este é o mesmo Daniel Dennett, de cuja teoria do humor falei logo no início da minha conversa com o Ricardo Aroujo Pereira, que publiquei no ano passado. Finalmente, no último trecho da conversa, discutimos então a questão do livre-arbítrio e a posição daqueles que afirmam que não o temos. Imagino que a muitos de vós pareçam uma posição bizarra. Afinal de contas, todos sentimos que somos donos das nossas escolhas, como por exemplo, a testar a ouvir este podcast em vez de estar a ouvir, sei lá, uma música do Justin Bieber. No entanto, há muitos filósofos e cientistas importantes que defendem exatamente esse ponto. Eles argumentam que a partir do momento em que deixamos de acreditar que existe uma espécie de alma separada do corpo e, sobretudo, se acharmos que a nossa mente é simplesmente um fenómeno emergente da matéria física de que é feito o nosso cérebro, seremos forçados a admitir que a nossa mente, tal como o nosso cérebro, as nossas células e qualquer ser vivo, está sujeita às leis da física e essas leis, mesmo que não achemos que são deterministas, dificilmente vão obedecer ao nosso controle. Uma perspectiva otimista, portanto. Mas não desanimem porque a discussão foi bastante mais animadora do que isto. E pronto, deixo-vos então com a Sofia Miguens. Enjoy! Ora, Sofia, muito bem-vindo ao podcast. É um prazer estar a falar contigo, embora à distância.
Sofia Miguens
Muito obrigada pelo convite.
José Maria Pimentel
Acho que fazia sentido começar por uma coisa que julgo que ainda não falei no podcast e até é um aspecto para o qual eu amanheci relativamente tarde, julgo que até muitas pessoas não estarão familiarizadas com ele e que para mim foi muito útil, embora eu julgo que ainda não o compreenda completamente bem, eu não compreendo essa distinção completamente bem, porque me permitiu começar a perceber porque é que há algum tipo de filosofia que me é bastante natural e atraente e outro tipo de filosofia que me é muito pouco natural, embora continuo a ter curiosidade em relação a ela. Que é a distinção que existe na filosofia contemporânea, que não será obviamente estanque mas que tem algum poder explicativo, entre aquilo que se chama a filosofia analítica e a filosofia continental, ou seja, a filosofia analítica que é basicamente feita sobretudo nos países anglo-saxónicos e a continental de tradição alemã e francesa. Se calhar passava-te já a palavra. O que é que é isto, o que é que é esta distinção e quão importante é que ela é ainda hoje em dia?
Sofia Miguens
Ah, essa é uma pergunta muito grande e se calhar eu vou tentar confundir as tuas ideias ainda mais. Eu digo de onde venho, eu próprio trabalho desde sempre em filosofia analítica, epistemologia, filosofia da mente, filosofia da linguagem, filosofia da ação e aliás pode-se dizer que eu faço parte de uma geração que cá em Portugal tentou difundir a filosofia analítica porque não era a nossa tradição cultural, filosófica, não era a nossa tradição dominante aqui no sul da Europa. Aqui no sul da Europa, tradicionalmente, a forma de fazer filosofia estava muito marcada pelo pensamento francês e também, talvez até indiretamente, pelo pensamento alemão. Ok, vou falar, digamos, enquanto pessoa que ensina filosofia contemporânea agora e que tenta chamar a atenção para a produtividade de não sermos exclusionistas, quer dizer, não olharmos exclusivamente para a filosofia que se faz em inglês, ou para a filosofia que se faz em francês, ou para a filosofia que se faz em alemão. Se estamos a falar de tradições, a tradição analítica é tradição de Frege, Russell, Wittgenstein, são os early analytic philosophers e é uma tradição fundadora, importantíssima na filosofia contemporânea. Se estamos a falar de filosofia continental, por um lado, no século XX, estamos a falar de fenomenologia, de autores como Husserl e Heidegger, mas podes andar um pouco para trás e pensar em autores como Kant, como Hegel, como Nietzsche, como Marx, Schopenhauer, Kierkegaard. Ok, isso de uma forma esquemática. Agora, tu tens problemas filosóficos. Eu tendo a ver esses problemas filosóficos como questões que nós temos que esclarecer para nós mesmos. Eu não estou a falar aqui de coisas, de assuntos demasiado eruditos ou de assuntos históricos. Se um problema filosófico é um problema real, tem de ser um problema para mim e para ti aqui e agora. Como diria o Thomas Nagel, um filósofo americano que eu gosto muito. Problemas como, por exemplo, nós estamos a pensar, estamos a falar um com o outro, será que somos bubbles isoladas nas nossas mentes ou será que há um mundo fora da nossa mente? O que é o certo, o que é o errado, o que é justo fazer, como é justo viver, como é possível, imagina, que sons ou marcas signifiquem alguma coisa, como é possível que algumas coisas sejam belas, como é que é sequer possível nós podermos pensar, se isto são problemas filosóficos, são problemas para nós agora e quer os filósofos analíticos, quer os filósofos continentais, qualquer filósofo que seja um bom filósofo lida com estas questões. Basicamente, repara, são questões acerca do que é pensar. Pensamento, pensar sobre pensamento é o que fazem quer os filósofos analíticos, quer os filósofos continentais se forem bons. Agora, em termos não tanto culturais, mas de problemas da filosofia, põe-se uma questão que é de alguma maneira, que se sobrepõe, que é a questão da língua. Tu disseste que nós identificávamos a filosofia analítica com a filosofia que se faz em inglês. Repara que eu mencionei os iniciadores da tradição analítica, Frege, Russell, Wittgenstein, pelo menos Frege e Wittgenstein nem sequer falavam inglês. Portanto, Wittgenstein sempre disse, sinto-me completamente estrangeiro em inglês. Portanto, são filósofos de língua alemã. Basicamente, se tu pensares na filosofia contemporânea, na grande filosofia contemporânea, quer na filosofia continental, quer na filosofia analítica, tu tens muitos dos grandes nomes que vêm simplesmente da filosofia de Mítala-Europa, quer dizer, são filósofos da tradição de língua alemã. Vamos tentar dar um passo atrás relativamente a essa animosidade que é sobretudo linguística e cultural e tem a ver talvez com uma contestação da dominação do inglês e tentar ver as coisas em termos de o que é que se está a fazer em termos de filosofia?
José Maria Pimentel
Jugo também que quando a pessoa fala em filosofia analítica, no fundo nós já não estamos a falar da filosofia analítica original do Wittgenstein, por exemplo. É aquilo que lhe sucedeu e eu acho, embora eu conheça-o muito pior do que tu, que ele até tinha muitas marcas lá, idênticas à daquilo que nós hoje em dia chamamos de filosofia continental. E portanto se calhar analítica não é o melhor termo, não é o termo que ficou. Mas a ideia que eu tenho, a impressão que eu tenho, é que embora os problemas sejam os mesmos no limite, no fundo a filosofia trata sempre do mesmo, são problemas complexos, podem ser metafísicos, no limite podem ser éticos ou até políticos, mas no fundo os problemas são mais ou menos sempre os mesmos. Ainda assim, a impressão com que eu fico é que o ângulo através do qual se olha para eles e até a maneira como se definem esses problemas não é necessariamente a mesma e creio que não tem só a ver até com a língua, quer dizer, por exemplo, só para se calhar para concretizar isto. A ideia que eu tenho, aquilo que me parece, é que a filosofia, é isto que nós chamamos de filosofia analítica, ou seja, a filosofia contemporânea nos países anglo-saxónicos está muitas vezes até organizada de uma maneira mais parecida com as ciências. E nós até vamos falar de filosofia da mente, que é um atuário, ou pelo menos uma das duas áreas, e que obedece precisamente a essa lógica de compartimentalização, se quisermos, de organização. Há uma abordagem que me parece mais próxima da ciência, se nós quisermos, e muitas vezes até anda a par e passo, vamos falar provavelmente dele também, do Daniel Dennett, que é um tipo que no fundo está nos dois mundos, no mundo da ciência e no mundo da filosofia. É uma abordagem que tenta ser sistemática e até é muito, usa muito aquela lógica do, bom, nós temos estes três, vamos supor, A, B e C, temos estes três princípios, vamos partir daqui e organizar a coisa a partir dali, enquanto a impressão que eu tenho é que a filosofia continental dá muito mais importância, por exemplo, a aspectos históricos, está muitas vezes muito mais confortável em tirar implicações políticas, por exemplo. E, aliás, Normalmente os filósofos da tradição continental, a ideia que eu tenho é que tendem a ser mais políticos, muitas vezes até mais extremistas, nos dois lados. Nós temos por exemplo o exemplo do Heidegger, que era um tipo que esteve ligado ao partido nazi e depois, coitado, bem ou mal tramou-se um bocado por causa disso.
Sofia Miguens
Que são filósofos políticos, imensos filósofos analíticos são filósofos políticos, é uma das partes mais ricas da tradição analítica, uma das muitíssimo ricas.
José Maria Pimentel
Mas são menos radicais, pelo menos é a ideia que eu tenho.
Sofia Miguens
Queria pegar na ideia de trabalho filosófico, porque eu acho que tu tens razão e aí eu devo dizer que tenho ainda hoje uma enorme simpatia pela forma de trabalhar na filosofia analítica, porque não pela rejeição da história e da importância da história, não porque na filosofia analítica se trata só de lógica ou de uma fetichização da lógica. A questão é que há formas diferentes de conceber o trabalho filosófico, vamos lhe chamar trabalho filosófico. Por exemplo, Eu sei que tu tens, que te confunde o aspecto demasiado idiosincrático da filosofia de alguém como o Heidegger. Exato. Ok, a mim também, embora eu não me coiva de ler o Zayn Moussaie e de tentar perceber o que é que o Heidegger está a fazer. Agora, há formas diferentes, menos obscurantistas ou menos cheias de jargão, ou menos... Podemos discutir muito aqui questões acerca de texto e de linguagem, mas a forma mais comum na filosofia analítica, tens toda a razão de concebê-lo como mais próximo da ciência, como um joint work, como uma constituição modesta para um empreendimento intelectual comum. Na filosofia analítica, na tradição, gosta-se muito da ideia de piecemeal, portanto fazemos as coisas ponto a ponto. Aos bocadinhos. Pequenas coisas sistemáticas. Há um certo culto da modéstia, há um certo culto das pequenas coisas precisas. Como é que eu posso ajudar aqui no tratamento deste problema? Como é que eu posso tornar as coisas precisas? Isso nem sequer é necessariamente, repara, muitas vezes a crítica a partir de fora é que a filosofia analítica se identifica com a lógica, isso não se identifica com a lógica, trata-se mesmo de uma concepção do trabalho intelectual e daquilo que é o trabalho intelectual. Sim, concordo. Reparem, no entanto, que esta questão é ela própria uma questão para a filosofia e para qualquer filósofo. O que é que nós queremos do trabalho intelectual, o que é que nós queremos do trabalho conceptual, quer seja o trabalho conceptual filosófico, científico, quer seja, por exemplo, o trabalho artístico, portanto, porquê é que nós sequer nos envolvemos nestas sofisticadas atividades de argumentação e de conceptualização, porquê é que não nos remetemos pura e simplesmente à nossa animalidade? Isso também será uma questão a discutir. Mas sim, a filosofia analítica traz consigo uma concepção de trabalho filosófico diferente da tradição continental usual. Mas repara, outras coisas que tu disseste, identificação de filosofia analítica com os países onde se fala inglês, como Estados Unidos e Inglaterra. Não é verdade, na Europa inteira há muitos filósofos analíticos a trabalhar, na Alemanha, Itália, Escandinávia, portanto a tradição analítica, e estou a falar só da Europa, mas estou a tentar separar trabalhar em inglês do trabalhar em Filosofia Analítica. Nós podemos trabalhar em alemão, em francês, em português e estar com esse espírito da Filosofia Analítica. Há cerca da história, repara, aí já se pode… Isso aí seria quase uma causa para mim, porque aí encontrei coisas menos admiráveis do lado da filosofia analítica, nomeadamente enquanto estudante. Por exemplo, aconteceu-me estar em aulas nos Estados Unidos e um professor, estava a ensinar precisamente filosofia da mente, o Ned Block, perguntaram aos estudantes, vocês conhecem os dois dogmas do empirismo do Quine, que é um artigo dos anos 50, é um dos marcos da história da epistemologia dos anos 50, e os alunos que eram todos jovens, brilhantes, estudantes de filosofia analítica das melhores universidades americanas, por aí simplesmente dizem não. Nós só conhecemos a literatura, conhecemos obsessivamente, meticulosamente a literatura dos últimos cinco anos, estamos preparados para discutir tudo isto, mas se damos um passo atrás a um artigo que não é um artigo qualquer, podemos dizer que é tão importante como a crítica da razão pura para a epistemologia do século XX, por isso simplesmente eles diriam que não se conhece. Por isso, a questão da História não é só a questão de se pensar filosoficamente sobre a história, como por exemplo um Hegel ou um Marx fazem por excelência na filosofia continental e deixa que te diga que há muita gente na tradição de língua inglesa a trabalhar sobre o Hegel e sobre o Marx. Mas pensar sobre a história não é só a questão de pensar sobre a história, é a questão de como é que tu olhas para a filosofia contemporânea e para a sua história. Vamos fazer uma comparação, uma comparação entre um museu de arte contemporânea e um museu de arte antiga ou de arte medieval, para pensarmos na diferença que a filosofia contemporânea e a sua história fazem para nós. Imagina, quando nós chamamos um museu, um museu de arte contemporânea, por exemplo, quando entramos no Mato, ou no MoMA, ou no CCB, ou em Serralves, aquilo que lá está não é só compilação histórica de informação, arquivo e memória, aquilo que lá está fala-nos diretamente, somos nós. E eu vejo assim a história da filosofia contemporânea e ponho aí filosofia analítica e filosofia que tu chamaste de continental. Por exemplo, nos autores, os autores sobre quem escrevo nesse livro sobre filosofia contemporânea, sejam Frege, Russell, Wittgenstein, ou Husserl, ou Heidegger, ou Kant, ou Hegel, a minha convicção é que eles ainda fazem parte de nós, fazem parte da nossa forma de trabalhar conceptualmente, de pensar sobre o pensamento e de pensar sobre nós próprios. Não são autores de museus, servem para os nossos problemas e isso é que é a pedra de toque. Desculpa a imagem de museu, eu sei que ninguém hoje pensa desta forma simplista sobre museus, ninguém pensa assim sobre museus de arte antiga. Eu
José Maria Pimentel
acho uma boa analogia, sim. E parece-me, aliás, que estamos a tocar no ponto mais interessante de comparação entre as duas e tu chamaste a atenção a uma coisa que é verdade, que esta diferença não é estanque, obviamente, e não é... Os dois compartimentos, o da analítica e o da continental não são estanques, infelizmente que não são, o meu ponto é que eles não deviam sequer existir, não é? Ou seja, que é bizarro que eles existam, se quisermos, em certo sentido. Mas aquilo que tu dizias, eu acho que toca, ou pelo menos interceta, a grande dúvida que eu tenho, ou aquilo que é para mim o grande mistério aqui, que me faz ter um bocadinho de sentimentos ambivalentes em relação à filosofia continental, porque por um lado acho estranho, mas por outro lado é evidente que está lá valor, não é como é evidente, e às vezes chateia-me que me possa estar a escapar disso. Aquilo que me parece ser o problema é que tem a ver com aquela idiosincrasia que tu falavas no início. Os grandes nomes da filosofia continental, Podemos ir lá atrás, até quando a designação nem sequer existia, não é? O, sei lá, Kant ou Nietzsche, por exemplo, ou... Mas mesmo nomes mais recentes como o Husserl e o Heidegger. E os existencialistas, depois disso, têm, tipicamente, não são bem escolas, ou seja, Cada um surge com uma visão muito idiosincrática, muitas vezes até com um jargão próprio, da qual nós podemos tirar imenso sumo, se quiseres pôs-la nessa analogia, mas como faz uso da metáfora, não utiliza aquele tipo de sistematização, depois torna difícil que exista um edifício construído sobre aquilo, ou que aquilo contribua diretamente para um edifício. Não sei se percebes onde é que eu quero chegar. Sendo que, por muito que nós gostemos de autores individuais, nós seres humanos relacionamos de um para um e portanto gostamos de ler a obra de alguém, até porque tem a personalidade daquela pessoa e a maneira de pensar daquela pessoa, do ponto de vista de um corpo de conhecimento, não é assim que ele avança, não é? Porque uma pessoa, por mais brilhante que seja, dificilmente terá visto tudo. E aliás, e diga-se aliás, é uma pergunta verdade, que muitos destes filósofos que nós estamos a falar, eles próprios reconheciam isso porque muitas vezes, e depois isso é até uma coisa que às vezes as pessoas não conhecem, eles próprios muitas vezes mais tarde invertem ou mudam de opinião numa série de temas e às vezes foi a opinião original deles que criou mais herdeiros que fizermos do que a opinião final que já resultou de uma revisão que os próprios fizeram porque estavam insatisfeitos com algum aspecto da teoria original, que é também um aspecto curioso.
Sofia Miguens
Acontece aos melhores filósofos analíticos também, desculpem interromper-te. Por exemplo, pensa no Hilary Putnam, que é um dos grandes filósofos analíticos do século XX, começa na filosofia da física, passa pela filosofia da lógica, escreve sobre ética, sobre filosofia da religião e algumas das ideias com as quais ele mais marcou a história da filosofia do século XX, por exemplo, o funcionalismo em filosofia da mente, foram ideias relativamente às quais ele se retratou. Portanto, essa ideia de mudar de opinião acontece? Ah
José Maria Pimentel
claro, sim, ainda bem.
Sofia Miguens
Mas deixa-me dizer-te, tens completa razão, e estás a falar de questões de estilo e de linguagem e de metaforicidade e essas questões não são de todo indiferentes no texto filosófico e esse é um dos grandes pontos de embate entre aquilo a que tu chamaste de tradição analítica e a tradição continental e podíamos… vale a pena falar muito sobre isso. Deixa-me só dizer que pessoalmente penso que há uma obrigação moral, intelectual de simplicidade. Chama-a isto cartesianismo, chama-a isto filosofia analítica, mas a ideia de que quando tu te envolves em trabalho intelectual tu deves fazer tudo o possível para te fazeres entender, se associa isso ou não à filosofia analítica, eu penso que isso é uma obrigação moral do filósofo. E talvez do ponto de vista do estilo, por exemplo, tu enquanto leitor de filosofia encontras isso mais do lado da filosofia analítica do que do lado da filosofia dita continental.
José Maria Pimentel
Mas é cultural também, não é? Mesmo noutras áreas, sei lá, penso no direito, por exemplo, é a mesma coisa, não é? Se leres um escrito de direito escrito em Portugal, Espanha, França, Itália, é uma coisa muito mais impenetravel para quem está de fora do que uma coisa escrita em países anglos-saxónicos. Acho que isso tem um aspecto cultural que vai para lá desta distinção que nós estamos a
Sofia Miguens
fazer aqui. Exatamente, as tradições intelectuais não incluem unicamente a filosofia. Exatamente. Tu tens certamente, chama-lhe isso uma obrigação de publicidade, ou uma obrigação de argumentação pública, e que tu inscrevas isso no teu texto, sim tens razão que isso faz mais parte de uma cultura pública de língua inglesa, talvez, do que de uma cultura pública que cultiva mais a literariedade, como por exemplo a cultura francesa. Não significa que depois não encontres orientações, deixe-me chamar-lhes filosóficas, muito semelhantes a in pensadores que escrevem francês e que escrevem inglês. Mas isso é uma questão interessante porque é uma questão de bordo, de margem, entre filosofia como parte específica da cultura da academia e a cultura em geral. Tens completa razão nisso. Sofia,
José Maria Pimentel
antes de passarmos a falar da filosofia da mental, aproveitava para te fazer uma pergunta relacionada com isto, que tem a ver com aquilo que eu aludi à bocadinho, da filosofia, ao contrário de outras áreas, de áreas mais empíricas do conhecimento, ter uma dependência grande de autores. Ou seja, a filosofia é muitas vezes construída por autores. E, por exemplo, se nós formos a uma livraria e pegarmos um daqueles livros de introdução à filosofia ou de visão geral da filosofia, quase invariavelmente eles são organizados por autores. Eu já vi uns que não e, aliás, achei-os bastante melhores. Quer dizer, há muito valor que se pode criar em precisamente evitar essa abordagem. Mas eles tipicamente são organizados por autores e normalmente por ordem cronológica e não por ideias, se nós quisermos, que é um aspecto curioso. Eu sempre que vejo esses livros penso, e isso tem que ver com esta distinção que nós falámos, mas acho que vai muito para lá disso, porque isso existe também obviamente na filosofia analítica, eu penso que isso é uma limitação, no fundo, da filosofia, ou seja, torna difícil quem está de fora perceber, porque no fundo a ideia que a pessoa fica é que tem que ler aqueles autores todos para conseguir discutir qualquer tema que seja. Torna-se difícil perceber a relação entre eles, ou seja, perceber as ideias que vieram de Aristóteles e Platão e aí dá-se logo uma decisão que depois vai influenciar o resto da filosofia. De que maneira é que elas alimentaram as ideias que lhes sucederam e qual foi o percurso daquelas ideias, no fundo quais foram os debates que foram havendo em relação àquelas ideias e o que é que no fundo continua a ser muito útil em escritos antigos, mas o que é que... Versus aquilo que se tenha vindo a tornar obsoleto, seja por aspectos empíricos que se vieram a descobrir, seja por novas ideias, e essa... Eu imagino que quem nos esteja a ouvir já se tenha deparado com essa dificuldade, que é tentar... Eu sei que há autores que têm feito até um exercício interessante de escrever livros até de introdutórias à filosofia sem citar, acho que o Thomas Nagel fez isso, sem citar nenhum autor, que é um exercício muito giro e eu acho que tem a ver com este aspecto que eu estou a ler.
Sofia Miguens
De novo disseste muitas coisas muito interessantes numa pergunta só. Deixa-me dizer-te primeiro, sim, na filosofia há autores e, por exemplo, se tu estás a discutir, imagina, com amigos cientistas, isto pode ser qualquer coisa de tremendamente perturbador. Porquê é que há de haver autores quando se trata de trabalhar intelectualmente? Estamos todos envolvidos num mesmo empreendimento, esta ideia de singularidade, de autoria, o que é que isto significa? Porquê é que tem que haver um Kant, ou um Marx, ou um Nietzsche, ou um Stanley K. Weld que estávamos a falar e não há simplesmente a filosofia como há a física? Sim, isto é uma questão, mas é uma questão que por acaso eu gostava de discutir no contexto da linguagem e como nós nos relacionamos com a linguagem. Esse problema da linguagem parece-me ser, é uma das minhas opções em filosofia, e aliás, tu queres que eu fale filosofia da mente, mas eu não queria falar filosofia da mente sem falar sobre filosofia da linguagem. Então está à vontade. A questão da linguagem, vamos relacioná-la com a questão dos autores. Pensa naquilo que é dizer alguma coisa e pensa no que é ter ou não ter uma voz quando se diz alguma coisa. A linguagem é qualquer coisa que estava... Por exemplo, imagina o português. Estava aqui muito antes de eu ou tu estarmos vivos, existirmos, estarmos aqui a falar um com o outro. A relação de qualquer, chama-lhe um animal humano, chama-lhe uma mente biológica como as nossas mentes, com a linguagem não é alguma coisa que possa ser simplesmente concebido. Num primeiro momento, nós, vamos dizer, entramos na linguagem numa linguagem que está pré-feita. John McDowell, um filósofo sobre o qual tenho trabalhado bastante ultimamente, diz, Language doesn't fall on us, ou cai sobre nós. Nós entramos na linguagem e nós falamos a linguagem tal como ela está feita ou preparada para ser feita. E a forma, se quiseres, primeira de nós fazermos isso é absolutamente rígida, é absolutamente conformista. Tu usas a linguagem tal como a linguagem está lá preparada. O espaço, vamos-lhe chamar de liberdade ou de claim ou de poder dizer alguma coisa de singular ou de dizer alguma coisa de diferente e esse espaço é importante intelectualmente em geral para a ciência, para a filosofia, esse espaço no caso da filosofia vai traduzir-se na ideia de autor eventualmente. Para já só queria fazer esta ligação entre porquê que há autores em filosofia, porquê que não há um pensamento universal, uma racionalidade universal e todos estamos a contribuir para ela, não interessa que não me tenhamos. E parte da minha resposta a isso tem a ver com esse passo de clima e de originalidade e de tu habitares uma linguagem... Repara, as pessoas não habitam, por exemplo, o português todas da mesma maneira. Tu podes começar a tua relação, presumindo que o português é a nossa língua, com o português de uma forma que te... Em que a língua é como se fosse uma camisa de forças para ti, terminar numa situação em que tu estás a fazer coisas novas e diferentes e singulares e originais com a linguagem. Isto tem a ver com os aspectos pragmáticos e performativos da linguagem que me interessam muito e que interessam, quer a filosofia analítica, quer a filosofia continental. É aí um ponto comum. Mas isto terá a ver com a ideia de autor. Claro que há muitos males possíveis na ideia de autor e dou-te toda a razão quando ficas, digamos, com arrepios perante certas idiosincrasias de certo jargão, de certa filosofia contemporânea. Mas há coisas que não são intelectualmente especiandas na ideia de autor, na existência de autor. E isso vai-nos conduzir em última análise à razão pela qual a filosofia é diferente de ciência. Nós há bocados comparávamos a filosofia com a ciência em termos de trabalho intelectual, de modéstia, contribuição, joint work. A questão do autor leva-nos para outra dimensão. Mas
José Maria Pimentel
essa é uma boa pergunta, por acaso é uma pergunta clássica, mas até gostava de ouvir a tua perspectiva. Ao lado disto que é evidente a diferença entre a filosofia e a ciência, a ciência tenderá a ser empírica e a filosofia tenderá a ser introspectiva. Mas não é tão simples quanto isso, não é?
Sofia Miguens
Não. Repara que nem toda a ciência é empírica, vais chamar à matemática ou à lógica totalmente empírica e nem vais poder dizer, de um ponto de vista filosófico, que a ciência e a filosofia se distinguem absolutamente. Por exemplo, a Quine, que é um lógico, um filósofo da ciência, um filósofo da linguagem, um filósofo da mente americana, muito importante do século XX, defende pura e simplesmente a ideia, a que ele chama, de uma continuidade de filosofia-ciência. Portanto, trata-se de, e é aquilo que ele chama de uma naturalização da epistemologia ou mesmo uma naturalização da ontologia, portanto, tens aí uma tese a ser defendida de acordo com a qual o empreendimento intelectual é o mesmo, portanto, as questões da filosofia seriam determinadas questões conceptuais, abstratas, fundacionais, que no caso para ele teriam a ver com lógica, teriam-te os conjuntos, questões de esclarecimento conceptual e linguístico, que apareceriam na continuidade da ciência. Portanto, no caso, tens um filósofo como Quine no panorama contemporâneo que pura e simplesmente rejeitaria totalmente esta ideia de que a filosofia e a ciência são diferentes e essa é uma posição muito legítima. Sim,
José Maria Pimentel
nem eu tendo a concordar, por acaso. É
Sofia Miguens
uma posição, no mínimo, muito desafiadora e deixe-me que te diga uma coisa, foi uma posição epistemológica que influenciou muitíssimo na filosofia analítica, a filosofia da mente, a filosofia da linguagem, a filosofia moral, portanto, grande parte do bom trabalho que se fez, por exemplo, nessas três áreas, na filosofia analítica nas últimas décadas, em grande medida, segue esse imperativo coeniano de naturalização. Outras pessoas, precisamente a linhagem de filósofos como um Frege ou Wittgenstein chamariam a essa ideia de uma ideia cientificista. E cientificismo não é a mesma coisa que ter toda a admiração intelectual possível pelo trabalho conceptual da ciência. Cientificismo, neste caso, é um erro categorial de confusão de duas realidades diferentes. Seria a ideia de confundir o trabalho, que para eles seria específico da filosofia, com o trabalho da ciência. E agora aí a pergunta tinha que ser, mas então se houver diferença ela deve-se a quê? E aquilo que nós teríamos aqui que considerar é o put yourself into the picture, a ideia de quando tu estás envolvido num empreendimento científico de objetividade, em última análise podes conceber esse empreendimento como uma eliminação última da subjetividade, daquilo que é o pensador ou o sujeito ou a variação possível de perspetivas sobre o mundo, enquanto que no caso da filosofia vai estar sempre em causa a natureza dessa subjetividade a ela própria, a natureza do pensador de pensamentos comuns, como estas mãos são minhas, ou do pensador que elabora uma teoria científica. Portanto, Isso será o princípio de uma diferença entre filosofia e ciência. Vamos dizer assim, não podes eliminar completamente o observador. Da forma como as coisas são no mundo, o haver pensamento no mundo, embora faça parte do desejo científico de conhecimento e também em grande medida do desejo da filosofia, um desejo de objetividade, há um ponto limite dessa objetividade que é, se quiseres, a existência do pensamento. E esse é o ponto em que, se quiseres, a filosofia se junta à ciência ou há uma diferença entre as investigações filosóficas e as investigações científicas. O Palácio do Thomas Nagel e daquele maravilhoso pequeno livrinho de introdução à filosofia, esse é o problema em que entra todo o valor do mundo para nós. O valor ético, o valor estético, as questões normativas da justificação, portanto, nessa dobra, vamos lhe chamar de subjetividade, do afinal, o pensador não ser o irminável do quadro, nessa dobra vai aparecer o problema do como é que pode haver coisas belas para mim, coisas boas para mim, pensamentos que são verdadeiros e pensamentos que são falsos, coisas que são justificadas e coisas que não são justificadas, porque essas coisas, chama-lhe da ordem do valor e da normatividade, são coisas que não podem ser totalmente observadas a partir de fora. Portanto, chegas a um ponto em que Embates na parede, portanto, não podes ver tudo, inclusive a ti próprio, no todo, a partir de fora. Não sei se conheces um outro livro do Nagel que se chama The View from Nowhere, A Visão de Lado Nenhum. Já ouvi falar, sim. Pelo facto de não poder em última análise haver uma visão de lado nenhum, ou então, como diz o John McDowell, não poder haver uma visão de esgalha em que tu olhas para o pensamento a pensar e para o mundo a ser pensado pelo pensamento e é como se tu estivesse de fora e não fizesse parte dessa realidade, essas são más formas de conceber a relação entre pensamento e mundo. E essa seria a razão pela qual, além de ciência, existiria filosofia.
José Maria Pimentel
Mas não me parece que as coisas sejam incompatíveis. O problema da palavra filosofia é que quer dizer uma série de coisas. É verdade que hoje em dia quero dizer menos do que já quis dizer, mas ainda assim quero dizer muitas coisas. E tens campos da filosofia, a tradição existencialista, por exemplo. Tem interseções muito escassas com a ciência, é evidente, porque tem muito que ver com a nossa própria vida e com a maneira como nós... Então
Sofia Miguens
aí eu queria acrescentar uma coisa ao que disse há bocado. A questão é que o observador existe. Tu existes. Sim, exato. Tu és um problema para ti próprio. O que é que eu hei de fazer comigo? Como é que eu hei de viver?
José Maria Pimentel
Exato. Sim, sim, essa ainda é outra, exatamente. É que dizer, aí claramente estamos a falar de um um aspecto diferente, não é? E isso percebes, não é? Estamos a usar o mesmo termo. Agora, o facto do campo de ação da filosofia e da ciência não serem os mesmos, não parece que isso seja uma razão para eles não dialogarem e não se ajudarem mutuamente. Pelo contrário, nós sabemos que, como tu dizias, na filosofia tu fazes sempre parte da paisagem E é impossível eliminar-te a ti própria da paisagem. Isso é ao mesmo tempo uma limitação e ao mesmo tempo uma fonte de conhecimento ou pelo menos de ideias. Do lado da ciência, que tenta justamente eliminar o observador, também há limitações no sentido em que facilmente, e acho que esse é um dos grandes papéis da filosofia, facilmente tu não estás a perceber-te de que há determinadas fundações conceptuais que podem faltar àquilo que tu estás a fazer ou não estás a ver o todo e a relação de tudo e no fundo o papel da filosofia aí é justamente organizar a informação, perceber o que é que falta, fazer as perguntas certas, no fundo preocupar-se com as fundações. Por isso é que eu percebo o argumento, mas eu acho que o argumento de que filosofia e ciência não são iguais é precisamente o argumento para haver um diálogo entre as duas e não o argumento para as separar, para as segregar uma da outra.
Sofia Miguens
Não te preocupes que esse diálogo existe. Talvez neste momento exista mais na filosofia analítica do que outras formas de fazer filosofia. Mas se repara, também não vamos generalizar aqui quanto à filosofia dita continental, falaste do existencialismo, Por exemplo, em aulas recentes eu tenho andado a fazer uma… ok, eu que me assumo como filósofa, sobretudo analítica, tenho andado a fazer uma história da fenomenologia, Husserl, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, então compara só esses dois. Por exemplo, Merleau-Ponty era um psicólogo E era alguém que, muito como os filósofos da mente hoje, estava completamente a par das discussões da psicologia, discussões sobre gestalt, sobre natureza de comportamento, sobre relações mente-cérebro, sobre natureza da inteligência e da consciência e da percepção em última análise. Enquanto que um Sartre, ou depois outros filósofos posteriores como um Derrida ou um Deleuze, ok, aí tens sim de facto um maior ensimismamento da filosofia, tens ao menos um menor desejo de diálogo com a filosofia da ciência, talvez por boas razões, mas basicamente é preciso ir caso a caso e não considerar que, por exemplo, na filosofia continental, em geral, há menos desejo de diálogo com a ciência que na filosofia analítica. Mas repara que há certas áreas da filosofia em que sem diálogo com a filosofia não há nada, se tu estás a trabalhar em consciência, se tu estás a trabalhar em lógica, se estás a trabalhar em filosofia da matemática, filosofia da física, filosofia da mente, não há como... Podes não aceitar a tese koineana da continuidade de filosofia-ciência. Isso já é uma questão diferente e epistemológica, mas a ideia de que materiais só podem ser partilhados, acho que ela se impõe naturalmente. Não há essas divisões artificiais na cabeça das pessoas, das pessoas que trabalham bem entre filosofia e ciência necessariamente.
José Maria Pimentel
Então, mas se calhar tem uma boa ponta para falarmos precisamente da filosofia da mente. Se calhar começava por-te pedir para, não sei, se calhar, explicar o que é que é a filosofia da mente e, sobretudo, mais do que isso, quais são os problemas em aberto na filosofia da mente, ainda hoje, quais são os problemas que nos fazem, que fazem os filósofos que se dedicam a esta área a ficar acordados à noite.
Sofia Miguens
Eu tinha pensado dizer-te, mesmo antes de nós começarmos a conversar, que a filosofia da mente, a ser que não me satisfaz. Não me satisfaz sem Filosofia da Linguagem, sem filosofia moral, sem Filosofia da Ação, que são áreas nas quais eu fui trabalhando cada vez mais para alm da Filosofia da Mente. A Filosofia da Mente trata de consciência, o que é ser consciente, o sentir-se ser, trata-se de representação e intencionalidade, trata de compreender o que é para nós termos pensamentos ou crenças como, por exemplo, está um tapete na minha frente ou 2 mais 2 são 4 ou Dom Afonso Henriques foi o primeiro rei de Portugal, trata da natureza da consciência, da natureza da intencionalidade, da natureza da ação por contraste com as coisas que são feitas por ti. Por exemplo, tu queres mexer o teu braço, mexes o teu braço por contraste com coisas que meramente acontecem, portanto meros acontecimentos no mundo. Trata de questões, por exemplo, de identidade do teu self, daquilo que faz com que tu te reconheças como um mesmo ser ao longo do tempo. Por exemplo, tu sou Maria, eu sou Sofia, ao longo do tempo, repara, Por exemplo, nós não estávamos lá conscientemente presentes a nós próprios quando éramos bebés e vamos imaginar que há uma continuidade que de alguma forma se exerce e que necessita de ser explicada e que para algumas pessoas tem a ver com a autoconsciência. Portanto, a concepção lockiana de pessoa, a ideia de que ser pessoa é identificar-se a si mesmo como si mesmo, como uma mesma entidade ao longo do tempo e ser capaz. Isso é muito importante para as nossas formas de vida humanas, porque só isso é que nos torna capaz de falarmos nós próprios como agentes, de dar razões das nossas ações. Mais problemas da filosofia da mente, então consciência, intencionalidade, identidade pessoal, ação, questões de racionalidade, questões de emoções. Repara, no fundo, e agora puxando a brasa a minha sardinha, coisas que ainda me interessam muito, vais ter ao problema de como é, o que é que a linguagem faz. O problema dos tipos de mentes. Eu gosto de pensar na filosofia da mente em termos de tipos de mentes. Isto é uma coisa, se quiseres, Dennettiana, eu fiz a minha tese de doutoramento sobre o Dennett. Com tipos de mentes eu quero dizer mentes humanas, mentes animais, mentes artificiais, o que é que as aproxima, o que é que as diferencia. O Dennett, como te disseste, é um filósofo muito próximo da ciência e por isso muitas vezes mal quis-to pelos filósofos eles próprios, porque há muita filosofia da mente atual que está mais próxima, estou a pensar por exemplo em autores como o David Chalmers, o Yacov McKinney, que gostam mais de lógica modal e de experiências mentais do que, por exemplo, da psicologia empírica e da relação entre o que se faz em filosofia da mente e o que se faz em ciência cognitiva. Portanto, tens orientações muito diversas, mas nas orientações que me agradam mais em filosofia da mente, esta ideia de tipos de mentes, vamos compreender, por exemplo, qual é a grande diferença entre a mentalidade humana e a mentalidade animal. O que é que faz de uma mente humana em contraste, por exemplo, com a mente do meu cão, ou com a mente do meu gato, ou então em contraste com o mindless purpose do coronavírus, ok? Porque tu podes encontrar purpose, podes encontrar intencionalidade no sentido de finalidade e de teleologia, por exemplo, na forma como nós falamos do coronavírus. Aliás, o Dennett tem muita coisa a dizer acerca dessa forma heurística de nós imputarmos mentalidade e inteligência, onde não necessariamente a mentalidade está lá. Mas eu gosto de ver no núcleo da filosofia da mente, à parte dessas orientações mais empirically minded ou essas orientações mais formais que dividem os filósofos da mente, gosto de ver no núcleo esta pergunta. O que é que é isto que nós podemos dizer acerca do nosso tipo de mente? Nós não somos, para usar agora comparações mais importantes, cultural e historicamente, não somos intelectos divinos, Não temos, por exemplo, uma intuição intuitiva imediata de verdades conceptuais, sem tempo nem espaço e sem inferência. Mas também não somos animais não conceptualizadores, animais não capazes de generalidade, não capazes de universalidade. Portanto, somos precisamente… os animais estão presos no aqui e agora perceptivo, se quiseres, os outros animais. Exato. Repare que estas questões vão ser muito importantes para a ética e para a ética animal. Uma das razões por que eu continuo a apostar de filosofia da mente é que tu tens que trabalhar em problemas acerca de consciência, de ciência, de ação, de comportamento, se não queres ter um fundo shaky em ética. Em ética tu vais falar de agentes, decisões, vais falar de racionalidade e muitas vezes como as disciplinas são isoladas, tu vês mesmo os maiores nomes da ética contemporânea a dizerem coisas extremamente objetáveis do ponto de vista da filosofia da mente, por exemplo, coisas sobre consciência, sobre sensiência, sobre racionalidade, sobre inteligência. Coisas sem as quais tu não podes trabalhar em ética. Bom, mas então, nós estamos entre, portanto, não somos nem esse intelecto intuitivo divino, se alguma vez alguma coisa assim existiu, nem um animal preso ao aqui e agora. Portanto, nós temos capacidades conceptuais específicas e por isso a nossa perceção, a nossa racionalidade e sobretudo a diferença que a linguagem faz no tipo de mentes que são as mentes humanas, para mim são problemas absolutamente centrais na filosofia da mente. E depois podes tratar tudo o resto, podes tratar questões de racionalidade, de decisão, de escolha, de emoções, de consciência, relações de consciência e linguagem, podes tratar tudo o resto. E vais encontrar muitos problemas, também eram os problemas do Sartre ou do Heidegger. Os problemas do autoconhecimento, do auto-engano, da má-fé, da autenticidade para consigo próprio. Podes retomar esses problemas todos, Chamar-lhes, por exemplo, problemas de self-knowledge e considerá-los no âmbito daquilo que pensas que é um tipo de mente e o acesso dessa mente a si. Sim,
José Maria Pimentel
no fundo, os problemas são implicações depois de conclusões que possam tirar no âmbito da filosofia da mente, como a questão do livro arbítrio que já lá vamos. Então, mas Sofia, eu tinha muita curiosidade em falar do célebre problema corpo e mente, não sei se estás nessa.
Sofia Miguens
Tudo bem, eu devo dizer que tenho alguma alergia à tipologia, à ideia de filosofia da
José Maria Pimentel
mente. Você já sabia por ser que eu disse assim. Vamos
Sofia Miguens
lá ver. Eu acho que isso é didaticamente importantíssimo, ok? E para isso tanto podes usar a filosofia da mente contemporânea, como o Descartes, o Spinoza e o Leibniz, para pensares em formas distintas de pensares nas relações mente-corpo. Queres dizer o que é ser materialista, monista, dualista, epifanomonista, tudo isto. Antes
José Maria Pimentel
disso, qual é o problema que temos que resolver? Qual é a questão?
Sofia Miguens
That's the question. Será que esse problema é um problema bem formulado? Será que aquilo que importa mesmo é como é que a tua mente e o teu corpo se relacionam. É que tu podes considerar que na própria formulação desse problema já estás a ser dualista e tu podes considerar que isso é uma petição de princípio.
José Maria Pimentel
Claro, o problema, quer dizer, ele é formado assim porque parte de uma resposta dualista, ou seja, no fundo, o mistério aqui, quando se diz corpo, quer-se dizer sobretudo cérebro, quer-se dizer porque é que...
Sofia Miguens
Isso, isso, repara, também é uma das coisas que as pessoas na filosofia da mente, que são os apologistas da chamada embodied mind, contestam completamente, portanto isso seria uma espécie de nova forma de dualismo. Não, mas
José Maria Pimentel
eu concordo, atenção, eu disse sobretudo cérebro, é evidente que nós somos o nosso corpo todo, não é? Mas o grande mistério, nós sabemos que o centro da nossa cognição está no cérebro, independentemente dele ter não só ramificações no resto do corpo, nós, entre outras coisas, temos neurónios no resto do corpo, como a nossa forma de apreensão do mundo ser através do corpo, isso é fundamental, mas quer dizer, para todos os efeitos, aquilo que me parece, mas que o Rui se estiver enganado, ser o grande mistério, é como é que do nosso cérebro, como é que de um conjunto de neurónios e sinapses, ou considerando, lá está, o próprio resto do corpo, surge uma mente que é não só uma coisa que até hoje foi impossível de ligar à nossa arquitetura do cérebro de uma forma direta, consegue-se saber se tem correlações, mas não essa ligação, como tem aquele aspecto particular de ser a nossa mente, ou seja, aquela história do What is it like to be, não é? Há alguma coisa que é ser eu, tal como há alguma coisa que é seres tu, não é? A nossa autoconsciência e as matizes das nossas sensações, dos nossos sentimentos e até do nosso próprio raciocínio, não é? No fundo, o mistério é esse, acho eu. Corrisme se estiver enganado.
Sofia Miguens
Estás absolutamente certo e tudo o que tu disseste foi filosoficamente pesadíssimo, não penses que tens as mãos limpas em termos de filosofia. Só a ideia de que a nossa mente surge do nosso cérebro, ok? Tudo isso já é resumir todo o problema para o qual estávamos a usar os termos dualismo, epifanomenismo, materialismo, monismo. Portanto, essa forma comum de nós falarmos, a nossa mente surge do nosso cérebro, já é ela própria um posicionamento. Mas tu respondes à tua própria pergunta, portanto. E se calhar pegaste mesmo as palavras que pelo menos eu prefiro. O que é para mim ser eu? O que é para ti ser o Zé Maria? O que é para mim ser a Sofia? E em que é que isto do what is it like for you to be, portanto, seres a pessoa que és, em que é que isto se relaciona com a tua corporeidade e em particular com o teu cérebro, chama a isso o problema do corpo. Portanto, formulado assim, não estará certamente mal formulado. Deixa-me dizer-te aqui uma coisa, uma relação entre a filosofia da mente e o que nós estávamos a dizer antes, que tem a ver com algumas insatisfações minhas de trabalhar só em filosofia da mente. Reparem, a mente, que interessa? A filosofia da mente é minha ou é tua? É do Zé Maria ou é da Sofia? Mas, por exemplo, um pensamento, como por exemplo nós estamos a falar um com o outro, ou dois mais dois são quatro, isso não é uma mente, é um pensamento que nós podemos
José Maria Pimentel
partilhá-lo.
Sofia Miguens
Nós temos aqui alguma coisa que é comum e é tão ou mais importante para aquilo que é, se quiseres, para um humano ser humano ou haver pensamento no mundo, esta partilhabilidade dos pensamentos, chama-lhe de proposições, chama-lhe de crenças, chama-lhe o que é para nós representar e inferir, como esse aspecto se quiser pessoal, individual, psicológico, what is it like to be, como é para mim ser eu. Esse é apenas um dos muitos problemas da filosofia, portanto não me parece que se deva engolir na filosofia da mente só porque estamos a falar de mentes, tudo aquilo que são os problemas da filosofia de que falávamos antes. Portanto, está claro este ponto. Portanto, as nossas mentes psicológicas individuais, nossas ou de qualquer outro animal, possivelmente de agentes artificiais futuros, essas mentes que se ligam à identidade pessoal, portanto para ti seres tu, para mim ser eu, isso não é o mesmo que o pensamento, no sentido em que o grande problema geral para a filosofia será sempre pensar e ser, was heise denkend, como dizem os alemães, o que é pensamento. E pensamento não é só mentes e precisamente a relação entre uma coisa e outra é extremamente importante. E a linguagem é muito importante nessa partilhabilidade dos pensamentos e por isso uma espécie de redução dos problemas do que é pensar aos problemas da mentalidade individual e psicológica parece-me ser uma forma não muito correta de funcionar em filosofia da mente. Mas, de novo, se estamos na filosofia da mente, eu gosto do Dennett, embora ele não seja mainstream, ok? Portanto, não é mainstream porque ele tanto está na filosofia como na ciência cognitiva e por vezes os filósofos preferem filósofos que são filósofos para filósofos. E o Dennett vê o problema da filosofia da mente da seguinte maneira. Como é que é possível que os pensamentos, portanto, realidades semânticas, normativas, possibilidade de verdade e falsidade e os neurónios do meu cérebro existam num mundo que é o mesmo. Portanto, tens de ter aqui uma espécie de vértice, mundo, haver mundo, estar num mundo de alguém e haver estas duas faces. Pensamento, chamo-lhes crenças agora, chamo-lhes consciência se quiseres, e uma realidade física, biológica, aquilo que tu és enquanto animal dotado de um cérebro. Uma das razões porque o Gannett me agrada, mas isso também é completamente... Ele é polémico e isto chama-lhe uma posição deflacionária, Ele não considera que a consciência seja o maior problema aí. Tu tens uma quantidade de importantíssimos filósofos da mente atuais. Imagina, Thomas Nagel com a sua famosa experiência de pensamento do morcego, Frank Jackson com a famosa experiência de pensamento da Mary, a neurocientista. Podemos falar destas experiências de pensamento de todos. Todas estas pessoas pensam que aquilo que há de mais especial no problemamento corpo é a consciência. Como diz o Thomas Nagel, é a consciência que torna o problemamento corpo intratável. Não é um problema como um problema da redução água H2O, em que nós passamos de uma conceptualização comum de uma coisa e depois temos uma conceptualização científica e depois devemos perguntar o que é realmente essa coisa de um ponto de vista ontológico. Redução eu estou a usar aqui no sentido de filosofia da ciência, portanto, de relação entre entidades e leis de um nível e entidades e leis de um outro nível e a forma como tu fazes corresponder. E o problema é como é que tu fazes corresponder a consciência. A consciência seria qualquer coisa a mais, qualquer coisa de esquisito. Tu poderias, por exemplo, ser um zombie. Estivemos aqui a falar este tempo todo, não é?
José Maria Pimentel
Eu, por acaso, essa do zombie não... Quem é que propôs o...
Sofia Miguens
Essa do zombie é do David Chalmers. É
José Maria Pimentel
do Chalmers, exatamente. Eu, por acaso, não... Sabes que essa... Bem, só para explicar, corrija-me se eu não der... Se me faltar aqui algum ingrediente, mas a experiência do zombie ou o enigma do zombie é, no fundo, dizer que eu ou tu podemos nos comportar de maneira absolutamente normal para qualquer pessoa que interage connosco, mas no fundo não termos consciência, não é? No fundo, a ver esse... Não é sermos completamente funcionais do ponto de vista do comportamento, mas não haver esse what is it like to be, essa pessoa, dentro de nós. No fundo é isso.
Sofia Miguens
Absolutamente. Mas repara que o que é estranho e até perturbador aí, por mais que gostemos ou não gostemos dessa experiência de pensamento, que é então um ser tão inteligente como tu, tão linguístico como tu, tão conceptual como tu, exatamente igual ao Zé Maria, mas sem qualia, sem interioridade, sem what is it like to be, a questão é que eu nunca posso saber se tu não és isso, porque as nossas mentes não vão nunca dentro, não alcançam nunca diretamente as mentes de outra. E, portanto, aquilo que ele está a variar ou a fazer ou a pôr em relevo com a experiência de pensamento do zombie pode-lhe chamar o problema das outras mentes. O facto de nós vivermos humanamente em comum, chama-lhe humanos com humanos, humanos com outros animais, mas a nossa interface é comportamental e corpórea, e linguística. Portanto, nunca será de outra maneira, não se trata de eu pôr o meu dedo ou estender uma sonda, uma sonda conceptual para dentro da tua mente. Como
José Maria Pimentel
é que sabes que nunca será?
Sofia Miguens
Ok, esse é um bom problema. Esse é um bom problema que o Danette queria, ok? É uma das razões porque o Danette acha essa experiência preposterous.
José Maria Pimentel
Sim, pois eu concordo com ele, sabe? Acho eu que concordo, não sei se já vi a justificação.
Sofia Miguens
Ele fala de unimaginable preposterousness of zombies. Acha que pôr uma quantidade de filósofos da mente atrás do problema dos zombies só mostra quanto eles não estão a ir atrás dos problemas certos, ok? Mas repara, o Dennett não diz que a natureza da inteligência, a natureza da autoconsciência não sejam problemas certos. O que acha é que essa sonda, esse disputador que é a experiência mental do zombie está no wrong track completamente. Sim. Porque está a partir daquilo que ele... Vou pôr as coisas de uma forma direta. Que ele não aceita a distinção entre a intencionalidade ou a inteligência e a consciência. Portanto, ele não pensa que a consciência seja qualquer coisa do outro, qualquer coisa a mais relativamente àquilo que ele chama de intencionalidade ou representação.
José Maria Pimentel
Ele acha, creio eu, que a consciência é no fundo uma... Não diria um subproduto, se calhar subproduto é um termo demasiado extremo para isso, mas é uma consequência do desenvolvimento da inteligência, ou seja, ela surge como uma espécie de efeito do aumento do desenvolvimento cognitivo e não como uma coisa em si mesmo isolável. Eu acho que, embora seja difícil de provar isso, mas eu acho que nós temos uma série de... Por isso é que eu tendo a concordar que há alguns filósofos que estão atrás do animal errado, essas coisas, e pegam em problemas desses que são engenhosos, e já vamos falar se calhar do neurocientista Mary, que é giro, mas também me parece mais ou menos a mesma coisa, que não parece que vão continuar o caminho certo, embora a pergunta em si, obviamente que é ultra interessante, e há uma série de coisas que nós não sabemos. Agora, o que é que nós sabemos? Nós sabemos que, por exemplo, se nós olharmos para a natureza, nós sabemos que a consciência existe no mundo animal, quer dizer, nós somos parte do mundo animal, como é óbvio, não é?
Sofia Miguens
O Dan até aí diz uma coisa estranha, diz que só nós humanos, porque somos linguística, seres linguísticos, é que somos conscientes no sentido próprio, ok? Que é que para ele é o único sentido? Essa autoinspeção linguística daquilo que do ponto de vista da nossa inteligência somos, nós já podemos, vamos já dizer que ele diz muitas outras coisas mais sofisticadas que se pensa sobre consciência, Mas ele é daqueles, na filosofia da mente contemporânea, que traçam um abismo entre nós e os outros animais. Ele, como por exemplo um Donald Davidson, e isso, pelo que eu estou a perceber, não te agrada. Não,
José Maria Pimentel
mais ou menos eu já tive essa posição, mas eu não acho que as duas coisas sejam necessariamente compatíveis, ou seja, nós podemos dizer que há uma descontinuidade a certo ponto, se nós quisermos, e ao mesmo tempo admitir que existe um substrato que é contínuo, ou seja, é evidente que entre a nossa mente e a de um chimpanzé ou de um bonobo, que são os animais mais próximos de nós, há uma descontinuidade no sentido em que a linguagem, desde logo, a capacidade de planear o futuro, quer dizer, de enquadrar diversas opções, são coisas que existem na mente humana e a existirem no chimpanzee existem de uma maneira muito incipiente. Agora, existe uma continuidade, ou seja, se tu partires de um ser unicelular até nós, admitindo que nós estamos no pináculo do evolutivo, que também era outra questão, mas pelo menos a este respeito aparentemente sim. Espera
Sofia Miguens
aí, eu acho que eu diria aparentemente não, ok? O Dennett também diria aparentemente não, ou se levares a sério a biologia, não.
José Maria Pimentel
Não, do ponto de vista da consciência. A evolução não tem um objetivo, não é? Mas somos o único animal que tem consciência neste sentido, ou pelo menos aparentemente. Mas isso não quer dizer que nós não vejamos em uma série de seres proto-consciência e mesmo consciência em outros aspectos. E mesmo no exemplo dos chipasés, ou até mais abaixo disso, no exemplo dos cães, que eu tenho dois cães e vejo neles, se por acaso são cadelas, vejo neles claramente aspectos que estão num contínuo de consciência que depois vêm dar lugar a nossa obviamente que elas não têm, muitas vezes, já tive até essa conversa no podcast uma vez, porque as pessoas muitas vezes quando gostam dos animais, imputam-lhes um nível de consciência que eles claramente não têm. É evidente. Mas ainda assim, é óbvio que um cão tem muito mais consciência, ou nesse contínuo, do que uma amígdala. Exatamente. E outro exemplo muito mais próximo de nós, o exemplo das crianças, por exemplo, que é muito giro. Tu veres um bebê desenvolver-se é veres aquele ser ganhar consciência. Ele vai galgando as várias etapas. Eu tenho uma filha com um ano e três meses e é muito giro. Ela agora, por exemplo, já tem, Continua a ser uma proto-consciência, ela não tem capacidade de planear o futuro nem nada que se pareça, mas tem ali uma série de coisas que não tinha antes e vai adquirindo. Por exemplo, ainda no outro dia vi uma coisa muito gira a propósito da teoria da mente, que é no fundo nós percebermos...
Sofia Miguens
É imputar mentalidade a outro corpo que se comporta na tua frente.
José Maria Pimentel
Exatamente. Aliás, no fundo é um bocado isto, aquilo que tu dizes há bocadinho das várias mentes, não é? No fundo, perceber que há outras mentes diferentes da tua. E os miúdos só começam a adquirir, teoria da mente, vai aos 5 anos. Que é incrível, não é? Ou seja, mostra quão importante isso é para a nossa cognição e ao mesmo tempo surge só aos 5 anos. A intersecção
Sofia Miguens
entre os psicólogos, em termos de desenvolvimento, a idade em que tu falas dessa theory of mind, portanto, dessa importação de mentalidade em que tu podes, por exemplo, conceber que uma outra pessoa te está a mentir, ou aquilo que está na cabeça dela não corresponde exatamente aos factos no mundo. Isso é um adquirido cognitivo muito difícil. E o específico do tipo de mente que nós somos. Mentir é extremamente importante.
José Maria Pimentel
Exato. Mentir é muito humano, não é?
Sofia Miguens
Tudo o que tu estás muito do lado do Dennett em termos de quais são os bons problemas para pensar sobre a natureza do mental. Para ele são esses problemas de continuidade. E isso te satisfaz em vez de consciência dizer inteligência ou dizer awareness, porque Tudo o que ele não quer dizer é consciência fenomenal ou qualia, qualquer coisa de... Something completely different. Qualquer coisa que pode estar totalmente ausente quando tens toda a inteligência, toda a racionalidade, todo o apercebimento a funcionar. Porque essa é a intuição do lado dos zombies ou do lado dos qualia, portanto do lado da consciência fenomenal. E essa o Dennett rejeita. Mas tudo o que tu disseste, de novo, repara, as tuas palavras são filosoficamente muito pesadas, em muitas pistas, tudo o que tu disseste, por exemplo, sobre linguagem, sobre ir-se tornando mais progressivamente mais consciente, pelo lado da tua filha, por exemplo, Tudo isso são coisas eticamente muito pesadas, ok? Porque, por exemplo, se tu relacionas o ser pessoa ou de uma pessoa com a autoconsciência... Mas é diferente. Mas tu acabaste de dizer que um humano quando nasce não é autoconsciente. Sim,
José Maria Pimentel
sim. E essa é uma questão muito debatida na ética, eu sei, eu sei.
Sofia Miguens
Pois, e a posição que tu tens aí é importantíssima para ires para um lado ou para o outro em termos éticos. Mas só para fazermos justiça ao Dennett, uma vez que eu disse que ele é malquisto por muitos, nos lugares mais, digamos, mais filosofia pura da filosofia da mente, o Dennett não me disse, a teoria da consciência do Dennett tem pelo menos três departamentos diferentes. Um que tem a ver com linguagem e com a ideia de Higher Order Theory, portanto a ideia de que para tu falar de consciência no sentido próprio tens que ter estados mentais sobre outros estados mentais, portanto trata-se de uma relação, se quiseres, autoreferencial, agora usado o termo autoreferência sem tecnicismo, Trata-se de uma autorrelação, trata-se da possibilidade de tudo ter os estados mentais sobre os teus estados mentais com um grau de aprofundamento ou de embebimento que o Dennett considera que só é possível em momentos linguísticos. Portanto, parte da teoria da consciência dele é aquilo que no jornal se chama Higher Order, uma teoria da consciência como crenças sobre crenças próprias. Outra parte está entre a ciência e a filosofia, é aquilo que se chama o modelo funcionalista do mental e que ele desenvolve em comum com, por exemplo, psicólogos cognitivos. Aquilo que se chama o Multiple Drafts Model é um modelo funcionalista, portanto a ideia, se quiseres, de um software a correr no cérebro. Para dizermos agora isto de forma curta, mas tem a ver com a investigação sobre cognição e, portanto, aqui claramente não estás só a falar do lado da filosofia, mas estás a falar da instituição de um centro virtual num cérebro que faz processamento paralelo distribuído de informação. Portanto, não há nada, digamos, natural na existência de um eu, não há nenhum centro pré-constituído ou caído do céu, ou um bebê humano não nasce dotado daquilo que será uma autorrepresentação complexa, que para o Dennett será um centro virtual e ele próprio uma representação que ele quer considerar no âmbito desse modelo funcionalista da consciência. E depois aquilo para que se olha mais, quando se o critica, dizendo que ele é um eliminativista da consciência, que pensa que todos somos zombies, é então uma ideia acerca de qualia. Portanto, normalmente a palavra qualia utiliza-se para o que tu chamaste de sentir-se ser. Eu sinto-me ser, sinto-me consciente, sinto-me pensante. E o Dan é que desconfia da palavra qualia e considera que tudo que está em causa quando nós falamos de qualia é incorrigibilidade no nosso auto-acesso. Portanto, é nós não podermos estar enganados acerca daquilo que estamos a ser. Por exemplo, eu sinto dor, eu não posso estar enganado acerca de me sentir dor. Para a maior parte das pessoas, isso seria prototipicamente um qualia, um qualia de dor. Para o Dennett, a questão dos qualia é uma pseudo-questão. O que está aqui em causa é o estatuto do auto-acesso e o estatuto da incorrigibilidade, da tua incorrigibilidade no teu auto-acesso. O que
José Maria Pimentel
é que quer dizer com incorrigibilidade? Não poder
Sofia Miguens
estar errado. Por exemplo, não poder estar errado quando dizes eu estou a ver vermelho, eu estou a sentir dor ou eu estou a pensar. E ele vê essa questão da incorrigibilidade como uma questão uma questão propriamente epistemológica, quando a maior parte das pessoas que querem falar de Coal e de consciência fenomenal estão a falar aqui do grande mistério ontológico, do grande mistério ontológico da subjetividade. Portanto, tens aí um clash em formas de fazer filosofia quanto à natureza do problema aqui. Mas eu só queria... Estava a dizer que a teoria da consciência dele tem estes departamentos todos para ser um bocadinho justa. Porque... E a outra coisa que eu queria dizer é que isto não é só filosofia, ok? Portanto, o Dennett, a certa altura, tornou-se se calhar mais um cientista cognitivo do que um filósofo.
José Maria Pimentel
Acho que é uma área, por definição, em que as duas coisas...
Sofia Miguens
Absolutamente, quer dizer, se tu estás a falar de mente e de cérebro, não estás a fazer só filosofia. Há várias disciplinas da mente e do cérebro, a filosofia é apenas uma delas. Os problemas da filosofia da mente são apenas alguns dos problemas desse campo da mente-cérebro. Mas, basicamente, isso. Não dissemos a coisa mais importante sobre o Dennett, que é, se calhar, a ideia mais básica do Dennett em Filosofia da Mente, é uma ideia que se calhar agradou mais a cientistas cognitivos que a filósofos, a ideia de intentional stance ou a ideia de estratégia intencional, ou atribuição intencional, que tem a ver com aquilo que tu chamaste de teoria da mente. Portanto, tu seres um tipo de mente que atribui mente a outros agentes ou outras coisas no mundo. Aliás, atribuí-los puduradamente, porque às vezes para nós basta-nos ver uma simulação de um rosto ou de um nariz, ou de dois riscos e imediatamente sorrimos como se fosse um rosto humano. Portanto, nós reagimos a muitas partes do nosso mundo, do nosso entorno, como se fossem mentais. Essa atribuição de mentalidade e a complexificação nessa atribuição de mentalidade. Por exemplo, tu tens coisas que são mentalmente previsíveis. Por exemplo, olhas para um termostato e ele diz-te que está a calor. Tu podes olhar para ele, ele pensa que está a calor. Isso é obviamente metafórico, heurístico, mas é uma forma que nos serve para nos orientarmos cognitivamente com muitíssimas coisas do mundo. Por exemplo, pensa, o coronavírus é inteligente. Trata-se de uma estratégia heurística de atribuição de uma inteligência que, presumivelmente, não está lá. Para tu chegares dessa atribuição, dessa intente synostance de primeiro grau a um amante do nosso tipo, tu tens que ter não apenas uma atribuibilidade de mentalidade, mas tu tens que ter a seguinte situação. Tu pensas que P, por exemplo, e dizes que P, estas mãos são minhas, depois tens uma mente que pensa que tu pensas que P e que pensa que tu pensas que ela pensa que P. E é aí que a linguagem faz diferença, ok? Que a linguagem faz diferença do ponto de vista cognitivo. Portanto, a linguagem será, se quiseres, essa tecnologia natural que faz com que as mentes humanas se aprofundem do ponto de vista desta estratégia intencional. E, portanto, de novo, para o Danity será um problema de comparar tipos de mentes e as nossas mentes humanas aparecem, como tu disseste, numa continuidade relativamente a muitos outros tipos de mentes, mas com essas especificidades, muitas das quais, algumas das mais importantes, são devidas à linguagem. Não que ele seja um grande filósofo da linguagem, ok? Ele não quereria saber destes grandes temas da filosofia analítica inicial, da Russell, da Frege, ok? Não quereria. Aliás, do ponto de vista epistemológico, metafísico, Dennett quer ser tudo ao mesmo tempo. Quer ser um koiniano, quer ser um wittgensteiniano e não temos que saber se isso é sequer coerente. Mas, do ponto de vista das propostas específicas em filosofia da mente, penso que continua a dizer coisas extremamente interessantes, orientadoras, para mim, no campo da filosofia da mente.
José Maria Pimentel
E o ponto aí é que, e que me parece muito importante, é dizer que a linguagem, independentemente depois de estudar as outras facetas da linguagem e da sua relação com a planta, dizer que a linguagem é um aspecto essencial do facto de nós sermos conscientes, de nós termos adquirido estas propriedades que não existem nos
Sofia Miguens
outros animais. Absolutamente. E, portanto, é uma forma de tocar naquele problema que muitas pessoas, na filosofia, tocam de uma forma mais pura, que é o problema da relação pensamento-linguagem. Tocá-lo de uma forma mais cognitiva. Mas repara que, se calhar, aquilo que é mais desafiador no Dennett é a ideia de que a inteligência pode ser só comportamento, pode ser só acontecimento. A inteligência no sentido de racionalidade, adequação meios-fins, aquilo que se chama normalmente de racionalidade instrumental, isso pode ser absolutamente comportamental unicamente no sentido de ser uma adaptação reativa de um agente físico resultante de evolução às solicitações do seu ambiente, sem teres que ter desenvolvido uma interioridade. Portanto, inteligência pode ser não autorreflexiva ou não consciente. Para o Dennis isso é extremamente... Mas
José Maria Pimentel
isso seria ao zombie, certo? Não.
Sofia Miguens
Tudo o que ele diz resulta na ideia de que os zombies são impossíveis. Eu
José Maria Pimentel
sei, eu sei, mas dito assim, o que tu estás a dizer é que... Ok, estou
Sofia Miguens
a ver o que é que estás a dizer. Ok, sim. Ok, olha, essa é uma boa objeção para tu eres um dia a fazer ao Bennett.
José Maria Pimentel
Era boa. Então, aquilo
Sofia Miguens
que ele chama de psicólogos naturais não pensantes, então isso não são os zombies? Sim. Seria sem dúvida uma boa objeção, mas repara que, por exemplo, na filosofia da ação faz parte sempre da distinção entre aquilo que nós fazemos e aquilo que simplesmente acontece, ok? Pensa numa coisa que tu fazes, por exemplo, levantas um braço, isso pode ser uma ação voluntária tua, exercício do teu livre-arbítrio, ou então se houver um neurocientista manipulador que aciona diretamente o teu córtex, pode ser uma coisa que te acontece. Fizeste nada e o teu braço levantou-se. Certo. Aquilo que o Dan é-te de estar a dizer é que a inteligência, a tua inteligência, a tua racionalidade, mas a tua, de um ser inteligente menos complexo que tu, começa por ser, pode ser, puramente comportamental, puramente acontecimento. Portanto, toda essa presumção de que nós, do ponto de vista da nossa inteligência, consciência, racionalidade, somos muitíssimo especiais, tem que ser qualificada. Sim,
José Maria Pimentel
eu tendo a concordar com isso, sim, assim, dito. Então, espera, se calhar valia a pena abordar o outro lado. Eu sei que as posições em relação a estes temas têm uma série de matizes, mas se tivesse que definir alguma, qual seria a posição contrária a esta posição do Dennett que nós estamos a falar?
Sofia Miguens
Esta posição, Reparem, aquilo diz, isto não é um problema, isto são muitos pequenos problemas e fazer de conta que estes vários problemas, que são problemas acerca de comportamento, de ação, de linguagem, de auto-sondagem, de modelos cognitivos, pensar que isto é um único problema, que é o problema da superveniência da consciência fenomenal, por exemplo, a este mundo físico, isso em si próprio já é uma má estratégia. Portanto, ele diz que são vários os problemas, não é um. Mas
José Maria Pimentel
em relação a este último, por exemplo, que falávamos agora, da consciência em conspeto sobretudo comportamental, pelo menos numa fase inicial, não é?
Sofia Miguens
E aí estávamos a falar de outros animais ou de outros seres vivos, portanto, estávamos a falar, se quiseres, da forma como o problema geral, que é o problema da natureza, da inteligência, da relação da inteligência com o comportamento, começa muito antes da existência dos humanos e aquilo, os princípios teóricos que ele utiliza, da estratégia intencional para pensar na inteligência, se chama-lhe nessa história evolutiva do mental e da racionalidade, vão ser os mesmos que tu vais continuar a utilizar para pensar em ti próprio, conforme a que ele considera filosoficamente correta. O que significa que tu pensas no mental, se quiseres, desde um ponto. Não há humanos, não há sequer animais complexos, mas começa a haver free-floating rationality. Portanto, começa a haver, se quiseres, purpose, começa a haver propósito, há vida e há propósito. E esse mindless purpose para aquilo que é, se quiseres, o nosso estado de coisas enquanto humanos, que é nós nos preocupamos obsessivamente com o propósito, com a consciência, quer dizer, nós não apenas pensamos, mas passamos a vida a pensar sobre o nosso pensamento, agora figura tudo isso num contínuo. Portanto, isso que tu és agora, essa preocupação com razões, preocupação com justificação, preocupação com fazer ciência, com fazer filosofia, pensa nisso na continuidade desse surgimento daquilo que aí é melhor dizer inteligência e racionalidade. E portanto a consciência seria apenas um degrau a ser pensado de forma continuista. Claro que isto, repara, pode-lhe chamar de anticartesiana. A ideia é, não temos aqui um vir da alma e da consciência para fora a animar um corpo automato. E também não tens a ideia de que aquilo a que tu vais chamar essencialmente de tu próprio, a tua consciência, a tua pessoalidade, a tua identidade pessoal, é absolutamente separável daquilo que é, cá dizíamos só o teu cérebro, mas todo o teu corpo. Podes reencontrar aí, por exemplo, Merleau-Ponty todo, voltando à filosofia continental, da importância do corpo próprio para a natureza da inteligência, da importância da perceção para a natureza da inteligência. Para pôr aqui um pouquinho dos debates epistemológicos da inteligência artificial, e o Dennett é um daqueles filósofos que acha que os debates epistemológicos da inteligência artificial são extremamente importantes filosoficamente. Quando a inteligência artificial começa, nos anos 50, aquilo que estava mais pronto a replicar da inteligência humana são as nossas tarefas simbólicas complexas. Imagina fazer uma demonstração matemática ou jogar um jogo de xadrez. Aquilo que é mais difícil e que é também constitutivo da inteligência humana é, por exemplo, tu mexeres o teu corpo. Se alguém, imagina que estás numa mesa com tábuas, com espaço entre elas, derramas um copo e imediatamente afastas-te daquilo que é inteligência corpórea ou então o mero facto de veres, de teres percepção. Então, se essas componentes da forma corpórea ou humana de ser inteligente no mundo são muito mais dificilmente simuláveis ou replicáveis do que estas nossas faculdades simbólicas complexas formais, como pensar logicamente ou fazer uma demonstração matemática. Sim,
José Maria Pimentel
bem, depende, mas aí Eu percebo o que queres dizer e esse é um ponto, aliás, uma das limitações da inteligência artificial é que, da inteligência artificial geral, ou seja, comparável às nossas, é que provavelmente aquele algoritmo tinha que interagir com o mundo através de um corpo porque é assim que nós apreendemos o mundo e estamos feitos para isso. Mas há outro aspecto da inteligência humana, que é se calhar o mais difícil, comparativamente com esse da mais comparável a uma máquina de calcular, que é o mais relacionado com a criatividade e com a relação de ideias e com a extração de... Padrões. Padrões, exatamente. Essa é que é... Esta é a questão da consciência. Ou da mente. No fundo, lá está, é verdade que são uma série de questões de uma só, e tu falaste já muito da racionalidade, mas está mais do que comprovado que nós somos irracionais numa série de aspectos e temos... E as emoções são uma espécie de... As emoções não são necessariamente irracionais, mas são, como são meurística, formam uma adaptação evolutiva a determinadas coisas, mas que não dão necessariamente a resposta certa noutras situações, não é? E tudo isso é humano também.
Sofia Miguens
Claro, não, absolutamente. E quando eu digo racionalidade, digamos que a parte mais interessante da racionalidade é a irracionalidade. Exato, sim, sim. E, Aliás, essa é uma questão. Tu não podes dizer que este meu telemóvel é irracional ou que este ecrã que está na minha frente é irracional ou que esta caneta é irracional. Eu posso dizer que eu sou irracional ou que tu és irracional num dado momento, num dado instante. Portanto, presumivelmente, só podemos dizer que só aquilo que é racional pode ser irracional. Certo, exato. E essa será a forma como os problemas que estávamos a discutir acerca de constituição ou evolução de mentalidade depois se vão relacionar com racionalidade. E o que tu estavas a dizer sobre emoções, isso é outro campo por excelência da filosofia da mente. Pensa no locus clássico disso, que é David Hume. A ideia não é que as emoções são irracionais e há uma parte pura da racionalidade. A ideia é que o tipo de montagem cognitiva que nós somos, da nossa racionalidade, fazem parte das emoções. Depois podíamos discutir muito mais se o David dizia isso ou não, mas a ideia é que estás sempre a ir atrás de uma concepção de racionalidade. Só aí é que faz sentido. Há toda uma literatura fantástica sobre racionalidade e irracionalidade na ciência cognitiva. Racionalidade e irracionalidade nos raciocínios teóricos, nos raciocínios práticos, em tarefas de decisão. Olha, se calhar é um ponto em que isso se cruza com as coisas que tu na economia estudas. Portanto, há os paradigmas do heuristics and biases, as críticas a esses paradigmas, a teoria
José Maria Pimentel
dos jogos.
Sofia Miguens
Todos esses pontos em que se estuda questões de racionalidade e de irracionalidade são, há bocado falávamos da lógica, mas essas questões, esses modelos da racionalidade são um outro desafio para aquilo que se faz dentro da filosofia da mente, que é, nós temos concepções normativas do que é ser lógico ou do que é ser racional E o problema da filosofia da mente é saber como é que isso se relaciona com os agentes biológicos, físicos, que nós somos, que os outros animais são, que agentes artificiais são. Portanto, uma coisa é nós, por exemplo, dizermos, de acordo com a teoria da decisão, ser racional a isto. Por exemplo, escolher maximizando a utilidade esperada. Só que quando tu estás no seguro terreno formal podes perfeitamente dizer isso, agora dizer como é que isso se aplica a um agente cognitivo real ou sequer se esse é um bom modelo de um agente cognitivo real, isso é uma questão em aberto, ok? E é uma questão, repara, os filósofos têm discutido muito essa questão também em termos de seria alguma vez possível ou concebível demonstrar empiricamente a irracionalidade? Isso é um problema com que vários cientistas cognitivos ou filósofos, ou psicólogos, chegaram a filósofos. Ok, eu tenho estes resultados. Tenho estes resultados acerca, por exemplo, de percentagens de sujeitos que respondem de uma forma irracional a este particular inquérito. Por exemplo, irracional porquê? Porque não segue regras quanto a condicionais ou que não segue aquilo que se aprende em teoria das probabilidades. Agora, o que é que eu estou a dizer quando digo, por exemplo, que a maioria dos sujeitos são irracionais? Isso é o princípio, digamos, do território filosófico dos estudos da racionalidade, porque não há nenhuma resposta pronta aí. Tu podes até dizer que a racionalidade natural é heurística, nenhum modelo idealizador de racionalidade é de alguma forma real ou realista acerca daquilo que nós realmente somos. Mas
José Maria Pimentel
a irracionalidade depende do que nós somos? Ou seja, aí dizer se é irracional é dizer se uma determinada decisão é lógica face aos pressupostos e às... O que
Sofia Miguens
é que quer dizer com ser lógica?
José Maria Pimentel
Por exemplo, se eu tiver fome é irracional comer. Seria irracional não comer, para dar um exemplo.
Sofia Miguens
Mas isso é racionalidade instrumental, não é lógica.
José Maria Pimentel
Eu não disse que era lógica, mas quando aludias à questão dos comportamentos irracionais, por exemplo, nos agentes económicos, por exemplo, aí o lado irracional é por não ser aquilo que... Não
Sofia Miguens
maximizar a utilidade esperada.
José Maria Pimentel
Sim, agora, claro que isso é debatível, atenção. Claro que é debatível, mas o significado racional não me parece ser tão debatível assim. O que é que é racional, naquele caso específico, claro que é debatível.
Sofia Miguens
O que eu estou a dizer-te é que é sim debatível e essa é a questão interessante. Nós temos bons, não temos forma de nos orientarmos aqui sem termos teorias como a teoria da decisão racional ou como lógica ou sistemas lógicos. Portanto, nós precisamos de modelos, senão perdemos completamente a pensar. Claro. Senão o que é que haveria? Acontecimentos de corpos no mundo, sons trocados, nós precisamos de modelos para pensar sobre a nossa forma de sermos pensantes, a nossa forma de sermos racionais, mas não está decidida à partida o que é que tu vais considerar que ser racional é. Tudo isso de que falamos aqui hoje, por exemplo, vai estar envolvido. Repara que falamos de lógica, falamos de consciência, falamos de decisão, falamos da forma como raciocínios reais se conformam ou não àquilo que são as regras da lógica ou da teoria das probabilidades que tu aprendes num contexto de aula. Todas essas questões, no fim de tudo isso, já agora pensando num livro há bocado perguntaste-me coisas acerca de livros, o Nature of Rationality de Robert Nozick, um filósofo de Harvard, seria aqui um ótimo livro, ele era um filósofo da economia, um teórico da decisão racional, também estava muito próximo de uma teoria evolutiva da racionalidade, seria um bom ponto onde esta questão está discutida. Portanto, o problema da racionalidade é o que tu vais discutir no fim de considerares todos estes modelos, a forma como estes modelos te permitem pensar sobre a forma como tu pensas, sobre a forma como tu ages, vais ter que considerar além disso, por exemplo, aquilo que psicológico ou neurocientificamente tu vais aprender sobre as emoções humanas, onde é que tu irias buscar um modelo prévio de racionalidade a priori? Não pode, quer
José Maria Pimentel
dizer, depende da situação e causa, mas o significado da palavra racional, para ser minha, que vinha de razão, e que tem a ver com o facto da tua decisão partir de princípios objetivos e os passos resultarem no passo imediatamente anterior. É óbvio que Quando tu estás a falar de problemas muito complexos, aí a racionalidade torna-se difícil de ser atribuída, mas defini-la no caso simples não pareceria especialmente difícil, mas...
Sofia Miguens
Concordo completamente contigo, mas aí tu tens test cases e aquilo que... A ideia aqui seria que entre test cases e princípios, aquilo que normalmente se chama o equilíbrio refletido. Quando nós não somos platonistas e não pensamos que os princípios ou as regras estão já feitas e
José Maria Pimentel
nos estão a ir para o céu,
Sofia Miguens
O que tu tens é observabilidade de princípios, casos concretos e depois um vai e vem entre princípios e regras. Estou a dizer isto, estou a pensar, por exemplo, no John Rawls na filosofia política e na forma de pensar sobre justificação. Isto não serve só para pensar na justificação num contexto de filosofia política, isto serve para pensar na justificação em geral. E quando estás a falar de racionalidade estás a falar de justificação em geral e daquilo que pode ser explicitado quanto à justificação. E se tu não tens modelos prontos, e eu estou a pôr as cartas em cima da mesa a dizer que eu penso assim. Pô, tu pensavas de uma forma diferente. Mas se não tens as cartas à partida, tudo o que tu tens é esse vai-vem entre os casos em que tu tens intuições que te dizem que eu penso exatamente assim, isto é racional, ou isto é lógico, ou isto é justo, e o vai-vem entre os casos e os princípios. Isso conduz-te a caminhos diferentes. Não,
José Maria Pimentel
isso eu percebo, sim, sim, sim. Eu não estava aqui a defender uma abordagem intuitiva. Então, mas espera. Podemos só falar um bocadinho antes de terminar do livro arbítrio? Depois é que eu acho para não falar da história da Mary, mas acho que... A
Sofia Miguens
Mary sabia tudo que havia para saber sobre a neurofisiologia da visão de cor, mas tinha aprendido tudo num quarto a preto e branco. E quando saiu cá para fora e viu pela primeira vez o amarelo de uma banana ou o vermelho de uma toalha, ela aprendeu alguma coisa ou não. É esse o desafio da situação da Mary. Pois,
José Maria Pimentel
mas essa questão... Esse é outro, esse RCT até me parece pior do que o do zombie. Porque o do zombie é um bocadinho mais discutível, esse parece mais evid... Quer dizer, nós não aprendemos a ler ou a ouvir, nós aprendemos a agir no mundo como todos nós sabemos. A experiência é essencial, qualquer experiência que a pessoa tenha, por mais que nós leiamos ou por mais que nós ouçamos alguém relatar uma coisa qualquer, só tendo aquela experiência, o desporto é o caso mais evidente disso. Eu posso ler vários livros sobre jogar futebol, só jogando futebol é que eu vou aprender aquilo. É evidente que ela só a ler ou ouvir ou a estudar sobre a neurociência das cores nunca saberia o suficiente para saber o que é sentir uma cor. Se no outro paradigma nós evoluíssemos para um paradigma e conseguíssemos, de facto, transmitir por via externa essa experiência às pessoas, aí acho que ela saindo do quarto não iria aprender nada de novo. Mas diz-me só o que é que tu achas e então podemos deixar a coisa assim, mas só para quem nos está a ouvir, a tua opinião é muito mais qualificada do que a minha em relação a isto, portanto, acho que é muito mais útil para quem nos está a ouvir.
Sofia Miguens
Repara que estas experiências de pensamento, nós falamos de três, o zombie do Chalmers, a Mary do Jackson e o Thomas Nagel, o What is it like to be a bat, são tudo experiências de pensamento que procuram despoletar uma intuição que vai no mesmo sentido, que é o caráter especial da experiência ou do squalia ou da consciência fenomenal. E no caso do Jackson, Isso está enfatizado de uma forma mais epistemológica, portanto o teu conhecimento teórico em terceira pessoa, portanto o teu conhecimento científico acerca daquilo que é neurofisiologia da cor não te diz ainda como é ver cor, como é ver vermelho. Hoje? A questão não é hoje, a questão é nunca. É como no caso do morcego. Tu podes conhecer todos os factos físicos, como se costuma dizer nestes contextos, acerca do córtex do morcego e da ecolocalização, nesse caso. Mas isso não te fará experienciar o que é ser um morcego. Portanto, tens aí um, chama-lhe um abismo ontológico entre terceira pessoa, portanto, conhecimento de factos, e primeira pessoa, portanto, se quiseres experienciar a partir de dentro aquilo que é a subjetividade da consciência.
José Maria Pimentel
Claro, mas eu concordo com isso, concordo que existe esse abismo hoje em dia, ou seja, que nós ainda não conseguimos, se é que alguma vez venhamos a conseguir, fazer essa correspondência e perceber de onde é que a mente e a mente específica da pessoa... Nenhum
Sofia Miguens
deles está a dizer que é uma insuficiência temporária do nosso conhecimento científico. Estão a dizer que pela natureza daquilo que é conhecimento científico esse abismo estará lá, dada a natureza da consciência. Repara, tudo isto é exatamente, procura disputar intuições contrárias às do Dennett, aquelas intuições
José Maria Pimentel
que a consciência não está a respeitar. Exatamente, sim, sim, sim, sim. Pois, quer dizer, é evidente que esse é um mistério, mas o estranho seria isso, não é? Ou seja, todo o caminho que nós já percorremos em termos de conhecimento da maneira de funcionar do mundo e do nosso corpo e do nosso cérebro, isso parece-me um dos passos seguintes. É obviamente, óbvio que é um passo que ainda hoje está muito longe, continua a estar muito longe. E aliás, às vezes houve uma onda muito, até recente, que... Recente, quer dizer, no fundo estamos a vivê-la, de algum entusiasmo com inteligência artificial e afins, que às vezes faz parecer que isso está próximo, quando na verdade está muito longe de estar próximo. Essa compreensão está muito longe de estar próximo. Mas, para ser minha, é muito mais provável ela surgir do que haver qualquer coisa de misterioso na mente humana, não necessariamente uma coisa dualista, não necessariamente a alma, mas qualquer coisa de misterioso que fosse inexpugnável.
Sofia Miguens
Como diria John Searle, no contexto do quarto chinês, isto é constitutivo, não é um estado temporário do conhecimento ou da tecnologia. É a mesma diferença entre aquilo que os filósofos chamam a primeira e a terceira pessoa. Mas, ento, tu achas que no caso da Mary, ser ultrapassado seria ter apreendido mais factos e, portanto, quando ela sai cá para fora do quarto para ela já não é uma surpresa ou alguma coisa completamente diferente como é ver amarelo ou como é ver vermelho?
José Maria Pimentel
É, no fundo, ter uma maneira de lhe inserir essa experiência sem ela ter tido de facto, não é? Quase uma espécie de realidade virtual ou alguma coisa do género, não é?
Sofia Miguens
Olha, uma experiência que nos podia levar mais longe por aí, imagina, o download das capacidades de saber pilotar um helicóptero que acontece à Trinity no Matrix. A ideia de que tu, em determinados contextos, isto seria uma forma de tu tentares ir pelo outro caminho, ok? Alguém que não quisesse fazer uma distinção abissal entre o saber de factos e como é experienciar, poderia procurar trilhar um caminho como esse. Mas repara que nós estamos aqui a falar de duas coisas diferentes. O nosso interior físico, que é o nosso cérebro, e possivelmente onde poderia ser feito supostamente esse download cognitivo de capacidades e o nosso interior mental. Sim,
José Maria Pimentel
mas onde é que está o interior mental se não no cérebro?
Sofia Miguens
Talvez seja-me uma má pergunta essa onde está o interior mental. Pois é, se abrires, como diria Thomas Nagel, se abrires agora o teu crânio e olhares para o teu cérebro, não vês lá observador nenhum.
José Maria Pimentel
Não o vês, mas eu sei que se... Se der uma marretada na minha cabeça, esse interior mental vai desaparecer. Portanto, Ele está ligado, não é?
Sofia Miguens
Sim, sim, sim, sim, mas não deixa de ser verdade. Ele até diz isto de uma forma assim mais gore. Se tu estás a lamber um gelado de chocolate, se alguém for lamber a parte do teu córtex que está a ser responsável por processamento desses coágulos tativos, não lhe vai saber a nada.
José Maria Pimentel
Não, mas se te derem os estímulos elétricos naquela parte do cérebro, podes sentir o sabor do chocolate.
Sofia Miguens
Certo, absolutamente. Olha, uma coisa sobre a qual nós não falamos é que na epistemologia é importantíssima. Ceticismo, cenários virtuais, géneros malignos, enganos, tudo isso é alguma coisa que na epistemologia também está muito próximo da filosofia da mente. Eu pensei que hoje a conversa ia por aí, mas não foi por aí.
José Maria Pimentel
Pois não, foi um mistério. Então, pronto, mas vamos deixar este tema. Queria só falar um bocadinho da questão do livro arbítrio porque, curiosamente, aí eu até nem me sinto tão próximo desta visão mais fisicalista ou materialista, que o risco de estiver a usar termos errados, porque o jargão disso é complicado e nem sempre me é natural. Mas no fundo, aquilo que me parece, não sei se... Eu acho que isto não é... A correspondência não é unívoca, mas parece-me que filósofos com uma perspectiva fisicalista em relação a esta questão da consciência, ou seja, que a veem como não dissociável do corpo, quer que isso queira dizer, e não veem um interesse tão grande na questão dos qual e da experiência próxima, tendem, alguns deles pelo menos, a dizer que nesse caso então, como todo o mundo natural resulta das propriedades da física, então há um problema muito desagradável, mas incontrolável, que é o facto de nós não termos livre arbítrio. Ou seja, no fundo, nós podemos achar que estamos a tomar decisões, mas tudo aquilo está a acontecer no nosso cérebro, por exemplo, os neurólogos estão a disparar e até aquela experiência do Libet, uma experiência muito conhecida em que o neurocientista conseguiu provar que quando nós decidimos fazer alguma coisa, na verdade, milésimos de segundo antes, os nossos neurônios dispararam, ou seja, no fundo o processo físico ocorreu antes, né?
Sofia Miguens
E ela acha que conseguiu provar. Nós temos de ter muito claros os factos dessa experiência do Libet.
José Maria Pimentel
Sim, sim, esse terreno está em aberto, claro, claro, sim.
Sofia Miguens
Porque mesmo, pronto, eu concordo em termos genéricos com aquilo que tu disseste, portanto, em geral, o livre-arbítrio seria um desafio, uma posição fisicalista sobre a natureza do mental e isso teria a consciência muito desagradável de nós não termos liberdade, de não estarmos nunca a fazer aquilo que nós próprios decidimos fazer, mas não há... Pode
José Maria Pimentel
nem existir isso, decisão não existe, no fundo. Repara
Sofia Miguens
que decisão e livre-arbítrio se calhar podem ser coisas diferentes, talvez para tu teres um comportamento de decisão, te basta aleatoriedade, ramificações do mundo por entre os quais tu podes escolher e para tu teres essas ramificações de situações, tu podes, por exemplo, ter o determinismo físico, que é aquilo que perturba muito as pessoas que discutem o livre-arbítrio no contexto do fisicalismo, não é absolutamente claro que esse determinismo ou determinismo físico seja aquilo que é o mais importante para tu decidires se tens livre-arbítrio ou não tens livre-arbítrio. Esta, aliás, é uma questão interessantíssima na história da filosofia. Por exemplo, o Nietzsche aparece muitas vezes aqui como um exemplo de alguém que classicamente teria negado que nós temos livre-arbítrio. Então, penso hoje no Sam Harris, não sei se… Sim. Mas vamos ao Libet. O que é que exatamente o Libet faz e o que é que exatamente o livre-arbítrio é? Tu dizes que tens livre-arbítrio se fazes aquilo que queres de uma forma que não é determinada por nada nem por ninguém. Ou então, se quiseres uma distinção mais informal, nós temos livre-arbítrio se pelo menos algumas das coisas que acontecem dependem de nós. Pensação up to us, essa up to us-ness das coisas seria aquilo que nós queríamos ao querermos livre-arbítrio. Ou então outras pessoas preferem dizer aqui que nós sabemos que temos livre-arbítrio porque poderíamos ter agido de outra maneira. Nós sabemos que Quando nós pensamos sobre nós próprios como podendo ter agido de outra maneira, por exemplo, nenhum de nós apareceu aqui às três da tarde para conversarmos, seria perfeitamente possível, portanto, dependeu de uma decisão nossa que as coisas tivessem sido assim e não de outra maneira. Seria a ideia de que precisas de possibilidades alternativas para a existência de livre-arbítrio. Portanto, desde logo tu tens aqui coisas diferentes de que aparentemente tu precisas para teres ou não teres livre-arbítrio. Determinismo ou não determinismo e a forma como tu defines esse determinismo, nomeadamente se há uma questão acerca de como o nosso mundo físico é, totalmente dependente de leis, e nós como parte desse mundo físico também totalmente dependente de leis, ou tens aqui uma coisa que é contrafactual, modal, possibilidades alternativas. As coisas poderiam ter sido de uma forma alternativa tal, o Trump poderia não ter ganho as eleições, a Hillary poderia ter ganho as eleições. Mas
José Maria Pimentel
isso não implica livre-arbítrio, não é?
Sofia Miguens
Eu deito aqui duas... Apontei para duas questões completamente diferentes, o determinismo ou indeterminismo, tal como os físicos o discutem. E por outro lado a questão dos contrafactuais, da forma como nós pensamos sobre coisas, tal que as coisas poderiam ter sido de outra maneira, que pessoas diferentes consideram de formas diferentes entrarem no Parlamento Livre Arbítrio. Portanto, tu tens a nossa descrição fenomenológica informal. Ter livre arbítrio é fazer aquilo que eu quero, depender de mim aquilo que eu quero e pode perfeitamente ser que isto seja uma ilusão. Portanto, eu penso que faço aquilo que quero, mas o mundo é tal que, por exemplo, o mundo determinista, que é completamente ilusório, é apenas um reduto fenomenológico meu que eu tenha feito aquilo que quero, porque realmente aquilo que eu fiz foi absolutamente determinado. Ok, isto são os parâmetros e poderíamos fazer aqui intervir muito mais da discussão filosófica, ética, metafísica do livre-arbítrio, mas o Libet está a fazer outra coisa. O Libet é um neurocientista e aquilo que ele está a fazer é, como tu disseste, comparar duas coisas que desde logo interessa percebermos se são comparáveis. Tens sujeitos numa situação experimental e estás a medir aquilo que seria a iniciação cortical de uma ação de um sujeito cá fora no mundo. Portanto, se quiser, estás a mexer com o cérebro das pessoas e estás a pedir que as pessoas falem e apontem. São duas coisas conceptualmente completamente diferentes. Tens o relógio na frente das pessoas e pede-se que, quando lhe apetecer tomar uma decisão, ou quando lhe apetecer ter a intenção de apontar, desde logo este parâmetro, esta instrução é bastante curiosa, quando lhe apetecer apontar, então aponte e o ponteiro do relógio vai estar num determinado ponto, então tu medes no tempo real do mundo cá fora quando essa pessoa apontou e ao mesmo tempo no cérebro dessa pessoa estarias a medir potenciais elétricos e a iniciação da ação no cérebro dessa pessoa. E depois compararias, e ao comparar concluirias que a iniciação cortical da ação foi anterior ao comportamento linguístico voluntário da pessoa toda, da pessoa cá fora, e portanto essa pessoa não pode ter livre-arbítrio, porque aquilo que a pessoa faz acontece só depois daquilo que foi a iniciação da sua ação voluntária, controlada pelo seu cérebro. Bom, isso é o que o Libet pensa, que estas experiências refutam o livre-arbítrio, ou demonstram ou provam que nós não temos livre-arbítrio. O que é que nós podemos partilhar? Podemos todos ler as descrições das experiências, podemos todos ver o que é que esteve ali a ser feito no mundo. Só o facto de tu estares a comparar uma medida física, aquilo que se passa no teu cérebro com alguma coisa de linguístico, como eu, um dizer, apontei às 5h30. O primeiro ponto aqui é saber que comparabilidade há aí. Estás a falar de coisas completamente diferentes no mundo, portanto de fenómenos elétricos e de frases. E estás a considerar que há qualquer coisa como um tempo do mundo, que seria o tempo em que tu medes o instante T e depois o instante T' que dizes que o instante T é prévio ao instante T' e, portanto, a iniciação da ação é anterior àquilo que seria a suposta ação voluntária. Todos esses pontos têm que ser, desculpa a palavra, desconstruídos conceptualmente. Aí tu estás a entrar em jogo com aquilo que é para uma pessoa dizer alguma coisa, aquilo que… e todo o problema mente-corpo, a relação da tua mente, neste caso, a tua ação, decisão, intenção voluntária e o cérebro. Portanto, todo o problema mente-corpo está aqui em jogo.
José Maria Pimentel
Eu percebo isso. Atenção que eu acho que a experiência dele tem limitações, ou pelo menos a tese de que nós não temos livre-arbítrio, mas ainda assim, o ponto que está ali a provar-se, parecer-me é que é independente disso, embora sejam considerações que são relevantes depois para outros aspectos. Agora, independentemente disso, se o momento em que eu tenho consciência de uma decisão é posterior aos disparos... O que
Sofia Miguens
é que tu sequer estás a chamar decisão? Para haver decisão não tem que haver um eu, não tem que haver um tu do sujeito. Em que sentido é que tu estás a identificar, um tu enquanto sujeito, em que sentido é que tu estás a identificar o eu que decide com aqueles acontecimentos numa parte do teu cérebro? Aí é a parte em que, por exemplo, o Libet está a ser completamente antropomorfista a considerar que qualquer coisa como um vocabulário que holisticamente, desculpa a palavra, do ponto de vista global sobre o agente. Portanto, nós pensamos, falamos, decidimos e isso são coisas que pessoas, que são eles, fazem e isso aplica-se àquilo que nós globalmente, era isto que eu queria dizer com o Holístico, somos. Por exemplo, tu dirias que os teus neurónios falam? Tu dirias que os teus neurónios falam? Pela mesma razão, dirias que os teus neurónios decidem? Tu dirias que os teus neurónios falam português?
José Maria Pimentel
Não, mas diria que quando eu falo o substrato que existe é neuronal e não só.
Sofia Miguens
Mas isso ninguém está a negar. A questão é a questão da atribuição, chama-lhe a dúvida.
José Maria Pimentel
Mas isso seria a mesma coisa, quer dizer, eu digo que os meus músculos pegam aqui no microfone, ou que os meus tendões pegam, quer dizer, o que pega são os dedos, mas estão lá os tendões, quer dizer, é um todo no fundo, não é? As duas coisas estão ligadas uma à outra.
Sofia Miguens
Estás a exprimir muito bem o problemamento de corpo que temos estado a discutir, não é? O mistério é esse, não é? Tu és uma coisa muito espalhada no mundo e o ponto em que vais poder dizer que coisas são feitas ou pensamentos são pensados ou frases são ditas, talvez não tenhas uma espécie de localização espaço-temporal, que seria uma espécie de um centro, que seria um eu que tu podrias, por exemplo, ir procurar no teu cérebro para dizer isso. O que não quer dizer que não estejas a falar de uma forma completamente legítima acerca de ti própria quando dizes eu agarro o microfone ou eu digo apontei para o relógio às 5h30. A questão é se a decisão é qualquer coisa que é tua ou, por exemplo, é um acontecimento, aquilo que está a ser medido naqueles particulares neurónios. Chama a isto uma questão, uma das coisas a ser discutida na experiência de Libet é como é que nós aplicamos esse vocabulário acerca da decisão. Como é que nós aplicamos, por exemplo, o vocabulário alguém estar a dizer alguma coisa. Por exemplo, decidi apontar agora. Mas
José Maria Pimentel
sabes que é engraçado porque, embora eu não fosse por aí, mas é, mas isso é porque me falta, acabou isso conceptual para discutir a questão nesses termos, mas a minha intuição em relação à experiência dele e outras do género é que aquilo está de facto a provar alguma coisa, mas não prova que nós não tenhamos livre-arbítrio, mas não deixa de provar alguma coisa interessante. Primeiro o que é interessante ali, eu não sei se isto já te aconteceu, mas eu já tive experiências daquelas mesmo antes de ver o relato daquela experiência, e aliás é um exercício giro. Estava a pensar nisso por acaso nos últimos dias, porque iamos ter esta conversa, e não me consigo lembrar exatamente de com o que é que isso acontecia. Os melhores casos são os casos que têm que ver com vontades difíceis de controlar, Ou seja, imagina, estás a comer sobremesa e tens ali um bolo de chocolate ou uma coisa qualquer de género e estás naquela, vou ou não tirar mais uma fatia e estás com a faca suspensa. E estás absolutamente indeciso, isso já me aconteceu. E eu, nesse momento, eu tenho noção de que eu decidi antes de ter consciência da decisão. Quando eu me apercebo é uma fração de segundo e pode até ser uma ilusão no limite. Calha ir ao encontro desta experiência. No momento em que eu me apercebo já estou a cortar a fatia. São milésimos de segundo mas há ali um...
Sofia Miguens
E se tu dirias que tu, sejas tu o que fores, estás sempre atrasado em relação a ti próprio? Não,
José Maria Pimentel
eu não acho que esteja, ou seja, eu acho que no fundo há aqui se calhar algum, lá está, como é que tu dizias há bocadinho, uma desconstrução conceptual que é preciso fazer neste caso em que nós, quando nós falamos de livre-arbítrio ou quando nós falamos de consciência, ou quando nós falamos de nós, da nossa mente, estamos a falar de uma série de coisas ao mesmo tempo. Nós sabemos hoje em dia que a nossa mente tem, uma grande parte daquilo que a nossa consciência interpreta como ações nossas ocorrem ao nível do inconsciente e são de vários tipos. Tens ações, tens aquilo que nós poderíamos chamar mais vontades deste género, no sentido de comer coisas com açúcar, que nós sabemos obviamente que evoluímos para isso e portanto temos dificuldade a resistir-lhes, temos as chamadas heurísticas, os vieses cognitivos, temos até do ponto de vista mais psicodinâmico os traumas, ou não precisam de ser traumas, mas coisas que vêm do nosso passado e que influenciam a nossa maneira de agir sem que nós percebamos. E isso é evidente que existe. Aqui neste caso, por exemplo, deste tipo de experiências, é evidente que no momento em que nós estamos a agir, na grande parte das nossas decisões, tem um aspecto inconsciente grande. Agora, onde não me parece que seja possível dizer que nós não temos livre-arbítrio é quando nós falamos, por exemplo, de planear o futuro, por exemplo, de aquilo que tu lidias há bocadinho, de decidir não fazer. Essa
Sofia Miguens
é uma das razões porque nesta altura eu prefiro a filosofia da ação à filosofia da mente, porque aí parece-me que os problemas estão, por exemplo, esse problema do planeamento futuro e das questões da intenção e da decisão, que são os problemas que vale a pena pensar aqui, enquanto que o problema de livre-arbítrio seria um problema pseudo ao puro. Só se nós já tivermos feito uma questão de compromissos metafísicos prévios é que vamos gostar do problema formulado assim, senão teremos muitas coisas contra essa formulação. Portanto, seria uma formulação, ela é puríssima e muitíssimo atraente, só que talvez não seja uma boa formulação.
José Maria Pimentel
Sim, sim, eu tento concordar, sim.
Sofia Miguens
Um filósofo que não gosta do problema do livre-arquítrio foi um lado assim, o Daniel Dennett, que consideraria, ele tem um livro chamado Free Will Worth Wanting e ele diz que o que importa para nós é, por exemplo, liberdade política, liberdade de expressão, liberdade de escolha quando se trata de alternativas e, por exemplo, de decisão entre essas alternativas e isso não tem nenhuma relação direta com esta existência, com esta relação suposta do determinismo ou indeterminismo físico com as coisas que dependem de nós. Portanto, free will worth wanting Ele diria de caras, preocupa-te com a tua liberdade política, preocupa-te com a tua liberdade de expressão, porque repara que isto vai terminar por nos levar ao problema da liberdade em vez do problema do livre arbítrio, que talvez seja um problema político e ético da liberdade, que talvez seja uma melhor formulação daquilo de que estávamos aqui a andar atrás do que o problema de livre-arbítrio. Sim,
José Maria Pimentel
mas acho que até depende dele. Mas, por exemplo, agora estava a ouvir falar e estava a pensar, por exemplo, Imagina o caso, o exemplo que eu estava a dar há bocadinho, do bolo de chocolate, ou o que fosse. A pessoa que está com a faca suspensa sobre o bolo e que está a pensar corte, não corte, corte, não corte, não corte, não corte, não corte, não me custa acreditar que aquela decisão seja sobretudo uma decisão inconsciente. Ou seja, que no fundo a decisão, o momento, seja inconsciente. Agora, a pessoa que daqui a uns meses vai estar na mesma situação e a decisão que ela poderá tomar, mesmo que ela seja influenciada por uma série de fatores inconscientes, é determinada pelas escolhas que eu, ou tu, se fosses essa pessoa, venhamos a fazer no futuro. Em relação, por exemplo, à nossa relação com os doces, formos uma pessoa, por exemplo, com muita tendência para comer coisas com açúcar. Percebes aquilo a que eu estou a aludir, não é? Não,
Sofia Miguens
só percebo como estás a mover-te em terreno muito clássico da filosofia da ação. Estava a pensar, por exemplo, num livro do George Ainslie chamado Picoeconomics, a gestão, antes demais a gestão de recursos dentro dessa coisa que não é a partir da UNA que és tu, Zé
José Maria Pimentel
Maria. Exato.
Sofia Miguens
É uma questão prévia antes de comeares a falar de decisões, decisões minhas, decisões minhas conscientes, decisões inconscientes. Tens que saber o que é isso do decisor que tu estás a evocar aí. Tu podes, nós falamos assim, nós falamos decisores, mas ainda não... O que é que é isso? Tens aí uma espécie de centro de Zé Maria, que é um intencionador central.
José Maria Pimentel
Pois, não tenho, justamente.
Sofia Miguens
Tu reparaste, Repara, usaste a palavra decisão para falar de decisões conscientes, decisões inconscientes, e tudo o que tu disseste do ponto de vista descritivo, vamos reter isso tudo, mas depois o próprio uso da palavra decisão para decisões conscientes e inconscientes, isso está em discussão. Não,
José Maria Pimentel
as ecogêneas não são decisão, no fundo, ação.
Sofia Miguens
Pronto, estás a ver? Exatamente esse ponto. E depois falaste de outra coisa muito clássica da filosofia da ação que tem a ver com a forma como o teu eu é, em grande medida, constituído pelos compromissos com o meu futuro. Isso significa que isso que nós podemos dar como garantido um self não é, não só não é qualquer coisa de una a priori, mas qualquer coisa de alguma maneira gerada por um comprometimento em termos de ação, que aliás vai revelar uma relação ela própria, racional ou irracional, de ti com os teus eus futuros. E isso tudo provavelmente vai ter que entrar... Essas questões discutem-se quando se fala de acresia. Acresia é um termo do Aristóteles para falar de fraqueza da vontade. Tu ages contra o teu próprio melhor juízo. É uma coisa muito comum entre os humanos. Nós somos constantemente irracionais assim. Nós decidimos, o nosso melhor juízo diz-nos faz P e nós fazemos não P. Nós agimos intencional e conscientemente, constantemente, contra o nosso próprio melhor juízo. Agimos, não agimos? É uma espécie de toy problem que nos faz pôr todas estas questões que estávamos a discutir acerca de escolha, de intenção, de eu, de compromisso do eu consigo próprio ao longo do tempo. De novo temos aquilo que há bocado dizíamos quanto ao DNA Consciência, o espalhamento do que parecia um mega problema em pequenos problemas e tratar esses pequenos problemas talvez seja a forma mais produtiva de avançar aqui, termos a certeza que sabemos o que é decidir ou o que é ser
José Maria Pimentel
eu. Boa, olha, Sofia, falámos aqui de uma série de coisas interessantes, pelo menos para mim foi muito giro, também muito desafiante, porque houve aqui várias coisas em relação às quais fiquei a pensar. Antes de avançarmos para o livro, não sei se há alguma coisa que quisesse dizer que não tínhamos falado ou que eu não tenha perguntado.
Sofia Miguens
Não, eu tinha pensado de falar de coisas muito diferentes. Quando tu me falaste de filosofia analítica continental, eu tinha pensado falar de método, da forma como em última análise se faz. Não falamos, por exemplo, do que é que é isso que nós chamamos de fazer filosofia, quais são os materiais, mas acabamos por falar disso na prática, que é as nossas formas de falar, as nossas práticas conceptuais e a forma como nós nos voltamos como analistas sobre essas práticas conceptuais.
José Maria Pimentel
Desculpa, olha, eu levei a conversa para outros terrenos.
Sofia Miguens
Foi ótimo assim.
José Maria Pimentel
Boa. Olha, queres recomendar o livro?
Sofia Miguens
Ok. Entretanto, apareceram-me dois livros diferentes, como supostamente... Eu tinha de falar do Stanley Cavell, do Claymore Wilson. Sim. Por ser um filósofo analítico não... Ou pelo menos um filósofo de língua inglesa bastante distante de uma certa imagem comum da filosofia analítica como afastada, por exemplo, da arte ou da literatura. E ao mesmo tempo é um livro sobre racionalidade e sobre a racionalidade enquanto claim, enquanto pretensão de verdade, sinceridade, socialidade, portanto, sobre a forma como as questões normativas aparecem dentro das nossas práticas linguísticas, das nossas práticas conceptuais. Esse livro de Stanley Cavell, porque Stanley Cavell não tem sido muito estudado cá em Portugal, seria uma espécie de anti-imagem de uma imagem dada uma filosofia analítica. Entretanto, aqui apareceu o livro do Nozick, Nature of Rationality, natureza da racionalidade. Pelos vistos são dois livros sobre Reason e Rationality, portanto, parece que esse é um problema que, além de ser um problema de filosofia da mente, como tu querias, porque é um problema que se liga com a consciência, com a ação, com a personalidade, representação, mas transcende a filosofia da mente, porque as questões da racionalidade, num instante, nos levam à ética, à política, à metafísica. Aliás,
José Maria Pimentel
o nózico já foi falado no podcast, mas a propósito de política, de outros temas.
Sofia Miguens
Pois, mas é um nózico muito diferente. Vamos considerar que esse nózico da anarquia-estado-utopia, claro que há conexões, mas este é o nózico da teoria da racionalidade. São dois filósofos de Harvard e nem toda a filosofia analítica vem dos mesmos lados. Nós não temos que pensar que só a filosofia analítica, por exemplo, em Oxford, também há filosofia analítica em Paris, ou em Chicago, ou em Harvard. Por isso, são dois filósofos analíticos que não têm muito em comum com a filosofia analítica que tem sido mais estudada cá em Portugal mais recentemente. Espero que alguém venha a desmentir isto.
José Maria Pimentel
Deixem-me lembrar-vos que podem dar o vosso contributo para a continuidade e desenvolvimento deste projeto. Visitem o site 45graus.parafuso.net barra Apoiar para ver como podem contribuir para o 45 Graus, através do Patreon ou diretamente, bem como os vários benefícios associados a cada modalidade de apoio. Se não puderem apoiar financeiramente, podem sempre contribuir para a continuidade do 45 Graus, avaliando-o nas principais plataformas de podcasts e divulgando-o entre amigos e familiares. O 45 Graus é um projeto tornado possível pela comunidade de mecenas que o apoia e cujos nomes encontram na descrição deste episódio. Agradeço em particular a Carlos Martins, Gustavo Pimenta, Eduardo Correia de Matos, Duarte Dória, Joana Monteiro, Rui Oliveira Gomes, Corto Lemos, Joana Farialve, João Baltazar, Mafalda Lopes da Costa, Rogério Jorge, Salvador Cunha e Tiago Leite. Até ao próximo episódio.