#82 Mónica Bettencourt Dias - A importância da investigação fundamental e o que ela nos tem...

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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45°. Neste episódio, a convidada é Mónica Betancourt Dias, uma das investigadoras portuguesas mais reconhecidas na área da bioquímica e da Biologia Celular. A convidada coordena um grupo de investigação no Instituto Kubencki de Ciência, onde é também, desde 2018, diretora científica. Durante esta conversa, tentei explorar as várias peles da convidada. A de investigadora, claro, mas também a de comunicadora de ciência, até porque a Mónica tem também um diploma justamente em comunicação de ciência, e a, pela mais recente, a diretora do IGC, um trabalho que implica a gestão de toda a investigação naquele que é um centro de investigação de relevância global. Começamos por falar da importância que tem a investigação de base ou fundamental e que é precisamente aquela a que o IGC se dedica. Este é aquele tipo de investigação que não tem por objetivo gerar descobertas com aplicações práticas diretas, mas que é movida apenas pela curiosidade do investigador em torno de questões que possam trazer à tona novos princípios da ciência. Para terem uma ideia do que isso significa, no IGC a convidada coordena um grupo que se dedica a investigar a chamada regulação do ciclo celular, um processo aparentemente muito básico das células do nosso corpo, mas que é fundamental que corra bem, porque não só é o que permite ao nosso corpo crescer e formar e fazer funcionar os nossos órgãos, como é precisamente aquilo que entra em descontrolo em muitas doenças conhecidas. E o que é esse ciclo celular? Ora bem, é o conjunto de fases por que uma célula passa durante o processo em que uma célula se duplica para dar origem a duas células novas. Este ciclo é então regulado na célula por vários agentes, sobretudo proteínas, que controlam o timing das várias fases desse ciclo e asseguram que não há erros ou perdas de informação nesse processo. Esses mecanismos são muito importantes, Porque se uma célula se começar a dividir de forma descontrolada, pode, por exemplo, dar origem a células cancerosas. Aliás, se ouvir o episódio 76 com o Miguel Coelho, falámos precisamente sobre um conjunto de genes que codificam algumas das principais proteínas envolvidas na regulação do ciclo celular. Para além deste tema da importância da investigação fundamental e também da investigação interdisciplinar, falámos sobre os desafios para um cientista em fazer divulgação de ciência de um modo que seja simples, mas não simplista. E falámos também sobre o papel que devem ter os cientistas na sociedade civil. Finalmente, como não poderia deixar de ser, tentei perceber um pouco melhor a investigação da convidada, que incide sobre o tal processo de regulação do ciclo celular. Mais especificamente, grande parte da investigação da Mónica debruça-se sobre alguns organelos com um nome esquisito. Organelos já agora são umas estruturas da célula que estão mais ou menos para a célula como os nossos órgãos estão para o nosso corpo. Daí o nome. Um desses organelos que a convidada mais tem investigado são os centríolos, que por sua vez podem formar, dependendo da fase em que está o ciclo da célula, outros dois organelos, os cílios, que funcionam como antenas em vários tipos de células, e os centrossomas, que têm um papel crucial no dito processo de divisão e duplicação das células. É por isso que os centrossomas são suspeitos de estarem associados a algumas doenças complexas, como por exemplo o inevitável cancro. Isto porque normalmente existem dois centrossomas em cada célula. Mas células cancerosas têm muitas vezes mais, e às vezes muitos mais. Uma das frentes de investigação da COVIDADA tenta então perceber porque é que isso acontece. Será que foi o aumento do número de centrossomas que causou o câncer ou pelo contrário é o câncer que desregula a célula e leva à produção de centrossomas a mais? E que novos tratamentos podem surgir destas conclusões? Ouçam este episódio para saber a resposta. Mónica, muito bem-vinda ao podcast. Obrigada. Eu gostava de começar por falar da investigação que tu fazes e que o Instituto Guggenheim de Ciência faz também, que pode ser descrita como uma investigação fundamental, uma investigação básica, e aqui o básico não tem a ver com
Mónica Bettencourt Dias
ser... Não, é melhor a palavra fundamental.
José Maria Pimentel
Tem a ver com ser, no fundo, por oposto, a investigação aplicada. No fundo, não é a investigação aplicada, será a investigação que está a resolver um problema, à procura de uma solução para um problema, enquanto a investigação fundamental resulta da nossa curiosidade. É interessante porque é um bocadinho a abordagem que eu tenho aqui no podcast também, não é que é ir atrás da minha curiosidade. Eu com a esperança e no caso da investigação com a certeza de que à boleia dessa curiosidade tu vais chegar no fundo a uma série de descobertas que não encontrarias de outra forma. E eu já te ouvi dizer isso, mas faço-te a pergunta agora que estamos a gravar. Já te ouvi dizer que há uma grande parte dos resultados em ciência, não é que resultados que no fundo nos permitem compreender e através disso chegar a progresso, se quiseres no sentido de lado, que vem não da investigação aplicada, mas sim da investigação fundamental, que no fundo, por o meu, nos permite, à boleia dessa curiosidade, descobrir coisas que são soluções que não nos ocorreriam se nós só tivéssemos à procura de... Focados na solução para aquele problema.
Mónica Bettencourt Dias
Sim, na realidade nós sabemos hoje em dia, que já foram vários estudos feitos a esse nível, que 8 em 10 dos fármacos que nós utilizamos na medicina normal surgiram dessa curiosidade dos cientistas de não portarem à procura de uma solução concreta. O que acontece é que eu acho que a distinção entre a investigação fundamental e aplicada hoje em dia, se calhar é uma distinção que já está muito mais esbatida. Em parte porque facilmente uma pessoa que está a fazer investigação cuja motivação é a curiosidade, como tu estavas a dizer, é o querer perceber melhor, é o conhecimento, perceber o que é que se passa com o nosso corpo, com o ambiente por aí fora, mas facilmente quando está a fazer essa pergunta pode de repente ver uma aplicação para resolver um problema que existe relacionado com aquela pergunta. Portanto é muito fácil, muito mais fácil do que no passado. Por isso acho que está mais batido e se calhar já é mais difícil falarmos, ah isto é muito diferente, a investigação fundamental da investigação aplicada. Se algo que existe é investigação muito boa, é investigação menos
José Maria Pimentel
boa. Mas essa é outra pergunta, pegando o exemplo da investigação fundamental, que no fundo tem uma relação depois com as soluções que não é direta, como é que tu ainda assim consegues assegurar qualidade?
Mónica Bettencourt Dias
Da investigação fundamental. Porque é
José Maria Pimentel
muito mais difícil, não é?
Mónica Bettencourt Dias
Não, é uma pergunta gira, o que tu estás a fazer, porque tu estás a assumir que qualidade tem a ver com o impacto imediato.
José Maria Pimentel
Não, como ela não tem um impacto imediato é difícil. Não tem impacto
Mónica Bettencourt Dias
imediato, sim.
José Maria Pimentel
Mas também não podes não ter métricas, presumo eu. Não,
Mónica Bettencourt Dias
as métricas que tu tens é no fundo, que é uma pergunta ótima, e no fundo tem a ver com a maneira como nós fazemos ciência e as nossas métricas, no fundo nós fazemos perguntas à realidade que nos rodeia e temos hipóteses relacionadas com essa realidade que nos rodeia e depois testamos essas hipóteses, ok? E no fundo nós tentamos mostrar, a maneira de testar é mostrar que a nossa hipótese está errada. E se nós não conseguimos de maneira nenhuma mostrar que a hipótese está errada, é bem provável que a hipótese esteja correta. E depois o que acontece é que muitos outros cientistas olham para aquilo que nós fizemos e questionam também aquilo que nós fizemos para ver se eles acham que na realidade é diferente, que nós achávamos que o Sol andava à volta da Terra, mas afinal é a Terra que anda à volta do Sol. E, portanto, é esta troca de ideias entre vários cientistas que nos pode dizer se estamos mais perto da realidade ou não e a qualidade dessa ciência. Porque muitas vezes há coisas que são descobertas que são feitas ou que se pensa que são feitas mas que a evidência é baixa. Se calhar a evidência que a vacinação pode causar o autismo, os números não são tão altos quanto isso, não é? E, portanto, de números baixos, nós podemos concluir coisas de números baixos, mas essas coisas poderão mesmo não estar certas, porque quando tivemos uma amostra maior pode-se mostrar que estamos errados, não é? Portanto, eu acho que é das questões mais importantes da ciência, a maneira como ela é feita e como a ciência tenta validar o conhecimento que é produzido em ciência e que é dessa forma, é tentando mostrar que estamos errados e não conseguindo de maneira nenhuma mostrar que estamos errados, então provavelmente estamos no caminho certo.
José Maria Pimentel
Há uma pergunta mais ou menos relacionada com esta, eu estou aqui a puxar um bocado a brasa à minha sardinha, faz a expressão, porque tem que ver também com outra das coisas que eu tento fazer aqui no podcast é a questão da interdisciplinaridade, ou seja, cruzar abordagens ou insights de áreas diferentes. E isso é uma das coisas que se calhar não há muitos incentivos para o fazer em ciência, que a ciência, todas as ciências, as ciências sociais é a mesma coisa, e muitas vezes pode até dar origem a investigações que vistas de fora são um bocadinho párvores. Até há um exemplo, agora não me ocorre o nome, mas há um tipo que foi prémio Nobel, salvo erro em medicina, não tenho a certeza, que tinha ganho uns anos antes aquele prémio do Ig Nobel da Harvard, se sabe o erro, porque tinha uma investigação aparentemente bizarra e de natureza mais ou menos interdisciplinar, mas na verdade a reboque daquela investigação aparentemente bizarra ele depois, lá está, chegou a resultados que tiveram um impacto real e benéfico, o suficiente para ele ter ganho o Nobel. E aí, nesse caso, eu presumo que seja difícil para quem está a fazer a investigação decidir o que é que são hipóteses que vale a pena estudar e hipóteses que não fazem sentido ou que nos parecem pouco importantes. Até porque tu tens sempre um
Mónica Bettencourt Dias
trade-off, tens sempre recursos limitados. Tu não podes investigar tudo. Claro, isso no fundo é a decisão das perguntas em que nos focamos, é a decisão mais importante do investigador e temos sempre dúvidas se esta é a pergunta mais importante e se esta é a hipótese mais importante em que nos devemos focar ou não. Isso faz parte do nosso dia a dia, mas eu acho que aqui, no fundo, o que para mim é importante é a ambição da pergunta que a pessoa põe e pensar o que é que é a grande pergunta, qual é aquela pergunta que realmente se conseguimos descobrir muda a maneira como nós percebemos o nosso corpo, como percebemos o mundo nos rodeia e portanto a ambição da pergunta e a ambição de não ter medo das abordagens que se tem que fazer para responder essa pergunta, acho que é a coisa mais importante e que define também a qualidade dessa ciência. É a pessoa não ter medo de arriscar.
José Maria Pimentel
Sim. O que eu estou tentando perceber é que critérios é que existem, ou se calhar não existem, critérios desses escritos na pedra, para avaliar, para lá do get feeling da pessoa quais são as perguntas que vale a pena perseguir e aquelas que não digo que não valham de toda pena mas nesse trade-off ficam atrás das outras.
Mónica Bettencourt Dias
As perguntas que vale a pena seguir, em geral, são perguntas que tu discutes essa pergunta e as pessoas à tua volta dizem que coisa tão gira ou olham para ti e pensam e dizem pá tu és mesmo doido, isso não faz sentido nenhum, mas realmente há aí qualquer coisa. Nunca
José Maria Pimentel
tinha pensado nisso. E
Mónica Bettencourt Dias
tu pensas, bom, se calhar é mesmo uma perspectiva completamente diferente e vale a pena e aí é que tu podes pensar, pode ser completa, o risco é muito grande, porque a maior parte destas pessoas acham que eu sou completamente doido, mas também não conseguem dizer logo porque é que isto não vale a pena, percebes? E então aí é o teu risco, é tu decidires que vale a pena atirares-te para a frente ou não. Podes-te atirar para a frente e descobrir realmente uma coisa muito grande, prémio Nobel, ou podes falhar completamente e estavas redondamente errado.
José Maria Pimentel
E deve ser angustiante, não é?
Mónica Bettencourt Dias
E é angustiante, mas eu, por mim, acho que vale mais a pena arriscar e no fundo responder a perguntas que sejam verdadeiramente grandes e que tenham potencial para mudar a maneira como nós vemos o mundo, do que estarmos a focar numa coisa pequena que quase que já sabemos a resposta, que não vai mudar nada, não é? No fundo vai só quase confirmar algo que já sabemos. Eu acho que quando a pergunta é grande, a pergunta é grande. E qualquer pessoa sabe. Uau! No
José Maria Pimentel
fundo essa reação que tu descreveste, seja ela de entusiasmo ou de estranheza, mostra que nunca ninguém tinha pensado naquilo. Ou que a resposta não é evidente.
Mónica Bettencourt Dias
Mas em relação também à questão da investigação fundamental versus aplicada e a questão de que a investigação fundamental, além da questão dos fármacos que eu estava a dizer, que 80% das fármacos surgiram da investigação fundamental ou feita através da curiosidade da pessoa, também é importante perceber porque é que isso é assim, não é? Porque no fundo o que acontece muitas vezes é quando tu estás já à procura de uma resposta e estás com um problema muito específico e tens uma solução muito concreta, podes estar completamente errado e não chegas lá. Enquanto se tiveres uma abordagem completamente não focada só naquilo, às vezes consegues chegar lá para um caminho muito diferente. E um bom exemplo é, por exemplo, quando tu às vezes chegas a casa e de repente perdeste as chaves, e tu vais sempre procurar ao mesmo sítio, procurar ao mesmo sítio e não encontras a chave porque só estás a procurar naquele sítio enquanto se calhar outra pessoa que chega ali não está condicionado para procurar àquele sítio e vai fazer uma outra abordagem, procurar em outro sítio as tuas chaves e encontra-te as chaves Exato Portanto é uma visão diferente do problema e a visão diferente muitas vezes é trazida pela curiosidade das pessoas em olhar por outras coisas e que de repente descobrem qualquer coisa que tem uma solução para um problema completamente diferente.
José Maria Pimentel
E tu não fazendo isso já mais traz esses ingredientes que depois te permitem chegar a uma solução diferente.
Mónica Bettencourt Dias
Exatamente, por isso é que eu acho que é muito importante instituições como o IGC, que no fundo é financiado em parte por uma fundação, que é a Fundação Carlos de Globinken, que no fundo tem a responsabilidade perante a sociedade de fazer isto, que é no fundo produzir um novo conhecimento que depois pode gerar todas essas soluções no futuro. Porque se calhar é mais fácil às vezes para uma empresa ou às vezes até para os governos financiarem aquilo, não deveria ser, mas financiarem aquilo que é mais óbvio. E aquilo que é mais fácil de vender à sociedade. E como há uma responsabilidade para as gerações futuras e até para os presentes de realmente perseguir o conhecimento para podermos gerar as soluções do futuro, nós achamos que devemos mesmo estar a fazer.
José Maria Pimentel
Claro, claro. E há uma questão até mais vasta, que está relacionada com aquilo que falávamos há bocadinho, do ponto de vista das políticas públicas, que é tu financiares a investigação fundamental, que até que eu concordo, que é aquilo que faz sentido que o Estado, sobretudo o Estado, e idealmente também as fundações, façam, mas de maneira a assegurar que ela é feita com o máximo de rigor. Que, presumo, seja muito difícil, porque como o resultado é indireto, tu não podes ter métricas diretas. Não,
Mónica Bettencourt Dias
mas tu tens a métrica da qualidade, isso não é mesmo um problema, porque tens sempre a métrica da qualidade da ciência. Nunca podes medir o impacto imediato, mas podes medir se a ciência é boa ou não é boa e se a ciência está bem feita ou não. Portanto, a qualidade não é um problema aqui. Nós conseguimos medir a qualidade da ciência. O impacto é uma coisa muito mais difícil de medir, porque o impacto pode ser uma coisa a longo prazo. Há o impacto de produzir o conhecimento, de ter novos cientistas que são treinados por aí fora, mas a qualidade da ciência é uma coisa que nós conseguimos avaliar. Portanto, isso não é de maneira nenhuma um problema.
José Maria Pimentel
Mas avaliá-la como?
Mónica Bettencourt Dias
Entre os vários cientistas nós conseguimos avaliar a qualidade da ciência no sentido que esta ciência está bem feita, ou seja, esta é a melhor estratégia para responder àquela pergunta.
José Maria Pimentel
E terá que ver também com, por exemplo, o impacto que essa investigação tem em termos da comunidade de investigação a nível
Mónica Bettencourt Dias
global. Sim, mas eu acho que se calhar o exemplo mais fácil é a questão dos números e da estatística, não é? Quando tu queres estudar uma doença, ou até o caso que eu estava a dizer de haver toda esta polémica à volta das vacinas e o que a vacinação pode fazer ou não do autismo, é muito importante nós sabermos que a investigação, quando se faz essa investigação, tu tens a estatística necessária, tens os números que precisas para chegar a essa conclusão. Porque se tens um número muito baixo e não está a fazer a estatística certa, porque o que queres é mostrar aquilo, não é? Está errado, não é? Portanto, no fundo, tu estás a dizer que com este número pequeno eu estou a concluir qualquer coisa e isto provoca aquilo. E está errado, porque não há, os números não nos dizem isso. Portanto, aí está um caso de ciência mal feita e isso é fácil de julgar, porque tens pessoas que sabem matemática e estatística para ir fora que olham para aqueles números e dizem isto está mal feito. Eu com estes números aqui não posso dizer que há provoca B e portanto podem dizer se você quiser continuar a estudar isto tem que estudar mais não sei quantos casos para poder validar essa hipótese. Aí
José Maria Pimentel
estás a falar de um problema fechado que tem a ver com a investigação ser bem ou mal feita. Sim. Mas isso é qualidade. Claro, claro, exatamente. Mas é uma coisa é se eu sou ferreiro, há falta de melhor expressão, e faço uma ferramenta qualquer. Uma coisa é se ela está bem feita ou não está. Se o metal foi bem trabalhado ou mal trabalhado. Outra questão é perceber se ela vai servir para alguma coisa. Mesmo que seja indireto, tu tens um problema de alocação de recursos. Tu não podes alocar os recursos a toda a investigação. Tens sempre que... Claro. Estás a perceber?
Mónica Bettencourt Dias
Eu percebo perfeitamente, mas isso depende do que é que tu estás a avaliar. Se tu queres alocar os recursos à investigação por causa de essa peça que tu estavas a fazer funciona ou não funciona, ou seja, o impacto, ou se tu queres alocar os recursos e podes ter os dois modelos, de acordo com a qualidade da investigação. Infelizmente não é qualquer pessoa que faz investigação de boa qualidade, pode ser porque as pessoas não foram bem treinadas ou porque não têm os instrumentos para fazer a investigação bem feita. E portanto, o que tu queres garantir quando tens dinheiro para dar à investigação, é que essa investigação, para aquela pergunta, aquela estratégia de responder, é a melhor estratégia possível. Pode haver outra estratégia, mas aquela é que mais diretamente vai dar uma resposta àquela questão. É das questões mais importantes em ciência neste momento e mesmo na cabeça de governantes e mesmo na União Europeia que é a questão de medir o impacto da ciência. Como é que nós medimos o impacto, porque sem dúvida, como tu dizes, há recursos limitados. Portanto, como é que nós garantimos que aquilo que investimos é um bom investimento? E não é fácil quando estamos só a falar de conhecimento.
José Maria Pimentel
Claro, não é nada fácil.
Mónica Bettencourt Dias
Aliás, ainda hoje estava a discutir com alguém aqui do IGC que nós temos cada vez mais pensar nisto porque nós temos que sugerir aos governos, à União Europeia por aí fora, como é que isto pode ser bem feito e eu acho que nós, instituições de ciência, também temos que pensar nisso.
José Maria Pimentel
Claro, e há uma coisa que eu olhei há bocadinho e gostava também de saber a tua visão em relação a isso, que tem a ver com aquela questão da especialização e que se aplica a ciência nesta área, mas na verdade aplica-se a todo o tipo de investigação, mesmo no caso das ciências sociais, em que hoje em dia há uma crítica que é feita muitas vezes de que o percurso das pessoas está cada vez mais feito para ser de especialização cada vez maior, que ficas cada vez mais especializada num determinado tema e no fundo acaba por produzir uma coisa não muito diferente ao teu exemplo das chaves há bocadinho de casa, que é a pessoa está tão focada naquele micro tema que falham-lhe insights que podiam ver se tivesse acesso e eu sei que o IGC é muito primo pela interdisciplinaridade também,
Mónica Bettencourt Dias
portanto também era por isso que te queria perguntar isso. Tu partilhas dessa crítica? Sim, recentemente estava à procura de exemplos para discutir ou metáforas e há uma lenda antiga que acho que é dandia sobre os seis homens cegos e o elefante. Tu tens seis homens cegos e está um elefante. E portanto a questão que tu pões a todos aqueles homens cegos que estão ali é o que é que está à frente deles. E há um que toca na tromba, outro que toca na pata, outro que toca na cauda, por aí fora. Cada um deles individualmente não faz a mesma ideia que está ali um elefante, mas quando eles falam uns entre os outros e dizem ah eu toquei numa coisa que parecia, se calhar era uma pata, e o outro diz, apai, era uma coisa comprida, úmida na ponta, se calhar era uma tromba, por aí fora, e no fim em conjunto descobrem que é um elefante, ok? Portanto, é a ideia de que tu precisas de diferentes perspectivas para descobrir a realidade e nós partilhamos dessa ideia, que no fundo a ciência avança muito mais rapidamente se tu tiveres pessoas com diferentes perspectivas a trabalharem juntos e daí o IGC ser uma instituição bastante interdisciplinar e queremos ainda ser mais.
José Maria Pimentel
Mas é mais interdisciplinar do que a norma numa investigação de ciência nesta área? Ou seja, por outras palavras, essa é uma tendência a nível mundial ou faz parte do ADN, aqui por analogia, do IGC? Não,
Mónica Bettencourt Dias
faz parte do ADN do IGC mas é cada vez mais o caminho que a ciência está a percorrer e as pessoas sabem que a ciência está a ficar especializada e nós precisamos de pessoas com diferentes valências para colaborarem e chegarem às soluções das diferentes
José Maria Pimentel
questões. Atenção, já agora só para fazer aqui o contexto, o que acontece em muitas áreas e presumo que nestas áreas também, é que não é por acaso que as pessoas são levadas a serem monodisciplinares, é porque se tu fizeres muita investigação na mesma área, vais tendo cada vez mais papers, mais leads, com mais influência, o teu nome naquela área vai ganhando peso, enquanto que se tu andares a dividir-te entre duas ou três áreas, no fundo não crias impacto em nenhuma dessas áreas, no fundo o problema é esse. Ou seja, a nível global, que eu saiba, o sistema não tem mudado muito recentemente, ou seja, a arquitetura do sistema de investigação a nível mundial, continua a dar todos os iniciativos para a pessoa ser monodisciplinar. Concordo completamente. Ao nível do indivíduo,
Mónica Bettencourt Dias
porque se for monodisciplinar, pelo menos inicialmente, é mais fácil responder às perguntas e focar-se em determinada área e saber mais dessa área e ser melhor sucedido. A nível da instituição também porque no fundo se tu tiveres várias pessoas que trabalham na mesma área pelo menos inicialmente as pessoas dão massa crítica e ajudam-se umas às outras naquela área em especial. Mas isso tem a ver com a história da resolução de problemas mais específicos, quando tu queres responder a perguntas realmente grandes, que são difíceis de responder, aí é mesmo bom ter pessoas que pensam de diferentes maneiras.
José Maria Pimentel
Ok, sim, isso faz sentido. E
Mónica Bettencourt Dias
que é aquilo que nós queremos fazer no IGC e que estamos a fazer. No entanto, tu tens uma desvantagem que é também, quando tu trabalhas numa área mais interdisciplinar, estás a desbravar terreno novo e é muito mais difícil quando tu estás a comunicar, tu estás entre duas áreas diferentes, por exemplo, entre a biologia e a física ou mesmo no meu caso já me aconteceu entre a biologia e a medicina e tu tens aquela história que está no maio entre as duas. Quando vais falar para os biólogos, os biólogos pensam que querem mais do lado da biologia, quando vais falar aos médicos eles querem mais do lado da medicina e às vezes não apreciam que a riqueza está ali na interface. Portanto, é muito mais difícil às vezes para as pessoas que estão nestas áreas serem apreciadas logo. O que acontece é que são apreciadas daqui a não sei quanto tempo. Quando naquela área já há mais pessoas a trabalharem ali e apreciam o valor daí. Mas nós estamos a trabalhar para o futuro. É um
José Maria Pimentel
bocado essa a ideia. O que acontece, aqui O esquema é um bocadinho diferente, mas nas universidades, por exemplo, o que acontece muitas vezes é que as pessoas que fazem investigação interdisciplinar fazem numa fase avançada da carreira quando já têm a posição assegurada e podem se dar ao luxo de fazer isso. Antes disso tu tens todas as iniciativas que foram a fazer e depois tens essa questão que estavas a ouvir que faz sentido, não seres no fundo apreciada, no fundo tens o pior dos mundos, estás entre... E
Mónica Bettencourt Dias
há uma discussão enorme a nível da avaliação desse tipo de investigação. Pois, exato. O Conselho Europeu de Investigação que tem bolsas bastante prestigiadas até tinham um painel antes, eu acho que chegavam a ter um painel dedicado à interdisciplinariedade. Agora a pessoa acaba por ter as bolsas avaliadas por painéis diferentes, mas não é claro que seja a melhor estratégia.
José Maria Pimentel
E aqui em Portugal, falando aqui da investigação, especificamente em Portugal, uma coisa que eu tenho ideia, quer dizer, já ouvi dizer isso informalmente, mas gostava de saber a tua opinião, é que se faz-se muito boa a investigação fundamental em Portugal, e não é só no IGCE, em outros organismos, mas que depois há dificuldade em atrair, por exemplo, investimento em biotecnologia da forma que é possível fazer nos Estados Unidos, países como a Alemanha ou o Reino Unido, mas mais no centro da Europa. Vocês sentem essa dificuldade?
Mónica Bettencourt Dias
O investimento que estás a falar? Estás a falar de biotecnologia? Estás a falar de um investimento para fazer investigação?
José Maria Pimentel
Não, não, depois. Para usar as conclusões, no fundo, dessa investigação para fazer...
Mónica Bettencourt Dias
A translação, a tradução da investigação. Sim, sim. Essa área é uma área que está menos desenvolvida em Portugal, mas que eu agora acho que está a começar a levantar vôo, porque tu no fundo precisas de começar a criar uma massa crítica de ciência que é excelente para dessa ciência começarem a sair ideias para formar empresas e explorar essa ciência. Sim. Portanto, acho que é um caminho que já foi percorrido noutros sítios e Portugal está a percorrê-lo agora e já começam a surgir algumas empresas de ideias de diferentes sítios, pois o que é difícil mais à frente, é como tu estavas a dizer, é alavancar fundos suficientes para explorar essas ideias, levar as ideias ao mercado, levar as ideias aos hospitais, por aí fora. E essa é uma área que mesmo a nível da Europa é mais complicada do que por exemplo nos Estados Unidos. Agora a União Europeia tem o novo Conselho Europeu da Inovação cuja ideia é também promover essa área. No último concurso tiveram já algumas empresas portuguesas e em que eles podem financiar também essa aplicação.
José Maria Pimentel
Mas porquê é que é mais difícil na Europa do que nos Estados Unidos?
Mónica Bettencourt Dias
O que eu conheço é, por exemplo, a Alemanha, em comparação com os Estados Unidos, conheço pessoas que tentaram criar as empresas na Alemanha e acabaram por ir para os Estados Unidos e alavancar mais financiamento nos Estados Unidos do que na Alemanha, porque não há tanta tradição desse tipo de biotecnologia.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. Fico curioso em relação a isso. Deixa-me fazer aqui uma curva para apontar um bocadinho diferente que é a questão da comunicação de ciências e tu tens experiência nessa área, tens um curso de comunicação de ciências, portanto não são todos os cientistas que podem dizer isso. E há uma coisa que já pensei várias vezes a propósito de comunicar ciência e presumo que seja uma dificuldade com que já te tenhas deparado. Quando tu tentas explicar alguma coisa, uma coisa, por exemplo, da tua área de investigação que é estado de fora, nós tendemos sempre a recorrer a analogias, como de resto já fizemos várias vezes na Testa de Converso, que tem a ver com a maneira de funcionar do nosso cérebro, não é? E o que é interessante das analogias é que as analogias tanto facilitam como retiram a informação, não é? No fundo, ou seja, tu estás a facilitar a passagem de informação através da analogia mas estás a diminuir a resolução quando não a eliminar bocados fundamentais dessa resolução. Qual é a tua visão em relação a isso? Porque eu suponho que isso seja um dilema muito difícil porque às vezes há analogias que por um lado permitem tu explicares muito facilmente, dizes, isto é como X, mas pode induzir em erro porque a pessoa não está a perceber. No fundo o perigo é que a pessoa fica a achar, sei lá, por exemplo, o genome é comparado a um monte de coisas. Um deles era uma planta arquitetónica e alguém dizia...
Mónica Bettencourt Dias
Ou livro... Exatamente,
José Maria Pimentel
ou livro de instituições. E alguém dizia, Eu até achei esse comentário interessante, mas no fundo é outra analogia ainda, mas se calhar menos imperfeita, que dizia que na verdade não é bem, é mais como uma receita de um bolo ou de uma coisa de qualquer tipo, no sentido em que enquanto se tu numa planta de uma casa retiras do piso superior, a casa continua a existir sem o piso superior, se retirar-se ao inferior não, mas numa receita se tu alterares o nível de açúcar de um bolo por exemplo, ou um nível, se calhar mais relevante, um nível de farinha, provavelmente tu vais acabar sem um bolo, não é? Da mesma forma que se o retirares de uma parte do genoma tu não vais acabar com um semi-ser humano, vais acabar sem ser humano nenhum, não é? Aí nesse caso seria uma analogia melhor, mas ainda assim provavelmente limitada.
Mónica Bettencourt Dias
Sim, até porque um bolo sem açúcar, tu continuas a ter um bolo, não
José Maria Pimentel
é? Não tem açúcar. Mas sem farinha, por exemplo, já fica mais estranho.
Mónica Bettencourt Dias
Sim, mas sim, acho que isso é um problema que eu tenho, porque acho que as analogias são muito importantes realmente e gosto de arranjar analogias porque é giro, é um desafio engraçado para quem gosta de comunicação de ciência, mas concordo completamente contigo. Mas mesmo assim isso não é um problema só da comunicação de ciência para não-cientistas, é também um problema da comunicação de ciência para cientistas, porque nós tendemos, por exemplo, a fazer modelos daquilo que estamos a pensar e desenharmos os modelos, ok? E ao desenharmos os modelos, acabamos por estar a fazer uma imagem muito concreta daquilo que estamos a pensar, para a qual normalmente não temos a informação toda. E portanto esses modelos podem passar uma imagem que não é aquela que é na realidade, porque parte dela ainda não sabemos o que ela é. Portanto, sem dúvida que os modelos são muito bons porque te dão uma hipótese e depois permite trabalhar sobre essa hipótese e dão-te uma maneira de perceber as coisas, mas podem ser limitantes porque te levam para um lado que pode não ser o lado correto.
José Maria Pimentel
Sim. É que nós só funcionamos assim, mesmo na tua área. Há quem diga que mesmo os matemáticos mais abstratos, eles próprios constituíram no cérebro deles uma espécie de meta-analogias, mas estão a funcionar como modelos concretos, porque a nossa apreensão depende dos nossos sentidos, portanto, no fundo, essa abstração nunca é perfeita em nós. Por isso é que nós temos uma enorme dificuldade em perceber o muito pequeno e o muito grande. Não percebemos, por muito que queiramos, aquilo não nos entra completamente, não é? Temos uma vaga noção. Não consegues intuir. Sim, não intuis, exatamente. E uma coisa relacionada com isso, com a questão da comunicação de ciência, que eu também gostava de perguntar, é que até por causa da tua experiência lá fora, nomeadamente no Reino Unido, uma coisa que eu noto em Portugal, em particular, isso é um bocadinho verdade, todo mundo mais ou menos por definição, mas eu noto em Portugal, em particular, eu noto uma pouca participação dos cientistas, quando digo cientistas não são só das ciências duras ou das ciências da vida, mas também das ciências chasmas, sobretudo, quanto mais se afasta da sociedade menor, é essa participação na sociedade civil. A sociedade civil tem que ver com a divulgação de ciência, por exemplo, uma coisa muito típica em Portugal é que tu até tens divulgação de ciência, e até tens boas pessoas, sei lá, como o Carlos Fiolhais, por exemplo, que já foi convidado ao podcast, que é provavelmente o nosso divulgador de ciência mais conhecido, mas a divulgação de ciência que é feita é uma espécie de... Muitas vezes muito bem feita, como no caso dele, mas de simplificação da ciência, mas não outra coisa diferente e que, por exemplo, no mundo ecossaxónico existe mais, que é trazer o debate científico para a sociedade, sobretudo quando ele é de conjeturas, coisas que não se sabem, por exemplo, no campo da genética, qual vai ser o impacto da questão do CRISPR, por exemplo, da edição genética no futuro, seja a questão ética, mas até a questão de o que é que nós vamos conseguir fazer com isso. Terá um impacto grande ou não terá? Será que na verdade não vamos fugir muito do que temos agora porque a maior parte das coisas, dos problemas não se devem a um género, mas sim a um conjunto de géneros. Ou seja, esse tipo de discussão, que, por exemplo, em podcasts internacionais, para dar o exemplo dos podcasts, é muito comum ouvir-se, em Portugal não existe muito. Eu falávamos do exemplo do Adelino Oliveira, que é um, eu acho uma honrosa exceção nesse sentido de alguém que veio falar de inteligência artificial e conjeturar, no mar em que ele próprio assume que está a conjeturar, mas a um nível que não é de massas, nem interessará a toda a gente, mas permita leigos não entendidos, não é leigos mas não do meio, eles próprios entrar na discussão e porventura até levar a outros insights em relação àquele tema.
Mónica Bettencourt Dias
Sim. Eu acho que aí há várias vertentes. Há a vertente que tu estás a dizer do cientista discutir tópicos ou implicação da área em que trabalha, eu acho que cada vez mais os cientistas estão abertos à discussão com a sociedade, ou falarem sobre aquilo em que trabalham e até falarem das implicações do que trabalham, mas os cientistas normalmente, em geral, os cientistas, e que têm a ver com aquela história que estávamos a discutir da excelência da ciência, gostam de ter dados, e portanto especular é uma coisa sempre difícil para um cientista, e aí a pessoa precisa de se soltar um bocadinho para conseguir fazer isso. Mas também é importante também pensarmos a longo prazo e as implicações e portanto acho que os indígenas têm que ser capazes de o fazer. Mas é verdade que não está na nossa formação, mas eu acho que as pessoas estão cada vez mais abertas a falar e a levar a ciência à sociedade. O que eu acho que falta, talvez, é um diálogo mais aberto também a ouvir a sociedade. E isso nós agora aqui estamos a tentar fazer, também promovendo um programa de ciência cidadã com a Câmara de Oeiras. Agora está aberto um concurso de ideias para ouvir o que é que os cidadãos de Oeiras querem fazer a nível de ciência, para depois haver uma Assembleia de Cidadãos que vai ser agora em fevereiro, para discutir essas ideias e para haver programas de ciência envolvendo os cidadãos, o que se chama Ciência Cidadã. E portanto aqui é mesmo de cocriação, em que a ciência é feita pelos cidadãos. Nós já tivemos no passado o Estudo Gulbenkian de Ciências e Tec, talvez o primeiro programa de ciência cidadã em Portugal, que era um programa em que uma cientista chamada Gabriela Gomes criou um programa de detecção da gripe, até agora é muito timely, porque em que havia as pessoas, portanto o público em geral, assinalava se tinha sintomas ou não de gripe, ok? E através desse público envolvido nos sintomas, a dizer se tinha sintomas ou não, conseguiu-se detectar a gripe mais cedo do que aquilo que se detectaria nos hospitais. E, portanto, isso foi dos primeiros programas de ciência cidadã feitos em Portugal. Engraçado. Mais recentemente tivemos outra investigadora, a Joana Sá, agora a fazer isto já não tanto de ciência, é ciência cidadã mas não tão direta porque naquela outra o público sabia que estava a participar. A Joana foi utilizar dados de big data, das pesquisas de Google para aí fora, relacionadas com sintomas da gripe, para perceber quando é que a epidemia estava a chegar.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim, creio. Agora queria falar um bocadinho das conclusões da investigação, não é? Mais do que da abordagem. E até se calhar antes de falar da tua investigação especificamente, eu gosto sempre de fazer este tipo de perguntas para ter um bocado a ideia de alguém que chega de fora do panorama da investigação nesta área em que o IGC atua, no fundo da Biologia e da Biomedicina. Se olhasses para a última década, por exemplo, quais foram as grandes, não necessariamente produzidas no IGC, mas nesta área, quais foram as grandes descobertas que foram feitas para aí na última década?
Mónica Bettencourt Dias
É uma pergunta difícil, há muitas descobertas. Obviamente que a edição genética, que tu já falaste, é uma coisa brutal a nível das implicações que pode ter. E também muito gira do facto de vir de investigação completamente fundamental em bactérias para trazer uma coisa
José Maria Pimentel
que pode mudar. Olha, é um bom exemplo, exatamente.
Mónica Bettencourt Dias
É um ótimo exemplo dessa passagem de um lado ao outro. Eu acho que a edição genética vai estar a relacionar a maneira como nós vemos a biologia, mas tens outras coisas, quer dizer, eu acho que a maneira como nós vemos o papel dos micróbios na sua interação connosco mudou completamente, aqueles micróbios que vivem dentro de nós e que temos mais micróbios do que células do nosso corpo. Esses micróbios têm um papel importantíssimo a definir a nossa fisiologia, dependendo dos micróbios que tu tens, podes ter um melhor, com determinados tratamentos contra o câncer ou para curar o câncer, podes ter maior sucesso ou menor sucesso nesse tratamento. Portanto, esses micróbios determinam imensas coisas e isso também há uma explosão enorme. Temos várias pessoas aqui no Instituto Gmico de Ciência a estudar essa relação entre nós e os nossos micróbios. Pois isso é muito curioso, até porque lá está, vai para lá
José Maria Pimentel
das células que fazem parte do teu corpo e portanto vai para lá do teu genoma, não é?
Mónica Bettencourt Dias
No fundo o nosso genoma é muito mais do que aquele genoma que nós consideramos o nosso, que são as nossas células. Porque, na realidade, esses micróbios fazem parte de nós. Nós somos, não somos só humanos, somos um ecossistema de humanos e bactérias, e vírus, e por aí fora, não é? E é esse ecossistema que é importante para depois aquilo que nós somos. E acho que essa alteração, essa maneira de nós pensar sobre nós próprios também é uma grande alteração de paradigma da maneira como nós vemos os seres humanos. A outra alteração, que aí é mais da minha área mas eu acho que também veio revolucionário, também foi um prémio Nobel, é a maneira como nós conseguimos interrogar a realidade utilizando a microscopia. Sabia-se que havia um limite de resolução que nós poderíamos ter com a microscopia óptica, ou seja, utilizando a luz solar, havia um limite de resolução e de repente, utilizando novas tecnologias, nós conseguimos ultrapassar esse limite que se achava que nunca se ia ultrapassar. Era
José Maria Pimentel
uma limitação das leis da física
Mónica Bettencourt Dias
e conseguimos ultrapassar. E cada vez mais estamos a conseguir, dadas as novas tecnologias que estão a ser desenvolvidas e também muitas coisas que têm a ver com inteligência artificial, machine learning, por aí fora, há muitas coisas, muitos limites que nós achávamos que eram limites e que de repente ultrapassamos. Isso é giro porque realmente estamos a poder ir muito mais longe do que poderíamos ir antes e a ciência também, ela própria, está a tornar mais acessível e mais democrática porque temos ferramentas diferentes e mais baratas para fazer a ciência.
José Maria Pimentel
Exato, sim, sim, sim, que permite que países menos desenvolvidos, por exemplo, possam no fundo estar a desenvolver ciência e pede igualdade com os países que têm tecnologias de ponta.
Mónica Bettencourt Dias
Exatamente, sobretudo porque a parte da computação é muito mais barata do que muito do equipamento que nós compramos e, portanto, às vezes consegue-se com análise de dados feita de forma diferente obter imagens que não se precisa de ter um microscópio tão sofisticado, porque parte da análise só com os algoritmos consegue chegar mais longe a nível dessa imagem.
José Maria Pimentel
E esse exemplo é engraçado da microscopia porque é um exemplo, parece-me, também de investigação fundamental. Isso terá surgido dessa forma. E é giro porque no fundo isso era um pressuposto, não era uma espécie de... Era um dogma. Era um dogma, um axioma, uma coisa que tu tomavas por dado adquirido e a partir da qual desenvolvias o resto da investigação e de repente tu percebes que aquilo não é...
Mónica Bettencourt Dias
Essa área está assim também completamente a ser revolucionada e conseguimos ver coisas que nunca conseguíamos ver antes e portanto é um outro mundo que está à nossa frente para ser descoberto. E agora a pergunta inversa, que também é giro, que
José Maria Pimentel
é tu falaste, por exemplo, desse exemplo de avanços que não se esperava, que acontecem de forma tão rápida, e no fundo limitações que tu achavas que existiam, ou nesse caso uma limitação que tu achavas que existia e depois descobriste que aquela própria era flexível. Mas também presumo que haverá o contrário, que é, campos onde permaneçam mistérios, nós górdios, quer dizer, questões que se esperaria que já tivessem sido resolvidas, onde já se esperaria que tivesse havido grandes avanços, mas na verdade está a ser mais difícil do que se estaria à espera. Ocorre-te algum?
Mónica Bettencourt Dias
Eu acho que talvez em relação a certas questões do cérebro possa ser assim, mas também é óbvio quando pensamos nisso também pensamos às vezes na resolução de problemas concretos, por exemplo, a cura do cancro e coisas desse género, em que se pensaria há tanto tempo que se está a falar disto, os investigadores estão sempre a dizer que vão descobrir e ainda não descobrir. Por isso eu acho que há problemas, mas tem um bocado a ver com a resolução de problemas, mais do que propriamente com o conhecimento.
José Maria Pimentel
Só que a questão do cancro tem sido feito imensos progressos. Tem
Mónica Bettencourt Dias
sido feito imensos progressos, sem dúvida. Mas há não sei quanto tempo que há investigação nessa área e a pessoa está sempre à espera que seja agora.
José Maria Pimentel
Ou a questão da lusividade, por exemplo, também é outra área que...
Mónica Bettencourt Dias
Ao contrário, acho que é mais fácil quase de...
José Maria Pimentel
Ah, claro, sim, sim.
Mónica Bettencourt Dias
Há vários dogmas que foram criados, sim, nos últimos 15 anos, talvez, que foram ultrapassados, ou dogmas que foram deitados abaixo, não é? Por terra. Mesma maneira como nós vemos a informação, que estávamos a falar da informação genética, a maneira como a informação genética a lida, pensava-se que era uma forma muito simples e agora sabemos que tem uma complexidade muito maior.
José Maria Pimentel
Lida pelo nosso organismo. Lida pelo nosso organismo, das máquinas que fazem a leitura,
Mónica Bettencourt Dias
questão do RNA, dos RNAs que inibem, por
José Maria Pimentel
aí fora. O RNA é uma complexidade. Há
Mónica Bettencourt Dias
vários níveis diferentes que não se fazia a mínima ideia. O que é giro, porque a gente pensa que já percebe como é que as coisas funcionam e de repente há uma descoberta que mostra que não, há um nível, há ali uma realidade por trás que não fazíamos a mínima ideia. Para ti isso é mais óbvio, não é? Mas
José Maria Pimentel
para mim vivendo de fora, e no fundo entrando nisto aos bocadinhos, a complexidade é brutal. Tu Pensas que mais ou menos a coisa se resuma ao genoma, ao DNA. E depois de repente percebes que não, é o RNA. E há vários tipos de RNA, com várias funções. E depois
Mónica Bettencourt Dias
há a questão de que é o bolo, mas quem faz o bolo também tem impacto no bolo. E se tiver um dia muito úmido o bolo pode ser diferente ou se a temperatura do forno não tiver
José Maria Pimentel
a funcionar.
Mónica Bettencourt Dias
E tudo isso é o ambiente em que nós vivemos. Nós temos um genoma mas o ambiente em que nós vivemos tem um impacto enorme naquilo que nós vamos ser. E isso é também uma das grandes perguntas com que nós lidamos aqui no Instituto Gulbenkian de Ciência, é esse impacto do ambiente naquilo que nós no organismo. E o ambiente pode ser também esses micróbios que vivem dentro de nós.
José Maria Pimentel
Exato, Sim, sim, exatamente. Mas
Mónica Bettencourt Dias
além dos micróbios temos a questão da temperatura, dos sais que existem, por exemplo, quando falamos em plantas, as plantas podem ter vários estresses ligados com o solo onde estão.
José Maria Pimentel
O sol, a luz solar, com uma série de... Sim, a luz,
Mónica Bettencourt Dias
por aí fora. Quando falamos no ser humano, não só os micróbios com que lidamos, mas também o ambiente em que vivemos, não é? E não só o ser humano, mas também os animais. O facto de nós estarmos tristes ou estressados tem um impacto enorme no nosso comportamento ou mesmo na maneira como o nosso corpo funciona. Por isso também o nosso ambiente social pode ter um impacto
José Maria Pimentel
enorme. Exato, sim, sim. Aliás, é o fator com mais poder explicativo da longevidade, curiosamente. É algo que tudo indica, até mais do que a nutrição. Olá! Antes de voltarmos à conversa, deixem-me lembrar-vos que podem dar o vosso contributo para a continuidade e desenvolvimento deste projeto. Visitem o site 45graus.parafuso.net barra Apoiar para ver como podem contribuir para o 45 Graus, através do Patreon ou diretamente, bem como os vários benefícios associados a cada modalidade de apoio. Se não puderem apoiar financeiramente, podem sempre contribuir para a continuidade do 45° avaliando-o nas principais plataformas de podcasts e divulgando-o entre amigos e familiares. Muito obrigado pelo vosso apoio e agora de volta à conversa. Mas olha, isso é uma boa ponto para falarmos da tua investigação especificamente. Tu acordaras do laboratório de regulação do ciclo celular. Antes de fazer umas perguntas mais concretas, ia te pedir, porque vais fazer isso muito melhor do que eu, para explicar o que é o ciclo celular e o que é a regulação desse ciclo e quais os fatores, no fundo, que entraram na regulação desse ciclo.
Mónica Bettencourt Dias
No nosso grupo nós estamos muito interessados naquilo que se chama a multiplicação das células e que é um mecanismo pelo qual quando todos nós começamos, como se fosse só uma única célula que resulta da fertilização, essa célula divide-se muitas muitas muitas vezes para dar origem ao corpo que nós temos e essa multiplicação é aquilo que nós estamos interessados, que também é o processo, por exemplo, quando falamos de tumores em cancro, é normalmente um processo em que há uma multiplicação descontrolada da célula que dá origem a um tumor. Nós estamos interessados nesse processo, mas estamos interessados para além disso, nas máquinas dentro das células que regulam este processo, que tem a ver com o esqueleto das células, porque as células, tal como uma casa, também têm uma estrutura que as define, e esse esqueleto é muito importante e estamos também muito interessados na maneira como estas células falam com o ambiente em que vivem. As nossas células têm uma espécie de uma antenazinha, a maior parte delas, em que no fundo comunicam com o meio ambiente através dessa antena e essa antena define parte do que elas fazem. Eu posso dar o exemplo dos nossos olhos, recebem a luz através de uma antenazinha que existe
José Maria Pimentel
nos nossos receptores de luz nos nossos olhos. Mas que é feita de quê? É uma proteína?
Mónica Bettencourt Dias
É mesmo uma antena, portanto as células têm um compartimento que sai da célula e que funciona como uma antena e que sente a luz e que tem muitas máquinas lá dentro que são as tais proteínas e que têm a função de receber a luz. E portanto essa antena é uma antena porque no fundo é projetada para fora para poder concentrar essas máquinas que recebem a luz, mas que também podem fazer, recebem sinais de comunicação entre as diversas células, recebem sinais, por exemplo, se nós comemos suficiente ou não comemos suficiente na última refeição, recebem sinais, por exemplo, relacionados com o equilíbrio do organismo, recebem sinais relacionados com o som, muitos sinais diferentes que estas antenas estão envolvidas nessa receção. E, portanto, o trabalho que nós fazemos é um trabalho até bastante geral, está envolvido na multiplicação das células mas também está envolvido nesta comunicação das células com o meio ambiente e umas entre as outras e também está envolvido no movimento das células, por exemplo, certas células como por exemplo os espermatozoides têm
José Maria Pimentel
que se mexer, a mutualidade,
Mónica Bettencourt Dias
têm que se mexer para depois fertilizarem o ovo. E essa cauda dos espermatozoides, são os cílios que eu estou a dizer como antenas, essa cauda dos espermatozoides é uma espécie de uma antenazinha que se move e que também é crítica ao movimento de espermatozoides e também faz parte daquilo que nós discutamos.
José Maria Pimentel
Claro, mas por acaso falaste aí de uma coisa que é uma dúvida que eu tenho há muito tempo, o que é espantoso no nosso corpo é o facto de ser um, o do nosso e dos outros animais e plantas e répteis, é ser um organismo multicelular em que tu tens uma coordenação entre as várias células tanto dentro de cada órgão como no corpo todo, não é? Por exemplo, num órgão específico, sei lá, no estômago, por exemplo, as células, a coordenação que elas têm é feita através desses dos cílios, através dos receptores, no fundo, dessas antenas. Como é que funciona? Há
Mónica Bettencourt Dias
coordenação feita através dos cílios, também há coordenação que é feita fora dos cílios e que também receptores ou máquinas que recebem sinais, no fundo, essas proteínas que recebem sinais que estão na membrana ou na parede dessas células. Tu tens várias, nós chamamos de receptores, essas proteínas que estão na membrana das células e estão envolvidas na recepção de sinais, que podem estar localizados na membrana sem ser um cílio ou podem estar localizados nos cílios. Nos cílios tu tens, por exemplo, receptores que estão envolvidos na recepção daquilo que nós chamamos de fatores de crescimento. Por exemplo, induzem a multiplicação da célula. Tens receptores que estão envolvidos em fatores que decidem se aquela célula vai ter determinado destino ou outro destino diferente. Ou seja, que dizem que tu vais ser este tipo de célula ou aquele outro tipo de célula. Por exemplo, estas antenas das células estão envolvidas em determinar o número de dedos que nós temos na mão. Durante o desenvolvimento do embrião há muitos sinais que vão de umas células para as outras para fazer esta coordenação que tu estás a dizer. Porque no fundo há muita multiplicação das células mas depois tem que se dizer, tu vais ser um osso, tu vais ser... Pois, e a minha pergunta tem a ver com isso,
José Maria Pimentel
como é que isso é coordenado?
Mónica Bettencourt Dias
Tu tens muitos sinais que estão a acontecer e que são... Mesmo muitos sinais que estão a acontecer localmente e outros sinais que são mais...
José Maria Pimentel
No sistema nervoso central. No sistema
Mónica Bettencourt Dias
ao longo de um tecido, por aí fora. E esses sinais, no fundo, depois estão coordenados, que é engraçado, não há alguém que esteja a ditar, mas as coisas vão acontecendo e vão ativando outras. É quase uma coisa que se chama... É o self-assembly, é aquilo que tu tens instruções, mas as instruções levam outras instruções, que levam outras instruções, no fundo é como se fosse um rally paper em que tu vais descobrindo as pistas e as células vão descobrindo as pistas ao longo do tempo e a coordenação foi feita inicialmente por alguém que escreveu as pistas todas e no nosso caso está dentro do nosso genoma mas depois tu tens que ir pelos passos todos, porque um passo leva ao passo seguinte, não é? Sim. Não há alguém que esteja cá fora a deitar, agora aquela célula vai fazer aquilo, aquela aquilo. Não, é o processo todo que vai levando ao processo seguinte. Isso
José Maria Pimentel
de que tu estás a falar tem que ver com a formação do nosso corpo, no fundo, não é? Vou usar outra vez a analogia tosca, o livro de instruções para a formação do nosso corpo e no fundo onde pôr as peças, onde não pôr, não é? Convém deixar os cinco dedos parados e não unidos, por exemplo. Mas tens outro tipo de coordenação que tem que ver já não com a formação dos órgãos, por exemplo, mas com o funcionamento... E por exemplo, eu imagino, mas coiso me estiver enganado, por exemplo, na pele, as células da pele funcionam de maneira mais ou menos independente e terá muito que ver com o nosso ambiente, ou seja, se eu raspo o braço, ou seja, se eu provoquei ali uma... Se faço uma ferida, é evidente que aquilo precisa de ser restituído e regenerar.
Mónica Bettencourt Dias
E ativares o sistema imune, se tiveres bactérias por aí fora.
José Maria Pimentel
No meu coração, por exemplo, ou nos meus pulmões, ou no meu fígado, são órgãos que precisam, sobretudo o coração, o cérebro até seria o melhor exemplo, mas o coração até me parece mais gráfico. É um órgão que tem células muito diferenciadas e que precisam de ter uma grande sincronia. E essa sincronia, essa coordenação, é feita como? É através do sistema nervoso
Mónica Bettencourt Dias
central? Isso depende dos tecidos, mas é através de sinais que são libertados localmente, por exemplo da pele. Há sinais que são libertados quando tens retouro de tecidos que levam a essa ativação dos processos.
José Maria Pimentel
Desculpa interromper, o que eu quero dizer é, se eu fizer uma ferida no meu braço direito, as células da minha pele do braço esquerdo não precisam minimamente daquela informação. Claro que não. É uma coisa muito local. Exatamente. O meu coração funciona como uma orquestra.
Mónica Bettencourt Dias
Claro, e tu aí tens uma coordenação a nível também do sistema nervoso.
José Maria Pimentel
Ok. Não era uma, tinha-se dúvida. Mas tu
Mónica Bettencourt Dias
tens muita coordenação a nível dos, E isso é, acho que é das questões mais interessantes também, se me perguntassem as coisas mais interessantes que estão a surgir é esta coordenação entre os diferentes órgãos e sistemas. E nós aqui dentro do Estudo do Globo Banco de Indiciência temos várias pessoas a pegar nisso, por exemplo, como é que o sistema nervoso fala com o sistema imune, com o sistema imunitário. Como é que esses sistemas falam com o tecido adiposo? Portanto, esta coordenação entre os diferentes tecidos e órgãos dentro do nosso corpo é crítico para nos proteger da doença e para um bom funcionamento do nosso organismo.
José Maria Pimentel
Sim, claro. Outro aspecto sobre o qual tens de bruxado é a questão dos centríolos e do centrossoma. Não sei se é assim. Não sei se a pronúncia é esta. Que é um aspecto muito específico, mas que eu gostava de falar também porque parece interessante. Segundo o que eu percebo, mesmo se estiver enganado, os centríolos são aquilo que compõem, quer dizer, dois centríolos compõem um centrossoma, que é um organel que faz parte das nossas células, e que entra neste ciclo celular de vida da célula, no fundo nós estávamos a falar, justamente na parte da divisão da célula, na altura da divisão dos cromossomas. Exatamente. Eu não sei se disse tudo.
Mónica Bettencourt Dias
Está tudo certo em cima, até agora.
José Maria Pimentel
E isso é interessante porque vai para lá da questão do genoma, normalmente quando falamos do cancro ou de outras doenças tendemos a concentrarmos no genoma, mas aqui é um exemplo de um aspecto do ciclo celular que pode ter que ver, aparentemente pode ter alguma relação com o cancro e não tem que ver estritamente com a questão do genoma ou sequer com a replicação do genoma. A dúvida que existe aqui é, por exemplo, na tua investigação, vocês perceberam que em células cancerosas é normal haver, em vez de haver só dois, nesta altura da multiplicação, em vez de haver só dois centrossomos, como é suposto haver um em cada ponta, muitas vezes há mais do que dois. A questão é perceber se isso é uma causa ou uma consequência, ou seja, se foi o facto de ter havido erros que levaram a que se tivesse criado mais do que dois que levou ao cancro ou se isso é uma consequência do cancro, de repente começa a haver uma série de mutações e também entre as mutações, ou seja, no fundo, se é um subproduto ou se é uma causa, não é? Hoje em dia
Mónica Bettencourt Dias
o que é que se sabe sobre isso? Portanto, estas estruturas que existem dentro das nossas células, que são chamadas de centrosomas, como estavas a dizer, que também ajudam a formar as tais antenas que eu estava a falar, elas ajudam a dividir, no fundo, quando uma célula se multiplica, esta célula tem que multiplicar tudo o que está dentro dela porque é uma célula que vai dar origem a duas e portanto essas duas células querem ter a mesma coisa que a célula mãe tinha portanto a mãe tem que duplicar-se a si própria para dar origem a tudo para cada uma das filhas e portanto nessa duplicação tem que dividir o genoma que foi multiplicado, que passou a ser dois, para que cada uma das filhas tenha a mesma quantidade igual. E os centrossomas ajudam nesta divisão em dois, ou seja, da mesma quantidade. Quando temos mais centrossomas eles podem fazer com que essa divisão não seja bem feita e quando o genoma está a ser segregado não seja exatamente perfeito e portanto uma das células filhas pode herdar mais ou menos e esse mais ou menos leva a que tenha a formação errada e pode levar a uma identidade errada da célula filha que passa a tornar-se uma célula cancerosa. Além disso, hoje sabemos outras coisas, que é também se tivermos um número errado de centrossomas, estes centrossomas também funcionam como máquinas que concentram sinais e que geram sinais que induzem outras células a tornarem-se cancerosas Ou também induzem as células a separarem-se umas das outras. Isto é muito importante porque nos processos de metastização as células às vezes saem do tecido onde estão muito arrumadas, muito bonitas e que soltam-se desse tecido para aí conquistar outro tecido. Entram na corrente sanguínea. Entram na corrente sanguínea e para fora. E nós sabemos que agora ter mais centrossomas pode ajudar neste processo de se soltarem e de invadirem outros tecidos. Portanto, o centrossoma, quando está desregulado, pode ter várias maneiras de induzir a formação de tumores. A verdade é que a hipótese que o centro-ossoma desregulado podia formar tumores é uma hipótese que já foi levantada há mais de 100 anos por um biólogo muito famoso, o Bovo, italiano, mas que durante muito tempo, porque as estruturas são tão pequenas, havia pouca evidência que se pudesse utilizar para realmente substanciar essa hipótese, é validar essa hipótese. Mais recentemente começámos a ter maneiras de fazer isso, nomeadamente nós descobrimos no passado uma proteína que consegue manipular o número de centrossomas E então, no fundo, agora voltamos à questão do processo científico, esta questão de se os centrossomas podem gerar o cancro ou não, alterados, é uma questão importante. Eu acho que aqui, quando a gente fala alguma coisa pode induzir tumores ou não, acho que qualquer pessoa
José Maria Pimentel
acha que é importante.
Mónica Bettencourt Dias
Nós, no passado, a nossa curiosidade levou-nos a descobrir esta proteína que descobrimos que quando temos mais dela faz muitos centrossomas e depois várias outras pessoas pegaram nesta proteína e num ratinho, ok? Puseram demasiado dela e o que viram que aconteceu é que realmente um ratinho, que era um ratinho normal, mas ao ter transientemente mais desta proteína e ter mais centrossomas, passou a ter tumores. Ok. Portanto, a grande discussão que tu estavas a falar e que é muito importante, que é se é causa ou consequência, porque o que aconteceu depois do Bolvar e por isso foi que as pessoas foram olhar para o câncer e viram que eles estavam alterados, os centrossomas. Mas uma coisa é uma correlação, ou seja, eu vejo o cancro, eu vejo os centrossomas alterados, mas pode ser porque por acaso acontece assim, pode ser porque os centrossomas induzem o cancro, ou pode ser que no cancro as coisas já estão tão alteradas, de qualquer maneira, porque está tudo, aquelas rodas estão completamente doidas, que já as estruturas dentro delas estão alteradas e daí o número de centrações estará alterado. E aí a investigação também ser bem feita de conseguir fazer a pergunta bem feita e qual é a pergunta que nós queremos ter, se queremos saber se é causa ou consequência, nós queremos manipular o número de estruturas para perguntar, será que eu agora artificialmente consigo induzir para, tendo mais estruturas, consigo ver câncer ou não? E conseguimos. Portanto, nós sabemos que isto pode acontecer. Se na realidade
José Maria Pimentel
isto acontece em tumores
Mónica Bettencourt Dias
humanos ou não, é outra pergunta e é muito importante. Nós, por exemplo, o que já fomos fazer foi olhar em tumores humanos, olhar uma condição que chama o esófago Barrett, que é um tumor do esófago e que aí conseguimos olhar para uma condição que é a condição pré-maligna, que é as pessoas que têm refluxo ácido, algumas dessas pessoas podem desenvolver o adenocarcinoma do esófago. E antes disso, elas desenvolvem, as pessoas que têm refluxo há muito tempo, quando vão ao médico têm refluxo, fazem uma endoscopia e algumas dessas pessoas podem ter desenvolvido o que se chama metaplasia, ou seja, que o tecido do esófago em vez de olhar, de parecer como tecido do esófago, parece como tecido do intestino ou do estômago, porque parece um tecido mais adaptado ao ácido, por causa do refluxo ácido. E algumas dessas pessoas podem desenvolver tumores, o adenocarcinoma do esófago, e por isso é que essas pessoas são seguidas, periodicamente, rotina para e fora. Portanto, neste contexto deste modelo de tumores, nós conseguimos olhar para a condição antes do tumor aparecer, que é esta metaplasia, onde olhamos para o esófago e perguntamos se nestas pessoas que têm o tecido esófago que já aparece como tecido do estômago e para aí fora, se já tem alteração de centrossomas, e nós vimos que tem, ok? Portanto, antes do tumor aparecer já pode haver alterações de centrossomas. Portanto, pode ser que os centrossomas realmente estejam a fazer alguma coisa cedo. Se não tivéssemos visto, nós diríamos, naquele tipo de tumores, provavelmente não. Aqui podemos dizer provavelmente sim. Não podemos ter a certeza que sim, mas podemos dizer que provavelmente sim.
José Maria Pimentel
Isso é muito interessante, por acaso. E o que tu estavas a explicar há bocadinho é que o efeito de alterações nos entrosomas, que pode ser alterações de número ou alterações de forma, Pode ser um efeito direto de deturpar o processo de replicação daquela célula, mas também pode ser um efeito ambiental de dar sinais errados. O que no contexto do cancro faz todo sentido. Faz todo sentido, sim. Que giro, tem muita piada. Mónica, olha, muito obrigado pela conversa. Obrigada, eu. Gostei muito. Também. E Foi giro porque começámos na parte mais de políticas de investigação e acabámos a falar da investigação propriamente dita e da ciência. Obrigado. Obrigada, eu. O 45 Horaos é um projeto tornado possível pela comunidade de mecenas que o apoia e cujos nomes encontram na descrição deste episódio. Agradeço em particular a Carlos Martins, Gustavo Pimenta e Eduardo Corrêa de Matos, Joana Monteiro, Rui Oliveira Gomes, Corto Lemos, Joana Farialve, João Baltazar, Mafalda Lopes da Costa, Rogério Jorge, Salvador Cunha e Tiago Leite. Até ao próximo episódio. Legendas pela comunidade Amara.org