#82 Mónica Bettencourt Dias - A importância da investigação fundamental e o que ela nos tem...
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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o
45°. Neste episódio, a convidada é Mónica Betancourt Dias, uma das investigadoras
portuguesas mais reconhecidas na área da bioquímica e da Biologia Celular. A
convidada coordena um grupo de investigação no Instituto Kubencki de Ciência, onde
é também, desde 2018, diretora científica. Durante esta conversa, tentei explorar as
várias peles da convidada. A de investigadora, claro, mas também a de
comunicadora de ciência, até porque a Mónica tem também um diploma justamente
em comunicação de ciência, e a, pela mais recente, a diretora do
IGC, um trabalho que implica a gestão de toda a investigação naquele
que é um centro de investigação de relevância global. Começamos por falar
da importância que tem a investigação de base ou fundamental e que
é precisamente aquela a que o IGC se dedica. Este é aquele
tipo de investigação que não tem por objetivo gerar descobertas com aplicações
práticas diretas, mas que é movida apenas pela curiosidade do investigador em
torno de questões que possam trazer à tona novos princípios da ciência.
Para terem uma ideia do que isso significa, no IGC a convidada
coordena um grupo que se dedica a investigar a chamada regulação do
ciclo celular, um processo aparentemente muito básico das células do nosso corpo,
mas que é fundamental que corra bem, porque não só é o
que permite ao nosso corpo crescer e formar e fazer funcionar os
nossos órgãos, como é precisamente aquilo que entra em descontrolo em muitas
doenças conhecidas. E o que é esse ciclo celular? Ora bem, é
o conjunto de fases por que uma célula passa durante o processo
em que uma célula se duplica para dar origem a duas células
novas. Este ciclo é então regulado na célula por vários agentes, sobretudo
proteínas, que controlam o timing das várias fases desse ciclo e asseguram
que não há erros ou perdas de informação nesse processo. Esses mecanismos
são muito importantes, Porque se uma célula se começar a dividir de
forma descontrolada, pode, por exemplo, dar origem a células cancerosas. Aliás, se
ouvir o episódio 76 com o Miguel Coelho, falámos precisamente sobre um
conjunto de genes que codificam algumas das principais proteínas envolvidas na regulação
do ciclo celular. Para além deste tema da importância da investigação fundamental
e também da investigação interdisciplinar, falámos sobre os desafios para um cientista
em fazer divulgação de ciência de um modo que seja simples, mas
não simplista. E falámos também sobre o papel que devem ter os
cientistas na sociedade civil. Finalmente, como não poderia deixar de ser, tentei
perceber um pouco melhor a investigação da convidada, que incide sobre o
tal processo de regulação do ciclo celular. Mais especificamente, grande parte da
investigação da Mónica debruça-se sobre alguns organelos com um nome esquisito. Organelos
já agora são umas estruturas da célula que estão mais ou menos
para a célula como os nossos órgãos estão para o nosso corpo.
Daí o nome. Um desses organelos que a convidada mais tem investigado
são os centríolos, que por sua vez podem formar, dependendo da fase
em que está o ciclo da célula, outros dois organelos, os cílios,
que funcionam como antenas em vários tipos de células, e os centrossomas,
que têm um papel crucial no dito processo de divisão e duplicação
das células. É por isso que os centrossomas são suspeitos de estarem
associados a algumas doenças complexas, como por exemplo o inevitável cancro. Isto
porque normalmente existem dois centrossomas em cada célula. Mas células cancerosas têm
muitas vezes mais, e às vezes muitos mais. Uma das frentes de
investigação da COVIDADA tenta então perceber porque é que isso acontece. Será
que foi o aumento do número de centrossomas que causou o câncer
ou pelo contrário é o câncer que desregula a célula e leva
à produção de centrossomas a mais? E que novos tratamentos podem surgir
destas conclusões? Ouçam este episódio para saber a resposta. Mónica, muito bem-vinda
ao podcast.
Obrigada.
Eu gostava de começar por falar da investigação que tu fazes e
que o Instituto Guggenheim de Ciência faz também, que pode ser descrita
como uma investigação fundamental, uma investigação básica, e aqui o básico não
tem a ver com
José Maria Pimentel
Tem a ver com ser, no fundo, por oposto, a investigação aplicada.
No fundo, não é a investigação aplicada, será a investigação que está
a resolver um problema, à procura de uma solução para um problema,
enquanto a investigação fundamental resulta da nossa curiosidade. É interessante porque é
um bocadinho a abordagem que eu tenho aqui no podcast também, não
é que é ir atrás da minha curiosidade. Eu com a esperança
e no caso da investigação com a certeza de que à boleia
dessa curiosidade tu vais chegar no fundo a uma série de descobertas
que não encontrarias de outra forma. E eu já te ouvi dizer
isso, mas faço-te a pergunta agora que estamos a gravar. Já te
ouvi dizer que há uma grande parte dos resultados em ciência, não
é que resultados que no fundo nos permitem compreender e através disso
chegar a progresso, se quiseres no sentido de lado, que vem não
da investigação aplicada, mas sim da investigação fundamental, que no fundo, por
o meu, nos permite, à boleia dessa curiosidade, descobrir coisas que são
soluções que não nos ocorreriam se nós só tivéssemos à procura de...
Focados na solução para aquele problema.
Mónica Bettencourt Dias
Sim, na realidade nós sabemos hoje em dia, que já foram vários
estudos feitos a esse nível, que 8 em 10 dos fármacos que
nós utilizamos na medicina normal surgiram dessa curiosidade dos cientistas de não
portarem à procura de uma solução concreta. O que acontece é que
eu acho que a distinção entre a investigação fundamental e aplicada hoje
em dia, se calhar é uma distinção que já está muito mais
esbatida. Em parte porque facilmente uma pessoa que está a fazer investigação
cuja motivação é a curiosidade, como tu estavas a dizer, é o
querer perceber melhor, é o conhecimento, perceber o que é que se
passa com o nosso corpo, com o ambiente por aí fora, mas
facilmente quando está a fazer essa pergunta pode de repente ver uma
aplicação para resolver um problema que existe relacionado com aquela pergunta. Portanto
é muito fácil, muito mais fácil do que no passado. Por isso
acho que está mais batido e se calhar já é mais difícil
falarmos, ah isto é muito diferente, a investigação fundamental da investigação aplicada.
Se algo que existe é investigação muito boa, é investigação menos
Mónica Bettencourt Dias
as métricas que tu tens é no fundo, que é uma pergunta
ótima, e no fundo tem a ver com a maneira como nós
fazemos ciência e as nossas métricas, no fundo nós fazemos perguntas à
realidade que nos rodeia e temos hipóteses relacionadas com essa realidade que
nos rodeia e depois testamos essas hipóteses, ok? E no fundo nós
tentamos mostrar, a maneira de testar é mostrar que a nossa hipótese
está errada. E se nós não conseguimos de maneira nenhuma mostrar que
a hipótese está errada, é bem provável que a hipótese esteja correta.
E depois o que acontece é que muitos outros cientistas olham para
aquilo que nós fizemos e questionam também aquilo que nós fizemos para
ver se eles acham que na realidade é diferente, que nós achávamos
que o Sol andava à volta da Terra, mas afinal é a
Terra que anda à volta do Sol. E, portanto, é esta troca
de ideias entre vários cientistas que nos pode dizer se estamos mais
perto da realidade ou não e a qualidade dessa ciência. Porque muitas
vezes há coisas que são descobertas que são feitas ou que se
pensa que são feitas mas que a evidência é baixa. Se calhar
a evidência que a vacinação pode causar o autismo, os números não
são tão altos quanto isso,
não
é? E, portanto, de números baixos, nós podemos concluir coisas de números
baixos, mas essas coisas poderão mesmo não estar certas, porque quando tivemos
uma amostra maior pode-se mostrar que estamos errados, não é? Portanto, eu
acho que é das questões mais importantes da ciência, a maneira como
ela é feita e como a ciência tenta validar o conhecimento que
é produzido em ciência e
que é
dessa forma, é tentando mostrar que estamos errados e não conseguindo de
maneira nenhuma mostrar que estamos errados, então provavelmente estamos no caminho certo.
José Maria Pimentel
Há uma pergunta mais ou menos relacionada com esta, eu estou aqui
a puxar um bocado a brasa à minha sardinha, faz a expressão,
porque tem que ver também com outra das coisas que eu tento
fazer aqui no podcast é a questão da interdisciplinaridade, ou seja, cruzar
abordagens ou insights de áreas diferentes. E isso é uma das coisas
que se calhar não há muitos incentivos para o fazer em ciência,
que a ciência, todas as ciências, as ciências sociais é a mesma
coisa, e muitas vezes pode até dar origem a investigações que vistas
de fora são um bocadinho párvores. Até há um exemplo, agora não
me ocorre o nome, mas há um tipo que foi prémio Nobel,
salvo erro em medicina, não tenho a certeza, que tinha ganho uns
anos antes aquele prémio do Ig Nobel da Harvard, se sabe o
erro, porque tinha uma investigação aparentemente bizarra e de natureza mais ou
menos interdisciplinar, mas na verdade a reboque daquela investigação aparentemente bizarra ele
depois, lá está, chegou a resultados que tiveram um impacto real e
benéfico, o suficiente para ele ter ganho o Nobel. E aí, nesse
caso, eu presumo que seja difícil para quem está a fazer a
investigação decidir o que é que são hipóteses que vale a pena
estudar e hipóteses que não fazem sentido ou que nos parecem pouco
importantes. Até porque tu tens sempre um
Mónica Bettencourt Dias
tu pensas, bom, se calhar é mesmo uma perspectiva completamente diferente e
vale a pena e aí é que tu podes pensar, pode ser
completa, o risco é muito grande, porque a maior parte destas pessoas
acham que eu sou completamente doido, mas também não conseguem dizer logo
porque é que isto não vale a pena, percebes? E então aí
é o teu risco, é tu decidires que vale a pena atirares-te
para a frente ou não. Podes-te atirar para a frente e descobrir
realmente uma coisa muito grande, prémio Nobel, ou podes falhar completamente e
estavas redondamente errado.
Mónica Bettencourt Dias
Mas em relação também à questão da investigação fundamental versus aplicada e
a questão de que a investigação fundamental, além da questão dos fármacos
que eu estava a dizer, que 80% das fármacos surgiram da investigação
fundamental ou feita através da curiosidade da pessoa, também é importante perceber
porque é que isso é assim, não é? Porque no fundo o
que acontece muitas vezes é quando tu estás já à procura de
uma resposta e estás com um problema muito específico e tens uma
solução muito concreta, podes estar completamente errado e não chegas lá. Enquanto
se tiveres uma abordagem completamente não focada só naquilo, às vezes consegues
chegar lá para um caminho muito diferente. E um bom exemplo é,
por exemplo, quando tu às vezes chegas a casa e de repente
perdeste as chaves, e tu vais sempre procurar ao mesmo sítio, procurar
ao mesmo sítio e não encontras a chave porque só estás a
procurar naquele sítio enquanto se calhar outra pessoa que chega ali não
está condicionado para procurar àquele sítio e vai fazer uma outra abordagem,
procurar em outro sítio as tuas chaves e encontra-te as chaves
Exato Portanto
é uma visão diferente do problema e a visão diferente muitas vezes
é trazida pela curiosidade das pessoas em olhar por outras coisas e
que de repente descobrem qualquer coisa que tem uma solução para um
problema completamente diferente.
José Maria Pimentel
Claro, claro. E há uma questão até mais vasta, que está relacionada
com aquilo que falávamos há bocadinho, do ponto de vista das políticas
públicas, que é tu financiares a investigação fundamental, que até que eu
concordo, que é aquilo que faz sentido que o Estado, sobretudo o
Estado, e idealmente também as fundações, façam, mas de maneira a assegurar
que ela é feita com o máximo de rigor. Que, presumo, seja
muito difícil, porque como o resultado é indireto, tu não podes ter
métricas diretas. Não,
Mónica Bettencourt Dias
global. Sim, mas eu acho que se calhar o exemplo mais fácil
é a questão dos números e da estatística, não é? Quando tu
queres estudar uma doença, ou até o caso que eu estava a
dizer de haver toda esta polémica à volta das vacinas e o
que a vacinação pode fazer ou não do autismo, é muito importante
nós sabermos que a investigação, quando se faz essa investigação, tu tens
a estatística necessária, tens os números que precisas para chegar a essa
conclusão. Porque se tens um número muito baixo e não está a
fazer a estatística certa, porque o que queres é mostrar aquilo, não
é? Está errado, não é? Portanto, no fundo, tu estás a dizer
que com este número pequeno eu estou a concluir qualquer coisa e
isto provoca aquilo. E está errado, porque não há, os números não
nos dizem isso. Portanto, aí está um caso de ciência mal feita
e isso é fácil de julgar, porque tens pessoas que sabem matemática
e estatística para ir fora que olham para aqueles números e dizem
isto está mal feito. Eu com estes números aqui não posso dizer
que há provoca B e portanto podem dizer se você quiser continuar
a estudar isto tem que estudar mais não sei quantos casos para
poder validar essa hipótese. Aí
Mónica Bettencourt Dias
Eu percebo perfeitamente, mas isso depende do que é que tu estás
a avaliar. Se tu queres alocar os recursos à investigação por causa
de essa peça que tu estavas a fazer funciona ou não funciona,
ou seja, o impacto,
ou
se tu queres alocar os recursos e podes ter os dois modelos,
de acordo com a qualidade da investigação. Infelizmente não é qualquer pessoa
que faz investigação de boa qualidade, pode ser porque as pessoas não
foram bem treinadas ou porque não têm os instrumentos para fazer a
investigação bem feita. E portanto, o que tu queres garantir quando tens
dinheiro para dar à investigação, é que essa investigação, para aquela pergunta,
aquela estratégia de responder, é a melhor estratégia possível. Pode haver outra
estratégia, mas aquela é que mais diretamente vai dar uma resposta àquela
questão. É das questões mais importantes em ciência neste momento e mesmo
na cabeça de governantes e mesmo na União Europeia que é a
questão de medir o impacto da ciência. Como é que nós medimos
o impacto, porque sem dúvida, como tu dizes, há recursos limitados. Portanto,
como é que nós garantimos que aquilo que investimos é um bom
investimento? E não é fácil quando estamos só a falar de conhecimento.
Mónica Bettencourt Dias
portanto também era por isso que te queria perguntar isso. Tu partilhas
dessa crítica? Sim, recentemente estava à procura de exemplos para discutir ou
metáforas e há uma lenda antiga que acho que é dandia sobre
os seis homens cegos e o elefante. Tu tens seis homens cegos
e está um elefante. E portanto a questão que tu pões a
todos aqueles homens cegos que estão ali é o que é que
está à frente deles. E há um que toca na tromba, outro
que toca na pata, outro que toca na cauda, por aí fora.
Cada um deles individualmente não faz a mesma ideia que está ali
um elefante, mas quando eles falam uns entre os outros e dizem
ah eu toquei numa coisa que parecia, se calhar era uma pata,
e o outro diz, apai, era uma coisa comprida, úmida na ponta,
se calhar era uma tromba, por aí fora, e no fim em
conjunto descobrem que é um elefante, ok? Portanto, é a ideia de
que tu precisas de diferentes perspectivas para descobrir a realidade e nós
partilhamos dessa ideia, que no fundo a ciência avança muito mais rapidamente
se tu tiveres pessoas com diferentes perspectivas a trabalharem juntos e daí
o IGC ser uma instituição bastante interdisciplinar e queremos ainda ser mais.
José Maria Pimentel
questões. Atenção, já agora só para fazer aqui o contexto, o que
acontece em muitas áreas e presumo que nestas áreas também, é que
não é por acaso que as pessoas são levadas a serem monodisciplinares,
é porque se tu fizeres muita investigação na mesma área, vais tendo
cada vez mais papers, mais leads, com mais influência, o teu nome
naquela área vai ganhando peso, enquanto que se tu andares a dividir-te
entre duas ou três áreas, no fundo não crias impacto em nenhuma
dessas áreas, no fundo o problema é esse. Ou seja, a nível
global, que eu saiba, o sistema não tem mudado muito recentemente, ou
seja, a arquitetura do sistema de investigação a nível mundial, continua a
dar todos os iniciativos para a pessoa ser monodisciplinar. Concordo completamente. Ao
nível do indivíduo,
José Maria Pimentel
E aqui em Portugal, falando aqui da investigação, especificamente em Portugal, uma
coisa que eu tenho ideia, quer dizer, já ouvi dizer isso informalmente,
mas gostava de saber a tua opinião, é que se faz-se muito
boa a investigação fundamental em Portugal, e não é só no IGCE,
em outros organismos, mas que depois há dificuldade em atrair, por exemplo,
investimento em biotecnologia da forma que é possível fazer nos Estados Unidos,
países como a Alemanha ou o Reino Unido, mas mais no centro
da Europa. Vocês sentem essa dificuldade?
Mónica Bettencourt Dias
A translação, a tradução da investigação. Sim, sim. Essa área é uma
área que está menos desenvolvida em Portugal, mas que eu agora acho
que está a começar a levantar vôo, porque tu no fundo precisas
de começar a criar uma massa crítica de ciência que é excelente
para dessa ciência começarem a sair ideias para formar empresas e explorar
essa ciência. Sim. Portanto, acho que é um caminho que já foi
percorrido noutros sítios e Portugal está a percorrê-lo agora e já começam
a surgir algumas empresas de ideias de diferentes sítios, pois o que
é difícil mais à frente, é como tu estavas a dizer, é
alavancar fundos suficientes para explorar essas ideias,
levar as
ideias ao mercado, levar as ideias aos hospitais, por aí fora. E
essa é uma área que mesmo a nível da Europa é mais
complicada do que por exemplo nos Estados Unidos. Agora a União Europeia
tem o novo Conselho Europeu da Inovação cuja ideia é também promover
essa área. No último concurso tiveram já algumas empresas portuguesas e em
que eles podem financiar também essa aplicação.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. Fico curioso em relação a isso. Deixa-me fazer aqui
uma curva para apontar um bocadinho diferente que é a questão da
comunicação de ciências e tu tens experiência nessa área, tens um curso
de comunicação de ciências, portanto não são todos os cientistas que podem
dizer isso. E há uma coisa que já pensei várias vezes a
propósito de comunicar ciência e presumo que seja uma dificuldade com que
já te tenhas deparado. Quando tu tentas explicar alguma coisa, uma coisa,
por exemplo, da tua área de investigação que é estado de fora,
nós tendemos sempre a recorrer a analogias, como de resto já fizemos
várias vezes na Testa de Converso, que tem a ver com a
maneira de funcionar do nosso cérebro, não é? E o que é
interessante das analogias é que as analogias tanto facilitam como retiram a
informação, não é? No fundo, ou seja, tu estás a facilitar a
passagem de informação através da analogia mas estás a diminuir a resolução
quando não a eliminar bocados fundamentais dessa resolução. Qual é a tua
visão em relação a isso? Porque eu suponho que isso seja um
dilema muito difícil porque às vezes há analogias que por um lado
permitem tu explicares muito facilmente, dizes, isto é como X, mas pode
induzir em erro porque a pessoa não está a perceber. No fundo
o perigo é que a pessoa fica a achar, sei lá, por
exemplo, o genome é comparado a um monte de coisas. Um deles
era uma planta arquitetónica e alguém dizia...
José Maria Pimentel
ou livro de instituições. E alguém dizia, Eu até achei esse comentário
interessante, mas no fundo é outra analogia ainda, mas se calhar menos
imperfeita, que dizia que na verdade não é bem, é mais como
uma receita de um bolo ou de uma coisa de qualquer tipo,
no sentido em que enquanto se tu numa planta de uma casa
retiras do piso superior, a casa continua a existir sem o piso
superior, se retirar-se ao inferior não, mas numa receita se tu alterares
o nível de açúcar de um bolo por exemplo, ou um nível,
se calhar mais relevante, um nível de farinha, provavelmente tu vais acabar
sem um bolo, não é? Da mesma forma que se o retirares
de uma parte do genoma tu não vais acabar com um semi-ser
humano, vais acabar sem ser humano nenhum, não é? Aí nesse caso
seria uma analogia melhor, mas ainda assim provavelmente limitada.
Mónica Bettencourt Dias
Sim, mas sim, acho que isso é um problema que eu tenho,
porque acho que as analogias são muito importantes realmente e gosto de
arranjar analogias porque é giro, é um desafio engraçado para quem gosta
de comunicação de ciência, mas concordo completamente contigo. Mas mesmo assim isso
não é um problema só da comunicação de ciência para não-cientistas, é
também um problema da comunicação de ciência para cientistas, porque nós tendemos,
por exemplo, a fazer modelos daquilo que estamos a pensar e desenharmos
os modelos, ok? E ao desenharmos os modelos, acabamos por estar a
fazer uma imagem muito concreta daquilo que estamos a pensar, para a
qual normalmente não temos a informação toda. E portanto esses modelos podem
passar uma imagem que não é aquela que é na realidade, porque
parte dela ainda não sabemos o que ela é.
Portanto,
sem dúvida que os modelos são muito bons porque te dão uma
hipótese e depois permite trabalhar sobre essa hipótese e dão-te uma maneira
de perceber as coisas, mas podem ser limitantes porque te levam para
um lado que pode não ser o lado correto.
José Maria Pimentel
Sim. É que nós só funcionamos assim, mesmo na tua área. Há
quem diga que mesmo os matemáticos mais abstratos, eles próprios constituíram no
cérebro deles uma espécie de meta-analogias, mas estão a funcionar como modelos
concretos, porque a nossa apreensão depende dos nossos sentidos, portanto, no fundo,
essa abstração nunca é perfeita em nós. Por isso é que nós
temos uma enorme dificuldade em perceber o muito pequeno e o muito
grande. Não percebemos, por muito que queiramos, aquilo não nos entra completamente,
não é? Temos uma vaga noção. Não consegues intuir. Sim, não intuis,
exatamente. E uma coisa relacionada com isso, com a questão da comunicação
de ciência, que eu também gostava de perguntar, é que até por
causa da tua experiência lá fora, nomeadamente no Reino Unido, uma coisa
que eu noto em Portugal, em particular, isso é um bocadinho verdade,
todo mundo mais ou menos por definição, mas eu noto em Portugal,
em particular, eu noto uma pouca participação dos cientistas, quando digo cientistas
não são só das ciências duras ou das ciências da vida, mas
também das ciências chasmas, sobretudo, quanto mais se afasta da sociedade menor,
é essa participação na sociedade civil. A sociedade civil tem que ver
com a divulgação de ciência, por exemplo, uma coisa muito típica em
Portugal é que tu até tens divulgação de ciência, e até tens
boas pessoas, sei lá, como o Carlos Fiolhais, por exemplo, que já
foi convidado ao podcast, que é provavelmente o nosso divulgador de ciência
mais conhecido, mas a divulgação de ciência que é feita é uma
espécie de... Muitas vezes muito bem feita, como no caso dele, mas
de simplificação da ciência, mas não outra coisa diferente e que, por
exemplo, no mundo ecossaxónico existe mais, que é trazer o debate científico
para a sociedade, sobretudo quando ele é de conjeturas, coisas que não
se sabem, por exemplo, no campo da genética, qual vai ser o
impacto da questão do CRISPR, por exemplo, da edição genética no futuro,
seja a questão ética, mas até a questão de o que é
que nós vamos conseguir fazer com isso. Terá um impacto grande ou
não terá? Será que na verdade não vamos fugir muito do que
temos agora porque a maior parte das coisas, dos problemas não se
devem a um género, mas sim a um conjunto de géneros. Ou
seja, esse tipo de discussão, que, por exemplo, em podcasts internacionais, para
dar o exemplo dos podcasts, é muito comum ouvir-se, em Portugal não
existe muito. Eu falávamos do exemplo do Adelino Oliveira, que é um,
eu acho uma honrosa exceção nesse sentido de alguém que veio falar
de inteligência artificial e conjeturar, no mar em que ele próprio assume
que está a conjeturar, mas a um nível que não é de
massas, nem interessará a toda a gente, mas permita leigos não entendidos,
não é leigos mas não do meio, eles próprios entrar na discussão
e porventura até levar a outros insights em relação àquele tema.
Mónica Bettencourt Dias
Sim. Eu acho que aí há várias vertentes. Há a vertente que
tu estás a dizer do cientista discutir tópicos ou implicação da área
em que trabalha, eu acho que cada vez mais os cientistas estão
abertos à discussão com a sociedade, ou falarem sobre aquilo em que
trabalham e até falarem das implicações do que trabalham, mas os cientistas
normalmente, em geral, os cientistas, e que têm a ver com aquela
história que estávamos a discutir da excelência da ciência, gostam de ter
dados, e portanto especular é uma coisa sempre difícil para um cientista,
e aí a pessoa precisa de se soltar um bocadinho para conseguir
fazer isso. Mas também é importante também pensarmos a longo prazo e
as implicações e portanto acho que os indígenas têm que ser capazes
de o fazer. Mas é verdade que não está na nossa formação,
mas eu acho que as pessoas estão cada vez mais abertas a
falar e a levar a ciência à sociedade. O que eu acho
que falta, talvez, é um diálogo mais aberto também a ouvir a
sociedade. E isso nós agora aqui estamos a tentar fazer, também promovendo
um programa de ciência cidadã com a Câmara de Oeiras. Agora está
aberto um concurso de ideias para ouvir o que é que os
cidadãos de Oeiras querem fazer a nível de ciência, para depois haver
uma Assembleia de Cidadãos que vai ser agora em fevereiro, para discutir
essas ideias e para haver programas de ciência envolvendo os cidadãos, o
que se chama Ciência Cidadã.
E
portanto aqui é mesmo de cocriação, em que a ciência é feita
pelos cidadãos. Nós já tivemos no passado o Estudo Gulbenkian de Ciências
e Tec, talvez o primeiro programa de ciência cidadã em Portugal, que
era um programa em que uma cientista chamada Gabriela Gomes criou um
programa de detecção da gripe, até agora é muito timely, porque em
que havia as pessoas, portanto o público em geral, assinalava se tinha
sintomas ou não de gripe, ok? E através desse público envolvido nos
sintomas, a dizer se tinha sintomas ou não, conseguiu-se detectar a gripe
mais cedo do que aquilo que se detectaria nos hospitais. E, portanto,
isso foi dos primeiros programas de ciência cidadã feitos em Portugal. Engraçado.
Mais recentemente tivemos outra investigadora, a Joana Sá, agora a fazer isto
já não tanto de ciência, é ciência cidadã mas não tão direta
porque naquela outra o público sabia que estava a participar. A Joana
foi utilizar dados de big data, das pesquisas de Google para aí
fora, relacionadas com sintomas da gripe, para perceber quando é que a
epidemia estava a chegar.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim, creio. Agora queria falar um bocadinho das conclusões da
investigação, não é? Mais do que da abordagem. E até se calhar
antes de falar da tua investigação especificamente, eu gosto sempre de fazer
este tipo de perguntas para ter um bocado a ideia de alguém
que chega de fora do panorama da investigação nesta área em que
o IGC atua, no fundo da Biologia e da Biomedicina. Se olhasses
para a última década, por exemplo, quais foram as grandes, não necessariamente
produzidas no IGC, mas nesta área, quais foram as grandes descobertas que
foram feitas para aí na última década?
Mónica Bettencourt Dias
É um ótimo exemplo dessa passagem de um lado ao outro. Eu
acho que a edição genética vai estar a relacionar a maneira como
nós vemos a biologia, mas tens outras coisas, quer dizer, eu acho
que a maneira como nós vemos o papel dos micróbios na sua
interação connosco mudou completamente, aqueles micróbios que vivem dentro de nós e
que temos mais micróbios do que células do nosso corpo. Esses micróbios
têm um papel importantíssimo a definir a nossa fisiologia, dependendo dos micróbios
que tu tens, podes ter um melhor, com determinados tratamentos contra o
câncer ou para curar o câncer, podes ter maior sucesso ou menor
sucesso nesse tratamento. Portanto, esses micróbios determinam imensas coisas e isso também
há uma explosão enorme. Temos várias pessoas aqui no Instituto Gmico de
Ciência a estudar essa relação entre nós e os nossos micróbios. Pois
isso é muito curioso, até porque lá está, vai para lá
Mónica Bettencourt Dias
No fundo o nosso genoma é muito mais do que aquele genoma
que nós consideramos o nosso, que são as nossas células. Porque, na
realidade, esses micróbios fazem parte de nós. Nós somos, não somos só
humanos, somos um ecossistema de humanos
e bactérias,
e vírus, e por aí fora, não é? E é esse ecossistema
que é importante para depois aquilo que nós somos. E acho que
essa alteração, essa maneira de nós pensar sobre nós próprios também é
uma grande alteração de paradigma da maneira como nós vemos os seres
humanos. A outra alteração, que aí é mais da minha área mas
eu acho que também veio revolucionário, também foi um prémio Nobel, é
a maneira como nós conseguimos interrogar a realidade utilizando a microscopia. Sabia-se
que havia um limite de resolução que nós poderíamos ter com a
microscopia óptica, ou seja, utilizando a luz solar, havia um limite de
resolução e de repente, utilizando novas tecnologias, nós conseguimos ultrapassar esse limite
que se achava que nunca se ia ultrapassar. Era
José Maria Pimentel
é tu falaste, por exemplo, desse exemplo de avanços que não se
esperava, que acontecem de forma tão rápida, e no fundo limitações que
tu achavas que existiam, ou nesse caso uma limitação que tu achavas
que existia e depois descobriste que aquela própria era flexível. Mas também
presumo que haverá o contrário, que é, campos onde permaneçam mistérios, nós
górdios, quer dizer, questões que se esperaria que já tivessem sido resolvidas,
onde já se esperaria que tivesse havido grandes avanços, mas na verdade
está a ser mais difícil do que se estaria à espera. Ocorre-te
algum?
José Maria Pimentel
enorme. Exato, sim, sim. Aliás, é o fator com mais poder explicativo
da longevidade, curiosamente. É algo que tudo indica, até mais do que
a nutrição. Olá! Antes de voltarmos à conversa, deixem-me lembrar-vos que podem
dar o vosso contributo para a continuidade e desenvolvimento deste projeto. Visitem
o site 45graus.parafuso.net barra Apoiar para ver como podem contribuir para o
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associados a cada modalidade de apoio. Se não puderem apoiar financeiramente, podem
sempre contribuir para a continuidade do 45° avaliando-o nas principais plataformas de
podcasts e divulgando-o entre amigos e familiares. Muito obrigado pelo vosso apoio
e agora de volta à conversa. Mas olha, isso é uma boa
ponto para falarmos da tua investigação especificamente. Tu acordaras do laboratório de
regulação do ciclo celular. Antes de fazer umas perguntas mais concretas, ia
te pedir, porque vais fazer isso muito melhor do que eu, para
explicar o que é o ciclo celular e o que é a
regulação desse ciclo e quais os fatores, no fundo, que entraram na
regulação desse ciclo.
Mónica Bettencourt Dias
No nosso grupo nós estamos muito interessados naquilo que se chama a
multiplicação das células e que é um mecanismo pelo qual quando todos
nós começamos, como se fosse só uma única célula que resulta da
fertilização, essa célula divide-se muitas muitas muitas vezes para dar origem ao
corpo que nós temos e
essa
multiplicação é aquilo que nós estamos interessados, que também é o processo,
por exemplo, quando falamos de tumores em cancro, é normalmente um processo
em que há uma multiplicação descontrolada da célula que dá origem a
um tumor. Nós estamos interessados nesse processo, mas estamos interessados para além
disso, nas máquinas dentro das células que regulam este processo, que tem
a ver com o esqueleto das células, porque as células, tal como
uma casa, também têm uma estrutura que as define, e esse esqueleto
é muito importante e estamos também muito interessados na maneira como estas
células falam com o ambiente em que vivem. As nossas células têm
uma espécie de uma antenazinha, a maior parte delas, em que no
fundo comunicam com o meio ambiente através dessa antena e essa antena
define parte do que elas fazem. Eu posso dar o exemplo dos
nossos olhos, recebem a luz através de uma antenazinha que existe
Mónica Bettencourt Dias
É mesmo uma antena, portanto as células têm um compartimento que sai
da célula e que funciona como uma antena e que sente a
luz e que tem muitas máquinas lá dentro que são as tais
proteínas
e que
têm a função de receber a luz. E portanto essa antena é
uma antena porque no fundo é projetada para fora para poder concentrar
essas máquinas que recebem a luz, mas que também podem fazer, recebem
sinais de comunicação entre as diversas células, recebem sinais, por exemplo, se
nós comemos suficiente ou não comemos suficiente na última refeição, recebem sinais,
por exemplo, relacionados com o equilíbrio do organismo, recebem sinais relacionados com
o som, muitos sinais diferentes que estas antenas estão envolvidas nessa receção.
E, portanto, o trabalho que nós fazemos é um trabalho até bastante
geral, está envolvido na multiplicação das células mas também está envolvido nesta
comunicação das células com o meio ambiente e umas entre as outras
e também está envolvido no movimento das células, por exemplo, certas células
como por exemplo os espermatozoides têm
José Maria Pimentel
Claro, mas por acaso falaste aí de uma coisa que é uma
dúvida que eu tenho há muito tempo, o que é espantoso no
nosso corpo é o facto de ser um, o do nosso e
dos outros animais e plantas e répteis, é ser um organismo multicelular
em que tu tens uma coordenação entre as várias células tanto dentro
de cada órgão como no corpo todo, não é? Por exemplo, num
órgão específico, sei lá, no estômago, por exemplo, as células, a coordenação
que elas têm é feita através desses dos cílios, através dos receptores,
no fundo, dessas antenas. Como é que funciona? Há
Mónica Bettencourt Dias
coordenação feita através dos cílios, também há coordenação que é feita fora
dos
cílios
e que também receptores ou máquinas que recebem sinais, no fundo, essas
proteínas que recebem sinais que estão na membrana ou na parede dessas
células. Tu tens várias, nós chamamos de receptores, essas proteínas que estão
na membrana das células e estão envolvidas na recepção de sinais, que
podem estar localizados na membrana sem ser um cílio ou podem estar
localizados nos cílios. Nos cílios tu tens, por exemplo, receptores que estão
envolvidos na recepção daquilo que nós chamamos de fatores de crescimento. Por
exemplo, induzem a multiplicação da célula. Tens receptores que estão envolvidos em
fatores que decidem se aquela célula vai ter determinado destino ou outro
destino diferente. Ou seja, que dizem que tu vais ser este tipo
de célula ou aquele outro tipo de célula. Por exemplo, estas antenas
das células estão envolvidas em determinar o número de dedos que nós
temos na mão. Durante o desenvolvimento do embrião há muitos sinais que
vão de umas células para as outras para fazer esta coordenação que
tu
estás a dizer.
Porque no fundo há muita multiplicação das células mas depois tem que
se dizer, tu vais ser um osso, tu vais ser... Pois, e
a minha pergunta tem a ver com isso,
Mónica Bettencourt Dias
ao longo de um tecido, por aí fora. E esses sinais, no
fundo, depois estão coordenados, que é engraçado, não há alguém que esteja
a ditar, mas as coisas vão acontecendo e vão ativando outras. É
quase uma coisa que se chama... É o self-assembly, é aquilo que
tu tens instruções, mas as instruções levam outras instruções, que levam outras
instruções, no fundo é como se fosse um rally paper em que
tu vais descobrindo as pistas e as células vão descobrindo as pistas
ao longo do tempo e a coordenação foi feita inicialmente por alguém
que escreveu as pistas todas e no nosso caso está dentro do
nosso genoma mas depois tu tens que ir pelos passos todos, porque
um passo leva ao passo seguinte, não é? Sim. Não há alguém
que esteja cá fora a deitar, agora aquela célula vai fazer aquilo,
aquela aquilo. Não, é o processo todo que vai levando ao processo
seguinte. Isso
José Maria Pimentel
de que tu estás a falar tem que ver com a formação
do nosso corpo, no fundo, não é? Vou usar outra vez a
analogia tosca, o livro de instruções para a formação do nosso corpo
e no fundo onde pôr as peças, onde não pôr, não é?
Convém deixar os cinco dedos parados e não unidos, por exemplo. Mas
tens outro tipo de coordenação que tem que ver já não com
a formação dos órgãos, por exemplo, mas com o funcionamento... E por
exemplo, eu imagino, mas coiso me estiver enganado, por exemplo, na pele,
as células da pele funcionam de maneira mais ou menos independente e
terá muito que ver com o nosso ambiente, ou seja, se eu
raspo o braço, ou seja, se eu provoquei ali uma... Se faço
uma ferida, é evidente que aquilo precisa de ser restituído e regenerar.
José Maria Pimentel
Sim, claro. Outro aspecto sobre o qual tens de bruxado é a
questão dos centríolos e do centrossoma. Não sei se é assim. Não
sei se a pronúncia é esta. Que é um aspecto muito específico,
mas que eu gostava de falar também porque parece interessante. Segundo o
que eu percebo, mesmo se estiver enganado, os centríolos são aquilo que
compõem, quer dizer, dois centríolos compõem um centrossoma, que é um organel
que faz parte das nossas células, e que entra neste ciclo celular
de vida da célula, no fundo nós estávamos a falar, justamente na
parte da divisão da célula, na altura da divisão dos cromossomas.
Exatamente.
Eu não sei se disse tudo.
José Maria Pimentel
E isso é interessante porque vai para lá da questão do genoma,
normalmente quando falamos do cancro ou de outras doenças tendemos a concentrarmos
no genoma, mas aqui é um exemplo de um aspecto do ciclo
celular que pode ter que ver, aparentemente pode ter alguma relação com
o cancro e não tem que ver estritamente com a questão do
genoma ou sequer com a replicação do genoma. A dúvida que existe
aqui é, por exemplo, na tua investigação, vocês perceberam que em células
cancerosas é normal haver, em vez de haver só dois, nesta altura
da multiplicação, em vez de haver só dois centrossomos, como é suposto
haver um em cada ponta, muitas vezes há mais do que dois.
A questão é perceber se isso é uma causa ou uma consequência,
ou seja, se foi o facto de ter havido erros que levaram
a que se tivesse criado mais do que dois que levou ao
cancro ou se isso é uma consequência do cancro, de repente começa
a haver uma série de mutações e também entre as mutações, ou
seja, no fundo, se é um subproduto ou se é uma causa,
não é? Hoje em dia
Mónica Bettencourt Dias
o que é que se sabe sobre isso? Portanto, estas estruturas que
existem dentro das nossas células, que são chamadas de centrosomas, como estavas
a dizer, que também ajudam a formar as tais antenas que eu
estava a falar, elas ajudam a dividir, no fundo, quando uma célula
se multiplica, esta célula tem que multiplicar tudo o que está dentro
dela porque é uma célula que vai dar origem a duas e
portanto essas duas células querem ter a mesma coisa que a célula
mãe tinha portanto a mãe tem que duplicar-se
a
si própria para dar origem a tudo para cada uma das filhas
e portanto nessa duplicação tem que dividir o genoma que foi multiplicado,
que passou a ser dois, para que cada uma das filhas tenha
a mesma quantidade igual. E os centrossomas ajudam nesta divisão em dois,
ou seja, da mesma quantidade. Quando temos mais centrossomas eles podem fazer
com que essa divisão não seja bem feita e quando o genoma
está a ser segregado não seja exatamente perfeito e portanto uma das
células filhas pode herdar mais ou menos e esse mais ou menos
leva a que tenha a formação errada e pode levar a uma
identidade errada da célula filha que passa a tornar-se uma célula cancerosa.
Além disso, hoje sabemos outras coisas, que é também se tivermos um
número errado de centrossomas, estes centrossomas também funcionam como máquinas que concentram
sinais e que geram sinais que induzem outras células a tornarem-se cancerosas
Ou também induzem as células a separarem-se umas das outras. Isto é
muito importante porque nos processos de metastização as células às vezes saem
do tecido onde estão muito arrumadas, muito bonitas e que soltam-se desse
tecido para aí conquistar outro tecido. Entram na corrente sanguínea. Entram na
corrente sanguínea e para fora. E nós sabemos que agora ter mais
centrossomas pode ajudar neste processo de se soltarem e de invadirem outros
tecidos. Portanto, o centrossoma, quando está desregulado, pode ter várias maneiras de
induzir a formação de tumores. A verdade é que a hipótese que
o centro-ossoma desregulado podia formar tumores é uma hipótese que já foi
levantada há mais de 100 anos por um biólogo muito famoso, o
Bovo, italiano, mas que durante muito tempo, porque as estruturas são tão
pequenas, havia pouca evidência que se pudesse utilizar para realmente substanciar essa
hipótese, é validar essa hipótese. Mais recentemente começámos a ter maneiras de
fazer isso, nomeadamente nós descobrimos no passado uma proteína que consegue manipular
o número de centrossomas E então, no fundo, agora voltamos à questão
do processo científico, esta questão de se os centrossomas podem gerar o
cancro ou não, alterados, é uma questão importante. Eu acho que aqui,
quando a gente fala alguma coisa pode induzir tumores ou não, acho
que qualquer pessoa
Mónica Bettencourt Dias
Nós, no passado, a nossa curiosidade levou-nos a descobrir esta proteína que
descobrimos que quando temos mais dela faz muitos centrossomas e depois várias
outras pessoas pegaram nesta proteína e num ratinho, ok? Puseram demasiado dela
e o que viram que aconteceu é que realmente um ratinho, que
era um ratinho normal, mas ao ter transientemente mais desta proteína e
ter mais centrossomas, passou a ter tumores.
Ok.
Portanto, a grande discussão que tu estavas a falar e que é
muito importante, que é se é causa ou consequência, porque o que
aconteceu depois do Bolvar e por isso foi que as pessoas foram
olhar para o câncer e viram que eles estavam alterados, os centrossomas.
Mas uma coisa é uma correlação, ou seja, eu vejo o cancro,
eu vejo os centrossomas alterados, mas pode ser porque por acaso acontece
assim, pode ser porque os centrossomas induzem o cancro, ou pode ser
que no cancro as coisas já estão tão alteradas, de qualquer maneira,
porque está tudo, aquelas rodas estão completamente doidas, que já as estruturas
dentro delas estão alteradas e daí o número de centrações estará alterado.
E aí a investigação também ser bem feita de conseguir fazer a
pergunta bem feita e qual é a pergunta que nós queremos ter,
se queremos saber se é causa ou consequência, nós queremos manipular o
número de estruturas para perguntar, será que eu agora artificialmente consigo induzir
para, tendo mais estruturas, consigo ver câncer ou não? E conseguimos. Portanto,
nós sabemos que isto pode acontecer. Se na realidade
Mónica Bettencourt Dias
humanos ou não, é outra pergunta
e é
muito importante. Nós, por exemplo, o que já fomos fazer foi olhar
em tumores humanos, olhar uma condição que chama o esófago Barrett, que
é um tumor do esófago e que aí conseguimos olhar para uma
condição que é a condição pré-maligna, que é as pessoas que têm
refluxo ácido, algumas dessas pessoas podem desenvolver o adenocarcinoma do esófago. E
antes disso, elas desenvolvem, as pessoas que têm refluxo há muito tempo,
quando vão ao médico têm refluxo, fazem uma endoscopia e algumas dessas
pessoas podem ter desenvolvido o que se chama metaplasia, ou seja, que
o tecido do esófago em vez de olhar, de parecer como tecido
do esófago, parece como tecido do intestino ou do estômago, porque parece
um tecido mais adaptado ao ácido, por causa do refluxo ácido. E
algumas dessas pessoas podem desenvolver tumores, o adenocarcinoma do esófago, e por
isso é que essas pessoas são seguidas, periodicamente, rotina para e fora.
Portanto, neste contexto deste modelo de tumores, nós conseguimos olhar para a
condição antes do tumor aparecer, que é esta metaplasia, onde olhamos para
o esófago e perguntamos se nestas pessoas que têm o tecido esófago
que já aparece como tecido do estômago e para aí fora, se
já tem alteração de centrossomas, e nós vimos que tem, ok? Portanto,
antes do tumor aparecer já pode haver alterações de centrossomas. Portanto, pode
ser que os centrossomas realmente estejam a fazer alguma coisa cedo. Se
não tivéssemos visto, nós diríamos, naquele tipo de tumores, provavelmente não. Aqui
podemos dizer provavelmente sim. Não podemos ter a certeza que sim, mas
podemos dizer que provavelmente sim.
José Maria Pimentel
Isso é muito interessante, por acaso. E o que tu estavas a
explicar há bocadinho é que o efeito de alterações nos entrosomas, que
pode ser alterações de número ou alterações de forma, Pode ser um
efeito direto de deturpar o processo de replicação daquela célula, mas também
pode ser um efeito ambiental de dar sinais errados. O que no
contexto do cancro faz todo sentido. Faz todo sentido, sim. Que giro,
tem muita piada. Mónica, olha, muito obrigado pela conversa.
Obrigada, eu.
Gostei muito. Também. E Foi giro porque começámos na parte mais de
políticas de investigação e acabámos a falar da investigação propriamente dita e
da ciência. Obrigado.
Obrigada,
eu. O 45 Horaos é um projeto tornado possível pela comunidade de
mecenas que o apoia e cujos nomes encontram na descrição deste episódio.
Agradeço em particular a Carlos Martins, Gustavo Pimenta e Eduardo Corrêa de
Matos, Joana Monteiro, Rui Oliveira Gomes, Corto Lemos, Joana Farialve, João Baltazar,
Mafalda Lopes da Costa, Rogério Jorge, Salvador Cunha e Tiago Leite. Até
ao próximo episódio. Legendas pela comunidade Amara.org