#81 Joel Pinheiro da Fonseca - Compreender o Brasil: os erros dos governos do PT, a reacção...
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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o
45 Graus. Neste episódio trago de novo um convidado do outro lado
do Atlântico e que volta a não desiludir. É ele, Joel Pinheiro
da Fonseca, que é economista e filósofo e uma presença frequente nos
médias brasileiros, com colunas de opinião no jornal Folha de São Paulo
e na revista Exame. Para além disso, o convidado tem um canal
de YouTube muito conhecido, pequeno, diz ele a certo ponto na conversa,
mas que na verdade conta com 75 mil seguidores, em que ele
analisa regularmente quer a atualidade política brasileira, quer questões mais de fundo.
Podem encontrar os links para a presença online do convidado na descrição
deste episódio. Depois de seguir o Joel durante algum tempo, fui-me a
perceber do que pensamos de forma muito similar e por isso decidi
convidá-lo para o podcast, de forma a tentar compreender melhor o Brasil
dos últimos anos, o Brasil atual, e tentar perceber o que é
que se pode seguir daqui. Se bem se lembram, conversei também sobre
este tema aqui há uns meses, no episódio 70, com Cláudio Couto,
cientista político, mas o tema ficou, obviamente, muito longe de ser esgotado.
No atual ambiente polarizado que se vive no Brasil, o Joel distingue-se
desde logo por se afirmar como liberal, o que significa que não
é próximo nem dos governos PT, nem muito menos da onda de
extrema-direita que apoia o atual governo Bolsonaro. E, na minha opinião, o
convidado distingue-se nos seus artigos por problematizar a política brasileira de uma
forma que é simultaneamente rigorosa e que mostra um pensamento muito original.
Durante a conversa percorremos uma série de aspectos que ajudam a explicar
as mudanças recentes na política brasileira e podem ajudar a perceber o
que é que se pode seguir. No dito episódio que gravei com
o Cláudio Couto, comecei por lhe perguntar como chegámos aqui, isto é,
o que correu mal para que alguém como Bolsonaro tenha sido eleito.
E foi mais ou menos essa pergunta que comecei por fazer também
ao Joel, o que nos levou a discutir os erros dos governos
do PT em relação à economia, desde a abertura incompleta aos mercados
internacionais até às políticas na área da educação. Olhando mais para o
futuro, falámos sobre o governo Bolsonaro e o que se pode esperar,
em particular em termos de políticas económicas, e visto que Bolsonaro se
candidatou com uma agenda pouco usual, que junta políticas típicas da extrema
direita com a defesa de liberalização na economia. A propósito, queria corrigir
um lapso. A capa da revista Economist que falamos a certo ponto
e que era muito elogiosa em relação ao Brasil não é de
2013, mas sim de 2009. Seguidamente falámos de mudanças mais profundas do
que propriamente o rumo da economia. Por exemplo, a reação ultraconservadora que
se vive em algumas faixas da população brasileira e a perda mais
generalizada de confiança dos cidadãos nas instituições e na democracia em particular.
Estes são aspectos com um impacto bem mais profundo na opinião dos
eleitores, até porque tocam em algo muito mais fundamental, a identidade e
o sentimento de pertença a um grupo. O impacto destes fatores na
mudança política que levou Bolsonaro ao poder tem aspectos que são particulares
do Brasil, mas insere-se numa tendência maior que é a transversal à
ascensão de movimentos populistas nas democracias ocidentais. Um aspecto em particular que
tem um impacto inegável na perda de confiança dos cidadãos nas instituições
é aquilo que podemos definir como a desintermediação provocada pelo surgimento das
redes sociais. No caso do Brasil destaca-se em particular o papel do
WhatsApp que passou para muitas pessoas a ser o único meio de
obtenção de informação que é transmitida por amigos e conhecidos, informação não
filtrada, claro, e que se substituiu à intermediação tradicionalmente feita pelos jornais
e mesmo pela televisão, que muitas pessoas hoje em dia já nem
sequer veem. E isto explica, ou ajuda a explicar, porque é que
há hoje no Brasil, tal como nos Estados Unidos, um movimento, marginal,
mas que tem peso suficiente para que se fale nele, de pessoas
que afirmam acreditar que a Terra é plana. Neste capítulo discutimos em
particular a ascensão dos movimentos populistas de direita e falámos também no
caso Português, onde já temos o partido do género no Parlamento, sendo
que na verdade, quando gravámos, eu hesitei em qualificá-lo como Partido Extrema-Direita,
mas isto a tensão foi antes daquele comentário racista de há umas
semanas ter vindo clarificar as águas. E pronto, a introdução já vai
longa, por isso deixo-vos com Joel Pinheiro da Fonseca.
José Maria Pimentel
Vamos começar, inevitavelmente, pela situação política brasileira. Eu gostava de ter a
tua visão em relação à situação atual e como é que nós
aqui chegámos. A minha intuição, e era um bocadinho também em relação
a isso que eu gostava de ter a tua opinião, é que
aqui nós podemos falar de duas coisas um bocadinho diferentes. Ou seja,
nós por um lado temos causas, digamos assim, conjunturais, e que levariam
a uma alteração de partido no poder em qualquer caso, e que
podia ser uma alteração drástica como foi e que tem a ver
com problemas na economia, basicamente, a economia abruptamente deixar de crescer e
passar, aliás, por um período de recessão, é isso. Quer dizer, esse
é o B.A. Abad da política, que obviamente provoca um descontentamento geral,
o crescimento da insegurança nos últimos anos e também, embora isto esteja
relacionado com o segundo fator que vou falar, também a questão da
corrupção. O aumento da corrupção, pelo menos, aumenta a percepção da corrupção.
Mas por outro lado, há outros fatores que não são tão conjunturais,
que são mais estruturais e mais indiretos, em certo sentido, de que
a corrupção pode ser um bocadinho o exemplo, mas também tem que
ver com uma espécie de recrudescer de uma via muito mais até
do que conservadora se calhar reacionária e que terá alguma coisa que
ver também com o aumento brutal de peso das igrejas evangélicas e
com uma espécie de aumento de peso da religião E que aí
já não tem só que ver com uma mudança de poder, mas
sim com o tipo de direção para que o Brasil foi, e
que tem que ver com não só ter um tipo populista, mas
que tem lives de, em muitos casos, extrema-direita. Mas ainda agora falávamos
em off da questão do vídeo do secretário da Cultura, que é
uma coisa, uma bizarria, não é? Um vídeo a decalcar um discurso
do Goebbels, mas que... E ele entretanto foi demitido, mas ainda assim
ele
Joel Pinheiro da Fonseca
não surge por acaso, não é? Não surge por acaso, a gente
pode dizer que ele errou no sentido de foi longe demais. Foi
longe demais na direção na qual o governo já caminha. Então, quer
dizer, ele passou dos limites, mas não é que a direção do
movimento que a gente tenha visto ali seja muito qualitativamente diferente da
direção que o governo segue. Olha, eu acho que você resumiu bem
diversos fatores que explicam como é que a gente chegou aqui. Vivemos
uma reação a um momento muito duro da história brasileira recente, que
foi essa recessão profunda. Na cabeça das pessoas, quer dizer, o raciocínio
causal e o exame das causas dos problemas que nos afligem nem
sempre é muito apurado, mas dia de regra. Se o governo está
no poder quando uma grande crise econômica começa, as pessoas vão associar
a causa dessa crise ao governo que está ali. E no caso,
eu acho que essa associação é correta, porque foi a política econômica
dos anos do governo PT, especialmente da Dilma, que produziu o rombo
fiscal, o buraco nas contas públicas, que nos levou a essa situação
e que ao mesmo tempo negligenciou totalmente as causas mais perenes do
subdesenvolvimento brasileiro. Então não investiu no nosso crescimento de longo prazo, não
investiu em educação, não resolveu a nós gargalos de infraestrutura, acreditou que
fosse possível crescer indefinidamente só alimentando o consumo, fazendo com que os
bancos públicos e os privados barateassem o crédito, baixassem os juros, que
o governo gastasse mais, promoveu-se um boom do consumo, que evidentemente é
ótimo, mas que tinha duração limitada também, o endividamento das pessoas aumentou,
uma hora isso teria que parar, a inflação aumentou também, porque a
nossa capacidade produtiva não estava subindo, Ju, então deu no que deu,
Uma hora teve que parar esse processo, o rombo do Estado das
contas públicas ficou muito claro. Esse rombo não é só culpa do
governo, esse rombo também decorre da nossa própria Constituição, que cria muitas
obrigações de gasto para o governo e a receita do governo aos
impostos não conseguiu aumentar em compasso com esses gastos que são obrigatórios
e que tendem a aumentar com o tempo. Tem também tudo a
ver com o gasto do governo do Estado brasileiro com previdência e
com aposentadorias, outro gasto obrigatório que tende a aumentar. Então tem processos
maiores do que só o governo PT, mas sem dúvida alguma o
governo Dilma, ao abrir mão completamente de procurar super hábitos primários, procurar
gastar menos do que ela arrecada a cada período, ela gastou mais.
E isso acentuou então esse processo, provocando uma grande crise econômica, da
qual ainda não saímos até agora. Temos alguns anos já em que
não estamos mais em recessão, mas a recuperação é muito lenta. Então
o Brasil ainda sofre, ainda temos cerca de 12 milhões de desempregados,
é muita gente que queria estar trabalhando. Então acho que as pessoas
sentiram isso e isso foi ao mesmo tempo de uma outra coisa.
Logo antes da crise econômica começar para valer, revelou-se por uma operação
da Polícia Federal e do Ministério Público e também da imprensa, que
falou disso ininterruptamente, aos quatro ventos, sobre um escândalo ético de corrupção
no governo, envolvendo empresas estatais como a Petrobras, mas envolvendo também a
relação do governo PT com grandes empresas privadas brasileiras, muitas delas que
foram escolhidas pelo governo para serem campeãs nacionais, como a JIF, essa
empresa de carnes aí, que é um conglomerado enorme, você teve construtoras
como Odebrecht, Camargo Correia, diversas grandes empresas nacionais envolvidas até o pescoço
em escândalos de propina, em esquema, não só o Partido do Poder,
que era o PT, mas diversos outros que também compunham a sua
base, como o PMDB, o PP, o Brasil é um país de
muitos e muitos partidos, e
Joel Pinheiro da Fonseca
nosso Congresso tem 513 cadeiras, o maior partido tem 50 e poucas,
então é bastante fragmentado isso. E portanto não era só o PT
envolvido, a corrupção não era um monopólio nem uma invenção do PT,
mas ele estava liderando esses sistemas e levou ela a níveis que
nunca tinham sido descobertos em tamanha magnitude, envolvendo vários países, inclusive, envolvendo
obras em Cuba, obras em países africanos, enfim, a coisa era muito
grande. Isso gerou, do meu ponto de vista, também uma reação compreensível
da população de estamos fartos. No Brasil sempre vigorou a ideia de
que política é uma coisa corrupta. Política é coisa de corrupto. E
isso sempre foi visto dessa maneira. Ah, os políticos lá em Brasília
não se preocupam com a gente, é tudo corrupto. Essa visão é,
em parte, injusta, porque tem pessoas boas e tem gente que faz
um trabalho sério. Mas o brasileiro saiu de uma posição meio fatalista
disso, a corrupção está ali, não tem o que fazer e vai
continuar sempre, para uma posição extremamente revoltada e querendo resolver e cortar
pela raiz o mal da corrupção. Eu acredito que não seja só
uma questão moral, uma questão de que precisamos de pessoas com uma
moral rígida e austera. E essas pessoas é que... Isso é o
remédio contra a corrupção. Mas o Brasil passou por esse surto. E
o PT e outros partidos, não só ele, também o MDB, que
é um... E outros grandes partidos que não tem uma ideologia muito
clara, mas passaram a representar para a população o que é a
corrupção no país, o que a gente chama de fisiologismo político, a
preocupação apenas com a própria sobrevivência política. E houve uma grande revolta
da população contra eles, levando à procura de pessoas que representassem algo
novo.
Joel Pinheiro da Fonseca
Uma certa pureza moral, uma certa intransigência com a velha política e
com a esquerda. Afinal, quem estava no poder tinha um discurso de
esquerda. Isso é um elemento. Tem outros elementos. A elite cultural intelectual
do país, que é bastante progressista nos seus valores. Ela também tem
uma desconexão muito grande com grande parte da população, com a classe
média, com os valores da classe média. Talvez eu sinto também uma
reação a uma postura muito agressiva da nossa elite cultural e da
produção midiática e cultural e artística no Brasil. Valores que eu até
concordo, de aceitação, de tolerância, de pluralidade, de orientações sexuais e gênero
e todo o resto, mas empurrando isso de forma bastante militante até,
com uma população que está muito estante.
Joel Pinheiro da Fonseca
Mudem a maneira como pensam, que não só tolerem, não só respeitem,
mas que celebrem, que achem aquilo maravilhoso e que se não celebrarem
existe algo profundamente errado e preconceituoso e imoral com elas. E uma
hora a pessoa reage a isso, porque ela está sendo atacada em
sua identidade, nos seus valores. Então acho que também teve um elemento
de reação assim, acho que esse conservadorismo tem muito a ver com
isso, conservadorismo alimentado faz tempo pela ascensão de igrejas evangélicas aqui, e
acho que por fim, eu creio que o Brasil faz parte também
de um processo maior, um processo global de acirramento e de polarização,
que eu acredito que tenha como pelo menos um dos seus catalisadores
as novas ferramentas de comunicação, as redes sociais que permitem que a
pessoa se isole muito e que ela receba informações feitas apenas pra
ela e por pessoas que pensam como ela e que ela ganhe
reputação e busque crescer em estima pelas pessoas ao seu redor, manifestando
um grau de pureza cada vez maior nas suas convicções, nas suas
crenças, eu acho que teve tudo a ver. Eu não vejo, por
exemplo, um Bolsonaro sendo eleito se não fosse o WhatsApp. Acho compreensível,
acho que seria inimaginável a eleição do Bolsonaro sem a existência de
WhatsApp, Facebook.
José Maria Pimentel
A minha ideia era ir um por um porque acho que temos
aqui coisas com que nos entreter. Se calhar começava pela questão da...
Bem, eu não sei se se chama assim no Brasil, mas em
Portugal normalmente se chama se chama da promiscuidade entre o público e
o privado, ou seja, tu teres empresas privadas muito próximas do poder
público. Eu acho esse um tema muito importante e muito importante para
pessoas como nós que se identificam politicamente como liberais porque é uma
questão que é preciso atacar de frente, até porque é uma questão
que cria muita confusão nas pessoas porque o liberalismo não passa por
isso, passa pelo contrário justamente, não é defender as empresas privadas ou
sobretudo determinadas empresas privadas, é defender o funcionamento dos mercados, que é
muito diferente e em muitos casos implica precisamente evitar ao máximo esse
tipo de promiscuidade, que é um problema institucional que existe no Brasil
e existe em Portugal também, nós tivemos vários casos, quer dizer, eu
ia dizer não tão gritantes e não sei se é completamente verdade,
mas pelo menos não tão determinantes politicamente como os casos do Brasil,
mas tivemos vários casos e temos, ainda estamos a lidar com eles
justamente de determinadas empresas ou bancos que por estarem muito próximas do
poder público, tiveram favorecimentos, tiveram, no fundo, situações desleais de concorrência e,
quer dizer, nenhum país pode ser um país com liberdade econômica elevada
se não resolver este problema. Ao ter este defeito institucional, o que
tu vais ter é um problema cada vez maior de promiscuidade entre
o público e o privado e a resposta das pessoas vai ser,
que é a resposta lógica em certo sentido, de querer tirar lá
os privados e ter mais Estado, ter um Estado maior e um
Estado mais forte e resolver o problema por aí. Perfeito.
Joel Pinheiro da Fonseca
E existem dois caminhos possíveis. Curiosamente, no Brasil, a bandeira da privatização
ganhou muita força com esses escândalos todos, especialmente envolvendo a Petrobras. O
discurso é o seguinte, olha, uma empresa estatal, uma empresa pública, ela
vai estar sempre, cronicamente, com esse problema do aparelhamento político dela e
do uso político. A Petrobras sofreu de duas maneiras. Uma foi realmente
esse aparelhamento político dela, o uso dela na corrupção, contratos escúrios usados
para pagar propina, obras totalmente desnecessárias, isso foi um dos lados. Mas
curiosamente foi o que menos afetou, do ponto de vista financeiro, o
petrobrás. Muito mais grave do que isso foi uma política do governo
de manter o preço do combustível baixo. Essa política causou um prejuízo
muito maior para a empresa, nossa empresa de petróleo, do que mesmo
a corrupção. Então, quer dizer, esses usos políticos, sejam legais ou ilegais,
promoveram aí uma destruição desta que era a empresa que simbolizava o
orgulho nacional, digamos assim.
Então
a bandeira da privatização ganhou muita força, até como resposta a isso,
para dizer olha, chega de empresa pública, empresa pública é cabide de
emprego, empresa pública é um palco de corrupção, vamos privatizar as empresas.
Claro, Muitos outros esquemas de corrupção foram, como você bem indicou, cometidos
na relação entre o Estado e a empresa privada. Não é que
esse discurso resolva alguma coisa, mas é um desafio para o Brasil
aumentar essa distância entre o privado e o público, que se manifesta
em diversos obstáculos a uma economia mais liberal, por exemplo, a abertura
econômica do país. Bom, abertura econômica que seria muito importante para o
nosso desenvolvimento, não existe país que tenha enriquecido sem estar profundamente conectado
ao resto do mundo no comércio. Tem países que enriqueceram com uma
economia até com bastante intervenção do Estado.
Joel Pinheiro da Fonseca
tem uma grande participação do Estado ali, mas elas são economias globalizadas,
elas são economias que participam ativamente do comércio mundial e você tem
países mais liberais que enriqueceram, Você tem o Chile, ou Estados Unidos,
ou Nova Zelândia, ou Austrália, quer dizer, países no qual o Estado
não tem um papel tão grande assim na vida econômica, mas que
também são ricos e, de novo, são países integrados à economia global.
O Brasil não. O Brasil é um país ainda bastante fechado e
essa abertura econômica, ela atinge interesses econômicos aqui dentro. Globalmente para o
país seria benéfico, mas para alguns setores específicos não seria benéfico. Eles
têm um grande peso na hora de travar essas iniciativas. Outro caso,
a reforma tributária. O Brasil é um país com uma das leis
tributárias mais complexas do mundo. Nós somos os recordistas disparados daquele ranking
de tempo que as empresas gastam para calcular e pagar os seus
impostos. É uma complexidade total e uma insegurança jurídica total, porque a
empresa nunca pode ter certeza que ela pagou de fato o que
ela devia. E se um auditor da Receita Federal concluir que não,
que ela pagou errado os seus impostos, e processá-la, ela pode estar
com um prejuízo enorme em mãos. Você nunca tem segurança jurídica nenhuma
de que você cumpriu suas obrigações tributárias. Então esse é um das
primeiras prioridades para o Brasil se tornar uma economia mais livre, com
mais concorrência e todo o resto. Agora, a situação tributária atual, que
cria uma ineficiência para o sistema como um todo, ela tem quem
se beneficie delas. Ela tem empresas que sabem muito bem que se
a gente tiver uma carga tributária mais justa, mais simples, vão sofrer
com isso. Portanto, criam grandes entraves a gente poder discutir de forma
madura e responsável uma mudança na nossa legislação tributária. Também tem uma
competição entre estados, que acaba sendo muito danosa e que criam cada
estado com as pequenas regras tributárias, cria um caos total e as
empresas não atuam só num estado, elas estão em diversos estados, então
cria uma confusão que seria muito bom que fosse resolvida, mas tem
muitos interesses contra e são interesses concentrados. Isso vale aquela regra que
vale para tantas questões econômicas. Os benefícios de um passo em direção
a uma economia mais livre são difusos, Beneficia todos os consumidores, beneficia
empresas que nem existem ainda, porque hoje em dia não vale a
pena, e empreendedores futuros e tudo. Então esse grupo difuso e grande
que será beneficiado não é organizado, não luta pelos interesses, e ela
prejudica grupos pequenos, mas muito concentrados e que têm consciência disso e
que se organizam para combater essas mudanças. Então a mistura entre o
público e o privado continua forte no Brasil. Em parte o voto
no candidato Bolsonaro foi uma revolta também contra isso, mas o bolsonarismo
e o governo reproduzem esse tipo de relação espúria direta. Por exemplo,
quando Bolsonaro quis nomear o seu filho, que nem inglês direito fala,
para embaixador em Washington. Quando um outro filho dele, de forma não
oficial, basicamente cuida da comunicação do governo. Quando interesses de igrejas são
colocados na agenda do governo, quando o presidente discutiu seriamente dar isenção
da conta de luz para todos os templos religiosos neste país. Infelizmente,
uma pressão pública contrária conseguiu demovê-lo dessa ideia, Mas ela esteve em
discussão. Quando o presidente negligencia deliberadamente a proteção ao meio ambiente, permitindo
que grileiros e pecuaristas coloquem fogo na Amazônia e cresçam de forma
ilegal, e depois, ainda por cima, o governo anuncia uma anistia a
terras que foram griladas. Grilada é uma terra que era do governo
ou que não tinha dono ou que era do governo, em geral
uma floré, uma parte, um trecho de floresta que foi desmatado, transformado
em fazenda de forma irregular, mas que o dono manteve-se ali. Ele
contrata alguém para desmatar o terreno, bota rebanho naquele terreno e passam-se
os anos. Na prática, aquilo acaba virando uma fazenda e o governo
anunciou que vai anistiar terras griladas até certo ano, ou seja, premiando
o rompimento da lei de diversos interesses privados, os interesses privados mais
obscuros, mais predatórios, que nem se manifestam politicamente, porque vivem basicamente do
ilegal.
José Maria Pimentel
No fundo voltamos à questão das instituições. Para tu ter uma economia
liberalizada, aberta, tu precisas ter instituições de qualidade, porque senão o que
tu vais ter é, vais ter sempre algumas franjas com mais poder
do que outras e vais sempre ter o Estado a intervir, a
abrir determinados interesses. Mais no início da conversa, estavas a falar da
questão das empresas campeãs nacionais, que é uma estratégia que, por exemplo,
essas economias do extremo oriente, do sudeste asiático usaram. Coreia do Sul,
Singapura, por aí. E esse é um ótimo exemplo. Se tu tiveres
instituições de qualidade, tu consegues seguir uma estratégia desse género de modo
a que ela seja proveitosa, quer dizer, e no fundo estás a
dar o empurrão àquelas empresas que elas precisam para arrancar e para
se tornarem competitivas internacionalmente. Se tu não tiveres instituições de qualidade, o
que vai acontecer é que essas empresas campeãs nacionais vão ser na
prática uma colmeia de interesses em que tu vais ter os políticos
com mais poder, quer dizer, obter uma renda dessas empresas ou essas
empresas a funcionar como veículo de opressionalização das políticas do governo a
nível de popularidade, por exemplo, vamos supor que a Petrobras era um
exemplo desse género, que era privada, por exemplo, instruções para controlar o
preço do petróleo porque o governo obviamente sabe que se a gasolina
aumenta vai perder popularidade. E portanto, no fundo, para o mesmo grau
de liberalização, se tu quiseres, consoante a qualidade das instituições, tu podes
ter resultados diametralmente
Joel Pinheiro da Fonseca
opostos. É verdade, é verdade. Acho que você toca nesse ponto bem.
E no fundo é uma questão cultural, talvez, também. Isso, sim, sim.
Exatamente. De impedências, regras. Se você não tiver uma cultura que minimamente
estimule as pessoas a fazer isso, é difícil qualquer iniciativa dessas vingar.
Agora, eu não tenho certeza também se o desenvolvimento de uma Coreia,
por exemplo, é diretamente causado por essa política de grandes grupos empresariais
familiares que a Coreia fomentou. Uma coisa que os países asiáticos têm
é muita poupança e muito investimento em capital humano. E eu me
pergunto se no fundo, no fundo, não importa tanto assim se você
é super liberal, se você é mais intervencionista, isso talvez não importe
tanto, Mas se você tiver uma formação de capital intensa, de capital
físico e capital humano, e tiver uma economia integrada ao resto do
mundo, na divisão global do trabalho, se isso por si só já
não tiver. Não é tão importante qual estratégia você vai utilizar dentro
disso, mas se você tiver essas duas coisas, talvez você esteja fadado
a enriquecer. O Brasil não tem nenhum dos dois. Ele é fechado
e a formação de capital aqui é pífia. Ela vem sendo muito
abaixo, tanto investimento privado quanto público, muito abaixo do que estima-se que
seria necessário para a gente melhorar a nossa malha de infraestrutura e
fazer uma série de outros avanços, melhorar a nossa educação e uma
série de outros avanços aí que seria necessário. E
Joel Pinheiro da Fonseca
Exato. E talvez um país não precise querer ser, estar entre os
mais ricos. Porque a riqueza é uma medida econômica que merge algumas
coisas de um país. O PIB americano, por exemplo. O americano tem
crescido. Necessariamente a vida nos Estados Unidos tem melhorado. Alguns economistas estão
mostrando que não. Olha, as pessoas estão... Tem uma epidemia de remédios
pra dor. As pessoas estão bebendo mais. O suicídio está em alta.
Você... Tem gente se destruindo naquele país. Não necessariamente o crescimento econômico
é diretamente ligado à melhora do padrão de vida. Claro, num país
como o Brasil, que é pobre, com certeza o crescimento econômico estará
ligado sim à melhora do padrão, mas Não necessariamente a gente precisa
ambicionar estar entre os mais ricos, que tem o maior PIB do
mundo. A gente tem que querer crescer. Para isso a gente tem
que dar passos na direção correta e acho que alguns passos têm
sido dados de alguns anos para cá. Inclusive neste governo, inclusive no
governo Bolsonaro, conseguimos fazer uma reforma da Previdência. Olha que coisa, o
Brasil não tinha idade mínima. Conseguimos botar uma idade mínima para a
aposentadoria no Brasil, coisa que a França tentou mudar a sua idade
mínima, não conseguiu. Então, de alguma maneira ou de outra, seja por
que caminho for, a população brasileira aceita certos sacrifícios às vezes, mas
que são importantes para que o barco não afunde
José Maria Pimentel
Exatamente. Agora, a dificuldade, isso é uma coisa que eu noto cá
também, quer dizer, existe em todo lado, obviamente, mas em graus diferentes,
é a dificuldade em pensar no longo prazo, ou seja, antecipar problemas.
Tu falavas há bocadinho no início dos governos do PTI, não só
que não geriram uma série de instabilidades que viriam a prazo e
de insuficiências da economia e que depois essa falta de cuidado, essa
falta de atenção a preparar o futuro levou a que a economia
tivesse entrado em recessão. Na altura havia quem chamasse a atenção para
isso? Ou eu quero dizer que esta pergunta é... Agora é fácil
olhar para trás e dizer que faltava isso, mas na altura havia
quem identificasse esses problemas? Porque é que não se fez? Teve
Joel Pinheiro da Fonseca
momentos em que o PT era quase hegemônico no Brasil, mas sempre
houve críticos das duas coisas. Primeiro, do abandono gradual que o PT
fez de conquistas econômicas muito importantes que ele recebeu como legado do
governo anterior. O governo Fernando Henrique, que veio antes do governo Lula,
foi um governo que conseguiu controlar a inflação, conseguiu transformar em lei,
mas também em prática de governo, a responsabilidade fiscal, ou seja, o
governo vai tentar arrecadar mais do que ele gasta e conseguiu fazer
isso. Então entregou uma situação muito boa para o seu sucessor no
sentido dessa arrumação da casa. E O Lula preservou, o Lula soube
preservar isso ao longo de quase todo o seu primeiro mandato. Inclusive
ele era assessorado por bons economistas. E o Lula preservando isso teve
um mérito, foi capaz de fazer políticas sociais voltadas à base da
pirâmide brasileira, à base da pirâmide social brasileira, que era muito desamparada.
Isso foi muito positivo, sim. O símbolo desses méritos é o programa
Bolsa Família, que é uma distribuição de renda direta para pessoas pobres
e que faz toda a diferença, dá a elas um novo nível
de consumo, melhora a vida de muita gente. Então, isso é um
grande mérito do governo Lula. Mas gradualmente, depois disso, depois dos primeiros
escândalos de corrupção, que tiraram, infelizmente, do governo dele um ministro da
Fazenda, que era muito competente, e outras, junto dele, outras figuras saíram,
e outra ala do PT, muito mais heterodoxa, muito mais populista, a
economia tomou esses lugares. Daí você teve um abandono desse legado econômico
positivo que ele tinha recebido, um abandono da responsabilidade fiscal, e isso
gerou críticas à direita e à esquerda, críticas constantes ao completo desprezo
do governo PT pelo ensino básico, onde está a grande fraqueza, a
grande carência do ensino, da educação no Brasil está no ensino básico,
vai da infância até o fim do ensino médio, ou seja, antes
da faculdade, antes do ensino superior. Então O PT não deu a
devida atenção a isso, pelo contrário, permitiu que o ensino básico continuasse
muito ruim para a imensa maioria da população brasileira. O descaso completo
do PT com relação ao meio ambiente. Também teve cada vez mais
obras faraônicas com impactos ambientais e para comunidades indígenas ou outras, muito
ruins também. Muitos críticos foram apontando isso. E a falta de investimento
em última análise. Então, sempre houve críticos, sim, mas teve um momento
em que a economia do Brasil estava crescendo. E contra uma economia
em crescimento é muito difícil qualquer crítica colar. A vida estava melhorando,
então, e esses problemas, essas negligências, elas geram problemas do longo prazo.
O longo prazo não está aqui ainda. A população feliz chancelou a
volta do PT muitas vezes, aí quando muitas pessoas já apontavam problemas
sérios que
Joel Pinheiro da Fonseca
que foi em 2013, do vídeo do Redentor decolando. Isso, exatamente, essa
capa. Fazendo Justiça Revista, ela no corpo da matéria não era só
Luan Sao Alcoverno PT, não. Ela apontava problemas, sim, alguns desses que
eu falei, inclusive, e apontava riscos. Mas sim, houve uma crença de
que o Brasil estava decolando aí e que o crescimento ia vir
de forma sustentável e logo depois o foguete perdeu o rumo e...
José Maria Pimentel
O apoio caiu. Exato. Parecia aquelas desculagens de foguetões. Mas, por exemplo,
a questão da educação, do ensino básico, é até curiosa para um
partido de esquerda, não é? Que se diria preocupado com a educação.
Ou havia, como muitas vezes estou a pensar no caso português, e
muitas vezes acontece isso, muitas vezes a esquerda tem uma preocupação em
democratizar o acesso à educação, mas não necessariamente com a qualidade da
educação, se quiseres. O que depois é perverso. Por exemplo, aqui em
Portugal há uma diferença de qualidade crescente entre as escolas privadas e
as escolas públicas, que tem justamente a ver com, bem, eu não
diria que o sistema de educação é péssimo, está longe disso, mas
tem que ver com as insuficiências do sistema de educação público, leva
às pessoas que podem a pôr os filhos no sistema de educação
privado, que salvo algumas exceções honrosas é melhor do que o público.
Joel Pinheiro da Fonseca
Olha que curioso aconteceu no Brasil, quem universalizou o ensino básico no
país foi o governo FHC. Ele expandiu...
Fernando
Henrique Cardoso. Fernando Henrique Cardoso. Ele expandiu... Antes no Brasil, em grande
parte da população, não ia para a escola. Eram analfabetos mesmo. Então
ele pelo menos conseguiu fazer com que a imensa maioria das crianças
e jovens estivessem matriculados no ensino básico. Isso foi uma grande conquista,
algo muito positivo. Por outro lado, a qualidade desse ensino básico é
muito fraca. Quem cresceu no Brasil dos anos 60, por exemplo, muitas
pessoas de classe média lá frequentavam escola pública e lembram com saudades,
como a escola pública era boa e não sei o que de
fato era, mas a escola pública quem tinha acesso a ela era
uma minoria, a maior parte do país não estava nem indo, nem
ia à escola,
não
aprendia nem a ler e escrever. Então quer dizer, é uma memória
de uma época em que o ensino público era melhor, era, mas
era um ensino público elitizado.
Conseguiu se
democratizar o ensino público, foi um grande mérito, mas a qualidade dele
ficou ruim. E o PT, quando se falava em educação, e até
hoje esse é um cacoete brasileiro, difícil de soltar fala assim em
educação, e a primeira coisa que vem à cabeça de todo mundo
é universidade, é o ensino superior. E o PT expandiu aí sim
o acesso ao ensino superior de forma massiva de duas maneiras. Uma
com a construção de muitas novas universidades federais, que tem um nível
até que razoável, não sei se todas elas valem de fato investimento,
mas podemos dizer que, ok, cumprem um trabalho, elas não é grande
parte da população que tem acesso a uma universidade federal, são os
seus melhores, muitas vezes são as elites locais, outras que vão, mas
conseguem abarcar também alunos vindos de escola pública, não é que estão
cada vez mais acesso a elas cada vez mais democratizado, por regras
de cotas e outras coisas assim. Uma política foi construir universidades federais,
mas o grosso das pessoas que vão para o ensino superior não
são esses que vão para os federais. E teve outra política, que
foi a política de financiamento do ensino superior para que os jovens
frequentassem o ensino superior privado, universidades privadas. A imensa maioria do ensino
superior no Brasil é de instituições privadas. Existem algumas, poucas, instituições privadas
de ensino superior de excelência, faculdades de excelência, em geral frequentadas mais
por pessoas de elite, e o grosso dessas universidades privadas são de
uma qualidade sofrível, muito, muito ruim, que enganam realmente os jovens. E
o governo, esse é outro exemplo de como aliança governo, interesses privados
operou. Grupos
educacionais,
alguns deles, se eu não me engano, o grupo Croton, do brasileiro,
é o maior grupo educacional do mundo. Você tem uma ideia do
tamanho dele criando universidades aqui e que recebia dinheiro público porque o
aluno pobre que vai não vai ter dinheiro para pagar, o Estado,
o banco, o Estado paga essa empresa privada que cria a faculdade
e entrega uma educação de péssimo nível para aquele jovem no fundo
quase um engodo, sabe? Porque ele não está saindo com uma formação,
muitos nem concluem o curso, algumas desses financiamentos a pessoa teria que
pagar depois, mas não conclui, também não paga o rombo que nas
contas que deu, isso foi total também, a qualidade é baixíssima, então
aí a gente pode falar de um real fracasso. Foi uma política
vistosa, que aumentou os números de pessoas do tipo superior, mas a
qualidade de educação, a formação de capital humano não aumentou nesse período
e transferiu-se muita renda, muita riqueza, para grupos empresariais enormes que não
fazem um bom trabalho. Aí os jovens ficaram a ver navios porque
não saíram com diploma, mas sem o conhecimento. Então, educação ficou se
significando isso. Até hoje o foco, a gente tem um fetiche com
o ensino superior muito grande, imagino que os portugueses também, isso impede
a fazer o trabalho muito menos glamuroso, que é o trabalho de
melhora do ensino básico. Infelizmente, o governo Bolsonaro no início teve a
chance, tem profissionais no Brasil de institutos, ONGs, gente séria que trabalha
a questão do ensino, estudam o assunto com as melhores referências mundiais,
querem fazer um bom trabalho, foram sempre críticos ao PT, estavam dispostos
a trabalhar com o governo Bolsonaro, mas infelizmente o governo Bolsonaro acabou
cedendo a outras pressões políticas, pressões dos evangélicos, pressões de grupos ultra-reacionários
ligados a uma ideologia nacionalista, meio Donald Trump, aí maluca, é o
que também é dele, acabou dando...
Joel Pinheiro da Fonseca
O Olavo de Carvalho, exatamente. E por pressão dessas figuras, acabou indo
para pessoas totalmente desqualificadas. Enfim, o Bolsonaro teve uma oportunidade, ele teve
assim um passo de chamar uma pessoa muito competente para ser Ministro
da Educação, por pressão de evangélicos e de olavistas, infelizmente não o
fez e agora já cometeu tantas garfes, tantas grosserias, comprou tantas brigas,
queimou tantas pontes, que eu não vislumbro mais a possibilidade dessa cooperação
que tinha no início do mandato.
José Maria Pimentel
Porque Bolsonaro surge, no fundo, a reboque de várias tendências e uma
delas era justamente uma tendência, podemos chamar, liberalizador ou liberalizante, em certo
sentido, que reconhecia a necessidade de tornar a economia mais competitiva, reconhecia
a necessidade de reformar o sistema, lá está, como dizias, tributário, o
sistema de segurança social, que vinha à reboque do Guedes, que é
o ministro da Fazenda, certo? Sim, Paulo Guedes. Exatamente, pronto, Paulo Guedes.
E essa foi sempre uma dúvida de início, não é? Porque a
combinação entre liberalismo e coisas que são quase só antídese, como o
ultraconservadorismo social e nacionalismo, era pouco credível, logo desde o início. E
isso era outra coisa que eu gostava de perguntar, o que é
que estes meses têm revelado e o que é que se pode
esperar para o futuro em termos dessas reformas? Porque na prática o
que me parece, pelo que tu me estás a dizer, é que
essa visão mais liberal acaba por perder cada vez mais terreno e,
sobretudo, perder todas as batalhas em que entram em conflito com outras
tendências dentro da massa que apoia o Bolsonaro. Essa
Joel Pinheiro da Fonseca
é uma questão interessante. Olha que coisa, eu caracterizo e coloco o
governo Bolsonaro na mesma categoria de outros governos da direita populista no
mundo. Donald Trump, governo da Hungria, da Polônia, o Fronto Nacional na
França e diversos outros. Para mim faz parte, eles bebem de uma
mesma água ideológica. Mas o governo Bolsonaro tem uma diferença fundamental e
importante. Apesar de todo o discurso nacionalista, apesar da fixação anticomunista da
Guerra Fria, apesar de uma série de questões, na agenda econômica ele
adota um liberalismo até bastante radical. Diferentemente de todos esses outros, nem
Trump, nem nenhum desses outros, prima por
Joel Pinheiro da Fonseca
contrário, são nacionalismo e econômico partindo de uma concepção muito diferente de
proteger os nossos empregos, de evitar a imigração, mas também evitar que
outros países produzam e vendam aqui, enfim, uma visão muito mais protecionista
e nacionalista econômica. O governo Bolsonaro não. Ele é esse casamento entre
essas duas coisas, duas coisas bastante diferentes que não têm caminhado juntas
no mundo. E isso leva a diversos conflitos, muitas vezes. Por exemplo,
a ideia que o Bolsonaro estava tendo de isentar de conta de
luz os templos religiosos. A equipe econômica imediatamente foi contrária a isso.
Houve uma pressão grande, a ideia é bastante estafafúrdia, então acho que
o governo acabou abrindo mão dela. Mas em diversos outros momentos o
conflito surge. Outra questão, a questão do preço dos combustíveis. Uma questão
tão emblemática dos anos Dilma, que prejudicou tanto a nossa economia, porque
ela manteve preços baixos para manter o povo feliz, e que ressurge
aqui em 2018, depois que a Dilma já tinha sofrido impeachment, teve
dois anos e meio de governo Michel Temer, ex-presidente dela, e adotou
uma linha bastante liberal econômica também, e que a Petrobrás passou a
se comportar como empresa de mercado, portanto o preço do combustível passou
a variar segundo o preço internacional e ele teve um grande azar,
essa coisa da fortuna também na política. No momento em que ela
adotou essa política, o preço do petróleo no mundo subiu. Então foi
um calhô dizer bem ou não. Então a partir do momento que
ele começou a subir o preço, Os caminhoneiros no Brasil, que são
muito... Tem uma importância muito grande no transporte interno aqui. Os países
entraram em greve, uma greve seríssima, uma greve, um momento de violência
até, uma greve que o governo tentava negociar e não sabia nem
com quem negociar. Achou que eles iam sair da greve e não
saíram, começou-se a ter medo de desabastecimento geral na cidade, isso foi
bastante sério. Esses caminhoneiros fizeram um país de refém. Mas ainda tinha
um apoio da população, um apoio meio ligado a essa revolta contra
todas as instituições, contra todos os partidos, contra a política. Então a
população, uma grande parte da população estava apoiando os caminhoneiros. E o
Bolsonaro surfou nessa luta. O Bolsonaro também apoiou os caminhoneiros. E desde
então, desde que foi eleito, ele tem nos caminhoneiros uma classe que
ele quer manter a seu lado e a seu favor. Então quando
surge a questão do preço do combustível, ele está procurando todas as
maneiras possíveis para baixar esse preço. Ou brigando com a equipe econômica,
porque ele quer dar subsídio, ou brigando com os estados, porque ele
quer diminuir o imposto estadual que insire sobre os combustíveis. Mas os
estados também não querem abrir mão da arrecadação que eles têm. Então
essa é uma questão muito sensível. Conforme os Estados Unidos compreem brigas
no Oriente Médio e causam instabilidade, é muito fácil a gente imaginar
que, olha, assim como no ano passado uma bombinha ridícula que foi
jogada na Arábia Saudita, conseguiram interromper uma certa transporte, produção de petróleo,
que elevou o preço temporariamente, outro. Atentados mais graves podem levar a
uma situação muito pior dessa. Se isso acontecer, me parece que o
Bolsonaro vai ficar do lado dos interesses dos consumidores e dos caminhoneiros
e não da equipe econômica. Eu acho que a equipe econômica quando
surge o conflito, a equipe econômica tende a perder. Uma amostra disso
foi num outro conflito recente com relação aos painéis solares. Os painéis
solares de energia solar recebem subsídio. O subsídio grande que distorce muito
o sistema é regressivo do ponto de vista da renda, porque quem
é pobre e não tem painel solar acaba tendo que financiar, na
prática, acaba bancando, financiando esse painel solar de quem é mais rico.
Tivera uma situação esdrúxula na qual empresas constroem um monte de painéis
solares ali e ganham um grande subsídio na energia delas, então tinha
uma situação muito ruim. A equipe econômica do governo propôs tirar esse
subsídio, mas vários grupos de consumidores, de pessoas beneficiadas, obviamente, foi protestar
que queria manter essa política e o Bolsonaro acabou ficando do lado
deles. Bom, se até na energia solar o Bolsonaro defender o lado
mais corporativista da coisa ali, nos combustíveis, nos caminhoneiros, eu não tenho
dúvida que ele também irá para esse lado.
Joel Pinheiro da Fonseca
Por isso um bom governo aproveita a sua onda inicial, por exemplo,
de popularidade, porque ele chega com a bola toda, ele chega com
apoio da classe política, a população empolgada e usa isso para fazer
medidas importantes. Uma medida importante foi feita pelo governo, a reforma da
Previdência, que talvez no momento em que o governo estiver com a
imagem mais desgastada não seria possível. Agora ele conseguiu queimar muito rápido
também esse capital político de apoios, ele conseguiu criar barulhos junto à
opinião pública que eu acho que não favorecem nada, ele tem uma
minoria fanatizada que o defende, seja o que for pessoas que defendem
o discurso nazista do secretário da cultura, e meia hora depois o
presidente o demite e a pessoa fica com que cara, ela defendeu
um cara que o próprio presidente demitiu. Mas pessoas dispostas a tudo,
tudo, defender o governo, mas a opinião pública regular, uma hora, está
começando a cansar e dizer, como é aquilo? Cadê o trabalho? Cadê
o que a gente espera que venha? Cadê a ética? As pessoas
vão cansando, o apoio nunca é incondicional e eu acho que o
governo está correndo risco de perder isso e fica com medo. O
Bolsonaro, apesar de transmitir uma ideia de força, ele se intimida com
muita facilidade. Então, se ele é colocado contra a parede por algum
grupo, ele cede, ele recua, ele volta atrás de ideias que ele
defendia antes. Então, Eu acho difícil ver faltas importantes chegando. Espero que
sim, espero que essa equipe econômica ainda consiga uma ou duas conquistas,
dois avanços para a economia brasileira para nos deixar em situação melhor.
Eu queria apontar brevemente que eu também não acho que apenas mudanças
no sentido do liberalismo econômico são positivas. Eu acho que tem outras
coisas que, às vezes, até os liberais negligenciam. Por exemplo, o cuidado
social com quem mais precisa na sociedade. Isso é uma crítica que
eu faço até à equipe econômica deste governo. Seja como for, acho
que tem mudanças na direção de mais liberdade econômica que são muito
positivas e que o governo está com a faca e o queixo
na mão para fazer, mas tem que ter coragem. Vai se desgastar
um pouco, sim, mas em nome de algo bom, em nome de
algo que, num médio prazo, melhora a situação do país e, portanto,
permite que o governo também colha os frutos de popularidade dessa melhora
da situação.
José Maria Pimentel
Deixa-me pegar numa ponte que tu destes há bocadinho, quando falas da
parte do eleitorado que se está a cansar e que no fundo,
voltando àquela explicação que eu propunho no início e admitindo aqui por
um bocadinho, no fundo seria o eleitorado que virou conjunturalmente, ou seja,
que se fartou da corrupção e que sobretudo se fartou dos problemas
económicos e que se fartou dos problemas de insegurança e que decidiu
votar por uma alternativa em relação aos governos anteriores. Agora, há outra
margem, corresponde-se ao erro, cerca de 30%, dos apoiantes indefetíveis do Bolsonaro
que tu aludias há bocadinho. E esse já tem a ver com
aquele outro segundo fator que eu falava no início, de uma mudança
mais estrutural e que, eu concordo contigo, é indestrinçável da questão das
redes sociais e de uma perda generalizada de confiança nas instituições que
vem a reboco das redes sociais. E eu gostava de ter a
tua opinião em relação a isso. Tu mandaste-me um artigo, um ensaio
que foi incluído num livro, cujo link eu depois ponho na descrição
do episódio, como é habitual, e que é muito interessante e que
levanta aqui uma série de questões em relação a isto. No fundo,
o problema que nós estamos a tratar é esta perda de confiança
nas instituições e que no fundo vem associada a coisas mais ou
menos circunstanciais, que são mais sintomas do que causas como as fake
news, ou são mais meios, se nós quisermos, pelos quais isto se
propaga e que tem como consequência, ou tem tido como consequência mais
visível a eleição de líderes populistas, sobretudo à direita, mas também, eu
diria, o populismo mais de esquerda
José Maria Pimentel
Não sei, não sei, não sei porque nas últimas eleições também tivemos
a eleição de um partido que está mais ou menos nessa posição,
embora diga-se em bom da verdade em comparação, seja um exemplo pálido
pelo menos até agora comparativamente com o Bolsonaro, ou seja, Está muito
longe de fazer vídeos daqueles inspirados no Goblet, o que não quer
dizer que não chegue lá, mas pelo menos tem sido, apesar de
tudo ter sido mais quente, mas está claramente posicionado aí. Ou seja,
há um deputado que está claramente posicionado aí, que foi eleito agora
nas eleições deste ano. Mas dizia eu, no Brasil, isso fez-se muito
pela via do WhatsApp, que é interessante, é um bocadinho assustador, mas
é inegavelmente interessante. Quer dizer, no fundo o que tu tens é
pessoas que passam a consumir a informação interpretada apenas através do WhatsApp,
sem moderação de fontes que são sancionadas, se quiseres, ou um jornal
X que tem uma reputação construída ou o opinion maker Y que
tem ele próprio uma reputação construída ao longo dos anos, não passa
a ser uma pessoa que veicula a opinião na forma de informação
através do WhatsApp. Olha que coisa curiosa no país. Tem um número
Joel Pinheiro da Fonseca
crescente de pessoas que não aguentam, não toleram assistir um canal de
TV normal como a Globo, que é o maior canal aqui, a
maior empresa também de jornalismo, ou ler um jornal como a Folha
de São Paulo ou o Estado de São Paulo e outros grandes
jornais brasileiros, tem raiva de todos esses meios porque vêem neles um
viés muito grande, não são confiáveis, eles têm um viés de esquerda,
eles têm interesses e não sei o que. E essa mesma pessoa,
bom, se ela critica o viés de um jornal, o jornal tem
algum viés? Tem, com certeza, se você for ver, analisar na minúcia
da manchete, ou da escolha da foto, ou da composição do texto,
você vai encontrar, às vezes, alguma marca de viés do jornalista, ou
talvez do editor, ele tem interesses econômicos também, talvez em algum momento
empacue de alguma maneira, alguma cobertura que ele faça de algum tema.
Você imaginaria que se o problema dessa pessoa é o viés do
jornal comercial que ela está criticando, então ela deve estar em busca
de uma veiculação quase científica da informação. Ela quer o fato bruto
ali escrito da maneira mais seca possível, para apenas comunicar os fatos
e ela tirar a sua conclusão. Então ela quer algo quase acadêmico
no cuidado que tem de se blindar de qualquer opinião. Não é
isso que essas pessoas... Essa mesma pessoa que critica o viés de
esquerda de um jornal como a Folha de São Paulo, e que
não acredita porque veio da Folha, se uma informação chega da Folha
ou da Globo, ela diz não acredito, esse jornal é comunista, não
acredito. Essa mesma pessoa acredita sem pestanejar, acredita automaticamente num áudio que
ela recebe de um primo dela, que não trabalha como jornalista, e
que tem uma teoria da conspiração maluca. Sem nenhuma evidência, sem nenhuma
prova qualquer, ela acredita imediatamente no conteúdo dessa informação passada de segunda
ou terceira mão pra ela, que também o primo recebeu de sabe-se
lá quem, e nisso ela acredita. Ou seja, O problema não é
o viés da imprensa, existe algum viés da imprensa, mas o viés
dessa informação, outra informação, interpretação que ele recebe é muito maior. Então
o problema não é o viés. E eu acho que o problema
não é intelectual também, não é uma questão de provas ou de
argumentos racionais que levam a concluir. Não tem argumento racional nenhum. Existe
um desejo de que essa outra informação seja verdadeira. Um desejo e
uma confiança de que porque essa outra pessoa está no mesmo time
que eu, está do mesmo lado que eu, eu acredito. E essa
informação que ela traz beneficia o nosso lado, ela está a favor
dos nossos interesses. Então, é um processo psicológico que faz com que
ela naturalmente, espontaneamente, tente desqualificar o que vem do veículo. Eu não
sei como é que a gente vai enfrentar isso, Porque a autoridade
institucional que antes valia alguma coisa, vale cada vez menos. Você dizer
que veio de um grande jornal, ou que veio de uma universidade,
ou que veio de um instituto de pesquisa. Tudo isso hoje em
dia aqui no Brasil, se a pessoa quiser, isso é um fator
para diminuir a autoridade daquela informação. Dizer, Ah, veio desse jornal, então
só pode ser mentira. Veio dessa universidade, é tudo mentira. Ao mesmo
tempo em que a informação sem fonte nenhuma, ela acredita porque a
beneficia. Então o papel e o peso institucional está muito baixo. O
que eu vejo hoje em dia é que o peso da influência
pessoal está em alta. Então as pessoas acreditam, eu tenho um pequeno
canal no YouTube, por exemplo, para quem se
Joel Pinheiro da Fonseca
E eu noto muito isso, quando a pessoa te vê conversando, quando
A pessoa tem acesso àquele formador de opinião, àquele intérprete, e constrói
com ele uma relação. Ela tende a ficar muito mais dócil à
interpretação ou informação que ele passar para ela. Ela não mais a
rechaça, ela abaixa um pouco a barreira que ela teria aqui. Então
acredito que talvez a gente tenha que se adaptar a essa nova
realidade, que não é a institucionalidade que vai te dar credibilidade, que
vai dar credibilidade a sua informação, e sim a construção de uma
relação pessoal com as pessoas. E acho que talvez esse seja o
trabalho a ser feito pelas pessoas sérias, porque as pessoas não sérias
já estão fazendo o trabalho. E vamos lembrar de um ponto. Se
antes, há 30 anos atrás, as pessoas acreditavam nos meios de comunicação,
não era pelo motivo racional de que, olha, eu
Joel Pinheiro da Fonseca
jornalístico e científico, eu concordo com ele, Eu sei que a tendência
dele é filtrar os erros, porque se ele errar muito o outro
vai questionar, eles têm normas de conduta que eles seguem aqui dentro
e essa universidade passa por um processo de peer review, de revisão
dos pares e que, portanto, eu sei que isso dá uma confiança
em formação. Nunca foi por esse motivo racional que as pessoas acreditavam,
elas apenas aceitavam aquela autoridade. Agora mudou o tipo de autoridade que
elas estão dispostas a aceitar e acho que os bons da cultura,
os sérios, aqueles que não querem apenas promover o seu próprio lado,
mas que querem promover um pouco mais de informação e objetividade e,
portanto, ajudar pessoas comprometidas com um bem comum maior, essas pessoas vão
ter que entrar nesse novo jogo da informação. Sim,
José Maria Pimentel
Exatamente, é esforçado a ler coisas de que não gostas. Mas ao
mesmo tempo, eu acho que lá está. Como em relação a muitas
outras coisas e como em relação à alimentação, para manter nessa analogia,
quando há uma mudança muito rápida as instituições sociais não acompanham. E
que tu estiveste aqui foi uma mudança de repente muito rápida e
essas instituições sociais não foram capazes de acompanhar essa mudança. Portanto as
pessoas, a maior parte das pessoas, quer dizer, que não têm disponibilidade
e em certo sentido, legitimamente não têm disponibilidade para andar, como nós
estamos a fazer aqui, a perder minutos e horas a refletir sobre
um determinado tema, deixaram-se ir e fizeram, quer dizer, foram automaticamente, por
inércia, nesse sentido de quando andam por elas estão a consumir notícias
por aí, e essas e esses mecanismos de mediação perdendo-se. E depois,
por outro lado, eu não sei se tu concordas com isto, mas
suspeito que sim, porque também havia da parte dos mídia, dos jornais
e não só, e dos opinion makers, uma complacência grande, uma falta
de autoexigência muito grande E essas elites, da que tu aludias há
bocadinho, no fundo viviam de uma maneira muito endogâmica, em que quase
escreviam para elas próprias, convencidas de que os leitores estavam tão interessados
nelas como elas próprias. Eu, aliás, ouvia aqui há uns tempos, numa
conferência em Portugal, uma pessoa ligada à cultura que estava a queixar,
queixar de dizer que a cultura estava muito pior, porque antigamente podia
escrever num jornal, o jornal podia te pagar para ir ver uma
peça a Paris e escrever sobre aquela peça de teatro e agora
já não podia. Ora, o que se passou não é que as
pessoas antigamente estivessem mais interessadas naquela peça. O que acontecia é que
antigamente é que aquela peça, a análise daquela peça era empacotada num
jornal muito mais vasto do que aquilo e os jornais eram capazes
de vender aquilo, que ia ser lido por no máximo umas poucas
centenas de pessoas, no jornal interior. E hoje em dia, de repente,
já não tens público para aquilo. Exato.
Joel Pinheiro da Fonseca
Mas, ao mesmo tempo, quer dizer, comparando as duas situações, há uma
piora objetiva com o quadro. Então ninguém mais está fazendo a crítica
da peça em Paris e perdeu-se isso. E as pessoas estão comendo
pior. Outro exemplo que eu gosto, que eu acho que é uma
analogia muito boa, porque é outro processo que ocorre com as mesmas
tecnologias, é com relação à ciência. Nunca tanta informação esteve disponível às
pessoas. De forma tão fácil e barata, inclusive informação da melhor qualidade.
Se eu quiser ler um artigo científico hoje em dia, eu tenho
muito mais facilidade de fazer isso do que eu teria 20 ou
30 anos atrás. E mesmo assim, nesta época em que nunca a
informação foi tão difundida, é a mesma época em que aumenta o
número de pessoas que não acreditam em vacinas e o número de
pessoas que negam a esfericidade da terra. Um movimento que eu só
consigo imaginar que começou como piada, que se tornou sério e que
no Brasil, no ano passado, a gente teve a primeira convenção nacional
dos terraplanistas aqui no Brasil. E que também propagam as suas informações
por redes sociais e tudo, e tem seus argumentos devastadores contra a
esfericidade da terra, que cultivam as suas coisas. Imagina agora, um cientista
olha para aquilo, sabe? E você vai dizer, a culpa foi sua,
na verdade, porque você não soube dialogar direito com essas pessoas e
tudo. Quer dizer, eu não vejo isso como responsabilidade desse sistema científico.
Olha, ele tava ali produzindo ciência, tava produzindo artigos e fazendo literatura
acadêmica e tudo de fato. Ele não conversou com o povo. E
agora, quando ele é colocado frente a frente para debater com o
youtuber que terminou o ensino médio e que julga provar que a
terra é clana, esse cientista ele sente um certo desprezo por aquela
figura e uma certa arrogância que transparece no jeito dele de olhar
pra ela, mas que olha, por um certo sentido também, como ele
não sentiria isso, sabe? Mas ao mesmo tempo ele vai ter que
consertar um problema que ele não criou. Ele vai ter que saber
se colocar e conversar de igual para igual, porque se ele chegar
como superior para quem está assistindo e que está neutro com relação
às duas posições, só a arrogância dele hoje em dia já pega
tão mal que vai afastar tanta gente e que ele vai ter
que rever isso. Mas eu entendo um pouco, tudo isso só para
dizer que eu entendo um pouco esse sentimento do velho sistema que
está perdendo espaço e que não é só que está vindo algo
novo no lugar, por enquanto, pelo menos esse novo que está vindo
é objetivamente pior do que o que estava aí. E não é
culpa de quem estava aí também, quer dizer, poderia ter sido melhor?
Poderia, mas eu não acho que é aí que mora o problema,
acho que o problema é A analogia da comida também é boa,
não é que a comida anterior fosse ruim, é que agora tem
McDonald's e gordura trans pra todo lado, como é que você compete
com doces e McDonald's, é difícil. Isso nos leva a um outro
ponto que eu queria traçar aqui só brevemente. Tem muita gente olhando
para as redes sociais e dizendo que elas têm algo a ver
com a polarização que a gente vê no mundo. As redes sociais
têm algo a ver com o populismo de direita que a gente
vê no mundo. Mas Tem duas interpretações aí de como se dá
esse papel. A primeira é essa que a gente está falando. É
um processo em que a natureza humana reage dessa maneira, a pulverização
do poder de conseguir transmitir informações uns aos outros. Tem uma outra
interpretação que é, não, o que está acontecendo é que Forças políticas
muito poderosas se utilizam do dinheiro para comprar propaganda e jogar para
essas pessoas e transmitir fake news para essas pessoas e as grandes
empresas de comunicação fazem os seus algoritmos visando a maximização do lucro
e eles levam isso. Eu não acredito que o problema seja esse,
eu não acredito que o problema seja compra de fake news por
quebra de analítica e nem o algoritmo do Google, o algoritmo do
Facebook que estaria por trás disso. Acho que no máximo eles terão
um efeito acessório e em alguns casos nem tem, nem existe esse
efeito. Então, o dia que deram um estudo sobre o YouTube viram
que ele não te empurra tanto assim para a polarização como se
achava. É o
José Maria Pimentel
próprio ser humano que está fazendo isso. É o próprio cidadão comum.
Eu tenho a mesma... Quer dizer, não é uma convicção muito forte
no sentido em que eu não a posso provar, mas a minha
intuição vai no mesmo sentido que a tua, até porque... Bem, por
natureza sou muito desconfiado em relação a teorias da conspiração porque são
explicações simples para fenómenos complexos. Mesmo admitindo que isso não é bem
uma teoria da conspiração no sentido de um pequeno núcleo de pessoas
com um grande plano, mas simplesmente de movimentar recursos num determinado sentido
e mesmo admitindo que isso até possa acontecer na prática, as pessoas
são muito mais complexas do que isso. Isso é como, aliás, uma
das vantagens da democracia é justamente essa, que não é o candidato
com mais dinheiro, por exemplo, que vai conquistar a maioria dos votos
apenas por ter mais dinheiro, não é? Tu precisas de muito mais
do que isso, portanto, nesse sentido, estou de acordo contigo. E em
relação ao ponto que estavas a abordar há bocadinho, eu acho este
um tema fascinante, e estou sempre a mudar um bocadinho a minha
opinião, justamente porque ele é muito complexo, mas a maneira se calhar
de quadrar este círculo em relação àquilo que tu estavas a dizer
há pouco é separar isto em dois problemas. Eu acho que há
aqui um problema de informação e um problema de valores. E acho
que o problema de valores, muitas vezes, mascara-se de problemas de informação.
E já vou explicar porquê. Uma questão é a questão da informação,
ou seja, estes mecanismos de intermediação perderam força e, portanto, as vias
normais pelas quais a informação chegava às pessoas diluíram-se, foram substituídas por
outras e o que tu passaste a ter foi, se quiseres, um
maior desvio padrão, ou seja, uma maior variação do grau de qualidade
de informação que as pessoas têm acesso. Então tu podes ter, como
tu dizias, tens acesso à melhor informação científica, tu podes ter acesso
hoje em dia online às discussões entre as momentos mais brilhantes de
qualquer área. Eu posso ter acesso ao teu canal de YouTube, por
exemplo, e como estava a dizer no início, já vi vários vídeos,
e para mim é uma maneira ótima de perceber o que é
que se passa no Brasil da qual eu não tinha possibilidade de
usufruir aqui há uns anos, simplesmente é um ótimo exemplo e do
outro lado do espectro tu tens informação falsa, informação simplista, quer dizer,
coisas como a Terra Plana é uma bizarria, quer dizer, se alguém
me falasse no movimento Terra Plana há 10 anos eu dizia que
era gozo, não é? Parece uma... Gozo não se pode dizer no
Brasil. Eu dizia que era uma piada, não é? Dizia que era
uma... Uma brincadeira, um filme de comédia, não é? E no entanto
tens isso. Isso é inegavelmente uma perda, não é? Eu acredito que
se pode vir a convergir para uma síntese, que seja, no fundo,
para um equilíbrio que seja até melhor do que o anterior, mas
claramente agora perdemos. Isso é inegável. Mesmo somando as duas coisas, e
mesmo estando eu a beneficiar mais da primeira e não da segunda,
é inegável que perdemos. Agora, isto é uma questão de informação, mas
também tens uma questão que me parece incontornável de valores, em que
tu tens uma elite cultural e urbana que domina o espaço público,
que tem valores que foram evoluindo até de acordo com o estilo
de vida que as pessoas têm, se foram tornando muito mais progressistas,
por exemplo, ao longo dos últimos anos. Isto acontece em Portugal e
eu julgo que terá de acontecer também no Brasil. Com os quais
eu me revejo e imagino que tu te revejas também. Mas que
se foram distanciando, de uma maneira mais ou menos imperceptível, de uma
maioria silenciosa, ou por outra, de uma faixa silenciosa que foi crescendo
até ao ponto de, não digo, tornar-se uma maioria, mas pelo menos
tornar-se um bloco com um peso muito grande na população e que
legitimamente olha para os mídia e sente que as pessoas que lá
estão não estão, não levam a vida que elas têm e não
refletem os problemas que eles têm. Muitos desses problemas são problemas reais
e têm a ver de facto com uma descolagem entre o estilo
de vida das pessoas, outros são preconceitos que aquelas pessoas têm e
que qualquer pessoa progressista gostava de ver corrigidos, mas a verdade é
que elas estão lá. Acho que isto é um problema real, de
descolagem entre as elites e o povo, se tu quiser, dá falta
de melhor analogia. Eu vejo de ser muito pouco confrontado, por exemplo,
aqui em Portugal acho que as elites continuam, sobretudo à esquerda, a
agravar o problema em vez de o resolver e eu acho que
a busca das pessoas por informação alternativa é de certa forma uma
maneira de procurar quem projeta esses valores. A questão da terra plena
é um absurdo, quer dizer, ninguém acredita naquilo. Aquilo vem é reboque
de uma comunidade que partilha depois outros valores contigo e o conservadorismo
religioso ou recrudescer da religião acho que também pode ter alguma coisa
a ver com isto. Acho eu, mas isto é uma explicação preliminar,
eu gostava de saber o que é que tu achas em relação
a
Joel Pinheiro da Fonseca
isto. Eu acho perfeito essa reflexão. Veja, a conversão de uma pessoa
ao terraplanismo, a gente pode especular quais os motivos. Um motivo a
gente sabe que não é a força racional dos argumentos que os
terraplanistas fazem. Esse motivo não foi. Digamos até que o argumento racional
seja uma condição necessária. A pessoa precisa ter algo para salvar as
aparências para si mesma, para dar alguma explicação minimamente coerente para si
mesmo daquilo que ela está aderindo. Mas aquele não é o motivo,
porque aquele argumento é muito fraco. É assim que esse argumento for
refutado para aquela pessoa, ela vai imediatamente achar um próximo, ela vai
procurar um próximo argumento. Ou seja, os motivos pelos quais ela sustenta
conclusões até podem mudar e mudam com muita facilidade, porque cada um
daqueles argumentos é fraco. Então, o que está por trás é um
desejo dela de acreditar naquilo, um desejo, eu acho eu, de encontrar
uma comunidade na qual ela se sinta mais valorizada também, na qual
ela se sinta que faz parte de um grupo que a estima
e que respeita a mente e a manifestação dela, na qual ela
pode ser alguém e não ser um fracassado numa sociedade maior, numa
elite que não olha para ela, acredito que é uma busca por
poder. Uma busca, primeiro, pessoal e também por organizar-se de maneiras em
grupo, porque o ser humano é um bicho que se organiza em
coalizões e essas coalizões lutam pelo poder. Isso é... Em qualquer sociedade
humana você vai ver isso. Então acho que em última análise todas
essas formações de coalizões tendem a uma luta pelo poder, em geral,
binária,
José Maria Pimentel
de um contra o outro. Jogo, sou o Manula. Sim. Há um
economista americano que eu gosto muito, tu és capaz de conhecer o
Tyler Cowen e ele tem uma tese engraçada, que eu me lembro
a propósito disto, ele diz que grande parte das disputas públicas, políticas,
são no fundo uma disputa entre prestígio social, ou posição social, entre
grupos diferentes, muitas vezes camuflada de uma coisa qualquer diferente. E isto,
eu acho que tem algo que ver com isso, quer dizer, pessoas
que se sentem fora do sistema e que precisam de encontrar uma
maneira de reequilibrar o tabuleiro de jogo a seu favor, se tu
quiseres. Claro que isto não é racional, é muito mais intuitivo do
que racional, mas acho que o movimento é um bocado causado por
isso.
Joel Pinheiro da Fonseca
E eu acho que daí a gente tem que distinguir duas coisas.
O discurso dessa direita populista é que eles estão se reconectando com
valores tradicionais que o povo já partilha. Uma coisa é o conservadorismo
da população. Isso não é criado por rede social, isso é uma
coisa que vem no Brasil, é forte também, anterior a tudo isso.
Mas que em diversos momentos esse consideradorismo foi muito tolerante, você tinha
peitos de fora na novela das nove no Brasil, hoje em dia
você não tem mais isso, A coisa mudou. O que se perdeu.
O que perdemos ali? Onde foi parar a putaria? Exato. Mas, de
seu lado, outra coisa totalmente diferente disso é um neoreacionalismo. Que aí
sim, é uma reação às vezes de pessoas que na sua formação
nem foram particularmente conservadoras, que se convertem a isso, a esses grupos,
e que passam a vociferar e a defender versões radicais ou da
moral tradicional ou da religião tradicional, então aderem ao catolicismo, mas de
uma forma que o católico normal no Brasil não se fantasia de
cavaleiro medieval e pede cruzadas contra o islã. O católico cultural, né,
o reacionário, que assim, tá forte isso aqui. Um dos importantes assessores
do Bolsonaro, ele teve muito ligado a esses grupos de internet, channels,
esses canais que acabam tendendo para a extrema direita, um submundo horroroso.
E ele é um dos que repetem o refrão, não sei se
você já viu isso, Deus vult, Deus quer. Um refrão dos cruzados
lá atrás e que trazem hoje em dia como um grito de
guerra deles na suposta guerra em que eles se encontram. Também é
repetido por indivíduos notáveis como o assassino da Nova Zelândia que metralhou
os humanos numa mesquita. Eles repetem esse tipo de slogan e de
imagens das cruzadas e tudo, quer dizer, é uma coisa ideológica, postiça,
que não tem nada a ver com a tradição brasileira, mas que
agora surge e que se propõe e se vende como não, estamos
voltando às raízes brasileiras, não tem absolutamente nada disso, uma criação, pelo
contrário, postiça mais norte-americana do que qualquer outra coisa, embora também nos
Estados Unidos
seja
uma criação recente, mas que se vende como uma moral tradicional, são
duas coisas totalmente diferentes.
José Maria Pimentel
uma coisa que eu não queria deixar de falar que tem que
ver com isto também, com este fenómeno da perda de confiança nas
instituições e da ascensão do populismo, mas, neste caso, sobretudo, indo muito
para lá do Brasil, ou seja, falando um bocado do mundo ocidental
no sentido de lado comum todo. Há outra questão que eu me
pergunto se não é uma com a inevitabilidade das democracias. Ou um
bocado da mesma forma que as crises são uma inevitabilidade do capitalismo,
que é uma espécie de fadiga das pessoas em relação à democracia.
Porque a democracia representativa, não é que no fundo a democracia liberal,
se quisermos chamar, implica que tu tenhas. Primeiro, implica uma sujidade que
não existe no regime autoritário, porque tu tens todos os dias imagens
do congresso ou do parlamento com pessoas a discutir, com pessoas com
argumentos ultra parciais, porque cada um está a defender o seu lado,
e muitos até básicos intelectualmente, a ser desditas no dia a seguir,
a entrar em contradição, a cometer erros, escândalos. Tens por um lado
isso, tens por outro lado a questão das eleições, que por exemplo
aqui ao lado no caso espanhol, por exemplo, é muito visível uma
certa fadiga das pessoas com as eleições, ou no Reino Unido, em
que tu tens eleições e depois ficas com um hung parliament, ou
outras eleições, tens que ir votar outra vez e parece que não
acontece nada e portanto as pessoas abstêm-se e depois tens outro facto
ainda que é a questão de inevitavelmente numa democracia representativa numa democracia
direta, a partir disto não aconteceria mas a meu ver terias várias
outras desvantagens mas há muita gente acho eu a ansiar por uma
espécie de democracia direta justamente por causa disto, numa democracia representativa tu
inevitavelmente tens elitos, ou seja, tens pessoas que estão dentro do sistema
e que vão sempre aproveitar do sistema, quer dizer, por melhores instituições
que o país tenha, as pessoas vão sempre aproveitar de alguma forma
do sistema e quanto mais longe tu, eleitores, tiveres dessas elites, mais
descontente tu estás em relação ao sistema. Até me lembro de um
paper que saiu há pouco tempo que mostrava que as elites eram
sempre as pessoas mais contentes com o regime de determinado país e
portanto numa democracia as pessoas que fazem parte das elites, elites no
sentido lato, elites culturais, elites económicas, mas no fundo que estão mais
perto do... Que se sentem mais próximas do poder político, elas conhecem-no
melhor e acham-no a melhor. E as pessoas que estão mais afastadas
vão-no achar pior. Eu lembro, em relação ao Brasil, de um inquérito
que saiu aqui há uns tempos daquele latinobarómetro que mostrava que passava
o erro 60%... Não, 30% a pouco. Ou seja, não sei qual
era o número, mas pessoas que... Para quem era indiferente se o
Brasil era uma democracia ou não era, que é uma coisa que
parece um bocado aterradora. Mas em certo sentido é compreensível se as
pessoas se sentirem muito afastadas e sentirem que o sistema é dominado
por elites que estão a aproveitar do sistema e não estão a
defender os seus interesses. Por muito que racionalmente, se as pessoas pensassem
racionalmente, soubessem que iam ficar muito pior numa ditadura, mas ainda assim
é compreensível haver essa reação. E eu pergunto-me se estas condições inerentes
à democracia não estarão também a causar, não serão também outra corrente
da história que está a contribuir para isto, se o quiser.
Joel Pinheiro da Fonseca
É, acho que a gente pode traçar diversos caminhos paralelos. Aqui uma
coisa que eu gostaria de levantar primeiro é que esse é um
discurso usado pelos próprios representantes desses governos mais populistas. Somos a revolta
contra as elites, mas se você for ver em pesquisa de opinião
no Brasil, quer dizer, tem muito de engano nesse discurso. Quem está
mais feliz com o governo Bolsonaro, supostamente revolucionário, anti-elite, anti-sistema, quem mais
o apoia são as elites econômicas. Esses são os maiores empresários. Entre
os empresários e pessoas do mercado financeiro, é quase uma torcida organizada.
É inacreditável o otimismo deles, com agora sim, é Paulo Guedes, tá
tudo dando certo, o resto é bobagem, é discursinho, isso aí não
importa. Não é nem que eles necessariamente apoiam os piores lados do
governo, mas é que eles acham que as coisas ruins não importam
muito, que o que importa mesmo tá sendo feito e, portanto, estão
felizes. Então, quando a gente vai ver, vai medir o apoio ao
Bolsonaro, é muito mais forte entre as elites econômicas do que entre
a base mais baixa. E, sim, existe um cansaço com a democracia
representativa, e, inegavelmente, existe. De onde será que ele vem? Um elemento
que eu acho que tem a ver com isso, e que é
um elemento que me dá um certo pessimismo quanto ao futuro, é
que é o seguinte, desde que a gente tem filosofia, desde que
existe reflexão escrita sobre esses temas, Uma coisa é bastante clara, você
tem uma distância entre aqueles que exercem o poder e o grosso
da população. O exercício do poder, o bom exercício do poder, ele
depende de certas normas de conduta e de certos valores que são
diferentes dos valores da massa. Platão, você tem isso? E Maquiavel, você
não tem isso? A honestidade tal como... O que é virtuoso para
o homem comum? O homem comum é virtuoso, eu tenho certos valores,
eu vou ser um defensor sem nenhum compromisso, sem nenhuma concessão, intransigente,
um defensor intransigente desses valores, que eu tenho a ferro e fogo
porque esse é o bem e eu estou contra o mal. Essa
é a visão básica. Ou a religião, a minha religião é o
bem e o resto é o mal.
Joel Pinheiro da Fonseca
Um bom governante jamais vai poder ser assim, especialmente numa democracia. Ele
vai precisar ser... Mesmo numa autocracia, mas ainda mais numa democracia, ele
vai ter que ser alguém que sabe, em alguma medida, negociar, que
sabe abrir mão de certos pontos para conquistar o outro, que sabe
relativizar esses valores para promover o bem maior. E Ele sabe que
o que está no melhor interesse da população não é sempre o
que a população deseja. Agora, esses sistemas funcionam enquanto existe uma certa
distância, enquanto a população não está vendo no dia a dia das
engrenagens da polícia. Porque o político pode vender, Ele tem que vender
para a população essa imagem, mas o defensor intransigente dos bons valores,
o cara tá querendo só o bem, querendo só o que vocês
acreditam. No dizer do Maquiavel, é importantíssimo que o príncipe pareça idoso,
ou seja, pareça uma pessoa religiosa, mas é imprescindível que ele não
seja de fato. Ele não pode ser de fato, mas ele precisa
aparecer. Hoje em dia, graças a novas tecnologias, não só de redes
sociais, mas também de imprensa, audiovisual e todo o resto, existe uma
proximidade muito grande das pessoas com poder. As pessoas estão fiscalizando o
poder e acreditam que essa é a grande virtude. A transparência é
um valor absoluto e negociável. O cidadão comum fiscalizado as contas públicas
e está acompanhando os projetos, parece uma... Olha quem seria capaz de
achar que isso é uma má ideia? Bom, isso pode ser uma
péssima ideia. O cidadão comum tem como avaliar aquilo? O cidadão comum
sequer aceita a lógica do compromisso político e da negociação política? Não
aceita. O cidadão comum, isso é a essência da corrupção, está aí.
Não é nem o escândalo que desviou milhões. Esse é um caso
extremo, mas o próprio fato de um presidente negociar com um partido
da base aliada um cargo ou uma verba para um certo Estado
para ter o apoio dos deputados daquele partido naquele Estado, isso em
si mesmo, mesmo que feito dentro da lei, isso em si mesmo
é visto como corrupção. E veja, na prática, isso pode ser mal
feito? Pode. Você pode ter pessoas totalmente desqualificadas que ocupam o Ministério
apenas porque o presidente fez um acordo com certos partidos. Isso é
péssimo. Por outro lado, você pode ter como aconteceu no governo Temer
com o caso da educação, por exemplo. O ministro da Educação era
membro de um partido da base aliada do presidente. Era um bom
ministro da Educação, porque dentro daquele partido ele procurou alguém que não
era um técnico puro, era alguém em quadro político, mas que tinha
algum conhecimento da pasta, que sabia o que fazer, que sabia como
negociar e colocou ali. O Ministério da Educação no governo Temer fez
pouco, mas o pouco tempo que teve também fez mudanças positivas. O
governo Bolsonaro não. Ele de forma alguma ia transigir. A escolha dos
ministros não tem nada a ver com negociações políticas. Ele é contra
negociação política enquanto tal, ele vê nisso já uma corrupção e no
que ele é aplaudido por muita gente no país. Quem que ele
botou para ser ministro de educação? Dois, já mudou uma vez, em
três meses ele teve que demitir o primeiro porque era tão ruim,
dois completos desqualificados, pessoas que não têm ideia do que estão fazendo
no caso. Então, é melhor? Eram pessoas que concordavam com a ideologia
radical que o governo representa. Isso necessariamente é melhor? Não. Isso é
pior. Então, a gente tem esse problema. A gente tem um problema
de que as pessoas estão cada vez mais próximas da política, só
que o grau de esclarecimento dela acerca da realidade da política não
está evoluindo junto. E o meu temor é que talvez seja inerente
à espécie humana essa incapacidade e essa diferença entre quem exerce o
poder e quem está mais longe dele. E que é utópico a
gente acreditar que isso vai mudar fundamentalmente. E portanto, talvez o poder
fique travado, cada vez mais travado e inoperante. Cresce o número de
deputados que fala direto às matadas, tá com seu celularzinho ali gravando
no YouTube, gritando palavras de ordem pra movimentar a sua base de
eleitores que são fanatizados e adoram aquilo. Ele não negocia com ninguém
porque se ele sentar pra conversar com o cara do outro partido
ele já vai perder o apoio que ele tem das pessoas. Já
traiu, claro.
Já traiu. Então ele não faz nada também porque é cada um
gritando pro seu eleitorado. A política fica travada, muito mais difícil de
caminhar e de fazer coisas boas, coisas que funcionem minimamente para todos.
Não funcionam perfeitamente para ninguém, mas funcionam minimamente para um grande número
de pessoas e isso fica muito difícil de acontecer. Então, eu só
José Maria Pimentel
acho que é um risco que a democracia e que a política
correm nos dias de hoje. Sim, concordo. Aliás, é essa questão a
que tu estás a aludir e que tem que ver com o
equilíbrio muito terno que é a democracia representativa, que é um equilíbrio,
entre isso que tu falas e que é evidente, quer dizer, a
população, desde logo por uma questão de disponibilidade de tempo, a população
não pode ter o mesmo grau de informação do que exerce o
poder político e por outro lado num país onde uma democracia representativa
funciona bem, os líderes políticos têm a capacidade de, por um lado,
olhar para o longo prazo e, por outro lado, fazer progredir o
país. Ou seja, tanto moralmente como materialmente. E isso é feito de
uma forma que implica, de certa forma, uma certa descolagem face àquilo
que é a população naquele momento. Esse olhar para a frente implica
uma certa desculpagem e como a democracia direta não tem. Não pode
ser isso. Depois, por outro lado, e por isso é que este
equilíbrio é tênue, se tu excedes na representatividade, ou na representatividade no
sentido de quão longe as pessoas estão no poder ou se quem
está no poder se tornar muito complacente, depois a confiança das pessoas
nessas instituições vai se perdendo. E isso acaba por ser uma resposta
a isso, mas também, se calhar até em maior grau, uma resposta
a essa mudança que a internet e as redes sociais trouxeram, em
que de repente as pessoas são capazes de ter acesso aos políticos
diretamente e o incentivo para ti, político, teres uma conta no Twitter
tipo Donald Trump em que estás sempre a dizer coisas diretamente para
o teu eleitorado é gigante. É gigante, é um grande benefício. Sabe
uma coisa que acho que a gente não escapa em
Joel Pinheiro da Fonseca
nenhum caso? A necessidade de bons líderes. Pessoas que apareçam que saibam
jogar esse jogo, saibam ter uma comunicação com as pessoas, mas que
também mantenham viva essa determinação, esse desejo de fazer um serviço maior
para o seu país, que não é apenas ganhar a fama e
o poder imediato de agradar as massas. Eu acho que é inescapável.
O Brasil viveu um momento, uma ressaca tão grande com a corrupção
e com o estado da política, que também muita gente em oposição
a essa retórica mais revolucionária do Bolsonaro passa meio que cultivar e
a ter um certo saudosismo com a velha política brasileira. Ela O
grau de inoperância, de descaso e de traição para o povo brasileiro
dessa velha classe política é muito profundo também. A gente não pode
sonhar com a volta dela e ela não vai voltar porque o
brasileiro médio já não engole mais isso. Agora, a gente precisa então
de uma nova liderança, que esteja comprometida com mudanças importantes para o
país, que traga consigo esse valor, por exemplo, da ética, de uma
nova postura e de um novo jeito de fazer a política no
país, mas que não se venda a esse populismo mais barato, que
não esteja apenas buscando o próprio poder. O que a gente tem
agora são oportunistas chegando lá. Não é esses que estão aí gritando
discursos da ética e da pureza, nunca foram pessoas marcadas por isso,
que viveram isso, pelo contrário, era um... Que veio de mais sujo
e da pequena corrupção da velha política brasileira. Então oportunistas, é oportunistas
que chegam gritando as palavras que eles sabem que um eleitorado raivoso
quer ouvir. A gente precisa ter alguém que esteja um passo além
disso, uma pessoa com verdadeiro... Pessoas, na verdade, mais de uma, com
verdadeiro espírito público e capazes desse contato com as pessoas e de
encarnarem em si esses valores, mas colocando eles em uso não só
um projeto pessoal e ambicioso de poder, mas é um projeto do
país. Eu acho que nenhuma nação escapa disso. Não há instituição que
dê conta de substituir a importância de líderes, pessoas diferenciadas e dispostas
a fazer o que precisa ser feito.
José Maria Pimentel
Claro, a dificuldade é que isso surge, essa é a grande dificuldade.
Eu gostava de voltar ao liberalismo, que é um bocado mais transversal,
eu conheço obviamente muito melhor o caso português do que o caso
brasileiro, mas parece-me que tem, até por terem parecências culturais, parece-me ter
algumas similitudes no que diz respeito ao liberalismo no sentido em que
são países em que não há uma tradição liberal na política contemporânea,
ou seja, tu não tens um movimento liberal e se quiseres até
não tens uma cultura muito premiável ao tipo de valores do liberalismo
e ao tipo de lógica, o que torna difícil de depois isso
ser defendido no espaço público e de ganhar espaço. Eu gostava de
ter a tua opinião em relação a isso, sobretudo no caso brasileiro.
Em termos de tradição política, qual tem sido a evolução da corrente
liberal no Brasil?
Joel Pinheiro da Fonseca
Olha, eu acho que o liberalismo no Brasil tem muita dificuldade de
vencer, eu acho que impossibilidade até de vencer, uma eleição majoritária. Quando
que ele vence assim, ostensivamente, é quando ele se conecta em geral
a um discurso de intransigência e pureza ética na política. Isso aconteceu
no início dos anos 90, no fim dos anos 80, na verdade,
com a eleição do Collor, que o presidente acabou sofrendo impeachment, ele
próprio era corrupto. Ele era o caçador de Marajás, o caçador das
velhas elites e dos reizinhos que sentavam ali e que se preocupetavam
sobre o dinheiro público. Ele chegou com esse discurso e tinha também
uma agenda liberal. Outro é o caso do Bolsonaro, uma coisa muito
similar também, um discurso de combate às velhas elites corruptas e que
traz junto esse liberalismo econômico. E o liberalismo aí sempre vem a
reboque. O liberalismo, enquanto tal, políticos liberais, tem conseguido mais espaço no
país. Eu acho que existe espaço na Câmara dos Deputados para um
certo número de deputados liberais. Acho que esse número até vai crescer
nas próximas eleições. Mas eu não acho que jamais será uma ideologia
capaz de vencer eleições majoritárias. Eleições
que
precisem da maioria do eleitorado, 50% mais um do eleitorado votando no
liberalismo. Acho que isso não vai acontecer. Por isso também acho que
A estratégia dos liberais no Brasil, a que foi mais bem-sucedida, foi
justamente outra. Foi a capacidade de trabalhar junto de diferentes governos e
promover mudanças importantes. Vou dar alguns exemplos. No governo Collor, você tinha
economistas liberais ali, você tinha um intelectual que foi importante chamado José
Guilherme Mercure, deu um pouco norte da agenda do governo Collor, ele
era um liberal, foi um governo muito ineficaz, teve alguns desastres ali,
ele confiscou a poupança dos brasileiros, aí realmente conseguiu ali fazer coisas
muito ruins, mas teve alguma abertura econômica que foi feita ali. O
Brasil se tornou uma economia mais aberta depois do governo Correa. O
primeiro ponto é esse. Segundo, Fernando Henrique Cardoso. Bom, ele foi assessorado,
e muito bem assessorado, por importantes economistas brasileiros, como Pércio Arida, Gustavo
Franco, Pedro Malan, e faziam parte da equipe econômica do governo. Foi
graças a essas pessoas que André Lara Resende, eu posso falar mais,
são ainda pessoas que dominam um pouco o debate público brasileiro. Graças
a eles o Brasil conseguiu controlar sua inflação, implantou uma nova moeda,
uma nova política monetária que conseguiu acabar com a inflação. O Brasil
viveu um período de hiperinflação poucos anos antes. A inflação era um
problema crônico, não tinha solução, eles conseguiram efetivamente vencer esse monstro da
inflação. Conseguiram privatizar diversas empresas estatais também, tornando a nossa economia mais
eficiente, mais produtiva. Então tiveram várias conquistas nesse ponto. O governo Lula,
especialmente no primeiro período dele, teve cercado de economistas liberais que conseguiram
melhorar muito as propostas dele. Então, vejam, o Lula chegou ao poder
com a ideia de um programa chamado Fome Zero, que queria distribuir
comida para as pessoas. E que era toda uma logística super complicada,
de notas fiscais dadas a supermercados, que contribuíram a comida por todo
o Brasil, um negócio complicado certamente a criar muito espaço para corrupção,
para toda essa relação suja entre público e privado que a gente
conhece. Isso foi descartado no início graças à influência de economistas liberais
que estavam junto do governo, como Marcos Lisboa, Joaquim Levi, Ricardo Paz
de Barros, economistas de uma tendência muito mais liberal que pensam o
lado social também, que graças a eles criou-se o Bolsa Família. O
Bolsa Família é um programa social liberal, porque em vez de você
fazer toda uma logística complicada de levar comida à mesa dos pobres,
você dá dinheiro na mão deles. Você está fazendo algo que um
Milton Friedman propunha. Então você está usando medidas liberais aí. Porque
Joel Pinheiro da Fonseca
Você está dando acesso ao mercado para as pessoas, exatamente. Então, tiveram
esse papel central aí, além de tudo, também de manter as conquistas
econômicas, especialmente de política monetária e fiscal do governo Fernando Henrique anterior,
é graças à assessoria deles. O Antônio Palocci, que era o ministro
da Fazenda, teve um papel central aí, sabia ouvir esses economistas. Bom,
depois na Dilma, na segunda metade do governo Lula e no governo
Dilma, realmente o papel desses liberais diminuiu. O Lula pelo menos na
questão monetária no Banco Central ainda ouvia muito o Henrique Meirelles, o
banqueiro aí com uma cabeça bem liberal, que ajudou muito, é sempre
alguém que o próprio Lula confiava, então tinha esse lado. A Dilma
perdeu um pouco mais isso, A gente foi para uma política econômica
que se desviou bastante disso, mas quando o problema surgiu, quando a
crise veio, o que ela fez? Chamou um economista liberal para ser
seu ministro da fazenda, Joaquim Levi, que tinha trabalhado lá atrás com
o Lula e trabalhou com alguns governos aqui também. Então em diversos
momentos, para tentar resolver as coisas, botar as contas em dia. Não
conseguiu, veio o impeachment e tudo, mas enfim, tentou-se também. E agora
o Bolsonaro com o Paulo Guedes, com alguns outros economistas aí, aqui
do Brasil, Adolfo Saxida, um economista, funcionário público, faz um bom trabalho.
Você tem o Mansueto Almeida, tem diversas pessoas aí fazendo um bom
trabalho. Economistas conhecem muito das contas públicas brasileiras, que tem conhecimento de
políticas públicas, que fazem propostas convincentes e eficazes para melhorar diversos problemas
no Brasil. Então, em todos esses governos, você vê que liberais estiveram
juntos e tendo boa influência neles e levando mudança em direções necessárias.
Eu acho que o papel dos liberais, o liberalismo, porque o que
é o liberalismo? É uma substância etérea, algo que nem, uma coisa
abstrata, que nem existe direito porque cada um de
nós tem
uma ideia um pouco diferente. Mas liberais sim, sempre puderam ter um
papel efetivo e de fazer mudanças boas ligados a diversos governos diferentes.
É aí que eu aposto no caminho para os liberais do Brasil.
Estás
José Maria Pimentel
a falar de liberais economicamente, mas eram também liberais no... A maioria
desses também, na parte cultural e moral e todas as outras. A
maioria desses, sim. Isso é muito interessante, por acaso. Sabes que o
que eu noto em Portugal, não sei se será exatamente o caso
no Brasil, mas quando tens culturas que têm uma matriz que não
encaixa muito bem nos valores liberais, por ser, por exemplo, mais coletivista,
por exemplo, mais avesso ao risco, O que depois acontece na prática,
isso é uma questão que me preocupa muito, é que um liberal
à partida é, eu gosto muito desta frase, pro-market not pro-business, ou
seja, és defensor do mercado mas não defensor dos negócios, és defensor
de empresas em particular. Não és contra empresas nem negócios, és neutro,
mas não és um defensor das empresas lá. Porque cada empresa em
si, a ideia é que ela congorre e não que ela seja
favorecida a interimento de outra qualquer ou interimento até do Estado, que
no fundo representa toda a gente. Mas tu sendo um partido ou
um político que defende políticas mais liberais numa cultura que não é
ela própria muito tolerante em relação a esses valores, tu vais ter
que ganhar apoio e portanto tu vais acabar por ter o apoio
do empresariado. Não é que seja um apoio de rejeitar, mas é
o apoio para o business, se tu quiseres, naquela equação de que
eu falava há pouco e portanto acaba por subverter a lógica e
portanto tu acabas por ter políticos que pelo interesse de quem está
a apoiá-los não vão estar a defender mercados, ou seja, não vão
estar a defender o funcionamento dos mercados enquanto mecanismo de geração de
prosperidade, mas vão estar a defender os interesses das empresas, que muitas
vezes podem ir contra o interesse dos trabalhadores, por exemplo, ou contra
os interesses do Estado que representa toda a gente. Percebes o que
eu quero
Joel Pinheiro da Fonseca
dizer? Quanto mais ideológica fique essa bandeira liberal, mais ela se torna,
no fundo, uma maneira de levar adiante, de proteger os interesses dos
grupos ligados a ela, empresariais ou dos mais ricos. Quantas vezes, por
exemplo, nos Estados Unidos, eu acho que o Brasil e Portugal, eu
acho que a nossa cultura tem vantagens sobre a americana e vejo
como nossos valores podem ter mais respostas a dar para o mundo
do que a cultura americana da competição, individualismo desenfreado. Mas veja como
lá tantas vezes a bandeira liberal, e no Brasil também, quantas vezes
a bandeira liberal acaba se tornando na prática corte de imposto. E
corte de imposto para quem? Corte de imposto para os mais ricos.
A coisa mais comum é que depois de um discurso exacerbado em
defesa do liberalismo, você tenha isso, você tenha políticas que favorecem os
mais ricos. Então não podemos nos deixar levar também a achar que
o liberalismo que traz as respostas é uma ideologia que pode estar
a serviço de grupos de interesse como qualquer outro. É um desafio
para o político que se identifica com esses valores conseguir seguir o
que eles têm de bom mesmo e não deixar que eles sejam
rebaixados. E aí vale para todos. Quantas vezes o socialismo não vira
defesa não da igualdade entre os homens, mas da defesa da elite
política e de quem controla o poder também. Essas ideologias estão sujeitas
a isso. Nenhum interesse é ilegítimo enquanto tal, mas nenhum interesse carrega
em si mesmo a resposta para a sociedade. O bom político, o
bom líder vai saber de alguma maneira equilibrar aquilo se baseando em
alguns interesses, porque o número de pessoas desinteressadas ou que está pensando
genuinamente no bem comum sempre vai ser uma minoria, então sabendo navegar
bem entre os interesses de grupo, vai saber alguma matemática muito difícil
do poder, vai saber promover mudanças boas para todos ou para a
maioria. Esse é o grande desafio e é o desafio do líder,
do
José Maria Pimentel
verdadeiro líder. Sim, sim. Mas a questão é que qualquer líder político,
por muito visionário que seja, tem que agradar a quem está a
apoiá-lo. Tem que ter um grupo de apoio. E o exemplo que
tu deste dos impostos é o exemplo perfeito, porque é o exemplo
justamente disso, e aliás nós, nas últimas eleições portuguesas, entrou um partido
de extrema-direita ou próximo e entrou também um partido liberal pela primeira
vez que justamente faz muito discurso à volta dos impostos com o
qual eu obviamente simpatizo, no sentido em que eu também acho que
nós temos uma cara fiscal muito elevada e gosto de um Estado
enxuto, mas a questão dos impostos é uma questão traiçoeira. Até porque
eu acho que o liberal no sentido, não no sentido provavelmente de
uma pureza, mas no sentido verdadeiro, no sentido em que é um
liberalismo que se estende à sociedade, não é necessariamente avesso a impostos
altos. É avesso a um sistema tributário complexo e um sistema tributário
que dá poder a determinados agentes políticos. Agora, eu pelo menos não
tenho nada contra pagar imposto e até seria favorável, por exemplo, à
questão do rendimento básico incondicional, que lá está, que era uma ideia
que também vinha mais ou menos do Milton Friedman, e que na
prática passa por pagar um imposto, mas que depois é utilizado de
uma maneira simples e portanto que não dá poder político ao Estado.
José Maria Pimentel
disso. Sim, justamente até porque não tem só uma lógica econômica, tem
uma lógica de progresso, de progresso social, eu pelo menos acredito muito
nisso. Antes de passarmos, como é hábito, às recomendações do convidado, deixem-me
lembrar-vos que podem dar o vosso contributo para a continuidade e desenvolvimento
deste projeto. Visitem o site 45graus.parafuso.net barra Apoiar para ver como podem
contribuir para o 45°, através do Patreon ou diretamente, bem como os
vários benefícios associados a cada modalidade de apoio. Se não puderem apoiar
financeiramente, podem sempre contribuir para a continuidade do 45° avaliando-o nas principais
plataformas de podcasts e divulgando-o entre amigos e familiares. Muito obrigado pelo
vosso apoio e agora de volta à conversa. Olha, Joel, por vontade
minha ficávamos aqui mais uma hora a falar sobre uma série de
temas que ficaram por cobrir, mas isto é típico destas conversas. Gostei
imenso de falar contigo, foi uma excelente conversa, passava-te a bola para
recomendar-te o livro. Vamos lá, um livro. Então,
Joel Pinheiro da Fonseca
falamos muito da polarização no mundo, o possível efeito das redes sociais
também. Tem um livro, eu acho que está sendo traduzido aqui no
Brasil, talvez em Portugal já tenha até tradução, como não conheço ainda,
que é de um acadêmico, psicólogo americano chamado Jonathan Haidt, que você
deve conhecer, inclusive chama The Righteous Mind, então trouxe, bati na mesma
tecla aqui, mas o The Righteous Mind eu acho que é um
livro que vale a pena a leitura porque ele busca quais são
as causas psicológicas por trás desse fenômeno preocupante da polarização que em
última análise, se não interrompido, nos encaminha para a guerra civil. Claro
que estamos longe dela ainda, eu acredito, mas em última análise nada
foi feito. Se um chão comum não for reconquistado, nos encaminha para
a impossibilidade total de resolução de conflitos por meio da palavra. E
daí só resta a força e isso é o que a gente
quer evitar ao máximo. Então acho que ele examina isso, examina o
que está por trás dos nossos posicionamentos políticos, porque a gente se
acha moralmente superior à pessoa que está do outro lado do espectro
político, quando na verdade não. Na verdade as nossas práticas são quase
indistinguíveis de um lado do outro, do ponto de vista ético-moral. Então
acho uma leitura que eu recomendo muito sempre.
José Maria Pimentel
É muito engraçado, porque eu já falei várias vezes esse livro no
podcast, o do recomendá-lo é bom porque está a reforçar que é
um ótimo livro. Até há um outro aspecto do livro em relação
ao qual eu sou crítico, da abordagem, quer dizer, das conclusões que
são tiradas, mas acho o livro, sobretudo o tema que trata, muito,
muito, muito interessante e tem que ver com várias coisas que nós
falámos, tem que ver com aquela questão das pessoas não agirem racionalmente
e de agirem primeiro pela intuição e depois serem persuadidas e tem
que ver também com perceber que nós, no fundo, nunca estaremos completamente
de acordo na medida em que temos valores diferentes. E esses valores
diferentes levam a que nós... Quer dizer, não é simplesmente uma questão
de informação, não é simplesmente uma questão de uniformizar a informação a
que todos temos acesso. Há valores diferentes e isso é quase incontornável.
E isso em política vê-se muito. Havia um político português que tinha
uma frase muito conhecida que dizia qual é a coisa do género.
Se outra pessoa tiver a mesma informação que eu vai inevitavelmente chegar
à mesma conclusão.
Joel Pinheiro da Fonseca
ao mesmo tempo, esses valores que a gente julga ser o que
nos diferencia dos outros, às vezes são uma camada muito superficial da
nossa personalidade, ou seja, eu defendo a liberdade, você defende a igualdade,
que são importantes para a nossa identidade, eu sou um liberal, você
é um socialista, mas acabam sendo muito menos importantes e acabam criando
diferenças muito pequenas entre nós. E o que nos une acaba sendo
muito maior, mas por causa dessas pequenas diferenças a gente é capaz
de brigar e se distanciar.
José Maria Pimentel
também. O 45 Horaos é um projeto tornado possível pela comunidade de
mecenas que o apoia e cujos nomes encontram na descrição deste episódio.
Agradeço em particular a Carlos Martins, Gustavo Pimenta, Eduardo Correia de Matos,
Joana Monteiro, Rui Oliveira Gomes, Corto Lemos, Joana Farialve, João Baltazar, Mafalda
Lopes da Costa, Rogério Jorge, Salvador Cunha e Tiago Leite. Até ao
próximo episódio.