#81 Joel Pinheiro da Fonseca - Compreender o Brasil: os erros dos governos do PT, a reacção...

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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45 Graus. Neste episódio trago de novo um convidado do outro lado do Atlântico e que volta a não desiludir. É ele, Joel Pinheiro da Fonseca, que é economista e filósofo e uma presença frequente nos médias brasileiros, com colunas de opinião no jornal Folha de São Paulo e na revista Exame. Para além disso, o convidado tem um canal de YouTube muito conhecido, pequeno, diz ele a certo ponto na conversa, mas que na verdade conta com 75 mil seguidores, em que ele analisa regularmente quer a atualidade política brasileira, quer questões mais de fundo. Podem encontrar os links para a presença online do convidado na descrição deste episódio. Depois de seguir o Joel durante algum tempo, fui-me a perceber do que pensamos de forma muito similar e por isso decidi convidá-lo para o podcast, de forma a tentar compreender melhor o Brasil dos últimos anos, o Brasil atual, e tentar perceber o que é que se pode seguir daqui. Se bem se lembram, conversei também sobre este tema aqui há uns meses, no episódio 70, com Cláudio Couto, cientista político, mas o tema ficou, obviamente, muito longe de ser esgotado. No atual ambiente polarizado que se vive no Brasil, o Joel distingue-se desde logo por se afirmar como liberal, o que significa que não é próximo nem dos governos PT, nem muito menos da onda de extrema-direita que apoia o atual governo Bolsonaro. E, na minha opinião, o convidado distingue-se nos seus artigos por problematizar a política brasileira de uma forma que é simultaneamente rigorosa e que mostra um pensamento muito original. Durante a conversa percorremos uma série de aspectos que ajudam a explicar as mudanças recentes na política brasileira e podem ajudar a perceber o que é que se pode seguir. No dito episódio que gravei com o Cláudio Couto, comecei por lhe perguntar como chegámos aqui, isto é, o que correu mal para que alguém como Bolsonaro tenha sido eleito. E foi mais ou menos essa pergunta que comecei por fazer também ao Joel, o que nos levou a discutir os erros dos governos do PT em relação à economia, desde a abertura incompleta aos mercados internacionais até às políticas na área da educação. Olhando mais para o futuro, falámos sobre o governo Bolsonaro e o que se pode esperar, em particular em termos de políticas económicas, e visto que Bolsonaro se candidatou com uma agenda pouco usual, que junta políticas típicas da extrema direita com a defesa de liberalização na economia. A propósito, queria corrigir um lapso. A capa da revista Economist que falamos a certo ponto e que era muito elogiosa em relação ao Brasil não é de 2013, mas sim de 2009. Seguidamente falámos de mudanças mais profundas do que propriamente o rumo da economia. Por exemplo, a reação ultraconservadora que se vive em algumas faixas da população brasileira e a perda mais generalizada de confiança dos cidadãos nas instituições e na democracia em particular. Estes são aspectos com um impacto bem mais profundo na opinião dos eleitores, até porque tocam em algo muito mais fundamental, a identidade e o sentimento de pertença a um grupo. O impacto destes fatores na mudança política que levou Bolsonaro ao poder tem aspectos que são particulares do Brasil, mas insere-se numa tendência maior que é a transversal à ascensão de movimentos populistas nas democracias ocidentais. Um aspecto em particular que tem um impacto inegável na perda de confiança dos cidadãos nas instituições é aquilo que podemos definir como a desintermediação provocada pelo surgimento das redes sociais. No caso do Brasil destaca-se em particular o papel do WhatsApp que passou para muitas pessoas a ser o único meio de obtenção de informação que é transmitida por amigos e conhecidos, informação não filtrada, claro, e que se substituiu à intermediação tradicionalmente feita pelos jornais e mesmo pela televisão, que muitas pessoas hoje em dia já nem sequer veem. E isto explica, ou ajuda a explicar, porque é que há hoje no Brasil, tal como nos Estados Unidos, um movimento, marginal, mas que tem peso suficiente para que se fale nele, de pessoas que afirmam acreditar que a Terra é plana. Neste capítulo discutimos em particular a ascensão dos movimentos populistas de direita e falámos também no caso Português, onde já temos o partido do género no Parlamento, sendo que na verdade, quando gravámos, eu hesitei em qualificá-lo como Partido Extrema-Direita, mas isto a tensão foi antes daquele comentário racista de há umas semanas ter vindo clarificar as águas. E pronto, a introdução já vai longa, por isso deixo-vos com Joel Pinheiro da Fonseca.
Joel Pinheiro da Fonseca
Joel, muito bem-vindo ao podcast. Obrigado,
José Maria Pimentel
é
Joel Pinheiro da Fonseca
um prazer estar aqui.
José Maria Pimentel
Vamos começar, inevitavelmente, pela situação política brasileira. Eu gostava de ter a tua visão em relação à situação atual e como é que nós aqui chegámos. A minha intuição, e era um bocadinho também em relação a isso que eu gostava de ter a tua opinião, é que aqui nós podemos falar de duas coisas um bocadinho diferentes. Ou seja, nós por um lado temos causas, digamos assim, conjunturais, e que levariam a uma alteração de partido no poder em qualquer caso, e que podia ser uma alteração drástica como foi e que tem a ver com problemas na economia, basicamente, a economia abruptamente deixar de crescer e passar, aliás, por um período de recessão, é isso. Quer dizer, esse é o B.A. Abad da política, que obviamente provoca um descontentamento geral, o crescimento da insegurança nos últimos anos e também, embora isto esteja relacionado com o segundo fator que vou falar, também a questão da corrupção. O aumento da corrupção, pelo menos, aumenta a percepção da corrupção. Mas por outro lado, há outros fatores que não são tão conjunturais, que são mais estruturais e mais indiretos, em certo sentido, de que a corrupção pode ser um bocadinho o exemplo, mas também tem que ver com uma espécie de recrudescer de uma via muito mais até do que conservadora se calhar reacionária e que terá alguma coisa que ver também com o aumento brutal de peso das igrejas evangélicas e com uma espécie de aumento de peso da religião E que aí já não tem só que ver com uma mudança de poder, mas sim com o tipo de direção para que o Brasil foi, e que tem que ver com não só ter um tipo populista, mas que tem lives de, em muitos casos, extrema-direita. Mas ainda agora falávamos em off da questão do vídeo do secretário da Cultura, que é uma coisa, uma bizarria, não é? Um vídeo a decalcar um discurso do Goebbels, mas que... E ele entretanto foi demitido, mas ainda assim ele
Joel Pinheiro da Fonseca
não surge por acaso, não é? Não surge por acaso, a gente pode dizer que ele errou no sentido de foi longe demais. Foi longe demais na direção na qual o governo já caminha. Então, quer dizer, ele passou dos limites, mas não é que a direção do movimento que a gente tenha visto ali seja muito qualitativamente diferente da direção que o governo segue. Olha, eu acho que você resumiu bem diversos fatores que explicam como é que a gente chegou aqui. Vivemos uma reação a um momento muito duro da história brasileira recente, que foi essa recessão profunda. Na cabeça das pessoas, quer dizer, o raciocínio causal e o exame das causas dos problemas que nos afligem nem sempre é muito apurado, mas dia de regra. Se o governo está no poder quando uma grande crise econômica começa, as pessoas vão associar a causa dessa crise ao governo que está ali. E no caso, eu acho que essa associação é correta, porque foi a política econômica dos anos do governo PT, especialmente da Dilma, que produziu o rombo fiscal, o buraco nas contas públicas, que nos levou a essa situação e que ao mesmo tempo negligenciou totalmente as causas mais perenes do subdesenvolvimento brasileiro. Então não investiu no nosso crescimento de longo prazo, não investiu em educação, não resolveu a nós gargalos de infraestrutura, acreditou que fosse possível crescer indefinidamente só alimentando o consumo, fazendo com que os bancos públicos e os privados barateassem o crédito, baixassem os juros, que o governo gastasse mais, promoveu-se um boom do consumo, que evidentemente é ótimo, mas que tinha duração limitada também, o endividamento das pessoas aumentou, uma hora isso teria que parar, a inflação aumentou também, porque a nossa capacidade produtiva não estava subindo, Ju, então deu no que deu, Uma hora teve que parar esse processo, o rombo do Estado das contas públicas ficou muito claro. Esse rombo não é só culpa do governo, esse rombo também decorre da nossa própria Constituição, que cria muitas obrigações de gasto para o governo e a receita do governo aos impostos não conseguiu aumentar em compasso com esses gastos que são obrigatórios e que tendem a aumentar com o tempo. Tem também tudo a ver com o gasto do governo do Estado brasileiro com previdência e com aposentadorias, outro gasto obrigatório que tende a aumentar. Então tem processos maiores do que só o governo PT, mas sem dúvida alguma o governo Dilma, ao abrir mão completamente de procurar super hábitos primários, procurar gastar menos do que ela arrecada a cada período, ela gastou mais. E isso acentuou então esse processo, provocando uma grande crise econômica, da qual ainda não saímos até agora. Temos alguns anos já em que não estamos mais em recessão, mas a recuperação é muito lenta. Então o Brasil ainda sofre, ainda temos cerca de 12 milhões de desempregados, é muita gente que queria estar trabalhando. Então acho que as pessoas sentiram isso e isso foi ao mesmo tempo de uma outra coisa. Logo antes da crise econômica começar para valer, revelou-se por uma operação da Polícia Federal e do Ministério Público e também da imprensa, que falou disso ininterruptamente, aos quatro ventos, sobre um escândalo ético de corrupção no governo, envolvendo empresas estatais como a Petrobras, mas envolvendo também a relação do governo PT com grandes empresas privadas brasileiras, muitas delas que foram escolhidas pelo governo para serem campeãs nacionais, como a JIF, essa empresa de carnes aí, que é um conglomerado enorme, você teve construtoras como Odebrecht, Camargo Correia, diversas grandes empresas nacionais envolvidas até o pescoço em escândalos de propina, em esquema, não só o Partido do Poder, que era o PT, mas diversos outros que também compunham a sua base, como o PMDB, o PP, o Brasil é um país de muitos e muitos partidos, e
José Maria Pimentel
ninguém deles domina. Exatamente, essa é uma das particularidades. O
Joel Pinheiro da Fonseca
nosso Congresso tem 513 cadeiras, o maior partido tem 50 e poucas, então é bastante fragmentado isso. E portanto não era só o PT envolvido, a corrupção não era um monopólio nem uma invenção do PT, mas ele estava liderando esses sistemas e levou ela a níveis que nunca tinham sido descobertos em tamanha magnitude, envolvendo vários países, inclusive, envolvendo obras em Cuba, obras em países africanos, enfim, a coisa era muito grande. Isso gerou, do meu ponto de vista, também uma reação compreensível da população de estamos fartos. No Brasil sempre vigorou a ideia de que política é uma coisa corrupta. Política é coisa de corrupto. E isso sempre foi visto dessa maneira. Ah, os políticos lá em Brasília não se preocupam com a gente, é tudo corrupto. Essa visão é, em parte, injusta, porque tem pessoas boas e tem gente que faz um trabalho sério. Mas o brasileiro saiu de uma posição meio fatalista disso, a corrupção está ali, não tem o que fazer e vai continuar sempre, para uma posição extremamente revoltada e querendo resolver e cortar pela raiz o mal da corrupção. Eu acredito que não seja só uma questão moral, uma questão de que precisamos de pessoas com uma moral rígida e austera. E essas pessoas é que... Isso é o remédio contra a corrupção. Mas o Brasil passou por esse surto. E o PT e outros partidos, não só ele, também o MDB, que é um... E outros grandes partidos que não tem uma ideologia muito clara, mas passaram a representar para a população o que é a corrupção no país, o que a gente chama de fisiologismo político, a preocupação apenas com a própria sobrevivência política. E houve uma grande revolta da população contra eles, levando à procura de pessoas que representassem algo novo.
José Maria Pimentel
Sim, uma certa pureza.
Joel Pinheiro da Fonseca
Uma certa pureza moral, uma certa intransigência com a velha política e com a esquerda. Afinal, quem estava no poder tinha um discurso de esquerda. Isso é um elemento. Tem outros elementos. A elite cultural intelectual do país, que é bastante progressista nos seus valores. Ela também tem uma desconexão muito grande com grande parte da população, com a classe média, com os valores da classe média. Talvez eu sinto também uma reação a uma postura muito agressiva da nossa elite cultural e da produção midiática e cultural e artística no Brasil. Valores que eu até concordo, de aceitação, de tolerância, de pluralidade, de orientações sexuais e gênero e todo o resto, mas empurrando isso de forma bastante militante até, com uma população que está muito estante.
José Maria Pimentel
E tentando fazer não apenas com que as pessoas aceitem, mas com que elas mudem radicalmente a maneira como pensam.
Joel Pinheiro da Fonseca
Mudem a maneira como pensam, que não só tolerem, não só respeitem, mas que celebrem, que achem aquilo maravilhoso e que se não celebrarem existe algo profundamente errado e preconceituoso e imoral com elas. E uma hora a pessoa reage a isso, porque ela está sendo atacada em sua identidade, nos seus valores. Então acho que também teve um elemento de reação assim, acho que esse conservadorismo tem muito a ver com isso, conservadorismo alimentado faz tempo pela ascensão de igrejas evangélicas aqui, e acho que por fim, eu creio que o Brasil faz parte também de um processo maior, um processo global de acirramento e de polarização, que eu acredito que tenha como pelo menos um dos seus catalisadores as novas ferramentas de comunicação, as redes sociais que permitem que a pessoa se isole muito e que ela receba informações feitas apenas pra ela e por pessoas que pensam como ela e que ela ganhe reputação e busque crescer em estima pelas pessoas ao seu redor, manifestando um grau de pureza cada vez maior nas suas convicções, nas suas crenças, eu acho que teve tudo a ver. Eu não vejo, por exemplo, um Bolsonaro sendo eleito se não fosse o WhatsApp. Acho compreensível, acho que seria inimaginável a eleição do Bolsonaro sem a existência de WhatsApp, Facebook.
José Maria Pimentel
Sim, sim. Boa, tu acabaste de ganhar 5 pontos, sabendo ser o guião para o resto da conversa, portanto agora temos com...
Joel Pinheiro da Fonseca
Vamos ver cada um deles ou algum deles aí. O que está acontecendo nesse país.
José Maria Pimentel
A minha ideia era ir um por um porque acho que temos aqui coisas com que nos entreter. Se calhar começava pela questão da... Bem, eu não sei se se chama assim no Brasil, mas em Portugal normalmente se chama se chama da promiscuidade entre o público e o privado, ou seja, tu teres empresas privadas muito próximas do poder público. Eu acho esse um tema muito importante e muito importante para pessoas como nós que se identificam politicamente como liberais porque é uma questão que é preciso atacar de frente, até porque é uma questão que cria muita confusão nas pessoas porque o liberalismo não passa por isso, passa pelo contrário justamente, não é defender as empresas privadas ou sobretudo determinadas empresas privadas, é defender o funcionamento dos mercados, que é muito diferente e em muitos casos implica precisamente evitar ao máximo esse tipo de promiscuidade, que é um problema institucional que existe no Brasil e existe em Portugal também, nós tivemos vários casos, quer dizer, eu ia dizer não tão gritantes e não sei se é completamente verdade, mas pelo menos não tão determinantes politicamente como os casos do Brasil, mas tivemos vários casos e temos, ainda estamos a lidar com eles justamente de determinadas empresas ou bancos que por estarem muito próximas do poder público, tiveram favorecimentos, tiveram, no fundo, situações desleais de concorrência e, quer dizer, nenhum país pode ser um país com liberdade econômica elevada se não resolver este problema. Ao ter este defeito institucional, o que tu vais ter é um problema cada vez maior de promiscuidade entre o público e o privado e a resposta das pessoas vai ser, que é a resposta lógica em certo sentido, de querer tirar lá os privados e ter mais Estado, ter um Estado maior e um Estado mais forte e resolver o problema por aí. Perfeito.
Joel Pinheiro da Fonseca
E existem dois caminhos possíveis. Curiosamente, no Brasil, a bandeira da privatização ganhou muita força com esses escândalos todos, especialmente envolvendo a Petrobras. O discurso é o seguinte, olha, uma empresa estatal, uma empresa pública, ela vai estar sempre, cronicamente, com esse problema do aparelhamento político dela e do uso político. A Petrobras sofreu de duas maneiras. Uma foi realmente esse aparelhamento político dela, o uso dela na corrupção, contratos escúrios usados para pagar propina, obras totalmente desnecessárias, isso foi um dos lados. Mas curiosamente foi o que menos afetou, do ponto de vista financeiro, o petrobrás. Muito mais grave do que isso foi uma política do governo de manter o preço do combustível baixo. Essa política causou um prejuízo muito maior para a empresa, nossa empresa de petróleo, do que mesmo a corrupção. Então, quer dizer, esses usos políticos, sejam legais ou ilegais, promoveram aí uma destruição desta que era a empresa que simbolizava o orgulho nacional, digamos assim. Então a bandeira da privatização ganhou muita força, até como resposta a isso, para dizer olha, chega de empresa pública, empresa pública é cabide de emprego, empresa pública é um palco de corrupção, vamos privatizar as empresas. Claro, Muitos outros esquemas de corrupção foram, como você bem indicou, cometidos na relação entre o Estado e a empresa privada. Não é que esse discurso resolva alguma coisa, mas é um desafio para o Brasil aumentar essa distância entre o privado e o público, que se manifesta em diversos obstáculos a uma economia mais liberal, por exemplo, a abertura econômica do país. Bom, abertura econômica que seria muito importante para o nosso desenvolvimento, não existe país que tenha enriquecido sem estar profundamente conectado ao resto do mundo no comércio. Tem países que enriqueceram com uma economia até com bastante intervenção do Estado.
José Maria Pimentel
China, Coreia do Sul,
Joel Pinheiro da Fonseca
tem uma grande participação do Estado ali, mas elas são economias globalizadas, elas são economias que participam ativamente do comércio mundial e você tem países mais liberais que enriqueceram, Você tem o Chile, ou Estados Unidos, ou Nova Zelândia, ou Austrália, quer dizer, países no qual o Estado não tem um papel tão grande assim na vida econômica, mas que também são ricos e, de novo, são países integrados à economia global. O Brasil não. O Brasil é um país ainda bastante fechado e essa abertura econômica, ela atinge interesses econômicos aqui dentro. Globalmente para o país seria benéfico, mas para alguns setores específicos não seria benéfico. Eles têm um grande peso na hora de travar essas iniciativas. Outro caso, a reforma tributária. O Brasil é um país com uma das leis tributárias mais complexas do mundo. Nós somos os recordistas disparados daquele ranking de tempo que as empresas gastam para calcular e pagar os seus impostos. É uma complexidade total e uma insegurança jurídica total, porque a empresa nunca pode ter certeza que ela pagou de fato o que ela devia. E se um auditor da Receita Federal concluir que não, que ela pagou errado os seus impostos, e processá-la, ela pode estar com um prejuízo enorme em mãos. Você nunca tem segurança jurídica nenhuma de que você cumpriu suas obrigações tributárias. Então esse é um das primeiras prioridades para o Brasil se tornar uma economia mais livre, com mais concorrência e todo o resto. Agora, a situação tributária atual, que cria uma ineficiência para o sistema como um todo, ela tem quem se beneficie delas. Ela tem empresas que sabem muito bem que se a gente tiver uma carga tributária mais justa, mais simples, vão sofrer com isso. Portanto, criam grandes entraves a gente poder discutir de forma madura e responsável uma mudança na nossa legislação tributária. Também tem uma competição entre estados, que acaba sendo muito danosa e que criam cada estado com as pequenas regras tributárias, cria um caos total e as empresas não atuam só num estado, elas estão em diversos estados, então cria uma confusão que seria muito bom que fosse resolvida, mas tem muitos interesses contra e são interesses concentrados. Isso vale aquela regra que vale para tantas questões econômicas. Os benefícios de um passo em direção a uma economia mais livre são difusos, Beneficia todos os consumidores, beneficia empresas que nem existem ainda, porque hoje em dia não vale a pena, e empreendedores futuros e tudo. Então esse grupo difuso e grande que será beneficiado não é organizado, não luta pelos interesses, e ela prejudica grupos pequenos, mas muito concentrados e que têm consciência disso e que se organizam para combater essas mudanças. Então a mistura entre o público e o privado continua forte no Brasil. Em parte o voto no candidato Bolsonaro foi uma revolta também contra isso, mas o bolsonarismo e o governo reproduzem esse tipo de relação espúria direta. Por exemplo, quando Bolsonaro quis nomear o seu filho, que nem inglês direito fala, para embaixador em Washington. Quando um outro filho dele, de forma não oficial, basicamente cuida da comunicação do governo. Quando interesses de igrejas são colocados na agenda do governo, quando o presidente discutiu seriamente dar isenção da conta de luz para todos os templos religiosos neste país. Infelizmente, uma pressão pública contrária conseguiu demovê-lo dessa ideia, Mas ela esteve em discussão. Quando o presidente negligencia deliberadamente a proteção ao meio ambiente, permitindo que grileiros e pecuaristas coloquem fogo na Amazônia e cresçam de forma ilegal, e depois, ainda por cima, o governo anuncia uma anistia a terras que foram griladas. Grilada é uma terra que era do governo ou que não tinha dono ou que era do governo, em geral uma floré, uma parte, um trecho de floresta que foi desmatado, transformado em fazenda de forma irregular, mas que o dono manteve-se ali. Ele contrata alguém para desmatar o terreno, bota rebanho naquele terreno e passam-se os anos. Na prática, aquilo acaba virando uma fazenda e o governo anunciou que vai anistiar terras griladas até certo ano, ou seja, premiando o rompimento da lei de diversos interesses privados, os interesses privados mais obscuros, mais predatórios, que nem se manifestam politicamente, porque vivem basicamente do ilegal.
José Maria Pimentel
No fundo voltamos à questão das instituições. Para tu ter uma economia liberalizada, aberta, tu precisas ter instituições de qualidade, porque senão o que tu vais ter é, vais ter sempre algumas franjas com mais poder do que outras e vais sempre ter o Estado a intervir, a abrir determinados interesses. Mais no início da conversa, estavas a falar da questão das empresas campeãs nacionais, que é uma estratégia que, por exemplo, essas economias do extremo oriente, do sudeste asiático usaram. Coreia do Sul, Singapura, por aí. E esse é um ótimo exemplo. Se tu tiveres instituições de qualidade, tu consegues seguir uma estratégia desse género de modo a que ela seja proveitosa, quer dizer, e no fundo estás a dar o empurrão àquelas empresas que elas precisam para arrancar e para se tornarem competitivas internacionalmente. Se tu não tiveres instituições de qualidade, o que vai acontecer é que essas empresas campeãs nacionais vão ser na prática uma colmeia de interesses em que tu vais ter os políticos com mais poder, quer dizer, obter uma renda dessas empresas ou essas empresas a funcionar como veículo de opressionalização das políticas do governo a nível de popularidade, por exemplo, vamos supor que a Petrobras era um exemplo desse género, que era privada, por exemplo, instruções para controlar o preço do petróleo porque o governo obviamente sabe que se a gasolina aumenta vai perder popularidade. E portanto, no fundo, para o mesmo grau de liberalização, se tu quiseres, consoante a qualidade das instituições, tu podes ter resultados diametralmente
Joel Pinheiro da Fonseca
opostos. É verdade, é verdade. Acho que você toca nesse ponto bem. E no fundo é uma questão cultural, talvez, também. Isso, sim, sim. Exatamente. De impedências, regras. Se você não tiver uma cultura que minimamente estimule as pessoas a fazer isso, é difícil qualquer iniciativa dessas vingar. Agora, eu não tenho certeza também se o desenvolvimento de uma Coreia, por exemplo, é diretamente causado por essa política de grandes grupos empresariais familiares que a Coreia fomentou. Uma coisa que os países asiáticos têm é muita poupança e muito investimento em capital humano. E eu me pergunto se no fundo, no fundo, não importa tanto assim se você é super liberal, se você é mais intervencionista, isso talvez não importe tanto, Mas se você tiver uma formação de capital intensa, de capital físico e capital humano, e tiver uma economia integrada ao resto do mundo, na divisão global do trabalho, se isso por si só já não tiver. Não é tão importante qual estratégia você vai utilizar dentro disso, mas se você tiver essas duas coisas, talvez você esteja fadado a enriquecer. O Brasil não tem nenhum dos dois. Ele é fechado e a formação de capital aqui é pífia. Ela vem sendo muito abaixo, tanto investimento privado quanto público, muito abaixo do que estima-se que seria necessário para a gente melhorar a nossa malha de infraestrutura e fazer uma série de outros avanços, melhorar a nossa educação e uma série de outros avanços aí que seria necessário. E
José Maria Pimentel
é um problema que eu suponho que seja, quando nós nos começamos a aproximar muito das fundações do problema, estamos mais perto da verdade mas ao mesmo tempo mais longe de soluções rápidas, soluções fáceis. É muito difícil dizer como é que se resolve uma coisa desse gênero.
Joel Pinheiro da Fonseca
Exato. E talvez um país não precise querer ser, estar entre os mais ricos. Porque a riqueza é uma medida econômica que merge algumas coisas de um país. O PIB americano, por exemplo. O americano tem crescido. Necessariamente a vida nos Estados Unidos tem melhorado. Alguns economistas estão mostrando que não. Olha, as pessoas estão... Tem uma epidemia de remédios pra dor. As pessoas estão bebendo mais. O suicídio está em alta. Você... Tem gente se destruindo naquele país. Não necessariamente o crescimento econômico é diretamente ligado à melhora do padrão de vida. Claro, num país como o Brasil, que é pobre, com certeza o crescimento econômico estará ligado sim à melhora do padrão, mas Não necessariamente a gente precisa ambicionar estar entre os mais ricos, que tem o maior PIB do mundo. A gente tem que querer crescer. Para isso a gente tem que dar passos na direção correta e acho que alguns passos têm sido dados de alguns anos para cá. Inclusive neste governo, inclusive no governo Bolsonaro, conseguimos fazer uma reforma da Previdência. Olha que coisa, o Brasil não tinha idade mínima. Conseguimos botar uma idade mínima para a aposentadoria no Brasil, coisa que a França tentou mudar a sua idade mínima, não conseguiu. Então, de alguma maneira ou de outra, seja por que caminho for, a população brasileira aceita certos sacrifícios às vezes, mas que são importantes para que o barco não afunde
José Maria Pimentel
completamente. Sim, o difícil, parece-me, é sempre conseguir que haja uma noção das pessoas de que isso é importante no longo prazo, não é?
Joel Pinheiro da Fonseca
No longo prazo, estamos arrumando a casa. O Brasil precisa ser capaz de fazer a lição de casa, de arrumar um mínimo. Eu não tenho a ambição de tornar o Brasil uma Singapura do ultraliberalismo econômico nem nada disso, mas a lição de casa. Tem que estar tudo em ordem, as contas têm que estar em dia, as regras do jogo têm que estar claras. Isso cria o ambiente necessário também para que se poupa, para que se invista. E daí algo de mais longo prazo pode acontecer.
José Maria Pimentel
E a questão da previsibilidade, por exemplo, do sistema tributário que falavas há pouco, é um exemplo do jogo de soma positiva, quer dizer, só se perde com a instabilidade tributária
Joel Pinheiro da Fonseca
e com a complexidade tributária. Só se perde, todo mundo está pior. Exato, todo mundo.
José Maria Pimentel
Exatamente. Agora, a dificuldade, isso é uma coisa que eu noto cá também, quer dizer, existe em todo lado, obviamente, mas em graus diferentes, é a dificuldade em pensar no longo prazo, ou seja, antecipar problemas. Tu falavas há bocadinho no início dos governos do PTI, não só que não geriram uma série de instabilidades que viriam a prazo e de insuficiências da economia e que depois essa falta de cuidado, essa falta de atenção a preparar o futuro levou a que a economia tivesse entrado em recessão. Na altura havia quem chamasse a atenção para isso? Ou eu quero dizer que esta pergunta é... Agora é fácil olhar para trás e dizer que faltava isso, mas na altura havia quem identificasse esses problemas? Porque é que não se fez? Teve
Joel Pinheiro da Fonseca
momentos em que o PT era quase hegemônico no Brasil, mas sempre houve críticos das duas coisas. Primeiro, do abandono gradual que o PT fez de conquistas econômicas muito importantes que ele recebeu como legado do governo anterior. O governo Fernando Henrique, que veio antes do governo Lula, foi um governo que conseguiu controlar a inflação, conseguiu transformar em lei, mas também em prática de governo, a responsabilidade fiscal, ou seja, o governo vai tentar arrecadar mais do que ele gasta e conseguiu fazer isso. Então entregou uma situação muito boa para o seu sucessor no sentido dessa arrumação da casa. E O Lula preservou, o Lula soube preservar isso ao longo de quase todo o seu primeiro mandato. Inclusive ele era assessorado por bons economistas. E o Lula preservando isso teve um mérito, foi capaz de fazer políticas sociais voltadas à base da pirâmide brasileira, à base da pirâmide social brasileira, que era muito desamparada. Isso foi muito positivo, sim. O símbolo desses méritos é o programa Bolsa Família, que é uma distribuição de renda direta para pessoas pobres e que faz toda a diferença, dá a elas um novo nível de consumo, melhora a vida de muita gente. Então, isso é um grande mérito do governo Lula. Mas gradualmente, depois disso, depois dos primeiros escândalos de corrupção, que tiraram, infelizmente, do governo dele um ministro da Fazenda, que era muito competente, e outras, junto dele, outras figuras saíram, e outra ala do PT, muito mais heterodoxa, muito mais populista, a economia tomou esses lugares. Daí você teve um abandono desse legado econômico positivo que ele tinha recebido, um abandono da responsabilidade fiscal, e isso gerou críticas à direita e à esquerda, críticas constantes ao completo desprezo do governo PT pelo ensino básico, onde está a grande fraqueza, a grande carência do ensino, da educação no Brasil está no ensino básico, vai da infância até o fim do ensino médio, ou seja, antes da faculdade, antes do ensino superior. Então O PT não deu a devida atenção a isso, pelo contrário, permitiu que o ensino básico continuasse muito ruim para a imensa maioria da população brasileira. O descaso completo do PT com relação ao meio ambiente. Também teve cada vez mais obras faraônicas com impactos ambientais e para comunidades indígenas ou outras, muito ruins também. Muitos críticos foram apontando isso. E a falta de investimento em última análise. Então, sempre houve críticos, sim, mas teve um momento em que a economia do Brasil estava crescendo. E contra uma economia em crescimento é muito difícil qualquer crítica colar. A vida estava melhorando, então, e esses problemas, essas negligências, elas geram problemas do longo prazo. O longo prazo não está aqui ainda. A população feliz chancelou a volta do PT muitas vezes, aí quando muitas pessoas já apontavam problemas sérios que
José Maria Pimentel
iriam acontecer. E nem foi só a população. Eu lembro daquela capa famosa da Economist em 2013. Acho
Joel Pinheiro da Fonseca
que foi em 2013, do vídeo do Redentor decolando. Isso, exatamente, essa capa. Fazendo Justiça Revista, ela no corpo da matéria não era só Luan Sao Alcoverno PT, não. Ela apontava problemas, sim, alguns desses que eu falei, inclusive, e apontava riscos. Mas sim, houve uma crença de que o Brasil estava decolando aí e que o crescimento ia vir de forma sustentável e logo depois o foguete perdeu o rumo e...
José Maria Pimentel
O apoio caiu. Exato. Parecia aquelas desculagens de foguetões. Mas, por exemplo, a questão da educação, do ensino básico, é até curiosa para um partido de esquerda, não é? Que se diria preocupado com a educação. Ou havia, como muitas vezes estou a pensar no caso português, e muitas vezes acontece isso, muitas vezes a esquerda tem uma preocupação em democratizar o acesso à educação, mas não necessariamente com a qualidade da educação, se quiseres. O que depois é perverso. Por exemplo, aqui em Portugal há uma diferença de qualidade crescente entre as escolas privadas e as escolas públicas, que tem justamente a ver com, bem, eu não diria que o sistema de educação é péssimo, está longe disso, mas tem que ver com as insuficiências do sistema de educação público, leva às pessoas que podem a pôr os filhos no sistema de educação privado, que salvo algumas exceções honrosas é melhor do que o público.
Joel Pinheiro da Fonseca
Olha que curioso aconteceu no Brasil, quem universalizou o ensino básico no país foi o governo FHC. Ele expandiu... Fernando Henrique Cardoso. Fernando Henrique Cardoso. Ele expandiu... Antes no Brasil, em grande parte da população, não ia para a escola. Eram analfabetos mesmo. Então ele pelo menos conseguiu fazer com que a imensa maioria das crianças e jovens estivessem matriculados no ensino básico. Isso foi uma grande conquista, algo muito positivo. Por outro lado, a qualidade desse ensino básico é muito fraca. Quem cresceu no Brasil dos anos 60, por exemplo, muitas pessoas de classe média lá frequentavam escola pública e lembram com saudades, como a escola pública era boa e não sei o que de fato era, mas a escola pública quem tinha acesso a ela era uma minoria, a maior parte do país não estava nem indo, nem ia à escola, não aprendia nem a ler e escrever. Então quer dizer, é uma memória de uma época em que o ensino público era melhor, era, mas era um ensino público elitizado. Conseguiu se democratizar o ensino público, foi um grande mérito, mas a qualidade dele ficou ruim. E o PT, quando se falava em educação, e até hoje esse é um cacoete brasileiro, difícil de soltar fala assim em educação, e a primeira coisa que vem à cabeça de todo mundo é universidade, é o ensino superior. E o PT expandiu aí sim o acesso ao ensino superior de forma massiva de duas maneiras. Uma com a construção de muitas novas universidades federais, que tem um nível até que razoável, não sei se todas elas valem de fato investimento, mas podemos dizer que, ok, cumprem um trabalho, elas não é grande parte da população que tem acesso a uma universidade federal, são os seus melhores, muitas vezes são as elites locais, outras que vão, mas conseguem abarcar também alunos vindos de escola pública, não é que estão cada vez mais acesso a elas cada vez mais democratizado, por regras de cotas e outras coisas assim. Uma política foi construir universidades federais, mas o grosso das pessoas que vão para o ensino superior não são esses que vão para os federais. E teve outra política, que foi a política de financiamento do ensino superior para que os jovens frequentassem o ensino superior privado, universidades privadas. A imensa maioria do ensino superior no Brasil é de instituições privadas. Existem algumas, poucas, instituições privadas de ensino superior de excelência, faculdades de excelência, em geral frequentadas mais por pessoas de elite, e o grosso dessas universidades privadas são de uma qualidade sofrível, muito, muito ruim, que enganam realmente os jovens. E o governo, esse é outro exemplo de como aliança governo, interesses privados operou. Grupos educacionais, alguns deles, se eu não me engano, o grupo Croton, do brasileiro, é o maior grupo educacional do mundo. Você tem uma ideia do tamanho dele criando universidades aqui e que recebia dinheiro público porque o aluno pobre que vai não vai ter dinheiro para pagar, o Estado, o banco, o Estado paga essa empresa privada que cria a faculdade e entrega uma educação de péssimo nível para aquele jovem no fundo quase um engodo, sabe? Porque ele não está saindo com uma formação, muitos nem concluem o curso, algumas desses financiamentos a pessoa teria que pagar depois, mas não conclui, também não paga o rombo que nas contas que deu, isso foi total também, a qualidade é baixíssima, então aí a gente pode falar de um real fracasso. Foi uma política vistosa, que aumentou os números de pessoas do tipo superior, mas a qualidade de educação, a formação de capital humano não aumentou nesse período e transferiu-se muita renda, muita riqueza, para grupos empresariais enormes que não fazem um bom trabalho. Aí os jovens ficaram a ver navios porque não saíram com diploma, mas sem o conhecimento. Então, educação ficou se significando isso. Até hoje o foco, a gente tem um fetiche com o ensino superior muito grande, imagino que os portugueses também, isso impede a fazer o trabalho muito menos glamuroso, que é o trabalho de melhora do ensino básico. Infelizmente, o governo Bolsonaro no início teve a chance, tem profissionais no Brasil de institutos, ONGs, gente séria que trabalha a questão do ensino, estudam o assunto com as melhores referências mundiais, querem fazer um bom trabalho, foram sempre críticos ao PT, estavam dispostos a trabalhar com o governo Bolsonaro, mas infelizmente o governo Bolsonaro acabou cedendo a outras pressões políticas, pressões dos evangélicos, pressões de grupos ultra-reacionários ligados a uma ideologia nacionalista, meio Donald Trump, aí maluca, é o que também é dele, acabou dando...
José Maria Pimentel
Daquele tipo... O Olavo.
Joel Pinheiro da Fonseca
O Olavo de Carvalho, exatamente. E por pressão dessas figuras, acabou indo para pessoas totalmente desqualificadas. Enfim, o Bolsonaro teve uma oportunidade, ele teve assim um passo de chamar uma pessoa muito competente para ser Ministro da Educação, por pressão de evangélicos e de olavistas, infelizmente não o fez e agora já cometeu tantas garfes, tantas grosserias, comprou tantas brigas, queimou tantas pontes, que eu não vislumbro mais a possibilidade dessa cooperação que tinha no início do mandato.
José Maria Pimentel
Porque Bolsonaro surge, no fundo, a reboque de várias tendências e uma delas era justamente uma tendência, podemos chamar, liberalizador ou liberalizante, em certo sentido, que reconhecia a necessidade de tornar a economia mais competitiva, reconhecia a necessidade de reformar o sistema, lá está, como dizias, tributário, o sistema de segurança social, que vinha à reboque do Guedes, que é o ministro da Fazenda, certo? Sim, Paulo Guedes. Exatamente, pronto, Paulo Guedes. E essa foi sempre uma dúvida de início, não é? Porque a combinação entre liberalismo e coisas que são quase só antídese, como o ultraconservadorismo social e nacionalismo, era pouco credível, logo desde o início. E isso era outra coisa que eu gostava de perguntar, o que é que estes meses têm revelado e o que é que se pode esperar para o futuro em termos dessas reformas? Porque na prática o que me parece, pelo que tu me estás a dizer, é que essa visão mais liberal acaba por perder cada vez mais terreno e, sobretudo, perder todas as batalhas em que entram em conflito com outras tendências dentro da massa que apoia o Bolsonaro. Essa
Joel Pinheiro da Fonseca
é uma questão interessante. Olha que coisa, eu caracterizo e coloco o governo Bolsonaro na mesma categoria de outros governos da direita populista no mundo. Donald Trump, governo da Hungria, da Polônia, o Fronto Nacional na França e diversos outros. Para mim faz parte, eles bebem de uma mesma água ideológica. Mas o governo Bolsonaro tem uma diferença fundamental e importante. Apesar de todo o discurso nacionalista, apesar da fixação anticomunista da Guerra Fria, apesar de uma série de questões, na agenda econômica ele adota um liberalismo até bastante radical. Diferentemente de todos esses outros, nem Trump, nem nenhum desses outros, prima por
José Maria Pimentel
uma defesa do liberalismo. Pelo
Joel Pinheiro da Fonseca
contrário, são nacionalismo e econômico partindo de uma concepção muito diferente de proteger os nossos empregos, de evitar a imigração, mas também evitar que outros países produzam e vendam aqui, enfim, uma visão muito mais protecionista e nacionalista econômica. O governo Bolsonaro não. Ele é esse casamento entre essas duas coisas, duas coisas bastante diferentes que não têm caminhado juntas no mundo. E isso leva a diversos conflitos, muitas vezes. Por exemplo, a ideia que o Bolsonaro estava tendo de isentar de conta de luz os templos religiosos. A equipe econômica imediatamente foi contrária a isso. Houve uma pressão grande, a ideia é bastante estafafúrdia, então acho que o governo acabou abrindo mão dela. Mas em diversos outros momentos o conflito surge. Outra questão, a questão do preço dos combustíveis. Uma questão tão emblemática dos anos Dilma, que prejudicou tanto a nossa economia, porque ela manteve preços baixos para manter o povo feliz, e que ressurge aqui em 2018, depois que a Dilma já tinha sofrido impeachment, teve dois anos e meio de governo Michel Temer, ex-presidente dela, e adotou uma linha bastante liberal econômica também, e que a Petrobrás passou a se comportar como empresa de mercado, portanto o preço do combustível passou a variar segundo o preço internacional e ele teve um grande azar, essa coisa da fortuna também na política. No momento em que ela adotou essa política, o preço do petróleo no mundo subiu. Então foi um calhô dizer bem ou não. Então a partir do momento que ele começou a subir o preço, Os caminhoneiros no Brasil, que são muito... Tem uma importância muito grande no transporte interno aqui. Os países entraram em greve, uma greve seríssima, uma greve, um momento de violência até, uma greve que o governo tentava negociar e não sabia nem com quem negociar. Achou que eles iam sair da greve e não saíram, começou-se a ter medo de desabastecimento geral na cidade, isso foi bastante sério. Esses caminhoneiros fizeram um país de refém. Mas ainda tinha um apoio da população, um apoio meio ligado a essa revolta contra todas as instituições, contra todos os partidos, contra a política. Então a população, uma grande parte da população estava apoiando os caminhoneiros. E o Bolsonaro surfou nessa luta. O Bolsonaro também apoiou os caminhoneiros. E desde então, desde que foi eleito, ele tem nos caminhoneiros uma classe que ele quer manter a seu lado e a seu favor. Então quando surge a questão do preço do combustível, ele está procurando todas as maneiras possíveis para baixar esse preço. Ou brigando com a equipe econômica, porque ele quer dar subsídio, ou brigando com os estados, porque ele quer diminuir o imposto estadual que insire sobre os combustíveis. Mas os estados também não querem abrir mão da arrecadação que eles têm. Então essa é uma questão muito sensível. Conforme os Estados Unidos compreem brigas no Oriente Médio e causam instabilidade, é muito fácil a gente imaginar que, olha, assim como no ano passado uma bombinha ridícula que foi jogada na Arábia Saudita, conseguiram interromper uma certa transporte, produção de petróleo, que elevou o preço temporariamente, outro. Atentados mais graves podem levar a uma situação muito pior dessa. Se isso acontecer, me parece que o Bolsonaro vai ficar do lado dos interesses dos consumidores e dos caminhoneiros e não da equipe econômica. Eu acho que a equipe econômica quando surge o conflito, a equipe econômica tende a perder. Uma amostra disso foi num outro conflito recente com relação aos painéis solares. Os painéis solares de energia solar recebem subsídio. O subsídio grande que distorce muito o sistema é regressivo do ponto de vista da renda, porque quem é pobre e não tem painel solar acaba tendo que financiar, na prática, acaba bancando, financiando esse painel solar de quem é mais rico. Tivera uma situação esdrúxula na qual empresas constroem um monte de painéis solares ali e ganham um grande subsídio na energia delas, então tinha uma situação muito ruim. A equipe econômica do governo propôs tirar esse subsídio, mas vários grupos de consumidores, de pessoas beneficiadas, obviamente, foi protestar que queria manter essa política e o Bolsonaro acabou ficando do lado deles. Bom, se até na energia solar o Bolsonaro defender o lado mais corporativista da coisa ali, nos combustíveis, nos caminhoneiros, eu não tenho dúvida que ele também irá para esse lado.
José Maria Pimentel
A grande dificuldade é essa, não é? Esse é um lado inerente à democracia e que é Uma das limitações inerentes à democracia, que fazem parte, daí aquela frase conhecida do Churchill, um governo tem todos os incentivos para tomar decisões com a popularidade como função objetivo. O objetivo é maximizar a popularidade no curto prazo e é muito difícil que um governo não tome decisões como as nisse.
Joel Pinheiro da Fonseca
Por isso um bom governo aproveita a sua onda inicial, por exemplo, de popularidade, porque ele chega com a bola toda, ele chega com apoio da classe política, a população empolgada e usa isso para fazer medidas importantes. Uma medida importante foi feita pelo governo, a reforma da Previdência, que talvez no momento em que o governo estiver com a imagem mais desgastada não seria possível. Agora ele conseguiu queimar muito rápido também esse capital político de apoios, ele conseguiu criar barulhos junto à opinião pública que eu acho que não favorecem nada, ele tem uma minoria fanatizada que o defende, seja o que for pessoas que defendem o discurso nazista do secretário da cultura, e meia hora depois o presidente o demite e a pessoa fica com que cara, ela defendeu um cara que o próprio presidente demitiu. Mas pessoas dispostas a tudo, tudo, defender o governo, mas a opinião pública regular, uma hora, está começando a cansar e dizer, como é aquilo? Cadê o trabalho? Cadê o que a gente espera que venha? Cadê a ética? As pessoas vão cansando, o apoio nunca é incondicional e eu acho que o governo está correndo risco de perder isso e fica com medo. O Bolsonaro, apesar de transmitir uma ideia de força, ele se intimida com muita facilidade. Então, se ele é colocado contra a parede por algum grupo, ele cede, ele recua, ele volta atrás de ideias que ele defendia antes. Então, Eu acho difícil ver faltas importantes chegando. Espero que sim, espero que essa equipe econômica ainda consiga uma ou duas conquistas, dois avanços para a economia brasileira para nos deixar em situação melhor. Eu queria apontar brevemente que eu também não acho que apenas mudanças no sentido do liberalismo econômico são positivas. Eu acho que tem outras coisas que, às vezes, até os liberais negligenciam. Por exemplo, o cuidado social com quem mais precisa na sociedade. Isso é uma crítica que eu faço até à equipe econômica deste governo. Seja como for, acho que tem mudanças na direção de mais liberdade econômica que são muito positivas e que o governo está com a faca e o queixo na mão para fazer, mas tem que ter coragem. Vai se desgastar um pouco, sim, mas em nome de algo bom, em nome de algo que, num médio prazo, melhora a situação do país e, portanto, permite que o governo também colha os frutos de popularidade dessa melhora da situação.
José Maria Pimentel
A equipa econômica do Bolsonaro pode ser de alguma forma comparada à equipa que fez as reformas no Chile na altura do Pinochet, no sentido de ter uma visão diferente e de se colar a um regime que no resto é de uma ideologia que não tem nada a ver, não é? Autoritária
Joel Pinheiro da Fonseca
de direitos. Acho que tem similaridades no sentido de que a equipe é bastante radical no liberalismo puro de mercado. O próprio Paulo Guedes trabalhou no Chile na época das mudanças, ele passou por lá. Bom, A gente não está mais nos anos 70, 80 também, o discurso liberal num país latino-americano hoje em dia já dá mais, já tem um pouco mais de abertura também ao discurso social assim, acho que não é tão
José Maria Pimentel
radical. O fundamentalismo
Joel Pinheiro da Fonseca
de mercado acaba nem sendo, acaba sendo mais moderado do que a minha impressão do que era lá atrás. Mas sim, tem muitas semelhanças.
José Maria Pimentel
Deixa-me pegar numa ponte que tu destes há bocadinho, quando falas da parte do eleitorado que se está a cansar e que no fundo, voltando àquela explicação que eu propunho no início e admitindo aqui por um bocadinho, no fundo seria o eleitorado que virou conjunturalmente, ou seja, que se fartou da corrupção e que sobretudo se fartou dos problemas económicos e que se fartou dos problemas de insegurança e que decidiu votar por uma alternativa em relação aos governos anteriores. Agora, há outra margem, corresponde-se ao erro, cerca de 30%, dos apoiantes indefetíveis do Bolsonaro que tu aludias há bocadinho. E esse já tem a ver com aquele outro segundo fator que eu falava no início, de uma mudança mais estrutural e que, eu concordo contigo, é indestrinçável da questão das redes sociais e de uma perda generalizada de confiança nas instituições que vem a reboco das redes sociais. E eu gostava de ter a tua opinião em relação a isso. Tu mandaste-me um artigo, um ensaio que foi incluído num livro, cujo link eu depois ponho na descrição do episódio, como é habitual, e que é muito interessante e que levanta aqui uma série de questões em relação a isto. No fundo, o problema que nós estamos a tratar é esta perda de confiança nas instituições e que no fundo vem associada a coisas mais ou menos circunstanciais, que são mais sintomas do que causas como as fake news, ou são mais meios, se nós quisermos, pelos quais isto se propaga e que tem como consequência, ou tem tido como consequência mais visível a eleição de líderes populistas, sobretudo à direita, mas também, eu diria, o populismo mais de esquerda
Joel Pinheiro da Fonseca
também. Também, acho que esse pêndulo pode mudar facilmente.
José Maria Pimentel
Exatamente, exatamente. Não, E nós vemos, quer dizer, o sentimento antissistema é muito parecido. A principal causa eu diria que tem a ver com a diluição daquilo que normalmente se chama mecanismos de intermediação, que eram dados pelos mídias tradicionais. No fundo, tu tinhas jornais, televisões ou o que fosse, que no fundo faziam de intérpretes da informação para as pessoas, que no fundo funcionavam como autoridades de informação dentro de um sistema democrático em que havia confronto de ideias mas que no fundo filtravam e de repente tu deixaste de ter isso ou pelo menos passaste a ter isso muito menos e essas fontes tradicionais de autoridade passaram a estar sob suspeita e a perder credibilidade e ao mesmo tempo tiveste uma profusão de novos intérpretes de informação que funcionam nesses canais e por exemplo no caso português não é tanto assim e nós também não temos ou ainda não temos um fenómeno semelhante ao Bolsonaro no Brasil mas no
Joel Pinheiro da Fonseca
Brasil... Portugal ainda vai salvar o mundo, a hora de Portugal está chegando.
José Maria Pimentel
Não sei, não sei, não sei porque nas últimas eleições também tivemos a eleição de um partido que está mais ou menos nessa posição, embora diga-se em bom da verdade em comparação, seja um exemplo pálido pelo menos até agora comparativamente com o Bolsonaro, ou seja, Está muito longe de fazer vídeos daqueles inspirados no Goblet, o que não quer dizer que não chegue lá, mas pelo menos tem sido, apesar de tudo ter sido mais quente, mas está claramente posicionado aí. Ou seja, há um deputado que está claramente posicionado aí, que foi eleito agora nas eleições deste ano. Mas dizia eu, no Brasil, isso fez-se muito pela via do WhatsApp, que é interessante, é um bocadinho assustador, mas é inegavelmente interessante. Quer dizer, no fundo o que tu tens é pessoas que passam a consumir a informação interpretada apenas através do WhatsApp, sem moderação de fontes que são sancionadas, se quiseres, ou um jornal X que tem uma reputação construída ou o opinion maker Y que tem ele próprio uma reputação construída ao longo dos anos, não passa a ser uma pessoa que veicula a opinião na forma de informação através do WhatsApp. Olha que coisa curiosa no país. Tem um número
Joel Pinheiro da Fonseca
crescente de pessoas que não aguentam, não toleram assistir um canal de TV normal como a Globo, que é o maior canal aqui, a maior empresa também de jornalismo, ou ler um jornal como a Folha de São Paulo ou o Estado de São Paulo e outros grandes jornais brasileiros, tem raiva de todos esses meios porque vêem neles um viés muito grande, não são confiáveis, eles têm um viés de esquerda, eles têm interesses e não sei o que. E essa mesma pessoa, bom, se ela critica o viés de um jornal, o jornal tem algum viés? Tem, com certeza, se você for ver, analisar na minúcia da manchete, ou da escolha da foto, ou da composição do texto, você vai encontrar, às vezes, alguma marca de viés do jornalista, ou talvez do editor, ele tem interesses econômicos também, talvez em algum momento empacue de alguma maneira, alguma cobertura que ele faça de algum tema. Você imaginaria que se o problema dessa pessoa é o viés do jornal comercial que ela está criticando, então ela deve estar em busca de uma veiculação quase científica da informação. Ela quer o fato bruto ali escrito da maneira mais seca possível, para apenas comunicar os fatos e ela tirar a sua conclusão. Então ela quer algo quase acadêmico no cuidado que tem de se blindar de qualquer opinião. Não é isso que essas pessoas... Essa mesma pessoa que critica o viés de esquerda de um jornal como a Folha de São Paulo, e que não acredita porque veio da Folha, se uma informação chega da Folha ou da Globo, ela diz não acredito, esse jornal é comunista, não acredito. Essa mesma pessoa acredita sem pestanejar, acredita automaticamente num áudio que ela recebe de um primo dela, que não trabalha como jornalista, e que tem uma teoria da conspiração maluca. Sem nenhuma evidência, sem nenhuma prova qualquer, ela acredita imediatamente no conteúdo dessa informação passada de segunda ou terceira mão pra ela, que também o primo recebeu de sabe-se lá quem, e nisso ela acredita. Ou seja, O problema não é o viés da imprensa, existe algum viés da imprensa, mas o viés dessa informação, outra informação, interpretação que ele recebe é muito maior. Então o problema não é o viés. E eu acho que o problema não é intelectual também, não é uma questão de provas ou de argumentos racionais que levam a concluir. Não tem argumento racional nenhum. Existe um desejo de que essa outra informação seja verdadeira. Um desejo e uma confiança de que porque essa outra pessoa está no mesmo time que eu, está do mesmo lado que eu, eu acredito. E essa informação que ela traz beneficia o nosso lado, ela está a favor dos nossos interesses. Então, é um processo psicológico que faz com que ela naturalmente, espontaneamente, tente desqualificar o que vem do veículo. Eu não sei como é que a gente vai enfrentar isso, Porque a autoridade institucional que antes valia alguma coisa, vale cada vez menos. Você dizer que veio de um grande jornal, ou que veio de uma universidade, ou que veio de um instituto de pesquisa. Tudo isso hoje em dia aqui no Brasil, se a pessoa quiser, isso é um fator para diminuir a autoridade daquela informação. Dizer, Ah, veio desse jornal, então só pode ser mentira. Veio dessa universidade, é tudo mentira. Ao mesmo tempo em que a informação sem fonte nenhuma, ela acredita porque a beneficia. Então o papel e o peso institucional está muito baixo. O que eu vejo hoje em dia é que o peso da influência pessoal está em alta. Então as pessoas acreditam, eu tenho um pequeno canal no YouTube, por exemplo, para quem se
José Maria Pimentel
interessar, é só digitar meu nome no YouTube. Sim, eu já ia partilhar então.
Joel Pinheiro da Fonseca
E eu noto muito isso, quando a pessoa te vê conversando, quando A pessoa tem acesso àquele formador de opinião, àquele intérprete, e constrói com ele uma relação. Ela tende a ficar muito mais dócil à interpretação ou informação que ele passar para ela. Ela não mais a rechaça, ela abaixa um pouco a barreira que ela teria aqui. Então acredito que talvez a gente tenha que se adaptar a essa nova realidade, que não é a institucionalidade que vai te dar credibilidade, que vai dar credibilidade a sua informação, e sim a construção de uma relação pessoal com as pessoas. E acho que talvez esse seja o trabalho a ser feito pelas pessoas sérias, porque as pessoas não sérias já estão fazendo o trabalho. E vamos lembrar de um ponto. Se antes, há 30 anos atrás, as pessoas acreditavam nos meios de comunicação, não era pelo motivo racional de que, olha, eu
José Maria Pimentel
entendo o meu processo
Joel Pinheiro da Fonseca
jornalístico e científico, eu concordo com ele, Eu sei que a tendência dele é filtrar os erros, porque se ele errar muito o outro vai questionar, eles têm normas de conduta que eles seguem aqui dentro e essa universidade passa por um processo de peer review, de revisão dos pares e que, portanto, eu sei que isso dá uma confiança em formação. Nunca foi por esse motivo racional que as pessoas acreditavam, elas apenas aceitavam aquela autoridade. Agora mudou o tipo de autoridade que elas estão dispostas a aceitar e acho que os bons da cultura, os sérios, aqueles que não querem apenas promover o seu próprio lado, mas que querem promover um pouco mais de informação e objetividade e, portanto, ajudar pessoas comprometidas com um bem comum maior, essas pessoas vão ter que entrar nesse novo jogo da informação. Sim,
José Maria Pimentel
tu chamas aí a atenção um ponto muito importante que é que as pessoas não se movem, ou a maior parte das pessoas, e isto é verdade para quase todos nós em quase todos os momentos nós não nos movemos por muito que queiramos pela racionalidade. Nós movemos pela intuição e por escolhas de alguma inércia e quer dizer aquilo que tu tinhas antigamente não era pessoas mais inteligentes do que agora e era por isso que elas confiavam nos jornais tradicionais. É a mesma coisa que dizer, é a mesma coisa que em relação à alimentação, por exemplo, quando se diz que as pessoas hoje em dia se alimentam pior. As pessoas alimentam-se pior porque tu tens um McDonald's a cinco minutos de casa e antigamente não tinhas e comias o que tinhas em casa que se calhar era mais saudável do que ir ao McDonald's. Não foram as pessoas que mudaram. Tornou-se que foi muito mais
Joel Pinheiro da Fonseca
fácil. As condições exteriores é que mudaram e a natureza humana que continua igual responde
José Maria Pimentel
a novas condições. Exatamente. É isso mesmo. E em relação aos jornais é um bocado a mesma coisa. Os jornais tradicionais são chatos. São enfadonhos em certo sentido. Antigos comprisos, coisas chatas. Se eu não tiver alternativa e sobretudo se tiver outros motivos sociais que eles próprios se autoalimentam, como o facto das pessoas que me rodeiam e com que eu me dou lerem esse mesmo jornal, eu vou continuar a lê-lo. Mas se de repente eu tenho acesso a um clipe de whatsapp que é mais fácil de ouvir, é mais sumarento do que um artigo cinzento de jornal, é normal que eu vá por aí. Que não me irrita
Joel Pinheiro da Fonseca
ideologicamente, porque o jornal volta e me irrita, porque você vê uma informação ali que você não gosta, mas está ali.
José Maria Pimentel
Exatamente, é esforçado a ler coisas de que não gostas. Mas ao mesmo tempo, eu acho que lá está. Como em relação a muitas outras coisas e como em relação à alimentação, para manter nessa analogia, quando há uma mudança muito rápida as instituições sociais não acompanham. E que tu estiveste aqui foi uma mudança de repente muito rápida e essas instituições sociais não foram capazes de acompanhar essa mudança. Portanto as pessoas, a maior parte das pessoas, quer dizer, que não têm disponibilidade e em certo sentido, legitimamente não têm disponibilidade para andar, como nós estamos a fazer aqui, a perder minutos e horas a refletir sobre um determinado tema, deixaram-se ir e fizeram, quer dizer, foram automaticamente, por inércia, nesse sentido de quando andam por elas estão a consumir notícias por aí, e essas e esses mecanismos de mediação perdendo-se. E depois, por outro lado, eu não sei se tu concordas com isto, mas suspeito que sim, porque também havia da parte dos mídia, dos jornais e não só, e dos opinion makers, uma complacência grande, uma falta de autoexigência muito grande E essas elites, da que tu aludias há bocadinho, no fundo viviam de uma maneira muito endogâmica, em que quase escreviam para elas próprias, convencidas de que os leitores estavam tão interessados nelas como elas próprias. Eu, aliás, ouvia aqui há uns tempos, numa conferência em Portugal, uma pessoa ligada à cultura que estava a queixar, queixar de dizer que a cultura estava muito pior, porque antigamente podia escrever num jornal, o jornal podia te pagar para ir ver uma peça a Paris e escrever sobre aquela peça de teatro e agora já não podia. Ora, o que se passou não é que as pessoas antigamente estivessem mais interessadas naquela peça. O que acontecia é que antigamente é que aquela peça, a análise daquela peça era empacotada num jornal muito mais vasto do que aquilo e os jornais eram capazes de vender aquilo, que ia ser lido por no máximo umas poucas centenas de pessoas, no jornal interior. E hoje em dia, de repente, já não tens público para aquilo. Exato.
Joel Pinheiro da Fonseca
Mas, ao mesmo tempo, quer dizer, comparando as duas situações, há uma piora objetiva com o quadro. Então ninguém mais está fazendo a crítica da peça em Paris e perdeu-se isso. E as pessoas estão comendo pior. Outro exemplo que eu gosto, que eu acho que é uma analogia muito boa, porque é outro processo que ocorre com as mesmas tecnologias, é com relação à ciência. Nunca tanta informação esteve disponível às pessoas. De forma tão fácil e barata, inclusive informação da melhor qualidade. Se eu quiser ler um artigo científico hoje em dia, eu tenho muito mais facilidade de fazer isso do que eu teria 20 ou 30 anos atrás. E mesmo assim, nesta época em que nunca a informação foi tão difundida, é a mesma época em que aumenta o número de pessoas que não acreditam em vacinas e o número de pessoas que negam a esfericidade da terra. Um movimento que eu só consigo imaginar que começou como piada, que se tornou sério e que no Brasil, no ano passado, a gente teve a primeira convenção nacional dos terraplanistas aqui no Brasil. E que também propagam as suas informações por redes sociais e tudo, e tem seus argumentos devastadores contra a esfericidade da terra, que cultivam as suas coisas. Imagina agora, um cientista olha para aquilo, sabe? E você vai dizer, a culpa foi sua, na verdade, porque você não soube dialogar direito com essas pessoas e tudo. Quer dizer, eu não vejo isso como responsabilidade desse sistema científico. Olha, ele tava ali produzindo ciência, tava produzindo artigos e fazendo literatura acadêmica e tudo de fato. Ele não conversou com o povo. E agora, quando ele é colocado frente a frente para debater com o youtuber que terminou o ensino médio e que julga provar que a terra é clana, esse cientista ele sente um certo desprezo por aquela figura e uma certa arrogância que transparece no jeito dele de olhar pra ela, mas que olha, por um certo sentido também, como ele não sentiria isso, sabe? Mas ao mesmo tempo ele vai ter que consertar um problema que ele não criou. Ele vai ter que saber se colocar e conversar de igual para igual, porque se ele chegar como superior para quem está assistindo e que está neutro com relação às duas posições, só a arrogância dele hoje em dia já pega tão mal que vai afastar tanta gente e que ele vai ter que rever isso. Mas eu entendo um pouco, tudo isso só para dizer que eu entendo um pouco esse sentimento do velho sistema que está perdendo espaço e que não é só que está vindo algo novo no lugar, por enquanto, pelo menos esse novo que está vindo é objetivamente pior do que o que estava aí. E não é culpa de quem estava aí também, quer dizer, poderia ter sido melhor? Poderia, mas eu não acho que é aí que mora o problema, acho que o problema é A analogia da comida também é boa, não é que a comida anterior fosse ruim, é que agora tem McDonald's e gordura trans pra todo lado, como é que você compete com doces e McDonald's, é difícil. Isso nos leva a um outro ponto que eu queria traçar aqui só brevemente. Tem muita gente olhando para as redes sociais e dizendo que elas têm algo a ver com a polarização que a gente vê no mundo. As redes sociais têm algo a ver com o populismo de direita que a gente vê no mundo. Mas Tem duas interpretações aí de como se dá esse papel. A primeira é essa que a gente está falando. É um processo em que a natureza humana reage dessa maneira, a pulverização do poder de conseguir transmitir informações uns aos outros. Tem uma outra interpretação que é, não, o que está acontecendo é que Forças políticas muito poderosas se utilizam do dinheiro para comprar propaganda e jogar para essas pessoas e transmitir fake news para essas pessoas e as grandes empresas de comunicação fazem os seus algoritmos visando a maximização do lucro e eles levam isso. Eu não acredito que o problema seja esse, eu não acredito que o problema seja compra de fake news por quebra de analítica e nem o algoritmo do Google, o algoritmo do Facebook que estaria por trás disso. Acho que no máximo eles terão um efeito acessório e em alguns casos nem tem, nem existe esse efeito. Então, o dia que deram um estudo sobre o YouTube viram que ele não te empurra tanto assim para a polarização como se achava. É o
José Maria Pimentel
próprio ser humano que está fazendo isso. É o próprio cidadão comum. Eu tenho a mesma... Quer dizer, não é uma convicção muito forte no sentido em que eu não a posso provar, mas a minha intuição vai no mesmo sentido que a tua, até porque... Bem, por natureza sou muito desconfiado em relação a teorias da conspiração porque são explicações simples para fenómenos complexos. Mesmo admitindo que isso não é bem uma teoria da conspiração no sentido de um pequeno núcleo de pessoas com um grande plano, mas simplesmente de movimentar recursos num determinado sentido e mesmo admitindo que isso até possa acontecer na prática, as pessoas são muito mais complexas do que isso. Isso é como, aliás, uma das vantagens da democracia é justamente essa, que não é o candidato com mais dinheiro, por exemplo, que vai conquistar a maioria dos votos apenas por ter mais dinheiro, não é? Tu precisas de muito mais do que isso, portanto, nesse sentido, estou de acordo contigo. E em relação ao ponto que estavas a abordar há bocadinho, eu acho este um tema fascinante, e estou sempre a mudar um bocadinho a minha opinião, justamente porque ele é muito complexo, mas a maneira se calhar de quadrar este círculo em relação àquilo que tu estavas a dizer há pouco é separar isto em dois problemas. Eu acho que há aqui um problema de informação e um problema de valores. E acho que o problema de valores, muitas vezes, mascara-se de problemas de informação. E já vou explicar porquê. Uma questão é a questão da informação, ou seja, estes mecanismos de intermediação perderam força e, portanto, as vias normais pelas quais a informação chegava às pessoas diluíram-se, foram substituídas por outras e o que tu passaste a ter foi, se quiseres, um maior desvio padrão, ou seja, uma maior variação do grau de qualidade de informação que as pessoas têm acesso. Então tu podes ter, como tu dizias, tens acesso à melhor informação científica, tu podes ter acesso hoje em dia online às discussões entre as momentos mais brilhantes de qualquer área. Eu posso ter acesso ao teu canal de YouTube, por exemplo, e como estava a dizer no início, já vi vários vídeos, e para mim é uma maneira ótima de perceber o que é que se passa no Brasil da qual eu não tinha possibilidade de usufruir aqui há uns anos, simplesmente é um ótimo exemplo e do outro lado do espectro tu tens informação falsa, informação simplista, quer dizer, coisas como a Terra Plana é uma bizarria, quer dizer, se alguém me falasse no movimento Terra Plana há 10 anos eu dizia que era gozo, não é? Parece uma... Gozo não se pode dizer no Brasil. Eu dizia que era uma piada, não é? Dizia que era uma... Uma brincadeira, um filme de comédia, não é? E no entanto tens isso. Isso é inegavelmente uma perda, não é? Eu acredito que se pode vir a convergir para uma síntese, que seja, no fundo, para um equilíbrio que seja até melhor do que o anterior, mas claramente agora perdemos. Isso é inegável. Mesmo somando as duas coisas, e mesmo estando eu a beneficiar mais da primeira e não da segunda, é inegável que perdemos. Agora, isto é uma questão de informação, mas também tens uma questão que me parece incontornável de valores, em que tu tens uma elite cultural e urbana que domina o espaço público, que tem valores que foram evoluindo até de acordo com o estilo de vida que as pessoas têm, se foram tornando muito mais progressistas, por exemplo, ao longo dos últimos anos. Isto acontece em Portugal e eu julgo que terá de acontecer também no Brasil. Com os quais eu me revejo e imagino que tu te revejas também. Mas que se foram distanciando, de uma maneira mais ou menos imperceptível, de uma maioria silenciosa, ou por outra, de uma faixa silenciosa que foi crescendo até ao ponto de, não digo, tornar-se uma maioria, mas pelo menos tornar-se um bloco com um peso muito grande na população e que legitimamente olha para os mídia e sente que as pessoas que lá estão não estão, não levam a vida que elas têm e não refletem os problemas que eles têm. Muitos desses problemas são problemas reais e têm a ver de facto com uma descolagem entre o estilo de vida das pessoas, outros são preconceitos que aquelas pessoas têm e que qualquer pessoa progressista gostava de ver corrigidos, mas a verdade é que elas estão lá. Acho que isto é um problema real, de descolagem entre as elites e o povo, se tu quiser, dá falta de melhor analogia. Eu vejo de ser muito pouco confrontado, por exemplo, aqui em Portugal acho que as elites continuam, sobretudo à esquerda, a agravar o problema em vez de o resolver e eu acho que a busca das pessoas por informação alternativa é de certa forma uma maneira de procurar quem projeta esses valores. A questão da terra plena é um absurdo, quer dizer, ninguém acredita naquilo. Aquilo vem é reboque de uma comunidade que partilha depois outros valores contigo e o conservadorismo religioso ou recrudescer da religião acho que também pode ter alguma coisa a ver com isto. Acho eu, mas isto é uma explicação preliminar, eu gostava de saber o que é que tu achas em relação a
Joel Pinheiro da Fonseca
isto. Eu acho perfeito essa reflexão. Veja, a conversão de uma pessoa ao terraplanismo, a gente pode especular quais os motivos. Um motivo a gente sabe que não é a força racional dos argumentos que os terraplanistas fazem. Esse motivo não foi. Digamos até que o argumento racional seja uma condição necessária. A pessoa precisa ter algo para salvar as aparências para si mesma, para dar alguma explicação minimamente coerente para si mesmo daquilo que ela está aderindo. Mas aquele não é o motivo, porque aquele argumento é muito fraco. É assim que esse argumento for refutado para aquela pessoa, ela vai imediatamente achar um próximo, ela vai procurar um próximo argumento. Ou seja, os motivos pelos quais ela sustenta conclusões até podem mudar e mudam com muita facilidade, porque cada um daqueles argumentos é fraco. Então, o que está por trás é um desejo dela de acreditar naquilo, um desejo, eu acho eu, de encontrar uma comunidade na qual ela se sinta mais valorizada também, na qual ela se sinta que faz parte de um grupo que a estima e que respeita a mente e a manifestação dela, na qual ela pode ser alguém e não ser um fracassado numa sociedade maior, numa elite que não olha para ela, acredito que é uma busca por poder. Uma busca, primeiro, pessoal e também por organizar-se de maneiras em grupo, porque o ser humano é um bicho que se organiza em coalizões e essas coalizões lutam pelo poder. Isso é... Em qualquer sociedade humana você vai ver isso. Então acho que em última análise todas essas formações de coalizões tendem a uma luta pelo poder, em geral, binária,
José Maria Pimentel
de um contra o outro. Jogo, sou o Manula. Sim. Há um economista americano que eu gosto muito, tu és capaz de conhecer o Tyler Cowen e ele tem uma tese engraçada, que eu me lembro a propósito disto, ele diz que grande parte das disputas públicas, políticas, são no fundo uma disputa entre prestígio social, ou posição social, entre grupos diferentes, muitas vezes camuflada de uma coisa qualquer diferente. E isto, eu acho que tem algo que ver com isso, quer dizer, pessoas que se sentem fora do sistema e que precisam de encontrar uma maneira de reequilibrar o tabuleiro de jogo a seu favor, se tu quiseres. Claro que isto não é racional, é muito mais intuitivo do que racional, mas acho que o movimento é um bocado causado por isso.
Joel Pinheiro da Fonseca
E eu acho que daí a gente tem que distinguir duas coisas. O discurso dessa direita populista é que eles estão se reconectando com valores tradicionais que o povo já partilha. Uma coisa é o conservadorismo da população. Isso não é criado por rede social, isso é uma coisa que vem no Brasil, é forte também, anterior a tudo isso. Mas que em diversos momentos esse consideradorismo foi muito tolerante, você tinha peitos de fora na novela das nove no Brasil, hoje em dia você não tem mais isso, A coisa mudou. O que se perdeu. O que perdemos ali? Onde foi parar a putaria? Exato. Mas, de seu lado, outra coisa totalmente diferente disso é um neoreacionalismo. Que aí sim, é uma reação às vezes de pessoas que na sua formação nem foram particularmente conservadoras, que se convertem a isso, a esses grupos, e que passam a vociferar e a defender versões radicais ou da moral tradicional ou da religião tradicional, então aderem ao catolicismo, mas de uma forma que o católico normal no Brasil não se fantasia de cavaleiro medieval e pede cruzadas contra o islã. O católico cultural, né, o reacionário, que assim, tá forte isso aqui. Um dos importantes assessores do Bolsonaro, ele teve muito ligado a esses grupos de internet, channels, esses canais que acabam tendendo para a extrema direita, um submundo horroroso. E ele é um dos que repetem o refrão, não sei se você já viu isso, Deus vult, Deus quer. Um refrão dos cruzados lá atrás e que trazem hoje em dia como um grito de guerra deles na suposta guerra em que eles se encontram. Também é repetido por indivíduos notáveis como o assassino da Nova Zelândia que metralhou os humanos numa mesquita. Eles repetem esse tipo de slogan e de imagens das cruzadas e tudo, quer dizer, é uma coisa ideológica, postiça, que não tem nada a ver com a tradição brasileira, mas que agora surge e que se propõe e se vende como não, estamos voltando às raízes brasileiras, não tem absolutamente nada disso, uma criação, pelo contrário, postiça mais norte-americana do que qualquer outra coisa, embora também nos Estados Unidos seja uma criação recente, mas que se vende como uma moral tradicional, são duas coisas totalmente diferentes.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim, Esse é um bom ponto que tu levantas, é uma distinção importante. A tua interpretação é que este segundo, sendo ainda por cima artificial...
Joel Pinheiro da Fonseca
Esse é produto das redes sociais, esse mais do que tudo... A distinção entre o artificial e o natural, digamos assim, em questões humanas sempre é um pouco dúbia, porque no fundo tudo é um pouco artificial. São criações, mesmo o que a gente acha que é o mais tradicional é muito mais recente do que a gente imagina. Claro, claro.
José Maria Pimentel
Mas enfim. Eu quero dizer artificial da mesma forma que o terraplanismo é artificial. Sim, exato. Ou seja, é alguma coisa que não vem de uma história de vida da pessoa, da origem que essa pessoa tem em termos culturais e sociais, é algo que a pessoa se agarra porque se sente acolhida ali, sente que faz parte de um grupo e sente de alguma forma que aquilo a volta a pôr numa posição com que se sente confortável. Exato, agarra como
Joel Pinheiro da Fonseca
uma identidade consciente dela que ela usa numa guerra contra aqueles que não partilham dessa identidade. Exatamente, sim, sim. Há
José Maria Pimentel
uma coisa que eu não queria deixar de falar que tem que ver com isto também, com este fenómeno da perda de confiança nas instituições e da ascensão do populismo, mas, neste caso, sobretudo, indo muito para lá do Brasil, ou seja, falando um bocado do mundo ocidental no sentido de lado comum todo. Há outra questão que eu me pergunto se não é uma com a inevitabilidade das democracias. Ou um bocado da mesma forma que as crises são uma inevitabilidade do capitalismo, que é uma espécie de fadiga das pessoas em relação à democracia. Porque a democracia representativa, não é que no fundo a democracia liberal, se quisermos chamar, implica que tu tenhas. Primeiro, implica uma sujidade que não existe no regime autoritário, porque tu tens todos os dias imagens do congresso ou do parlamento com pessoas a discutir, com pessoas com argumentos ultra parciais, porque cada um está a defender o seu lado, e muitos até básicos intelectualmente, a ser desditas no dia a seguir, a entrar em contradição, a cometer erros, escândalos. Tens por um lado isso, tens por outro lado a questão das eleições, que por exemplo aqui ao lado no caso espanhol, por exemplo, é muito visível uma certa fadiga das pessoas com as eleições, ou no Reino Unido, em que tu tens eleições e depois ficas com um hung parliament, ou outras eleições, tens que ir votar outra vez e parece que não acontece nada e portanto as pessoas abstêm-se e depois tens outro facto ainda que é a questão de inevitavelmente numa democracia representativa numa democracia direta, a partir disto não aconteceria mas a meu ver terias várias outras desvantagens mas há muita gente acho eu a ansiar por uma espécie de democracia direta justamente por causa disto, numa democracia representativa tu inevitavelmente tens elitos, ou seja, tens pessoas que estão dentro do sistema e que vão sempre aproveitar do sistema, quer dizer, por melhores instituições que o país tenha, as pessoas vão sempre aproveitar de alguma forma do sistema e quanto mais longe tu, eleitores, tiveres dessas elites, mais descontente tu estás em relação ao sistema. Até me lembro de um paper que saiu há pouco tempo que mostrava que as elites eram sempre as pessoas mais contentes com o regime de determinado país e portanto numa democracia as pessoas que fazem parte das elites, elites no sentido lato, elites culturais, elites económicas, mas no fundo que estão mais perto do... Que se sentem mais próximas do poder político, elas conhecem-no melhor e acham-no a melhor. E as pessoas que estão mais afastadas vão-no achar pior. Eu lembro, em relação ao Brasil, de um inquérito que saiu aqui há uns tempos daquele latinobarómetro que mostrava que passava o erro 60%... Não, 30% a pouco. Ou seja, não sei qual era o número, mas pessoas que... Para quem era indiferente se o Brasil era uma democracia ou não era, que é uma coisa que parece um bocado aterradora. Mas em certo sentido é compreensível se as pessoas se sentirem muito afastadas e sentirem que o sistema é dominado por elites que estão a aproveitar do sistema e não estão a defender os seus interesses. Por muito que racionalmente, se as pessoas pensassem racionalmente, soubessem que iam ficar muito pior numa ditadura, mas ainda assim é compreensível haver essa reação. E eu pergunto-me se estas condições inerentes à democracia não estarão também a causar, não serão também outra corrente da história que está a contribuir para isto, se o quiser.
Joel Pinheiro da Fonseca
É, acho que a gente pode traçar diversos caminhos paralelos. Aqui uma coisa que eu gostaria de levantar primeiro é que esse é um discurso usado pelos próprios representantes desses governos mais populistas. Somos a revolta contra as elites, mas se você for ver em pesquisa de opinião no Brasil, quer dizer, tem muito de engano nesse discurso. Quem está mais feliz com o governo Bolsonaro, supostamente revolucionário, anti-elite, anti-sistema, quem mais o apoia são as elites econômicas. Esses são os maiores empresários. Entre os empresários e pessoas do mercado financeiro, é quase uma torcida organizada. É inacreditável o otimismo deles, com agora sim, é Paulo Guedes, tá tudo dando certo, o resto é bobagem, é discursinho, isso aí não importa. Não é nem que eles necessariamente apoiam os piores lados do governo, mas é que eles acham que as coisas ruins não importam muito, que o que importa mesmo tá sendo feito e, portanto, estão felizes. Então, quando a gente vai ver, vai medir o apoio ao Bolsonaro, é muito mais forte entre as elites econômicas do que entre a base mais baixa. E, sim, existe um cansaço com a democracia representativa, e, inegavelmente, existe. De onde será que ele vem? Um elemento que eu acho que tem a ver com isso, e que é um elemento que me dá um certo pessimismo quanto ao futuro, é que é o seguinte, desde que a gente tem filosofia, desde que existe reflexão escrita sobre esses temas, Uma coisa é bastante clara, você tem uma distância entre aqueles que exercem o poder e o grosso da população. O exercício do poder, o bom exercício do poder, ele depende de certas normas de conduta e de certos valores que são diferentes dos valores da massa. Platão, você tem isso? E Maquiavel, você não tem isso? A honestidade tal como... O que é virtuoso para o homem comum? O homem comum é virtuoso, eu tenho certos valores, eu vou ser um defensor sem nenhum compromisso, sem nenhuma concessão, intransigente, um defensor intransigente desses valores, que eu tenho a ferro e fogo porque esse é o bem e eu estou contra o mal. Essa é a visão básica. Ou a religião, a minha religião é o bem e o resto é o mal.
José Maria Pimentel
Um bom governante... Claro, maniqueísta. Maniqueísta.
Joel Pinheiro da Fonseca
Um bom governante jamais vai poder ser assim, especialmente numa democracia. Ele vai precisar ser... Mesmo numa autocracia, mas ainda mais numa democracia, ele vai ter que ser alguém que sabe, em alguma medida, negociar, que sabe abrir mão de certos pontos para conquistar o outro, que sabe relativizar esses valores para promover o bem maior. E Ele sabe que o que está no melhor interesse da população não é sempre o que a população deseja. Agora, esses sistemas funcionam enquanto existe uma certa distância, enquanto a população não está vendo no dia a dia das engrenagens da polícia. Porque o político pode vender, Ele tem que vender para a população essa imagem, mas o defensor intransigente dos bons valores, o cara tá querendo só o bem, querendo só o que vocês acreditam. No dizer do Maquiavel, é importantíssimo que o príncipe pareça idoso, ou seja, pareça uma pessoa religiosa, mas é imprescindível que ele não seja de fato. Ele não pode ser de fato, mas ele precisa aparecer. Hoje em dia, graças a novas tecnologias, não só de redes sociais, mas também de imprensa, audiovisual e todo o resto, existe uma proximidade muito grande das pessoas com poder. As pessoas estão fiscalizando o poder e acreditam que essa é a grande virtude. A transparência é um valor absoluto e negociável. O cidadão comum fiscalizado as contas públicas e está acompanhando os projetos, parece uma... Olha quem seria capaz de achar que isso é uma má ideia? Bom, isso pode ser uma péssima ideia. O cidadão comum tem como avaliar aquilo? O cidadão comum sequer aceita a lógica do compromisso político e da negociação política? Não aceita. O cidadão comum, isso é a essência da corrupção, está aí. Não é nem o escândalo que desviou milhões. Esse é um caso extremo, mas o próprio fato de um presidente negociar com um partido da base aliada um cargo ou uma verba para um certo Estado para ter o apoio dos deputados daquele partido naquele Estado, isso em si mesmo, mesmo que feito dentro da lei, isso em si mesmo é visto como corrupção. E veja, na prática, isso pode ser mal feito? Pode. Você pode ter pessoas totalmente desqualificadas que ocupam o Ministério apenas porque o presidente fez um acordo com certos partidos. Isso é péssimo. Por outro lado, você pode ter como aconteceu no governo Temer com o caso da educação, por exemplo. O ministro da Educação era membro de um partido da base aliada do presidente. Era um bom ministro da Educação, porque dentro daquele partido ele procurou alguém que não era um técnico puro, era alguém em quadro político, mas que tinha algum conhecimento da pasta, que sabia o que fazer, que sabia como negociar e colocou ali. O Ministério da Educação no governo Temer fez pouco, mas o pouco tempo que teve também fez mudanças positivas. O governo Bolsonaro não. Ele de forma alguma ia transigir. A escolha dos ministros não tem nada a ver com negociações políticas. Ele é contra negociação política enquanto tal, ele vê nisso já uma corrupção e no que ele é aplaudido por muita gente no país. Quem que ele botou para ser ministro de educação? Dois, já mudou uma vez, em três meses ele teve que demitir o primeiro porque era tão ruim, dois completos desqualificados, pessoas que não têm ideia do que estão fazendo no caso. Então, é melhor? Eram pessoas que concordavam com a ideologia radical que o governo representa. Isso necessariamente é melhor? Não. Isso é pior. Então, a gente tem esse problema. A gente tem um problema de que as pessoas estão cada vez mais próximas da política, só que o grau de esclarecimento dela acerca da realidade da política não está evoluindo junto. E o meu temor é que talvez seja inerente à espécie humana essa incapacidade e essa diferença entre quem exerce o poder e quem está mais longe dele. E que é utópico a gente acreditar que isso vai mudar fundamentalmente. E portanto, talvez o poder fique travado, cada vez mais travado e inoperante. Cresce o número de deputados que fala direto às matadas, tá com seu celularzinho ali gravando no YouTube, gritando palavras de ordem pra movimentar a sua base de eleitores que são fanatizados e adoram aquilo. Ele não negocia com ninguém porque se ele sentar pra conversar com o cara do outro partido ele já vai perder o apoio que ele tem das pessoas. Já traiu, claro. Já traiu. Então ele não faz nada também porque é cada um gritando pro seu eleitorado. A política fica travada, muito mais difícil de caminhar e de fazer coisas boas, coisas que funcionem minimamente para todos. Não funcionam perfeitamente para ninguém, mas funcionam minimamente para um grande número de pessoas e isso fica muito difícil de acontecer. Então, eu só
José Maria Pimentel
acho que é um risco que a democracia e que a política correm nos dias de hoje. Sim, concordo. Aliás, é essa questão a que tu estás a aludir e que tem que ver com o equilíbrio muito terno que é a democracia representativa, que é um equilíbrio, entre isso que tu falas e que é evidente, quer dizer, a população, desde logo por uma questão de disponibilidade de tempo, a população não pode ter o mesmo grau de informação do que exerce o poder político e por outro lado num país onde uma democracia representativa funciona bem, os líderes políticos têm a capacidade de, por um lado, olhar para o longo prazo e, por outro lado, fazer progredir o país. Ou seja, tanto moralmente como materialmente. E isso é feito de uma forma que implica, de certa forma, uma certa descolagem face àquilo que é a população naquele momento. Esse olhar para a frente implica uma certa desculpagem e como a democracia direta não tem. Não pode ser isso. Depois, por outro lado, e por isso é que este equilíbrio é tênue, se tu excedes na representatividade, ou na representatividade no sentido de quão longe as pessoas estão no poder ou se quem está no poder se tornar muito complacente, depois a confiança das pessoas nessas instituições vai se perdendo. E isso acaba por ser uma resposta a isso, mas também, se calhar até em maior grau, uma resposta a essa mudança que a internet e as redes sociais trouxeram, em que de repente as pessoas são capazes de ter acesso aos políticos diretamente e o incentivo para ti, político, teres uma conta no Twitter tipo Donald Trump em que estás sempre a dizer coisas diretamente para o teu eleitorado é gigante. É gigante, é um grande benefício. Sabe uma coisa que acho que a gente não escapa em
Joel Pinheiro da Fonseca
nenhum caso? A necessidade de bons líderes. Pessoas que apareçam que saibam jogar esse jogo, saibam ter uma comunicação com as pessoas, mas que também mantenham viva essa determinação, esse desejo de fazer um serviço maior para o seu país, que não é apenas ganhar a fama e o poder imediato de agradar as massas. Eu acho que é inescapável. O Brasil viveu um momento, uma ressaca tão grande com a corrupção e com o estado da política, que também muita gente em oposição a essa retórica mais revolucionária do Bolsonaro passa meio que cultivar e a ter um certo saudosismo com a velha política brasileira. Ela O grau de inoperância, de descaso e de traição para o povo brasileiro dessa velha classe política é muito profundo também. A gente não pode sonhar com a volta dela e ela não vai voltar porque o brasileiro médio já não engole mais isso. Agora, a gente precisa então de uma nova liderança, que esteja comprometida com mudanças importantes para o país, que traga consigo esse valor, por exemplo, da ética, de uma nova postura e de um novo jeito de fazer a política no país, mas que não se venda a esse populismo mais barato, que não esteja apenas buscando o próprio poder. O que a gente tem agora são oportunistas chegando lá. Não é esses que estão aí gritando discursos da ética e da pureza, nunca foram pessoas marcadas por isso, que viveram isso, pelo contrário, era um... Que veio de mais sujo e da pequena corrupção da velha política brasileira. Então oportunistas, é oportunistas que chegam gritando as palavras que eles sabem que um eleitorado raivoso quer ouvir. A gente precisa ter alguém que esteja um passo além disso, uma pessoa com verdadeiro... Pessoas, na verdade, mais de uma, com verdadeiro espírito público e capazes desse contato com as pessoas e de encarnarem em si esses valores, mas colocando eles em uso não só um projeto pessoal e ambicioso de poder, mas é um projeto do país. Eu acho que nenhuma nação escapa disso. Não há instituição que dê conta de substituir a importância de líderes, pessoas diferenciadas e dispostas a fazer o que precisa ser feito.
José Maria Pimentel
Claro, a dificuldade é que isso surge, essa é a grande dificuldade. Eu gostava de voltar ao liberalismo, que é um bocado mais transversal, eu conheço obviamente muito melhor o caso português do que o caso brasileiro, mas parece-me que tem, até por terem parecências culturais, parece-me ter algumas similitudes no que diz respeito ao liberalismo no sentido em que são países em que não há uma tradição liberal na política contemporânea, ou seja, tu não tens um movimento liberal e se quiseres até não tens uma cultura muito premiável ao tipo de valores do liberalismo e ao tipo de lógica, o que torna difícil de depois isso ser defendido no espaço público e de ganhar espaço. Eu gostava de ter a tua opinião em relação a isso, sobretudo no caso brasileiro. Em termos de tradição política, qual tem sido a evolução da corrente liberal no Brasil?
Joel Pinheiro da Fonseca
Olha, eu acho que o liberalismo no Brasil tem muita dificuldade de vencer, eu acho que impossibilidade até de vencer, uma eleição majoritária. Quando que ele vence assim, ostensivamente, é quando ele se conecta em geral a um discurso de intransigência e pureza ética na política. Isso aconteceu no início dos anos 90, no fim dos anos 80, na verdade, com a eleição do Collor, que o presidente acabou sofrendo impeachment, ele próprio era corrupto. Ele era o caçador de Marajás, o caçador das velhas elites e dos reizinhos que sentavam ali e que se preocupetavam sobre o dinheiro público. Ele chegou com esse discurso e tinha também uma agenda liberal. Outro é o caso do Bolsonaro, uma coisa muito similar também, um discurso de combate às velhas elites corruptas e que traz junto esse liberalismo econômico. E o liberalismo aí sempre vem a reboque. O liberalismo, enquanto tal, políticos liberais, tem conseguido mais espaço no país. Eu acho que existe espaço na Câmara dos Deputados para um certo número de deputados liberais. Acho que esse número até vai crescer nas próximas eleições. Mas eu não acho que jamais será uma ideologia capaz de vencer eleições majoritárias. Eleições que precisem da maioria do eleitorado, 50% mais um do eleitorado votando no liberalismo. Acho que isso não vai acontecer. Por isso também acho que A estratégia dos liberais no Brasil, a que foi mais bem-sucedida, foi justamente outra. Foi a capacidade de trabalhar junto de diferentes governos e promover mudanças importantes. Vou dar alguns exemplos. No governo Collor, você tinha economistas liberais ali, você tinha um intelectual que foi importante chamado José Guilherme Mercure, deu um pouco norte da agenda do governo Collor, ele era um liberal, foi um governo muito ineficaz, teve alguns desastres ali, ele confiscou a poupança dos brasileiros, aí realmente conseguiu ali fazer coisas muito ruins, mas teve alguma abertura econômica que foi feita ali. O Brasil se tornou uma economia mais aberta depois do governo Correa. O primeiro ponto é esse. Segundo, Fernando Henrique Cardoso. Bom, ele foi assessorado, e muito bem assessorado, por importantes economistas brasileiros, como Pércio Arida, Gustavo Franco, Pedro Malan, e faziam parte da equipe econômica do governo. Foi graças a essas pessoas que André Lara Resende, eu posso falar mais, são ainda pessoas que dominam um pouco o debate público brasileiro. Graças a eles o Brasil conseguiu controlar sua inflação, implantou uma nova moeda, uma nova política monetária que conseguiu acabar com a inflação. O Brasil viveu um período de hiperinflação poucos anos antes. A inflação era um problema crônico, não tinha solução, eles conseguiram efetivamente vencer esse monstro da inflação. Conseguiram privatizar diversas empresas estatais também, tornando a nossa economia mais eficiente, mais produtiva. Então tiveram várias conquistas nesse ponto. O governo Lula, especialmente no primeiro período dele, teve cercado de economistas liberais que conseguiram melhorar muito as propostas dele. Então, vejam, o Lula chegou ao poder com a ideia de um programa chamado Fome Zero, que queria distribuir comida para as pessoas. E que era toda uma logística super complicada, de notas fiscais dadas a supermercados, que contribuíram a comida por todo o Brasil, um negócio complicado certamente a criar muito espaço para corrupção, para toda essa relação suja entre público e privado que a gente conhece. Isso foi descartado no início graças à influência de economistas liberais que estavam junto do governo, como Marcos Lisboa, Joaquim Levi, Ricardo Paz de Barros, economistas de uma tendência muito mais liberal que pensam o lado social também, que graças a eles criou-se o Bolsa Família. O Bolsa Família é um programa social liberal, porque em vez de você fazer toda uma logística complicada de levar comida à mesa dos pobres, você dá dinheiro na mão deles. Você está fazendo algo que um Milton Friedman propunha. Então você está usando medidas liberais aí. Porque
José Maria Pimentel
não está subverter o funcionamento dos mercados.
Joel Pinheiro da Fonseca
Você está dando acesso ao mercado para as pessoas, exatamente. Então, tiveram esse papel central aí, além de tudo, também de manter as conquistas econômicas, especialmente de política monetária e fiscal do governo Fernando Henrique anterior, é graças à assessoria deles. O Antônio Palocci, que era o ministro da Fazenda, teve um papel central aí, sabia ouvir esses economistas. Bom, depois na Dilma, na segunda metade do governo Lula e no governo Dilma, realmente o papel desses liberais diminuiu. O Lula pelo menos na questão monetária no Banco Central ainda ouvia muito o Henrique Meirelles, o banqueiro aí com uma cabeça bem liberal, que ajudou muito, é sempre alguém que o próprio Lula confiava, então tinha esse lado. A Dilma perdeu um pouco mais isso, A gente foi para uma política econômica que se desviou bastante disso, mas quando o problema surgiu, quando a crise veio, o que ela fez? Chamou um economista liberal para ser seu ministro da fazenda, Joaquim Levi, que tinha trabalhado lá atrás com o Lula e trabalhou com alguns governos aqui também. Então em diversos momentos, para tentar resolver as coisas, botar as contas em dia. Não conseguiu, veio o impeachment e tudo, mas enfim, tentou-se também. E agora o Bolsonaro com o Paulo Guedes, com alguns outros economistas aí, aqui do Brasil, Adolfo Saxida, um economista, funcionário público, faz um bom trabalho. Você tem o Mansueto Almeida, tem diversas pessoas aí fazendo um bom trabalho. Economistas conhecem muito das contas públicas brasileiras, que tem conhecimento de políticas públicas, que fazem propostas convincentes e eficazes para melhorar diversos problemas no Brasil. Então, em todos esses governos, você vê que liberais estiveram juntos e tendo boa influência neles e levando mudança em direções necessárias. Eu acho que o papel dos liberais, o liberalismo, porque o que é o liberalismo? É uma substância etérea, algo que nem, uma coisa abstrata, que nem existe direito porque cada um de nós tem uma ideia um pouco diferente. Mas liberais sim, sempre puderam ter um papel efetivo e de fazer mudanças boas ligados a diversos governos diferentes. É aí que eu aposto no caminho para os liberais do Brasil. Estás
José Maria Pimentel
a falar de liberais economicamente, mas eram também liberais no... A maioria desses também, na parte cultural e moral e todas as outras. A maioria desses, sim. Isso é muito interessante, por acaso. Sabes que o que eu noto em Portugal, não sei se será exatamente o caso no Brasil, mas quando tens culturas que têm uma matriz que não encaixa muito bem nos valores liberais, por ser, por exemplo, mais coletivista, por exemplo, mais avesso ao risco, O que depois acontece na prática, isso é uma questão que me preocupa muito, é que um liberal à partida é, eu gosto muito desta frase, pro-market not pro-business, ou seja, és defensor do mercado mas não defensor dos negócios, és defensor de empresas em particular. Não és contra empresas nem negócios, és neutro, mas não és um defensor das empresas lá. Porque cada empresa em si, a ideia é que ela congorre e não que ela seja favorecida a interimento de outra qualquer ou interimento até do Estado, que no fundo representa toda a gente. Mas tu sendo um partido ou um político que defende políticas mais liberais numa cultura que não é ela própria muito tolerante em relação a esses valores, tu vais ter que ganhar apoio e portanto tu vais acabar por ter o apoio do empresariado. Não é que seja um apoio de rejeitar, mas é o apoio para o business, se tu quiseres, naquela equação de que eu falava há pouco e portanto acaba por subverter a lógica e portanto tu acabas por ter políticos que pelo interesse de quem está a apoiá-los não vão estar a defender mercados, ou seja, não vão estar a defender o funcionamento dos mercados enquanto mecanismo de geração de prosperidade, mas vão estar a defender os interesses das empresas, que muitas vezes podem ir contra o interesse dos trabalhadores, por exemplo, ou contra os interesses do Estado que representa toda a gente. Percebes o que eu quero
Joel Pinheiro da Fonseca
dizer? Quanto mais ideológica fique essa bandeira liberal, mais ela se torna, no fundo, uma maneira de levar adiante, de proteger os interesses dos grupos ligados a ela, empresariais ou dos mais ricos. Quantas vezes, por exemplo, nos Estados Unidos, eu acho que o Brasil e Portugal, eu acho que a nossa cultura tem vantagens sobre a americana e vejo como nossos valores podem ter mais respostas a dar para o mundo do que a cultura americana da competição, individualismo desenfreado. Mas veja como lá tantas vezes a bandeira liberal, e no Brasil também, quantas vezes a bandeira liberal acaba se tornando na prática corte de imposto. E corte de imposto para quem? Corte de imposto para os mais ricos. A coisa mais comum é que depois de um discurso exacerbado em defesa do liberalismo, você tenha isso, você tenha políticas que favorecem os mais ricos. Então não podemos nos deixar levar também a achar que o liberalismo que traz as respostas é uma ideologia que pode estar a serviço de grupos de interesse como qualquer outro. É um desafio para o político que se identifica com esses valores conseguir seguir o que eles têm de bom mesmo e não deixar que eles sejam rebaixados. E aí vale para todos. Quantas vezes o socialismo não vira defesa não da igualdade entre os homens, mas da defesa da elite política e de quem controla o poder também. Essas ideologias estão sujeitas a isso. Nenhum interesse é ilegítimo enquanto tal, mas nenhum interesse carrega em si mesmo a resposta para a sociedade. O bom político, o bom líder vai saber de alguma maneira equilibrar aquilo se baseando em alguns interesses, porque o número de pessoas desinteressadas ou que está pensando genuinamente no bem comum sempre vai ser uma minoria, então sabendo navegar bem entre os interesses de grupo, vai saber alguma matemática muito difícil do poder, vai saber promover mudanças boas para todos ou para a maioria. Esse é o grande desafio e é o desafio do líder, do
José Maria Pimentel
verdadeiro líder. Sim, sim. Mas a questão é que qualquer líder político, por muito visionário que seja, tem que agradar a quem está a apoiá-lo. Tem que ter um grupo de apoio. E o exemplo que tu deste dos impostos é o exemplo perfeito, porque é o exemplo justamente disso, e aliás nós, nas últimas eleições portuguesas, entrou um partido de extrema-direita ou próximo e entrou também um partido liberal pela primeira vez que justamente faz muito discurso à volta dos impostos com o qual eu obviamente simpatizo, no sentido em que eu também acho que nós temos uma cara fiscal muito elevada e gosto de um Estado enxuto, mas a questão dos impostos é uma questão traiçoeira. Até porque eu acho que o liberal no sentido, não no sentido provavelmente de uma pureza, mas no sentido verdadeiro, no sentido em que é um liberalismo que se estende à sociedade, não é necessariamente avesso a impostos altos. É avesso a um sistema tributário complexo e um sistema tributário que dá poder a determinados agentes políticos. Agora, eu pelo menos não tenho nada contra pagar imposto e até seria favorável, por exemplo, à questão do rendimento básico incondicional, que lá está, que era uma ideia que também vinha mais ou menos do Milton Friedman, e que na prática passa por pagar um imposto, mas que depois é utilizado de uma maneira simples e portanto que não dá poder político ao Estado.
Joel Pinheiro da Fonseca
Não distorce as escolhas das pessoas. Isso,
José Maria Pimentel
exatamente.
Joel Pinheiro da Fonseca
E quantas críticas aqui no Brasil, por exemplo, se eu sou contra um corte de imposto, qualquer corte de imposto, pode dizer que tem impostos que não devem ser cortados. E se o governo corta o imposto de um lado, por acaso ele diminuiu algum gasto? Não, ele pagava exatamente a mesma coisa que antes. Portanto, pode ter certeza que ele vai cobrar mais de alguém. E se ele está cortando o imposto de casos mais ricos, pode ter certeza que quem vai pagar essa cota vão ser os mais pobres. Não tem a menor dúvida disso. O verdadeiro liberal tem que saber ver além
José Maria Pimentel
disso. Sim, justamente até porque não tem só uma lógica econômica, tem uma lógica de progresso, de progresso social, eu pelo menos acredito muito nisso. Antes de passarmos, como é hábito, às recomendações do convidado, deixem-me lembrar-vos que podem dar o vosso contributo para a continuidade e desenvolvimento deste projeto. Visitem o site 45graus.parafuso.net barra Apoiar para ver como podem contribuir para o 45°, através do Patreon ou diretamente, bem como os vários benefícios associados a cada modalidade de apoio. Se não puderem apoiar financeiramente, podem sempre contribuir para a continuidade do 45° avaliando-o nas principais plataformas de podcasts e divulgando-o entre amigos e familiares. Muito obrigado pelo vosso apoio e agora de volta à conversa. Olha, Joel, por vontade minha ficávamos aqui mais uma hora a falar sobre uma série de temas que ficaram por cobrir, mas isto é típico destas conversas. Gostei imenso de falar contigo, foi uma excelente conversa, passava-te a bola para recomendar-te o livro. Vamos lá, um livro. Então,
Joel Pinheiro da Fonseca
falamos muito da polarização no mundo, o possível efeito das redes sociais também. Tem um livro, eu acho que está sendo traduzido aqui no Brasil, talvez em Portugal já tenha até tradução, como não conheço ainda, que é de um acadêmico, psicólogo americano chamado Jonathan Haidt, que você deve conhecer, inclusive chama The Righteous Mind, então trouxe, bati na mesma tecla aqui, mas o The Righteous Mind eu acho que é um livro que vale a pena a leitura porque ele busca quais são as causas psicológicas por trás desse fenômeno preocupante da polarização que em última análise, se não interrompido, nos encaminha para a guerra civil. Claro que estamos longe dela ainda, eu acredito, mas em última análise nada foi feito. Se um chão comum não for reconquistado, nos encaminha para a impossibilidade total de resolução de conflitos por meio da palavra. E daí só resta a força e isso é o que a gente quer evitar ao máximo. Então acho que ele examina isso, examina o que está por trás dos nossos posicionamentos políticos, porque a gente se acha moralmente superior à pessoa que está do outro lado do espectro político, quando na verdade não. Na verdade as nossas práticas são quase indistinguíveis de um lado do outro, do ponto de vista ético-moral. Então acho uma leitura que eu recomendo muito sempre.
José Maria Pimentel
É muito engraçado, porque eu já falei várias vezes esse livro no podcast, o do recomendá-lo é bom porque está a reforçar que é um ótimo livro. Até há um outro aspecto do livro em relação ao qual eu sou crítico, da abordagem, quer dizer, das conclusões que são tiradas, mas acho o livro, sobretudo o tema que trata, muito, muito, muito interessante e tem que ver com várias coisas que nós falámos, tem que ver com aquela questão das pessoas não agirem racionalmente e de agirem primeiro pela intuição e depois serem persuadidas e tem que ver também com perceber que nós, no fundo, nunca estaremos completamente de acordo na medida em que temos valores diferentes. E esses valores diferentes levam a que nós... Quer dizer, não é simplesmente uma questão de informação, não é simplesmente uma questão de uniformizar a informação a que todos temos acesso. Há valores diferentes e isso é quase incontornável. E isso em política vê-se muito. Havia um político português que tinha uma frase muito conhecida que dizia qual é a coisa do género. Se outra pessoa tiver a mesma informação que eu vai inevitavelmente chegar à mesma conclusão.
Joel Pinheiro da Fonseca
Não é verdade. Mesmo porque a gente aceitar ou não uma informação depende já de um desejo prévio.
José Maria Pimentel
Claro, ela não é neutra de valores. E o mundo em que nós queremos viver depende imenso dos nossos valores. Isso é uma coisa evidente. E
Joel Pinheiro da Fonseca
ao mesmo tempo, esses valores que a gente julga ser o que nos diferencia dos outros, às vezes são uma camada muito superficial da nossa personalidade, ou seja, eu defendo a liberdade, você defende a igualdade, que são importantes para a nossa identidade, eu sou um liberal, você é um socialista, mas acabam sendo muito menos importantes e acabam criando diferenças muito pequenas entre nós. E o que nos une acaba sendo muito maior, mas por causa dessas pequenas diferenças a gente é capaz de brigar e se distanciar.
José Maria Pimentel
Sim, e a política tem esse efeito perverso às vezes. A política foca nos pontos de decisão, nos pontos de diferença, não foca nos pontos de convergência. A política democrática é muito à volta disso. Está bem, olha, muito obrigado por teres participado, Foi excelente, gostei imenso da conversa. Ah,
Joel Pinheiro da Fonseca
ótimo, meu caro, muito obrigado, também adorei a conversa aqui, sucesso aí no podcast e sigamos aí em outras oportunidades
José Maria Pimentel
também. O 45 Horaos é um projeto tornado possível pela comunidade de mecenas que o apoia e cujos nomes encontram na descrição deste episódio. Agradeço em particular a Carlos Martins, Gustavo Pimenta, Eduardo Correia de Matos, Joana Monteiro, Rui Oliveira Gomes, Corto Lemos, Joana Farialve, João Baltazar, Mafalda Lopes da Costa, Rogério Jorge, Salvador Cunha e Tiago Leite. Até ao próximo episódio.