#80 Sandra Marques Pereira - Da evolução da casa e da sociedade no sec XX ao 'boom'...

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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45°. Neste episódio estou à conversa com Sandra Marques Pereira, que nos traz o olhar de uma socióloga em relação à habitação. A convidada é doutorada em Sociologia pelo ISCTE e investiga sobretudo questões relacionadas com os modos de habitar, a evolução da sociedade, a arquitetura residencial e também políticas públicas de habitação. Aliás, a Sandra tem sido nos últimos anos uma voz ativa no debate precisamente em torno das políticas de habitação, sobretudo na cidade de Lisboa. A investigação da convidada segue uma abordagem original, que passa por estudar as transformações da sociedade através da evolução da própria habitação, olhando para a forma como se tem alterado quer a estrutura das casas, quer o uso que fazemos delas ao longo das décadas e o modo como isso reflete as alterações da própria sociedade. Agora que estou a dizer isto parece-me óbvio, mas na altura, ao preparar o episódio, surpreendeu-me imenso a quantidade de informação que é possível extrair desta análise em relação às transformações que foram acontecendo ao nível da cultura, da demografia, da estrutura económica e até da organização política da sociedade. Se no final do episódio ficarem com a mais curiosidade em relação a este tema, sugiro que leiam o livro da convidada, Casa e Mudança Social, que encontram também na descrição do episódio. Durante a conversa começámos por fazer uma viagem por esta sociologia da habitação, percorrendo uma série de alterações que se deram na estrutura das casas e da sociedade ao longo do século XX, sobretudo a partir do Estado Novo. Acabámos por falar mais de Lisboa, porque é a cidade que a investigadora conhece melhor, mas passámos também pela cidade do Porto e pelo campo e de resto a cultura da época que a convidada descreve era mais ou menos semelhante em todo o país e portanto tudo aquilo de que falámos aplica-se de uma forma mais geral ao Portugal daqueles tempos. À medida que a conversa nos foi trazendo mais para os nossos dias, fomos dar inevitavelmente a um tema incontornável dos dias de hoje. Os desafios trazidos pelo enorme aumento do preço da habitação nas grandes cidades, Lisboa e Porto, onde uma tendência que já vinha de trás, de redescoberta do centro histórico pelos habitantes da cidade, se cruzou com o enorme aumento dos preços das casas que se verificou nos últimos anos. Este é um tema complexo e que ainda fará correr muita tinta, até porque é um caso típico em que os benefícios e os custos afetam muita gente, mas de forma diferente, e em que resolver ao mesmo tempo os desafios do curto e do longo prazo não é nada fácil. Para dar rapidamente algum contexto, o que se passa é que desde 2016 os preços nas grandes cidades têm vindo a subir vertiginosamente, a reboque de um círculo virtuoso ou vicioso, dependendo a que perguntarmos, que se tem girado entre o aumento maciço do turismo e o influxo de investimento estrangeiro, que tem chegado a atrair sobretudo pelos vistos golo e pelos benefícios fiscais atribuídos a residentes estrangeiros e que fez com que o imobiliário destas cidades entrasse nos mercados globais. Durante este último trecho da conversa, o que tentei foi destrinçar as diferentes causas deste fenómeno e ao mesmo tempo tentar perceber as soluções da convidada para resolver ou atenuar este problema e tentar, em termos simples, assegurar no curto prazo a habitação acessível aos locais sem ao mesmo tempo, como se costuma dizer, deitar fora o bebé com a água do banho. Enfim, espero que gostem e até ao próximo episódio. Sandra, muito bem-vindo ao podcast. Vou começar por lhe pedir para definir mais ou menos esta área. O nome oficial é Sociologia Urbana, não é?
Sandra Marques Pereira
A minha área é Sociologia Urbana e eu trabalho essencialmente à Habitação. E a área disciplinar de Enquadramento é exatamente a Sociologia. Nós, quando estudamos a Habitação, podemos estudar diversas dimensões da Habitação, desde as políticas públicas, mas também a questão dos modos de habitar, isto é, como é que as pessoas vivem e quais as expectativas, quais os projetos de vida que se encaixam em determinados modelos habitacionais e formas habitacionais, mas também os modelos habitacionais do ponto de vista da arquitetura, ou seja, as condições sociais de produção dos modelos de habitação e de certa forma da arquitetura residencial. Outra dimensão é o estudo do mercado, ou seja, eu posso abordar a habitação sobre diversas perspectivas, ou diversas dimensões da habitação, mas tendo como enfoque sempre esta perspectiva mais sociológica nas suas próximas dimensões.
José Maria Pimentel
Porque é que ela reflete da sociedade
Sandra Marques Pereira
e como é que ela influencia? Exatamente. Por exemplo, na questão dos modos de habitar e dos modelos de habitação. E quando estou a falar em modelos de habitação, falo nos tipos habitacionais, na forma como a casa se organiza, a morfologia da casa, quais são os tipos de divisões que a casa tem, os materiais que a casa tem e mesmo a hierarquia das várias divisões e a relação entre as várias divisões, Aí o que interessa é muito perceber de que forma é que esses modelos refletem um determinado tempo, uma determinada sociedade, uma determinada ideologia, mas também diversas classes sociais. Sim.
José Maria Pimentel
Se calhar podemos até começar pelo caso do Estado Novo, que é um caso óbvio e relativamente fácil de se usar, no sentido em que corresponde a um período, não só um período fixo, como a um período que tinha uma ideologia muito marcada por trás e que fazia sentido na casa. Falando, por exemplo, no caso da vida urbana, ou seja, no caso das casas, o que é que na agenda do Estado Novo, por exemplo, se refletiu na altura em alterações que houve, por exemplo, na forma da casa, na organização das várias divisões, por exemplo?
Sandra Marques Pereira
No Estado Novo há um documentário muito engraçado, que no fundo é um documentário de propaganda política e que mostra três tipos de habitação produzidos no âmbito do Estado Novo. E que, sobretudo, o que mostra é o desejo de materializar, do ponto de vista urbano e do ponto de vista habitacional, uma sociedade completamente hierarquizada. E esses três tipos são os bairros de casas desmontáveis, os bairros de casas económicas e a habitação, que eles, enfim, não têm uma designação, mas que depois os arquitetos pejorativamente vão chamar o português suave. O português suave, sim. Que no fundo é habitação para as elites ou para as classes médias, médias altas e altas. E, de facto, as casas desmontáveis, que é um programa, como o próprio nome diz, são casas que tinham um período de vida transitório e que era suposto, e portanto são casas feitas em luz à lita e materiais muito precários, pequeníssimas, e que se viam em grande medida para realojar pessoas que estavam, por exemplo, em locais onde se iria construir novas obras, obras importantes para a cidade naquela altura. Portanto, eram materiais muitíssimo precários, como digo, e eram casas unifamiliares, por assim dizer, portanto muito pequeninas, e esses bairros eram destinados à base, se quisermos, da estrutura social, mas também tinha um objetivo de uma certa educação, se quisermos, e aperfeiçoamento moral daquela população, e daí a igreja, a escola primária, etc. Idealmente o objetivo era passarem para o segundo patamar das casas económicas. Essas casas desmontáveis, o programa das casas desmontáveis, evidentemente e ainda bem já não existe, exatamente porque eram casas muito precárias, mas as casas de renda econômica mantém a si. São bairros de moradias que tinham como objetivo a propriedade, porque um dos ideais do Habitar do Estado Novo era exatamente a propriedade em casas unifamiliares e, portanto, com um pequeno jardim e uma horta, enfim, atrás, normalmente a relação era esta, e que tinham a chamada renda resolúvel, ou seja, as pessoas iam pagando e ao fim dos X anos ficavam, portanto, eram propriedades. E são bairros que são construídos entre os anos 30 e os anos 50 e que são bairros que são construídos em zonas que na altura os terrenos eram baratos e, portanto, zonas periféricas na altura da cidade. Em Lisboa, o bairro de Santa Cruz, o bairro da Encarnação, o bairro do Arco do Cego, que é um bairro muito engraçado, que não é um bairro de casa econômica na sua origem, mas é o primeiro bairro de habitação social construído no âmbito da república com pressupostos progressistas, revolucionários e inclusivamente com habitação coletiva que negava completamente esta ideia da propriedade e da habitação individual, porque na altura considerava-se e, portanto, fazia parte da matriz mental e ideológica de que a habitação coletiva era perigosa porque aglomerava as populações e, portanto, podia propiciar algumas comunicações e algumas associações e ações de massas não simpáticas para o regime. O bairro do Arco do Cego tem essa característica muito engraçada que é concebido como o primeiro bairro de habitação social pela Primeira República, mas depois, por vicissitudes várias, não foi acabado nesse período e acabaria por ser um dos primeiros bairros a ser inaugurado no âmbito do programa das Casas económicas do Estado Novo, já com suportes completamente opostos, no fundo, no âmbito de um programa que justamente pauta-se pelo conservadorismo, pelo auto-afruchamento da família etc. Aliás, a planta original, o programa original do bairro do Arco do Cego, que hoje em dia é, deste conjunto de bairros de habitação económica, o mais central, se quisermos, tinha equipamentos coletivos, o que é uma coisa muito engraçada e uma coisa muito laica. Não tinha, obviamente, igreja, não é? Depois a igreja de São João de Deus veio a ser construída, mas pronto. Este era o segundo. Depois há outros bairros, há o bairro do Restelo, Caselas, Madre de Deus, etc. Estes bairros mantêm-se e hoje em dia são bairros que estão completamente integrados na cidade e que são bastante valorizados do ponto de vista até do imobiliário, porque são moradias e as moradias são pouco frequentes. E depois tínhamos, no âmbito dessa narrativa ideológica do Estado Novo, tínhamos a habitação que depois os arquitetos, como digo, vieram a chamar o português suave, para as elites. E essa localiza-se essencialmente, veio a ser construída essencialmente nas zonas novas, construídas nos anos 40 e nos anos 50, e que eram zonas mais valorizadas. A Avenida Cidónia e o País é um exemplo muito acabado do que é essa habitação, mas também o Arieiro, toda a zona da Alameda, etc. Esses modelos habitacionais refletiam, por um lado, uma arquitetura exterior, se quisermos, uma imagem visual que reproduzia, do ponto de vista estético, a arquitetura dos momentos áureos da história da nação. É uma espécie de mini palácio, para ser um bocado básica, com a ideia do cor-de-rosa, muito vertical, com uma espécie de umas pirâmides, às vezes, com os chamados torriões no topo, uma coisa muito verticalizada, e com uma grande diferença entre a fachada e as traseiras. Aliás, até ao movimento moderno, que depois podemos falar, e à habitação moderna, esta distinção entre a fachada e as traseiras é fundamental. As traseiras têm uma arquitetura extremamente simples, austera, quase com uma linguagem moderna e à frente com essa linguagem
José Maria Pimentel
mais refuscada, mais
Sandra Marques Pereira
trabalhada, com o primeiro piso com uma varanda com balaustradas e, portanto, e internamente toda a marcação da distinção social é feita desde logo nas entradas, com a distinção entre a entrada de serviço e a entrada social, a entrada de serviço atrás e a entrada social à frente, numa fase apenas com um elevador, e o elevador destinava-se apenas aos donos das casas, donos que na altura eram arrendatários essencialmente, porque, e isso é um aspecto importante, a propriedade horizontal só aparece em meados dos anos 50. A propriedade horizontal, já agora posso explicar, é a possibilidade de eu ser proprietária de um apartamento dentro de um edifício, até aí não existia. De
José Maria Pimentel
uma fração, sim.
Sandra Marques Pereira
De uma fração, até aí não existia. E isso muda muita coisa.
José Maria Pimentel
Então, até aí, ou era o proprietário
Sandra Marques Pereira
do apartamento todo... Do edifício todo, ou era arrendatária. E daí o facto de, por exemplo, nós temos tido, isso explica um bocadinho, porque é que nós tivemos nas cidades uma percentagem de arrendamento muito grande, até muito recentemente, só em 2011, é que nós temos 50-50 propriedade e arrendamento. E depois toda a morfologia da casa organiza-se em função de uma ideia de família muito conservadora, com uma distinção de papéis muito grande entre a mulher e o homem, portanto a mulher que fica em casa, que trata da casa e portanto há toda uma zona de serviços que é muito complexa e que não existia, ou seja, no chamado gaioleiro, que era o edifício típico de Lisboa, por exemplo, nos anos 20, 10 e...
José Maria Pimentel
O gaioleiro, desculpe-me interromper, é aquele herdeiro do pombalismo?
Sandra Marques Pereira
Não, o gaioleiro é depois uma, enfim, é uma designação que não é uma designação correta, mas que, de respeito a todos aqueles edifícios foram construídos entre os finais do século XIX e os 20 anos do século XX. E, por exemplo, o que encontra nas Avenidas Novas, estamos a falar de toda a zona... O Vinho de Roma, não é? Não, isso não são as avenidas novas. Ah não? As pessoas acham... As avenidas novas são construídas... Eu tenho desculpa. É o plano do Ressane Garcia. Não, mas é engraçado porque isso é uma perceção comum. Ah é? É. Quer dizer, depois faz sentido que seja. Mas o conceito de Avenidas Novas é um conceito que tem a ver com o plano de Ressane Garcia e que é a construção à volta da Avenida República e, portanto, de um lado e do outro da avenida República. E, portanto, está a haver aqueles edifícios que têm depois umas varandas de ferro, muitas vezes alguns com azulejos, outros sem azulejos. Portanto, na 5 de outubro, João Crisóstomo, etc, etc, etc. Pronto. Os edifícios, os apartamentos desses gaioleiros tinham uma característica, e com certeza já terá visto, é que entrava-se para um corredor, ou seja, entrava-se para um corredor e depois à frente também tínhamos duas ou três divisões e depois tínhamos à frente da porta uma divisão interior e depois para trás tínhamos a sala de jantar e a cozinha sempre, com uma varanda muitas vezes de ferro e umas casas de serviço de ferro e a casa de banho. E esta casa do Estado Novo para as classes médias altas e elites, introduz desde logo o hall, o hall de entrada. E o hall de entrada é uma coisa que faz logo a mediação entre o espaço público e o espaço privado e organiza e enriquece muito a zona de serviço, isto é, a zona da cozinha, e, portanto, introduz uma copa, faz também um processo de gradação, introduz uma copa e introduz o chamado, na altura, quarto da criada, com casa de banho, portanto, muitas vezes um quarto muito pequenino e, portanto, com uma casa de banho sem água quente e com materiais relativamente pobres, normalmente ao lado da sala de jantar ou às vezes a sala de jantar passa para a frente. Em alguns casos temos, quando a sala de jantar passa para a frente, temos também uma gradação da zona social da casa. Nós podemos organizar a casa em três setores que quisermos, que é a zona... Hoje em dia isso já não faz sentido, mas até há pouco tempo fazia. A zona social, que é a sala de jantar, a sala de estar, etc. A zona privada, a zona dos quartos e a zona de serviços, que é a zona da cozinha. E o que acontece também no Estado Novo em alguns casos é já alguma organização e há alguma junção das dependências relativas à zona social, mas também numa lógica com uma gradação do público e do privado. E, portanto, temos primeiro uma sala de estar e uma sala de estar que muitas vezes nessa altura Era reservada a momentos mais especiais e, portanto, as crianças eram interditas. O uso de quartos de crianças era interdito. Aliás, antes disso, até temos muitas vezes um escritório e é curioso porque às vezes o escritório até tinha uma porta direta para o patamar do edifício,
José Maria Pimentel
para fora.
Sandra Marques Pereira
E depois temos a sala de estar e depois, então, no fim, a sala de jantar. Mas o modo de vida aqui era completamente, portanto, era desta família muito conservadora, com esta grande distinção entre os papéis do homem, em termos de género, com o homem o responsável pelo gestante familiar, e, portanto, o homem era por excelência o senhor do espaço público, se quisermos,
José Maria Pimentel
e a mulher... Sim, aquele ditado, não é? Como é que é? Mulher em casa, homem na praça, como é que é? Há um ditado... Há um
Sandra Marques Pereira
ditado... Pois, mas havia uma grande genderização dos espaços E o espaço público era essencialmente um espaço masculino, embora, obviamente, as mulheres também saíssem, e o espaço privado era, por excelência, o espaço de poder da mulher, mas um poder relativo, e também uma grande hierarquização em termos de pais, filhos. Só para terminar aí, há alguns elementos curiosos que têm a ver com a porta de serviço, por exemplo, na cozinha tinha, por exemplo, uma portinhola, isto é, uma portazinha pequenina que se abria e os fornecedores da mercedia, por exemplo, passavam por aí os bens e quando não fosse possível abriam a porta. Havia mesmo uma interdição das empregadas e das pessoas que distribuíam bens em casa de utilizarem a porta principal e o elevador. E, portanto, há umas escadas de serviço e umas escadas de... Assim como há uma entrada de serviço e uma entrada social, há umas escadas sociais e há uma escada de serviço atrás e que vai dar à respectiva porta. Há uma coisa curiosa que resistiu, por exemplo, até aos anos 70 e em empreendimentos nos anos 70 vemos que era uma campainha e na cozinha nós tínhamos um equipamentozinho com os números das várias
José Maria Pimentel
divisões
Sandra Marques Pereira
e, portanto, se nós chamássemos... Nós estávamos na divisão 1, 2 ou 3 ou 4, tocavamos à campainha e, enfim, supostamente a empregada viria...
José Maria Pimentel
E pelo número via a divisão certa.
Sandra Marques Pereira
...Via a divisão certa e depois apagava, aquilo tinha uma patilhazinha e, feito o serviço, apagava. Mas o que é contraditório, e gostava de falar sobre a contradição destas coisas, é que isso subsiste, como digo, por exemplo a urbanização da Portela, que foi construída nos anos 70, ainda tinha esse abstracho. Ou seja, são ideais de tipo, não é? Mas depois há coisas que são… A vida é muito mais híbrida, não é? E a construção, a própria construção, mostra a hibridez da vida social. Há aqui um momento que é fundamental e que tem que ver com o surgimento da habitação moderna. Não sei se...
José Maria Pimentel
Queria ir lá, mas antes disso, antes de darmos um salto para a habitação moderna, porque há aqui várias coisas interessantes de explorar naquele ponto, porque nós, se olharmos para o que se passava naqueles tempos, e o Estado de Nova é interessante até pelo facto de aquilo que, ou pelo menos é o que me parece, aquilo que até ali acontecia de forma mais orgânica, que era a evolução orgânica da cultura a influenciar as formas de habitar e a maneira como eram construídas as habitações. No caso do Estado Novo há
Sandra Marques Pereira
uma racionalização
José Maria Pimentel
e há o próprio Estado a intervir no sentido de forçar uma determinada ideologia. Uma ideologia que não é necessariamente uma cara criativa, uma maneira de viver e uma ordem social. Isso sempre existiu.
Sandra Marques Pereira
Ali é muito, neste caso, é muito óbvio.
José Maria Pimentel
Esses programas de obras públicas, De vamos construir casas com esta forma para que este modo de viver vá entrando e as pessoas vivem de acordo com a
Sandra Marques Pereira
própria tipologia das casas. Porque no fundo o objetivo é materializar a ideologia, dar forma espacial à ideologia. Mas é evidente que depois a realidade é bastante mais complexa. Mas isso sempre existiu e sempre existiu. Ali é muito óbvio porque a ideologia é muito pura, se quisermos. E continua a existir, se quisermos. Mas deixa-me só dizer, por exemplo, naquele caso que eu estava a dizer do bairro do Arco do Cego, que é uma coisa da Primeira República, isso é evidente. A planta original do bairro do Arco do Cego materializam uma ideologia progressista, com equipamentos coletivos, etc. Isso sempre existiu, mas é evidente que quando há um propósito e há uma afirmação ideológica muito clara, esta necessidade de materializar por várias vias é mais... Eu
José Maria Pimentel
estou a pensar nisto, a Primeira República também tinha essa vontade, se calhar era menos...
Sandra Marques Pereira
Menos executiva. Menos organizada. Menos executiva, menos
José Maria Pimentel
organizada. Tinha um problema de organização, mas também tinha uma elogia marcada. E agora, o que é interessante olhar para isto, do nosso ponto de vista atual, é que há aqui várias coisas que se altam à vista. Por um lado, havia uma desigualdade social e uma pobreza, que são coisas diferentes, apesar de tudo, diferentes da que existe hoje. Ou seja, havia essas casas de antigamente, de famílias de classe média, média-alta, que tinham... De burguesia, na
Sandra Marques Pereira
altura. De burguesia, sim, de burguesia. Exatamente.
José Maria Pimentel
Que tinham... Que eram casas grandes, com não sei quantos filhos, com empregadas ou criadas, como se chamaria na altura. É Uma coisa que hoje em dia subsistirá em nichos, mas praticamente deixou de existir, embora exista mais do que noutros países. Aliás, eu lembro sempre uma história que um amigo meu me contou uma vez, que ele tinha ido estudar para a Alemanha e ele... Quer dizer, a família dele, que eu não conheço sequer muito bem, mas era uma família de classe média, média-alta, ele tinha empregado em casa, não sei necessariamente em que esquema, não sei se era de horas, se era... Interno. Desconfio que não seria, não seria, mas não sei se seria todos os dias ou se seria de algumas horas por semana, mas era uma presença habitual. E ele dizia que contava isso, Ele estava a estudar em Erasmus lá e contava aos colegas e eles achavam que ele era uma espécie de magnata. Quando ele, comparativamente com eles, seria bastante mais pobre. Mas porquê? Porque a desigualdade social cá, apesar de tudo, é maior do que a... Portanto, eles, alguém de classe média, mesmo média e alta na Alemanha... Nunca tinha uma empregada. Até poderia ter esse serviço, mas não com o mesmo número de horas estou a supor, que é um caso interessante. Portanto, esse é um aspecto que mudou. E, aliás, a outra história que me lembrei também para parar a conversa. Não sei se apanhou essa história. Aliás, eu a apanhei a segunda mão, portanto, nem sei de onde é que ela vem mas era o Frederico Lourenço que contava, que aliás já foi convidado ao podcast, acho que ele contava num dos livros dele, que ele, a certa altura acho que viveu em Inglaterra, suponho que em Londres porque o pai estava a tirar o doutoramento, alguma coisa deste género, E a certo ponto há um jantar em casa dele com o, aquilo que seria, suponho, o orientador de doutoramento do pai. Não há de fugir muito disto. E o inglês chega à casa dele e fica completamente perplexo porque o jantar era com empregadas fardadas, quer dizer, com uma... Isto era durante o Estado Novo, se não me engano. Não só com conservadorismo, mas com um conjunto de... Com um número de mão de obra e um anacronismo para ele era brutal. E está ali um tipo vindo de um país completamente subdesenvolvido, face à Inglaterra, mas com uma pompa e comparava com aquilo que ele próprio teria em casa dele, o orientador dele. O que é interessante, porque mostra esta dualidade. Diga, diga.
Sandra Marques Pereira
Isso é muito notório e isso relaciona-se com a habitação moderna e com a modernização e com a ideia de modernidade, ou seja, o que nós verificamos ali, e eu só dei o exemplo daqueles três casos que são muito verbalizados pela ideologia do Estado Novo, mas na realidade havia imensas formas e imensos modelos habitacionais muito diversos. Agora, mas por exemplo, em meio rural vivia-se de muitíssimo mal. Mesmo em condições... Em meio urbano também, em certas circunstâncias, mas...
José Maria Pimentel
Mas era diferente, apesar de tudo, não é?
Sandra Marques Pereira
Não, quer dizer, por exemplo, os bairros de Lata eram uma coisa tremebrosa, não é? Ou as ilhas do Porto, que ainda subsistem, não é? São coisas completamente exíguas.
José Maria Pimentel
As ilhas eram as casas divididas?
Sandra Marques Pereira
As ilhas eram normalmente, por trás das casas estreitas e altas burguesas do porto, existem terrenos, uma espécie de línguas de terreno e eram construídas com uma ou duas latrinas no topo e depois as pessoas viveram e eram casas de uma ou duas divisões, mas coisas mínimas, completamente exíguas. Também seriam construídas noutro tipo de terreno, mas a lógica é esta. Portanto, são línguas de cartas muito pequeninas e que partilhavam uma mesma, muitas vezes, sem... E
José Maria Pimentel
sem comunicação direta com a rua.
Sandra Marques Pereira
Sim. Veram o
José Maria Pimentel
interior dos terrenos.
Sandra Marques Pereira
Mas nós aqui, e mesmo nos bairros antigos, também se viviam em condições absolutamente miseráveis. E portanto o que nós temos aí é uma disparidade brutal entre… ou seja, por um lado temos as classes mais populares, chamemos-lhe assim, a viverem em condições muito más e de grande simplificação e de grande miscigenação funcional dos espaços, ou seja, porque muitas vezes tinham uma, duas ou três divisões em que se fazia tudo e, portanto, não havia uma diversificação funcional dos espaços e dos usos e, portanto, comia-se, dormia-se na cozinha, enfim, estava-se na cozinha, etc. E depois, por exemplo, os bairros de Lata, como eram muito precários, também passava-se muito tempo na rua, mas ao mesmo tempo era uma grande contradição, porque essas pessoas ao mesmo tempo também tinham um domínio muito pequeno do espaço urbano, Ou seja, estavam ali um bocado encapsulados, ensanduichados entre o espaço da cidade que lhes era hostil e o espaço da casa que também lhes era hostil, então ficavam muito condicionados à vivência do espaço público do bairro, se quisermos. E, portanto, eram vivências sem especialização, do ponto de vista funcional, portanto não havia um quarto específico para dormir.
José Maria Pimentel
Sim, as pessoas dormiam juntas. As pessoas
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dormiam juntas. Há uma coisa muito engraçada, há um exemplo muito engraçado. O arquiteto Távora do Porto, que fez um levantamento das condições de vida na Ribeira Barredo, então que fez o levantamento dos edifícios e de como é que as pessoas dormiam e estavam. Então desenha ele juntamente com os alunos, aliás os alunos provavelmente, E o que vemos são as camas e depois, sei lá, três, quatro pessoas viradas de um lado para o outro e, portanto, vemos espaços completamente sobre-ocupados, em condições miseráveis, sem qualquer tipo de privacidade. E também é esta a questão, é que não havia possibilidade de uma constituição, uma ideia de família no sentido de uma família
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moderna. Sim, sim, completamente. Porque a
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ideia da privacidade é muito... Há alguns filmes, uns mais caósticos do que outros, mas que dão muito essa ideia.
José Maria Pimentel
A família tradicional não é nada tradicional nesse sentido porque não existiu sempre assim, porque é um produto da urbanização que permite ter privacidade nesse
Sandra Marques Pereira
sentido. E eles não tinham essa noção de privacidade, quer dizer, e portanto... E por outro lado temos a dita burguesia, chamemos-lhe assim, que tinha casas e formas e modos de vida e usos completamente complexos do ponto de vista da complexidade funcional, ou seja, tinha essas divisões completamente especializadas. Mas Um outro exemplo é, por exemplo, as refeições. O tipo de refeições entre uma classe popular, um jantar, por exemplo, uma refeição de uma família de uma classe mais popular e de uma burguesia distingue-se desde logo pela enorme diversidade neste aspecto, ao passo que uma classe popular, uma família de uma classe mais popular teria enfim, um prato, poucos talheres e uma grande austeridade do ponto de vista. Essa complexidade funcional que caracterizava o modo de vida da burguesia, traduzia-se em um prato de peixe, um prato de carne, talheres de peixe, toda uma complexidade. Portanto, é esta distinção, é esta enorme distinção, e que é reveladora de formas de vida completamente opostas do ponto de vista das condições de vida, que nós temos a habitação moderna e isto... Eu não vou falar muito sobre o movimento moderno, o movimento moderno é uma coisa da arquitetura, mas a habitação moderna, digamos, que é uma espécie de... E o movimento moderno, se quisermos, é uma espécie do braço arquitetónico e urbanístico da modernização das sociedades. Ou seja, e o que faz é criar um tipo de habitação que introduz alguma complexidade, é portanto é uma habitação que nós conhecemos, com a cozinha, sala e quartos, mas que no fundo o que vai fazer é aproximar estes dois grupos, porque por um lado vai criar a complexidade funcional de divisões que as classes populares não tinham e, portanto, vai-lhes dar uma sala de jantar, uma sala de jantar não dá, mas dá uma sala comum, uma cozinha e quartos para os vários membros da família, portanto um quarto casal separado e quartos para os filhos e uma casa de banho e pelo contrário vai simplificar o modo de vida burguês naquela sua complexidade, divisões completas, a ideia do quarto de criada vai desaparecer, não vai desaparecer, vai se transformar. E, portanto, a casa moderna e o movimento moderno vêm fazer isto, vêm permitir a disponibilização de uma habitação condigna para muita gente.
José Maria Pimentel
E aproximar os dois modelos.
Sandra Marques Pereira
E reduzir as diferenças, simplificar os burgueses, assim de forma básica e complexificar os outros.
José Maria Pimentel
O que é curioso aí é que me parece que há aí a confluência de duas tendências, aquelas podem ser separáveis. Por um lado uma evolução, podemos dizer, cultural ou programática, mas também a evolução tecnológica, ou seja, o surgimento das máquinas de lavar roupa, dos frigoríficos, tudo mais, simplificou a lida doméstica de uma maneira brutal. Quer dizer, basta ler livros... Aliás, há um livro muito interessante de um tipo que eu gosto imenso que é o Bill Bryson que se chama Home, mesmo chama-se casa, e ele conta, é um ótimo contador de histórias, e ele conta como era a vida nas casas, aquilo era a Inglaterra, mas a mesma coisa seria aplicável aqui, no fundo pré-industrialização, E aquilo era um trabalho infinito, não é? E lá está, percebe-se que para uma casa ter o mínimo daquilo que nós podíamos considerar condições hoje em dia, para quem usufruía dela, tinha que ter um número de mão de obra de pessoas a trabalhar diariamente, brutal, porque tudo aquilo precisava de ser feito. A partir do momento em que surgem máquinas, também no fundo, mesmo que é imposta, no fundo deixa de ter a necessidade que tinha antes de ter pessoas a levar roupa à mão, por exemplo, e loiça à mão e, sei lá, e não havia aço inoxidável, portanto tinham que ser talheres que tinham que ser areados e teriam de ter por uma linha, não é? Porque parece-me que isso também tem uma influência grande neste processo, não é?
Sandra Marques Pereira
Tem, mas, por exemplo, até ao final dos anos 90, por exemplo, a porcentagem de pessoas com máquina de lavar louça não era assim tão grande. De roupa... Ou seja, isso é importante mas na realidade as condições económicas e a manutenção, enfim, do manancial... Estou-me
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a lembrar dos supermercados, por exemplo. Nós não reparamos nisso, mas facilita. E nem é só comida, pronto, é eu ir ali ao supermercado e ter tudo. Antigamente tinha que ser... Eu lembro de um tempo dos meus avós, ia-se... Já nem sei como é que se chamava, mas ia... Não havia provavelmente supermercados, ia-se comprar coisas assim. Havia uma mercearia, havia o talho, havia A frutaria, havia uma espécie de armazéns grande, mas para o mercado, já não sei que nome é que tinham, mas que era um mercado abastecedor, sabe? Eram assim umas coisas de género, que vendiam assim coisas em grosso, mas que tudo isso implicava pessoas, ou era o próprio, lá está, ou então implicava pessoas para irem àqueles sítios comprar as coisas diariamente.
Sandra Marques Pereira
Também uma das coisas fundamentais é o trabalho da mulher, a mulher sair para fora, não é? Desses espaços privados. E estamos a falar na burguesia, porque a mulher das classes operárias sempre trabalhou. Sempre
José Maria Pimentel
trabalhou. Quer
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dizer, não era um trabalho para a realização profissional, como deve calcular, era uma necessidade e, portanto, quando as classes médias começam a consolidarem, a mulher que também começa a sair e entrar na vida profissional é evidente que a questão da simplificação dos modos de vida, há aqui um conjunto de fatores que vem contribuir para a simplificação dos modos de habitar, agora naquela altura a questão da habitação moderna é muito engraçada. Gostava só de dizer uma coisa a esse propósito. A habitação moderna chega a Portugal aos bocadinhos, é evidente, porque estas coisas não são assim. Nos anos 50, os olivais são um caso muito exemplar e os arquitetos aí têm um peso muito importante e depois os construtores, na altura os promotores não era uma figura assim tão conhecida, os construtores veem naquele modelo um modelo também económico, replicável e portanto adaptado. Mas o que é muito engraçado é que a realidade é muito mais feita de coisas híbridas porque a evolução não é feita de modelos puros.
José Maria Pimentel
E não é do dia para a noite também, não é?
Sandra Marques Pereira
E não é por vários motivos, desde logo por uma questão da aceitação da mudança imediata e da desamabilância. E o que nós vemos é, nos anos 60 e até 70, coisas muito engraçadas que são casas que misturam muito da tradição e do moderno. E, por exemplo, há uma coisa engraçada, desde logo a passagem da entrada de serviço para a frente do edifício. Se virmos, por exemplo, os edifícios dos anos 50, final dos anos 50 e dos anos 60, já haver duas portas à entrada, uma mais pequenina e mais feia e uma maior. Já temos a entrada social e a entrada de serviço. Já temos dois elevadores, o elevador de serviço e o elevador social, e temos já, por exemplo, o quarto, o chamado quarto de criada passa a chamar de quarto de empregada e tem outra uma coisa engraçada que é, às vezes já tem a possibilidade de ter um pequeno vestíbulo, ou seja, localizando-se ao pé da cozinha pode já ser autónomo para dar a possibilidade de auto-utilização. E, portanto, há aqui modelos entre os anos 60 e 70 e final dos anos 50 que misturam muito a tradição e o moderno de forma muito engraçada. Claro,
José Maria Pimentel
a alteração não acontece.
Sandra Marques Pereira
Não acontece e desde logo porque os construtores também percebem que os modos de vida não mudaram assim de um momento para o outro e não é o modelo arquitetónico que os vai mudar. E portanto o que se pretende é vender e adequar-se um bocadinho as coisas à procura, não é?
José Maria Pimentel
Sim, sim, há um jogo permanente entre a tradição, quer dizer, o ideal de bom que depois as pessoas tentam mimetizar, sei lá, quem sobe na vida, por exemplo, tenta mimetizar o ideal qualquer, quem vem do campo, por exemplo, tenta manter algumas referências daquilo que no fundo lhe dá conforto, não é? Portanto, tudo isso conflui.
Sandra Marques Pereira
Esse aspecto que estava a dizer, quem vem do campo tenta trazer algum aspecto, é uma questão que está muito presente no que nós chamamos, ou que se chamou, a Habitação Clandestina. E a Habitação Clandestina teve um grande peso em Portugal. Há vários tipos de Habitação Clandestina, há aquelas situações em que as pessoas ocupam, por isso simplesmente, um terreno e auto-constroem a sua habitação, mas isto não é o predominante na habitação clandestina. A habitação clandestina é, essencialmente, foi um modelo muito presente nos anos 60 e 70, e isso mesmo até 80, mas sobretudo 60 e 70, portanto no grande período da urbanização do éxito rural das pessoas do campo para a cidade, em que as pessoas compravam, nomeadamente nas periferias da cidade, terrenos que não estavam urbanizados e depois construíam, autoconstruíam ou muitas vezes construíam com o apoio de profissionais a sua habitação. E portanto elas eram proprietárias daquela casa. Só que os terrenos não eram urbanizados, não eram infraestruturados e nós temos imensos exemplos, Fernão Ferro, etc. Depois o que aconteceu, e já agora gostava de falar sobre isso, é porque há às vezes uma tendência para se dizer que Portugal não teve políticas públicas de habitação ou que as políticas públicas de habitação em Portugal sempre foram completamente inexistentes, mas não é verdade. Por exemplo, no caso da habitação clandestina, que teve uma expressão enorme, como digo, nos anos 60, e no processo de urbanização das duas grandes cidades, e que por um lado permitiam às pessoas ter uma casa, uma moradia, que no fundo até há muito pouco tempo, se não mesmo ainda hoje, era o modelo dominante, o ideal dominante da habitação das pessoas, para mais dessas pessoas que vinham do meio rural, e que muitas delas eram muito engraçadas porque faziam uma espécie de fusão e traziam elementos da sua terra de origem e fundiam ali elementos também da cidade e portanto esta hibridez também se notava ali e a casa era ali um projeto, era ali um instrumento fundamental de um projeto de mobilidade social ascendente. Era
José Maria Pimentel
aquela que ela vinha sempre com o seu livro, um tipo que mandava fazer a lareira na aldeia. A lareira que vinha
Sandra Marques Pereira
da aldeia e não sei o quê. Queria ter dado um trabalhão. Exatamente. Porque a casa tem isso. A casa e a cultura material têm isso. Por exemplo, uma chaminé, um tipo de telhado, um tipo de janela, ou mesmo um tipo de chão, é altamente simbólico das memórias que pode trazer, das associações. Uma árvore, Por exemplo, uma palmeira traz associações do ponto de vista emocional, memórias de imagens muito fortes. E isso é uma coisa que a casa, por excelência, tenta incorporar esses elementos que simbolizam qualquer coisa. Mas agora deixa-me só dizer uma coisa. A propósito da história do quarteirão e da casa moderna, que é muito engraçado, a Habitação Moderna introduz essa complexificação da casa popular e simplificação da casa burguesa, mas introduz uma outra coisa, ela liberta os edifícios do quarteirão tradicional. A morfologia urbana tradicional é uma morfologia de quarteirão, ou seja, essas avenidas novas que eu estava a falar há bocado, a Avenida 5 de Outubro, a Avenida da República e a parte de trás da Manhã da República e por aí fora, até os anos 40. A morfologia da cidade era em quarteirão, fechado. E a Habitação Moderna vai fazer o edifício livre, porque a ideia é beneficiar o mais possível do sol e, por outro lado, também pô-lo, idealmente, construí-lo perpendicularmente às vias de circulação, por uma questão de proteção. O que acontece é que a cidade, a partir dos anos 60 e 70, A cidade e a periferia ganham uma morfologia completamente diferente com os edifícios servidos. O quarteirão já não existe. Mas isto introduz uma outra coisa, é que o edifício moderno também aboliu a distinção entre a fachada e as traseiras. E a abolição do quarteirão confere grande visibilidade às traseiras, que anteriormente não serviam, porque estavam fechadas lá no
José Maria Pimentel
quarteirão. Claro, estavam para dentro.
Sandra Marques Pereira
Ou seja, os bairros tradicionais, ou pré-modernos, se quisermos, têm um segredo. A vivência no interior dos quarteirões é completamente invisível do ponto de vista urbano. Ou seja, o que se passa nas traseiras e no interior dos quarteirões da cidade pré-moderna é completamente invisível. A partir do momento em que o edifício se liberta do quarteirão há aqui uma mudança radical em que passa a haver, deixando de haver quarteirão, esse segredo da vida interna dos quarteirões...
José Maria Pimentel
Deixa de poder existir, no fundo.
Sandra Marques Pereira
Deixa de poder existir. E aí é que eu ia... Há um filme... Há, é uma recomendação. Que é muito engraçado. Para quem sempre viveu em casas, em edifícios a partir dos anos 60, ou em meios rurais que não tinham essa ideia do quarteirão, eu acho que é muito engraçado fazer uma visita pelo interior dos quarteirões e, inclusive, olhar pelo interior desses quarteirões porque é uma outra vida. E há um filme que eu gosto muito, que é um filme do Hector Scola, que se chama Una Giornata Particular, eu não sei, é um dia especial, acho eu, com a Astroiany e com a Sophia Loren e que eu gosto imenso desse filme, porque exatamente começa a filmagem, uma filmagem fantástica, que é pelo interior do quarteirão e nós entramos na vida da casa através da cozinha onde ela está a trabalhar, a Sophie Lauren, e é muito engraçado. Aliás, eu moro por acaso num quarteirão fechado e esta sensação, eu espero que os vizinhos não me estejam a ver, mas é muito engraçado olhar para os outros na fachada, porque é uma espécie de janela indiscreta em que nós vemos... Quer dizer, eu não estou a ver, mas há ali muita vivência, há ali uma coisa... Só mais uma história muito engraçada, que é o outro lado, se quisermos, deste lado, do positivo e do negativo da cidade. Ou seja, não é positivo e negativo no sentido evolutivo, mas do visível e do invisível da cidade tradicional. Esses quarteirões são muito vividos por gatos, têm muitos gatos. E tinham, na minha outra casa, que também era um quarteirão fechado, havia imensos gatos que andavam por lá. Porque são universos completamente fechados, às vezes têm outras construções lá dentro etc. E uma vez um desses gatos que viviam no interior dos quarteirões entrou pela minha casa e fugiu e foi até à varanda da frente. E é espetacular a forma como ele ficou a olhar para o que se passava no lado... Porque era tudo diferente! E então isto é uma espécie... O gato é uma espécie de...
José Maria Pimentel
Que giro! Que só
Sandra Marques Pereira
conhecia o lado interior do quarteirão e nós, os que vivemos por um lado, só o conhecemos.
José Maria Pimentel
E nem reparavam nessa... Sim,
Sandra Marques Pereira
já agora se começou a dizer... Porque isso tinha também a ver com este lado, com esta distinção entre a fachada e as traseiras, em que as traseiras eram uma coisa menor e a fachada era uma coisa superior de representação,
José Maria Pimentel
de investimento,
Sandra Marques Pereira
de representação. E hoje em dia nós estamos a assistir a uma inversão, depois o quarteirão foi recuperado, o quarteirão foi recuperado nos anos 80, 90, mas é um quarteirão aberto, por exemplo, a Aixpó já tem um desenho completamente de quarteirão, mas aberto, muitas vezes, ou não, e hoje em dia as casas, e nomeadamente quando são reabilitadas, muitas vezes vão fazer exatamente o principal da vivência nas traseiras, porque os critérios são outros
José Maria Pimentel
completamente. Isso é giro, mas por que é que acha que aconteceu essa mudança?
Sandra Marques Pereira
Primeiro, a casa moderna veio abolir do ponto de vista formal a distinção entre as traseiras e a façada, mas é evidente que isso não aconteceu num ponto de vista prático, porque essa distinção manteve-se na vivência das pessoas e no ideal de casa das pessoas durante muito tempo e em muitas circunstâncias ainda se mantém. Mas é evidente que a partir do momento em que as pessoas começam a ter estilos de vida muito mais informais, essa distinção deixa de fazer sentido. Por outro lado, as traseiras têm duas mais-valias. As traseiras desses quarteirões. Uma é, muitas vezes têm um jardim ou uma varanda aberta. Tem privacidade, ao contrário da varanda virada para fora. E tem muito menos barulho.
José Maria Pimentel
Sim, é o que nos faz sentido hoje em dia.
Sandra Marques Pereira
Exatamente, porque os critérios, ou seja, porque os ideais de casa, os critérios de valorização habitacional, os critérios de valorização do sítio, isto é, os ideais de sítio, de localização, são completamente mutáveis ao longo do tempo. São construídos socialmente. Imagino
José Maria Pimentel
que tenha que ver também com a vida menos projetada para a frente. Por exemplo, nos bairros tradicionais mais antigos havia muito uma vida de ir à janela e falar com os vizinhos, por exemplo. Aí já não seria bem esse esquema. Mas apesar de tudo, estaria mais próximo disso do que hoje em dia que nós queremos é ter privacidade e, sei lá, ter os amigos em casa. Aliás, aqui neste bairro é a mesma coisa, embora não sejam bem varandas, mas é giro a pessoa ver as varandas viradas para a frente das casas. Eu lembro em casa dos meus avós, por exemplo, havia uma varanda e era uma varanda relativamente grande virada para a frente da casa, que não tinha uso nenhum. Não sei porque é que a puseram lá. Porque, claro, se são varandas viradas para a rua, a pessoa não quer estar lá. Hoje em dia, sobretudo, quer utilizar o... Porque
Sandra Marques Pereira
a ideia da fachada, a ideia da representação, a ideia de mostrar alguma coisa era fundamental, mas sobretudo estava completamente incorporada esta ideia de que as divisões mais valorizadas estavam na parte de frente da casa e as divisões menos valorizadas na parte de trás da casa. E hoje em dia...
José Maria Pimentel
É o contrário de certa forma, se for. Ou é o contrário ou é indiferente.
Sandra Marques Pereira
Os critérios são outros porque esta distinção tende a perder sentido. Não quero dizer que ela não exista ainda em muitas situações. É como a história da moradia, a moradia continua a ser um ideal habitacional para muita gente, mas provavelmente é menos do que era há uns anos, porque a ideia de viver no centro da cidade e a valorização do centro da cidade cresceu. Cresceu? Não cresceu por acaso, cresceu na sequência da transformação dos estilos de vida das pessoas, do aumento do nível educacional das pessoas que tendem a experimentar estilos de vida mais cosmopolitas noutros sítios em que os centros das cidades é que são valorizados e, portanto...
José Maria Pimentel
E com a melhoria da construção, viver em apartamento torna-se menos oneroso nesse sentido também, não é? Viver num apartamento com boa construção não nos retira grande privacidade porque estamos suficientemente separados dos vizinhos. Não é como os prédios de outros tempos que subsistem, não é? Estrutura de madeira, por exemplo, ou mesmo depois que tem uma permeabilidade muito maior e, portanto, é normal que as pessoas almejem a ter a sua casa independente. Sim. Imagino eu, pelo menos.
Sandra Marques Pereira
Mas isso tem muito que ver com esses ideais que simbolizam uma casa, uma moradia, a ideia da privacidade, a ideia de ser feita à minha medida, da personalização, etc. Isso é muito importante.
José Maria Pimentel
E há um lado interessante que eu imagino que também estude, que é o facto de isto tudo, obviamente, também ser diferente. Independentemente destas tendências mais cronológicas, há, obviamente, diferenças entre as próprias pessoas. Uma coisa que é giro a pessoa observar é como diferentes pessoas dão uma importância diferente à casa e até diferentes culturas. E isso nota-se muito. Há pessoas para quem a casa é algo muito importante. É tudo. Não quero só que ela esteja bem cuidada, mas também que nos reflita, até porventura esteticamente, ou que tenha as coisas que nos são mais próximas. E aliás, até há quase um paradoxo de entre as pessoas com mais posse, ou entre as classes socioeconómicas mais elevadas, paradoxalmente até a casa pode ter um fim mais puramente funcional do que para outras pessoas, no sentido em que é menos uma prioridade. Não
Sandra Marques Pereira
sei se estão a entender. Eu percebo perfeitamente o que é que está a dizer, mas eu acho que isso não é uma questão... Mas depois
José Maria Pimentel
também tem a ver com fases de vida, uma série de coisas. Eu acho que tem a ver com fases
Sandra Marques Pereira
de vida e tem a ver com as próprias pessoas, quer dizer, há grandes diferenças do ponto de vista da classe e a classe tem aqui uma importância grande, mas mesmo as pessoas que não valorizam a habitação como investimento, como um objeto de reflexo e de projeto e que materializa o seu projeto de vida, mesmo nesses casos a casa é muito... Reflete muito a sua forma de vida, reflete sempre a sua forma de vida. Agora, há um conjunto de fatores que são fatores sociais, desde a classe social até a própria fase do ciclo de vida, o nível de instrução, mas depois há fatores individuais e fatores que se cruzam com esses fatores sociais e que determinam completamente a valorização e o entendimento que as pessoas fazem da casa. A própria trajetória individual, residencial e social em geral. Era mais ou menos comum nas casas dos retornados encontrarmos elementos, objetos que vinham da África e que simbolizavam... Que simbolizavam não, que vinham da África e que eram a memória da África. Mas pronto, eu acho que há um conjunto de variáveis que são, por um lado, sociais, tem a ver com a classe social, tem a ver com o tempo, tem a ver com a capacidade econômica, mas também há variáveis que têm a ver com o percurso individual, com a história de vida individual e familiar e com o próprio cruzamento, imagino, entre isso tudo e o cruzamento de vontades e de perspectivas e de ambições, por exemplo, de duas pessoas que vivem juntas e que há ali uma... E
José Maria Pimentel
cada uma traz as suas... E cada uma traz as suas e portanto
Sandra Marques Pereira
há ali uma negociação e uma espécie de uma síntese, se quisermos, dos dois patrimónios.
José Maria Pimentel
Sim, sim, essa dimensão não é irrelevante, claramente.
Sandra Marques Pereira
Não é nada irrelevante. Portanto, há uma negociação, há negociações. E, Por exemplo, nesse livro há os usos da casa, por exemplo. Até tem a ver com o tipo de família e com as estratégias do tipo de família. Eu estudei três casos, podemos ir lá. Isto no final dos anos da primeira década do século XXI, em 2008 e 2009, escolheu três tipos de edifícios diferentes na cidade, que eram os lofts, no 24 de julho, era a arquitetura sustentável edifício na Espo, e eram os estúdios de residences, que eram casas muito pequeninas e ainda hoje existem, todas elas existem obviamente, no Poço dos Negros, que era um palácio que foi reabilitado. E é muito engraçado que, por exemplo, nessa arquitetura sustentável que era o edifício na Expo, o edifício era engraçado porque tinha tipologias muito diversas, desde tipologias pequenas, T1 e T2, mas esses T1 e T2, eles próprios, com organizações muito diversas, uns muito permeáveis e outros e um dos casos que estudava foi uma família recomposta. Ela tinha casado com um senhor que já tinha duas filhas adolescentes E a forma como usaram, os modos e usos daquela casa, refletia claramente uma estratégia de definição clara do que era a nova família. As miúdas do primeiro casamento dele tinham um quarto para elas e eles tinham os dois em comum um filho, um rapaz e uma rapariga, que dormiam no mesmo quarto, um bocadinho um cor-de-rosa, um bocadinho... A ideia era mesmo claramente, ela dizia, construir ali uma relação de fraternidade entre aqueles. Ou seja, as formas e os sentidos que as pessoas dão às casas é completamente relacionado com o seu projeto de vida e com o seu modo de vida. Portanto, tudo isto é de uma complexidade enorme e que tem muitas variáveis.
José Maria Pimentel
Sim, que não são fáceis de isolar. E
Sandra Marques Pereira
que não são fáceis de isolar.
José Maria Pimentel
Sim, isso é muito giro. Eu queria
Sandra Marques Pereira
só... No caso dos lofts, já agora, os lofts é um caso muito engraçado, quer o modelo, o modelo em si, arquitetonicamente falando, quer depois o que eu encontrei naquele caso. Os lofts, que surgem sobretudo de forma mais evidente nos anos 60, eram armazéns que estavam desativados e eram muito baratos e, portanto, os artistas começaram no Sao Emanat, começaram, e não só, várias partes, começaram a ocupar legalmente aqueles edifícios e no fundo a fazer daqueles espaços abertos, a sua casa e local de trabalho, mas a característica é esta mesmo, tem duas características que diferenciam da casa moderna e da família da casa moderna. Ou seja, por um lado são espaços abertos, sem divisões e essa ideia dos espaços polivalentes é muito importante, mas não é a polivalência das classes populares que falámos há bocados, que
José Maria Pimentel
é uma polivalência imposta, pobre.
Sandra Marques Pereira
Esta é uma polivalência escolhida e são espaços também que no fundo negam a casa moderna, já como a casa que representa a família dita tradicional, que não era tradicional, mas com a divisão da sala, etc. Mas também tem outra característica, eles acabavam, e, portanto, eles acabavam, eram eles que acabavam e finalizavam aqueles espaços, portanto, os espaços vinham em bruto e, portanto, eles... E, portanto, no fundo também é um cenário da criatividade, porque eram essencialmente artistas e pessoas ligadas à comunidade artística que estavam naqueles anos de 60 a viver nessa comunidade. Minha mãe, por exemplo, ela era uma artista, ela era uma artista de arte, e ela tinha um trabalho de artesanato, e, ao mesmo tempo, tem uma outra componente que também que é completamente divergente dessa casa moderna da família tradicional, moderna, chamemos-nos assim, que é um sítio que era simultaneamente de espaço de trabalho e de espaço de vivência. E, portanto, mistura duas funções que estavam completamente separadas. Os casos dos lofts em Lisboa são muito engraçados porque foi quando se começa a haver a necessidade de diversificação da oferta habitacional nesta primeira década deste século. É um promotor imobiliário que compra dois armazéns, uma era a antiga fábrica das lâmpadas Osram, na 24 de julho, e em que todo o cenário, tem o Porto de Lisboa e aqueles contentores, há todo um cenário industrial, etc. E faz a reabilitação daquilo em lofts. Só que não tem nada a ver com aqueles lofts originais, ou seja, porque são plantas já completamente definidas e em que esse elemento simbólico dos materiais é fundamental. E quais são os dois elementos fundamentais que nós, a sociedade, associamos ao industrialismo? É o ferro e o tijolo, e portanto, aqueles dois armazéns não tinham quase ferro e tijolo em lado nenhum, e esses dois elementos marcam completamente a identidade, sobretudo dos espaços comuns e da entrada, o ferro e o tijolo. Porque tem uma carga simbólica muito forte. Os edifícios, os fogos, as casas depois, ou são mezaninos, portanto tem uma cozinha por baixo e uma sala e depois uma mezanina, que é o quarto, ou eram espaços fechados com cozinha e em que houve pessoas que abriram tudo e sobretudo deram-lhe uma carga muito personalizada, eram muitos espaços. Mas O que foi engraçado foi ver o tipo de pessoas que foram para lá e a diferença, não só no tipo de casa que essas pessoas escolheram, mas no tipo de utilização que lhe deram e no significado que lhe atribuíam nos projetos que tinham para aquelas casas. Ao contrário do que se poderia imaginar, não havia artistas, porque aquilo era, quer dizer, para já era relativamente caro e depois aquilo não é uma coisa original e, portanto, os artistas podiam considerar aquilo uma coisa, um bocado, um pastiche, uma coisa
José Maria Pimentel
feia. Exato, sim, correjado.
Sandra Marques Pereira
Tínhamos muitas pessoas ligadas ao design, à publicidade e, portanto, essa dimensão muito da imagem e simbólica.
José Maria Pimentel
E da criatividade.
Sandra Marques Pereira
E da criatividade, etc. E depois tínhamos dois tipos de formas, de modos de habitar engraçados, que estavam relacionados com o tipo de casa escolhida. Eu chamei os indefectíveis e os ocasionais. Os ocasionais eram aqueles que estavam ali e que escolhiam as casas da Mezzanine e que estavam ali numa fase do ciclo de vida, porque o sítio era bom, ou para eles podia ser bom, mas imaginavam que aquilo era uma fase transitória do seu ciclo de vida e não mexiam, não fizeram alterações à casa. Alterações a casa e os indefetíveis que toda a vida tiveram como ideal de vida viver num loft. Portanto, são pessoas que foram muito... Tiveram uma adolescência muito passada nos anos 80 em que esses filmes muito vindos da cinematografia americana, norte-americana, em que a ideia do loft como estilo de vida alternativo
José Maria Pimentel
era muito presente. E eles
Sandra Marques Pereira
referiam sempre os mesmos filmes. Aliás, para um estudo
José Maria Pimentel
de Canada Assow... Quais eram? Ainda se lembra de algum?
Sandra Marques Pereira
Era o sete semanas... O nove semanas e meia, por um lado, e o dancing... Dancing... Flashdance? Flashdance! Exatamente! Isto não conhecia-se! Eu acho que é Flashdance!
José Maria Pimentel
Deve ser, porque é de 1983...
Sandra Marques Pereira
É isso mesmo! É essa, é essa, é isso mesmo! É o Flashdance! E depois houve outros filmes que também... Histórias de Nova Iorque, há um dos filmes de Histórias de Nova Iorque que aparece, mas eles nunca referiam isso. Ou seja, e esses indefetíveis sempre tiveram como idiota, andavam sempre à procura do lobby. E eles o que escolheram foram as casas que puderam mais personalizar. E a ideia era mesmo a ideia do open space, inclusivamente não ter porta em sei lá nenhum e portanto esta é a ideia do open space.
José Maria Pimentel
E esse é um aspecto giro porque eu imagino que sobretudo hoje em dia, mais do que lá está em tempos em que tudo era muito mais rígido, Hoje em dia deve-se perceber muito bem os ideais de vida e o estilo de vida. O estilo de vida se calhar até será a melhor expressão daquelas pessoas. Eu imagino que isso se perceba muito bem indo visitando essas casas e estando em casa das pessoas. Eu imagino que a Sandra até se calhar é um bocadinho como quando a pessoa está a falar com um psicólogo e acha que ele não está a ler os pensamentos. Eu imagino que hoje estava a pensar nisso, até estava a comentar isso há bocado. Imagino que a Sandra vem cá a casa e pensa, ok, esta casa é desse tipo, ok, já viu o que é que fizeram?
Sandra Marques Pereira
Vou já tirar o retrato.
José Maria Pimentel
Fizeram o que eu li, já estou a perceber. Ah, tem isto assim? Deve ser.
Sandra Marques Pereira
Não, eu não sou nenhuma...
José Maria Pimentel
Mas isso é quase a menos inevitável.
Sandra Marques Pereira
Eu acho que é evidente que a casa diz algumas coisas, mas quer dizer, eu acho que as pessoas também são muito mais complexas do que isso. E eu também não tenho objetivos nenhums de psicologizar
José Maria Pimentel
análises, nem... Não, não tenho nada... A questão é se não é inevitável pensar isso, é que isso nós não controlamos. Não,
Sandra Marques Pereira
não, é evidente que tenho algumas coisas que ligo mais do que as outras pessoas e que interpreto mais do que as outras pessoas. E depois isto agora não tem nada... Quer dizer, eu também misturo na minha cabeça, quando não estou a trabalhar, coisas do meu próprio quadro estético, não é? Ou seja, não estou sempre em análise e, portanto, há ali... Mas vou dizer, eu adoro ir a casas.
José Maria Pimentel
Adoro. Pois, imagina, exatamente.
Sandra Marques Pereira
Adoro, adoro, adoro. É
José Maria Pimentel
muito informativo. E por acaso, uma coisa que eu estava a pensar há bocadinho, não, quando estava a preparar o episódio, e até é bom para nos fazer aponte para a Lisboa atual, aqui falando no caso de Lisboa, porque é o caso que a Sandra conhece melhor e eu mais ou menos também, hoje em dia deve ser relativamente possível de nós mais ou menos mapearmos a alocação, a afetação das pessoas às várias zonas da cidade com o suporte do estilo de vida que têm. Por exemplo, o estilo de vida, se são lisboetas ou se vieram de fora, por exemplo. Para um lisboeta, será porventura mais importante viver no... Se estiver nascido lá, sobretudo, importante viver no centro, por exemplo, enquanto para alguém que vem de fora... Pelo menos Eu sinto um bocadinho isso, não é uma coisa tão importante para lá do lado funcional, por exemplo.
Sandra Marques Pereira
Nós fizemos lá no ICT um projeto sobre... E que também desmistificava, tentava desmistificar algumas ideias e que eu gostava de continuar a trabalhar nisso porque estas transformações que estão em curso vão mudar um bocadinho. Que era sobre as trajetórias residenciais das pessoas, ou seja, de onde é que as pessoas vêm, de onde é que as pessoas se instalam, para perceber no fundo como é que o território da cidade e da área metropolitana se constituiu, porque na realidade ele constitui-se a partir da instalação de pessoas que vêm de diferentes zonas. A primeira coisa que é bom desmistificar é que a área metropolitana não se criou às custas da expulsão das pessoas do centro da cidade para fora. A área metropolitana e as periferias, chamemos-lhes as periferias da cidade de Lisboa, criaram-se, e isto no Porto é igual, com movimentos de pessoas que vêm de fora e que se instalam, na maioria dos casos, diretamente nessas periferias. Depois houve muitas pessoas que saíram da cidade de Lisboa ou que foram para zonas novas, numa relação em que fizeram o trade-off entre as opções e optaram por isso. E isto tem a ver com o ciclo da cidade e com aquilo que eu estava a dizer há bocado, que são os ideais urbanos e habitacionais que são muito mutáveis ao longo do tempo e que são socialmente construídos. Ou seja, nos anos 60 e 70, quando se dá o grande momento de construção, de consolidação da área metropolitana de Lisboa, a ideia da casa velha era muito desvalorizada. O centro histórico era uma coisa hiper desvalorizada. E isto é uma coisa que não é específico nosso, quer dizer, é uma coisa que aconteceu e portanto as pessoas tinham como vontade ter, por um lado, a possibilidade de aceder à propriedade, era uma coisa recente, como eu estava a explicar, porque a propriedade horizontal só aparece nos anos 50 e era de facto um achievement, a propriedade. Poder comprar uma habitação era um achievement. E depois, ter uma casa nova, quando digo nova não era necessariamente nova, mas moderna, isto é, podia ser nova em segunda mão, podia ser moderna em segunda mão, era um outro aspecto fundamental, porque as condições habitacionais das casas, que na altura não se diam antigas, eram mais velhas, e as casas que se dão hoje são mais velhas, era muito mais. E, portanto, esse processo acontece. E, portanto, nessa altura, nessa altura, nos anos 60, 70 e 80 e até 90, não era... E não é por acaso que a cidade no centro se vai degradando sem grande capacidade de atração das pessoas. E, portanto, quando há bocado me diziam um Lisboeta típico, e foi isso que me disse, um Lisboeta, Lisboeta, que quer ficar no centro, não é bem assim. O que é que muda aqui? Muda um crescimento da valorização do centro histórico e que se prende com questões culturais a nível internacional, em que a reabilitação urbana e a valorização dos centros históricos começa-se a valorizar em termos internacionais e também cá, e cá torna-se mais evidente nesta década, mas começou, havia nichos e segmentos sociais que já estavam a valorizar, sobretudo pessoas com nível de instituição superior, etc, o centro da sociedade.
José Maria Pimentel
Mas o nosso estava mais depauperado, menos bem mantido do que o de outros capitais ou não? Parte da razão para as pessoas preferirem viver na periferia porque tinham condições melhores, é o simples facto de que as casas no centro não foram bem mantidas, até porque custa mais restaurar uma casa do que construir uma nova e, portanto, até do ponto de vista estritamente orçamental de políticas públicas, poderia valer mais a pena construir casas novas do que estar a reabilitar o centro, portanto o centro ficava em más condições e as pessoas nunca iam para lá. E a minha dúvida é se isto era especialmente o caso, se isto é verdade, isto é o que eu vou dizer.
Sandra Marques Pereira
Há um conjunto de fatores, por exemplo. A propriedade era muito importante para as pessoas, ter acesso à propriedade. E nos centros urbanos o arrendamento era dominante. Só em 2011 é que na cidade de Lisboa nós temos um 50-50, uma partição entre a porcentagem de arrendamento e a porcentagem de propriedade. Esse é um primeiro fator. As possibilidades de comprar uma casa no centro histórico eram muito menores do que... Estou a perceber, sim, sim. Isso era um fator. Por outro lado, eram casas antigas e, de facto, a ideia de reabilitar, se eu escolher uma casa nova, isso era outro fator muito importante. Retomando a sua pergunta anterior, me perguntava se era só aqui ou se era mais aqui ou mais aqui o nosso
José Maria Pimentel
centro.
Sandra Marques Pereira
É uma questão de decalage de tempo. Nova Iorque também teve um processo de cadência, e é muito engraçado ver isso em alguns filmes, teve um processo de cadência do centro de Manhattan nos anos 70, muito forte. E
José Maria Pimentel
com um pico de insegurança. E
Sandra Marques Pereira
com um pico de insegurança e com... Enfim, muito, muito forte. E outras cidades também tiveram isso. E, aliás, o problema que se debatia ainda nos anos 90, nomeadamente em termos internacionais, lembro-me de uma conferência que fui para aí em 2010, em 2008, o tema da conferência que era da rede europeia de Habitação, de Investigação em Habitação, era shrinking cities. Era isto mesmo, ou seja, era... E nós estávamos a falar em muitas... Isto seria na primeira década, não me lembro exatamente quando, mas na primeira década do século XX, ainda um dos problemas em muitas cidades era ainda esta questão do recuo demográfico das cidades. Há aqui uma confluência de tempos e uma sobreposição de tempos, não é? E algumas cidades, o processo começou anteriormente, mas o caso de Lisboa e o caso do Porto tem fatores interessantes. Por um lado, porque é que isto se atrasou um bocado? Há fatores gerais, há fatores políticos, há fatores internos, há fatores externos. Em primeiro lugar, porque a nossa modernização foi tardia e esse acesso a essas coisas, tipo a propriedade, uma casa nova modernizada, etc., é uma coisa que nós só verificamos nos anos 90, de facto. Os dados estatísticos marcam ali uma grande diferença na década de 80 e na década de 90, e aí a entrada na União Europeia e todo o processo que está aí à volta teve uma importância grande. Isto é um dado fundamental. Mas depois, aqueles fatores que já lhe expliquei também eram a questão da propriedade, etc. E depois o processo é engraçado, é interessante, porque o incêndio do Chiado é uma espécie de golpe de misericórdia na realização. O CEAD, nessa altura, estava completamente cadente. Começa a haver um debate sério sobre a necessidade de realização, mas é uma coisa lenta. Aliás, aquela realização demorou imenso tempo. E nós entramos na década, na primeira década do século XXI, em que, havendo já interesse, quer do ponto de vista da procura, quer do ponto de vista até dos construtores e dos promotores pela rehabilitação, as condições não são favoráveis. Há uma década relativamente estagnada, embora que se comece a verificar a saída para o centro. E depois vem a crise. Mas há aqui um fator que raramente se fala e que é muito engraçado. Em 2006 é criado o grupo de, o gabinete, agora não me lembro do nome, o gabinete de revitalização da Baixa, que era liderado pela Maria José Nogueira Pinto e que tinha figuras muito importantes, ou seja, tinha alguns elementos que iam ser figuras chave neste processo, de forma direta ou indireta, nomeadamente o Manuel Salgado. Isto em 2006. É o Comissariado de Abaixo Asseado. E se nós formos ver o documento desse comissariado de 2006, já estava lá quase tudo o que se veio a passar. Ou seja, tinha três ou quatro estratégias que se vieram a verificar e que depois, evidentemente, tiveram outras concretizações, dependendo de fatores externos e da nossa própria conjuntura. Mas era internacionalização, investimento também no turismo, reabilitação do centro histórico e valorização da zona ribeirinha, portanto o enreencontro da cidade com a zona ribeirinha. E uma coisa fundamental, que é o que em sociologia, ou em geografia, o conceito é de um geógrafo, do David Harvey, se chama empreendedorismo urbano, ou seja, que é uma forma de gestão. As cidades estavam e estão sem dinheiro, sem criação de... Não tinham dinheiro e a primeira década do século XX, para nós, foi terrível. Do século XXI. Do século XXI, com uma dívida, as cidades tinham uma dívida brutal. E essa ideia do empreendedorismo urbano, o que vai fazer é uma gestão da cidade em que se vai basear na ideia de parcerias público-privado. A ideia é ir buscar dinheiro, é
José Maria Pimentel
investir
Sandra Marques Pereira
nas infraestruturas e ir buscar dinheiro aos privados para a reabilitação do edificado. De certa forma, isto foi o que se verificou. Depois é evidente que isto teve nuances muito grandes, enfim, por fatores externos, pela liberalização da lei das rendas, etc. Mas há um projeto, havia lá uma ideia que era a única ideia que não se concretizou, que era aumentar a habitação para as classes médias, pelo contrário.
José Maria Pimentel
Naquela zona. Naquelas zonas,
Sandra Marques Pereira
no centro histórico. Mas esse momento é um momento de charneira de definição da estratégia que se vem a verificar. Depois, houve um conjunto de procedimentos no sentido de concretizar essa estratégia e houve fatores que ultrapassaram completamente os intervenientes desse processo. Muniel Salgado é aqui uma figura fundamental
José Maria Pimentel
no caso do
Sandra Marques Pereira
Lisboa. É que é uma espécie a criatura...
José Maria Pimentel
Manuel Salgado que era o vereador da Câmara Cuplor do urbanismo. Sim.
Sandra Marques Pereira
E ele, se nós, quando fizemos a história, quando nós fizemos a história da cidade, vai ser a par do Duarte Pacheco dos anos 40, etc. Ele vai ter um peso fundamental porque desenhou completamente, não sozinho, mas teve uma importância determinante na cidade e na imagem da cidade que nós temos hoje, que é uma cidade completamente diferente. O processo, eu acho que, isto é agora uma intercessão pessoal, entre o que aconteceu foi que de certa forma, em aquela expressão, A criatura ultrapassou o criador, sabe? Ou aqui um conjunto de efeitos não pretendidos. Eu acho que as pessoas não são más por natureza, não querem, quer dizer, não têm a teoria da conspiração e, de facto, acho que este boom galopante dos preços, etc, etc, é um efeito não pretendido. E esta abertura total, esta internacionalização não estava nos planos. Total.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. Não, quer dizer, parte delas estaria nos melhores sonhos, parte delas estaria no pesadelo. Exatamente. Ou seja, no sentido em que... É muito engraçado ver como é que o
Sandra Marques Pereira
plano e os defeitos...
José Maria Pimentel
Isso deve ser muito interessante por acaso ver isso. Ver o que depois aconteceu. Mas
Sandra Marques Pereira
ao mesmo tempo, de vista da Maria José Nogueira Pinto no Correio da Manhã é muito engraçada.
José Maria Pimentel
Da altura?
Sandra Marques Pereira
2006, em que, portanto, a ideia é abrir a sociedade, internacionalizar, promoção com os privados, porque nós não temos autonomia financeira para investir na zona ribeirinha, etc.
José Maria Pimentel
Olá! Antes de voltarmos à conversa, deixem-me lembrar-vos que podem dar o vosso contributo para a continuidade e desenvolvimento deste projeto. Visitem o site 45graus.parafuso.net barra apoiar para ver como podem contribuir para o 45 Graus, através do Patreon ou diretamente, bem como os vários benefícios associados a cada modalidade de apoio. Se não puderem apoiar financeiramente, podem sempre contribuir para a continuidade do 45° avaliando-o nas principais plataformas de podcasts e divulgando-o entre amigos e familiares. Muito obrigado pelo vosso apoio e agora, de volta à conversa. Isso é giro porque leva-nos à questão do problema atual da habitação de Lisboa, que lá está que tem mais a ver com políticas públicas e que eu também queria discutir consigo. Quer dizer, temos uma série de benefícios, pelo menos na minha opinião, e depois temos problemas que são mais do que um e são diferentes, não é? E não há necessariamente consciência em relação ao que entra na categoria
Sandra Marques Pereira
de problemas. Exatamente.
José Maria Pimentel
Acho que há um problema que é, mais ou menos, inegável, que é o aumento grande, o aumento brutal do preço da habitação. Os dados que eu encontrei era um aumento de 66% desde o início de 2016. Isto é o preço médio de Lisboa, o que significa que, como o Misterão desviou o padrão, significa que há sido um aumento ou menos, tendrá, julgue eu se era periferia, mas se fomos mesmo para o centro, o aumento será ainda maior do que isto. Isso tem, obviamente, um impacto grande no sentido em que, para além deste impacto relativo, que já disse, é grande, tem um impacto absoluto grande porque a habitação tem um preço, tem um peso grande no orçamento das pessoas que tenham que ou pagar uma hipoteca ou pagar uma renda. E eu próprio, em certo sentido, quando comprei a casa, senti esse efeito na pele, embora tenha tido a sorte de comprar mais ou menos no início. Portanto, este é um efeito mais ou menos objetivo.
Sandra Marques Pereira
Sim, e mais ou
José Maria Pimentel
menos incontestável. Incontestável, e que não se sente só aqui. Aliás, isto até é interessante dar um passo atrás porque nós tivemos um influxo de investimento estrangeiro que veio associado, que aconteceu mais ou menos desde 2014, aliás é muito recente, e está associado a turismo, ao aumento do turismo, há uma antecipação da continuação desse aumento e, portanto, há um investimento para ter retorno. Também há pessoas que vêm viver para cá, estrangeiros, pessoas se calhar já com alguma idade, alguma idade, 50, 60 anos, mas que já com vida feita, digamos assim, e também estrangeiros atrás de uma... Mais novas, as do Bom Clima, das startups e por aí. E depois temos aqueles casos, mas que serão menos representativos, tipo Madonna e afim. Aliás,
Sandra Marques Pereira
acho que ela já se foi embora.
José Maria Pimentel
Ela já deve ter ido embora e o tempo que teve não há de ter participado muito na vida local, mas essas são mais nas vistas do que provavelmente o efeito que tem. Mas, pronto, isto para dizer que há aqui uma série de causas para este efeito, a principal delas será o turismo, julgo eu, aquela que tem o maior peso e o turismo faz-se sentir no preço das casas, mas também faz-se sentir em tudo o que tem a ver com serviços prestados para o turismo, como por exemplo a restauração. Imagino que já tenha sentido mesmo que eu, que é perceber que os preços das... Que depende porque continua a haver bolsas não vocacionadas para o turismo, mas nota-se um aumento do preço da restauração e nota-se sobretudo o surgimento de restaurantes cujo menu está claramente feito com preços de outros países. O que não tem mal nenhum, é normal que eles façam isso. Mas nós com o nosso nível de vida ressentimos o que é normal. Depois há outro efeito que tem que ver com aquilo que se chama gentrificação, que no fundo é... Se eu definir mal, corrija-me, mas aquilo que nós chamamos de gentrificação pode surgir por dois motivos. Por haver pessoas com rendimento superior àquelas que lá estão e que no fundo decidem mudar ou há um movimento de pessoas com rendimento superior para uma determinada zona e portanto vão acabar por desalojar as pessoas que lá estão por um simples efeito de preço das casas e daquelas pessoas terem incentivos para vender. E depois há outro efeito que eu acho também que há dentro desta categoria que é a mesma coisa a acontecer, mas por motivos de investimento, que no nosso caso vem muito de fora, para construir habitação para aluguer, para turismo, por exemplo.
Sandra Marques Pereira
A questão da gentrificação, a gentrificação é, no lado do censo, é a substituição de classes mais baixas por classes mais altas. Assim, dito de forma muito básica. Mas há um conceito mais interessante e é mais que dá a maior. Os conceitos que vêm da academia popularizam-se e depois... São detropados. Exatamente. O outro é o displacement. E neste displacement nós temos dois, pelo menos, depois há outros, mas há dois tipos de displacement importantes. O primeiro é o displacement direto, isto é, há pessoas com mais dinheiro que vêm e as outras têm que sair e é o que nós verificamos, quando se falou muito na questão dos despesas, etc. É o que nós verificamos e já lá vamos se é para o turismo ou se é para outra coisa e depois há o displacement indireto. E o displacement indireto é importante porque isto quer dizer que essas pessoas com mais poder de compra vão para aqueles territórios, encarecem-nos e impossibilitam outras que estavam nesse movimento de irem para aí. Porquê que isto é importante? Porque o que nos estava a acontecer era exatamente a primeira década do século XXI e iniciou-se esse processo de volta, não é volta, mas de descoberta do centro histórico por essas novas classes médias, mais escolarizadas, que estavam aí para o centro e que tinham essa capacidade. Quer dizer, a habitação não era assim tão cara e portanto tinham essa capacidade.
José Maria Pimentel
E tinham... Já gostavam de um país, a gente já falou por isso há bocadinho. E tinham razões para gostar de viver no centro, até de estilo de vida.
Sandra Marques Pereira
Quer de estilo de vida, quer modelo habitacional, ou seja, mesmo a ideia... Estar perto de serviços, por exemplo, de restaurantes, de... E portanto, porque essa ideia tem a ver com aquilo que eu estava a dizer há bocado, a valorização do centro histórico como representação ideal em certos grupos sociais mais recente. Mas depois, para quê? Se é por causa do turismo, é uma mistura e há aqui um fator importante. É evidente que nós tivemos um crescimento do turismo muito grande, mas é evidente que a habitação hoje em dia é isto. Também é um desses conceitos que viajou da academia para a sociedade, que é a financeirização da habitação. Ou seja, a habitação transformou-se essencialmente no ativo financeiro. Aliás, porque há muitos investidores que depois delegam aquilo, põem aquilo no turismo ou não. E isso é um fator. Agora, há uma coisa que eu acho que é importante perceber, que são aqui alguns dados importantes. Isto é um problema, que não é um problema nosso, é um problema que está neste momento a afligir, bem o turismo pode, como o maior homem da fazenda, mas que está neste momento a atingir muitas cidades a nível internacional. E que se traduz numa coisa, há um indicador muito interessante que revela porque é que é um problema das cidades. O diferencial entre o preço médio, quer para arrendamento, quer para venda, entre na cidade e no país cresceu imenso. E isso é uma coisa muito engraçada. Por exemplo, Lisboa, há uns dados, mas os dados, Por exemplo, o INE não tem estes dados, quer dizer, também tem estes dados, nós também podemos fazer, mas em termos comparativos com outras cidades encontrei isto. Às vezes são as consultoras e não sei o que que fazem. Havia um da Deloitte, não é? Exatamente, que fazem estes estudos. Exatamente. E eu até tinha visto outro que ainda tinha mais países europeus, porque esse só tinha hoje a União Europeia, se não me
José Maria Pimentel
engano. Sim, julgo que sim.
Sandra Marques Pereira
E neste Portugal, ou seja, Lisboa estava a nível de venda no Pai no Quinto, ou como sendo o maior, com o diferencial maior, que eram 200 e tal, ou 300, um peso muito grande. E o arrendamento também, um bocadinho menos, o diferencial era um bocadinho menos, portanto há aqui uma decalage muito grande. O nosso problema...
José Maria Pimentel
Era Lisboa e Paris, salvo erro.
Sandra Marques Pereira
Neste caso é porque eu vi os dois, eu vi dois, vi esse e vi um que tinha as cidades todas e o Moscovo, mas Paris também, Paris era muito elevado mas não sei se o diferencial era assim tão elevado. Mas há aqui um problema, e o problema caracteriza todas as cidades, é que a decalage, ou seja, os preços subiram imenso na sequência desse investimento financeiro, e ao contrário dos salários e do rendimento de trabalho que se não estagnou, às vezes até regrediu e precarizou. No nosso caso é particularmente grave porque os salários médios são muitíssimo baixos E mesmo o diferencial, e isso é engraçado, o diferencial do salário entre Lisboa e o resto do país não é comparável com este
José Maria Pimentel
diferencial. Existe, mas não é proporcional. Claro. Nem
Sandra Marques Pereira
pouco mais ou menos. E portanto, estes dois ou três dados são questões que mostram claramente que estamos aqui perante um problema, essencialmente, das cidades e que, no nosso caso, exatamente porque temos uma estrutura laboral precária e deficitária do ponto de vista dos salários, a situação é muitíssimo, é ainda mais grave, sendo que é bastante grave já também nas outras cidades. Portanto, o que nós estamos aqui a verificar é basicamente, a nível internacional, uma mudança muito grande do ponto de vista estrutural da habitação, das condições de vida na habitação, no setor da habitação. E uma delas, e que tem várias componentes, a característica maior é este aumento exponencial dos problemas de nacionalidade habitacional, nomeadamente entre as classes médias, mas também uma outra questão e que se relaciona com o que estávamos a falar há bocado, que é uma dificuldade crescente de acesso à propriedade. E as pessoas são removidas ou remetidas obrigatoriamente para o mercado de arrendamento, que também é um mercado não só muito difícil, porque os preços estão muito e muito instáveis. E, portanto, se nós já tínhamos por parte das gerações, não eram só as gerações mais novas, a partir dos 50 para baixo e até antes, uma grande precariedade laboral, agora sobrepõe-se uma grande precariedade habitacional. E isto é uma situação nova. As políticas públicas, por outro lado, a nível internacional recuaram desde a 1 década do século XX. A Holanda, que tinha um estado forte em termos de habitação, liberalizou, se quisermos. Só para terminar esta questão, o que aconteceu basicamente é porque isto é um problema das cidades e porque, ou seja, porque no fundo há um descolamento dos mercados imobiliários locais. Sim, exatamente. Ou
José Maria Pimentel
seja, o mercado local entra no global. No fundo, o mercado da habitação é aquilo que, não entra bem nessa categoria, mas é aquilo que a economia chama um bem não transacionável. No sentido em que, como não é, não se pode vender propriamente para o estrangeiro, não se pode pegar num lote e vender para o estrangeiro. E se pudesse fazer, o valor alterava-se porque também depende do enquadramento, no fundo depende do nível de vida local. Com o turismo e não só, mas sobretudo com o turismo, que é uma exportação de um serviço, isso deu-lhe isso um bocadinho, não é? Por isso é que nós entramos nesse mercado global, não é? De repente o valor de uma casa em Lisboa não é só o valor de um português ou alguém que vive em Portugal, que lá vive e faz a sua vida profissional cá, mas também o valor de um turista que vem cá e visita a cidade e
Sandra Marques Pereira
faz a sua vida cá. E de um bem transacionável num mercado global.
José Maria Pimentel
Sim, Mas esse valor depende deste, não é? A transação no mercado global. Mas é
Sandra Marques Pereira
que isso não está só associado ao turismo. Eu acho que isso também tem a ver... Quer dizer, o turismo é importante, e é muito importante, mas não é o único fator. Quer dizer, como disse há bocado e bem, há muita gente que veio viver, nós ainda não temos dados.
José Maria Pimentel
Mas essas pessoas que vêm viver para cá...
Sandra Marques Pereira
Não vêm para o turismo.
José Maria Pimentel
Não, elas não vêm para o turismo, mas aí isso é mais orgânico no sentido em que elas vêm viver para cá e passam a estar inseridas na sociedade e na economia local e, portanto, esse encarecimento que existe na habitação por essa maior procura também se reflete no resto da economia e, portanto, esse pode ser um efeito mais dilatado no tempo mas vai surgir. Enquanto o turismo é muito mais perigoso nesse sentido porque nós hoje em dia podemos ter um boom turístico e amanhã deixar de ter. Mas
Sandra Marques Pereira
é que isso não é só uma questão de boom turismo, é uma questão de investimento, investimento financeiro na habitação, que não é necessariamente dirigido ao turismo. Eu também não sei, eu não sei, por exemplo, e aliás, agora com a história do alojamento local. Fala-se muito, e até com as medidas do governo no sentido de, como eles dizem, migrar, haver uma migração do alojamento local para o arrendamento de longa duração. E isso não deixa de ser um investimento, os preços não vão baixar só por si. Mas
José Maria Pimentel
a questão é, os preços aumentaram porque houve um aumento da procura, isto em si não diz nada, não tem nem que a precisar de preços, não é que ela vem. Mas há uma parte disto, e isso também é importante, acho que é outro ponto importante, que tem que ver com nós estarmos a viver há muitos anos num ciclo de taxas de juros baixíssimas e, portanto, há uma canalização de investimentos para ativos imobiliários que depois vai deixar de existir, o que não deixa de criar efeitos sobre a vida das pessoas. Aliás, precisamente por deixar de existir é que convém acautelar porque significa que não pode ficar alto para sempre. Mas a minha intuição seria que este aumento da procura tem que ver com uma expectativa de um determinado valor daquelas casas que tem que ver com o que, entretanto, as pessoas que lá vão viver ou turistas que lá ficam alojados temporariamente têm que ver com o valor que essas próprias pessoas lhes dão. Em termos de políticas públicas, eu pensando sobre isto, eu acho que... Quer dizer, há aqui vários desafios. No fundo, o desafio, em certo sentido, é não é aquele dizer em inglês, mais ou menos traduzido, é não deitar fora o bebé com a água do banho. No sentido de tentar... E isto pode ser interpretado de duas maneiras mais ou menos opostas. Por um lado, não deitar fora o bebé com a água do banho no sentido em que tentar corrigir o problema, mas sem afugentar quer o turismo, quer o investimento estrangeiro, quer a vinda até de pessoas do estrangeiro para viver cá, mas também noutro sentido que parece mais ou menos antagónico e que às vezes me parece também o esquecido quem está do outro lado desta contenda, que é se nós deixarmos que o centro da cidade se esvazie dos habitantes, isso em si mesmo levará a que no longo prazo ele se torne desinteressante para os turistas também.
Sandra Marques Pereira
Não sei, não tenho a certeza.
José Maria Pimentel
Eu imagino que sim, não é? Eu já tive essa experiência de ir a cidades. Nem todas acontecem isso, mas já há cidades em um país que a pessoa está no centro e pensa isto já não é...
Sandra Marques Pereira
Não, é uma coisa muito feita, não é? Muito...
José Maria Pimentel
Para além de tirar a vida social daquele sítio, a sociedade. No fundo deixa de existir uma vida local naquele sítio, deixa de haver habitantes locais, passa só a ser um sítio de passagem.
Sandra Marques Pereira
Voltando à questão das políticas públicas, o problema é que as cidades, e aí volta aquela coisa que estava a dizer do empreendedorismo urbano. As cidades estão muito dependentes do investimento privado e dessas fontes de financiamento porque não têm autonomia para isso. Por outro lado, é um assunto que tem que ser trabalhado com pinças porque, na realidade, num país como Portugal, que acabou por estar muito dependente, as soluções de saída da crise que fizermos acabaram por estar muito dependentes do investimento no turismo, há muita gente que depende do turismo. É evidente, não é uma questão de matar a galinha dos ovos de ouro, mas é assim, de repente não se vai fazer isso. Por outro lado, nós estamos a falar de investimento, estamos a falar que o mercado local entrou no mercado global e, portanto, há muitas lógicas que passam por uma questão de regulação que tem que se colocar a um nível internacional. Para além das políticas públicas, as políticas públicas da habitação e imagino que de outras coisas, têm que mudar um bocado a forma de atuação face ao novo contexto, ao novo contexto da globalização e, por exemplo, à própria economia digital. Uma das questões que hoje em dia se coloca mais no alojamento local também, e que Paris e não sei o que estão a colocar, é também como é que se regula as plataformas, que são as plataformas da chamada economia digital, inumeadamente em termos de políticas fiscais, porque não se
José Maria Pimentel
cobra
Sandra Marques Pereira
nos países onde é que eles pagam impostos e que impostos
José Maria Pimentel
são com criatividade,
Sandra Marques Pereira
porque não têm presença física, Ou seja, na realidade é o que nós vamos ter daqui em diante, esta coisa da economia digital é uma coisa fundamental e qualquer dia até temos, provavelmente, a mediação imobiliária também neste registro de plataformas.
José Maria Pimentel
Sim, acho que já temos até um bocadinho.
Sandra Marques Pereira
Este problema que nós estamos a falar, problema específico, é um problema das cidades e dos territórios metropolitanos e, portanto, tem que haver políticas públicas específicas ou com impulsos, diretos ou indiretos, por parte do Estado Central, com objetivos espacializados e claramente espacializados, porque isto é uma questão destes territórios. Hoje o que nós temos é semelhanças muito maiores entre os problemas que se verificam, por exemplo, entre Lisboa, Paris e Berlim, do que entre Lisboa e outros territórios do país. Esse aspecto é fundamental. Quanto ao turismo, é evidente, não é muito a minha área, mas eu acho que era importante que também não se… o turismo é evidente que teve aqui um peso fundamental, mas o fator amontante é ter-se, e isto a nível internacional, a habitação ser hoje em dia um ativo financeiro. Seja ela destinada ao turismo, é evidente que o turismo vai continuar, mas pode ser destinada ao turismo, e é muito destinada ao turismo, mas pode ser destinada a outro tipo de atividades, por exemplo, ao arrendamento de longa duração.
José Maria Pimentel
Por locais, é isso?
Sandra Marques Pereira
Duvido que seja por locais, porque isto é uma incógnita. Mas
José Maria Pimentel
a questão é, a entrada do imobiliário português no mercado global por si só não faz necessariamente aumentar os preços. Faz. Porque a procura cá continua a ser a mesma.
Sandra Marques Pereira
Porque sincroniza. Faz, porque sincroniza. A questão é essa. Imaginemos, no mercado global há vários circuitos, vários submercados. E, portanto, os valores da habitação no nosso mercado são balizados em função dos preços desse mercado internacional. Mas eles
José Maria Pimentel
dependem da procura, de quem compra cá. Não
Sandra Marques Pereira
é de quem compra cá, é do investimento, aquilo é um investimento financeiro, está a perceber? Não é para quem compra para já, porque quem compra não é quem compra cá.
José Maria Pimentel
Mas quem não é de cá compra...
Sandra Marques Pereira
Mas não compra para utilizar, compra como investimento. Como
José Maria Pimentel
investimento, mas o que eu quero dizer com isto é...
Sandra Marques Pereira
É um bem ativo, é um bem que recebe. Sim, sim, sim.
José Maria Pimentel
Vamos supor que estamos durante a crise ou auguros pré-2014, pré-esta subida recente e há um estrangeiro que decide, em vez de comprar um imóvel, tem poupanças para investir e em vez de comprar um imóvel em Berlim, vamos supor, a um alemão, decide comprar cá. É obviamente que isso é um efeito pequeno, seria sempre um efeito marginal, mas isso em si mesmo não vai fazer aumentar o preço. O que vai fazer é comprar a casa cá, ele compra a casa para investir e depois vai vender a casa ou arrendar ao preço que puder, consoante a procura cá. Agora, aqui paralelamente, parece-me, mas posso estar enganada, há um aumento da procura cá, seja por via do turismo, seja por via também dos negócios e de, quer dizer, no fundo sempre vindo do estrangeiro, ou seja, uma procura. Porque a procura que cá existia continua a existir. O rendimento das pessoas não aumentou muito, infelizmente. Depois há aquilo que nós falámos de mesmo as pessoas de cá que investiam, que tinham depósitos, por exemplo, começaram a investir na habitação. Obviamente que há isso tudo, claro que sim. Mas, quer dizer, ia ser um fator mais conjuntural, se quisermos, esse fator do... Ou pelo menos esperemos que seja conjuntural. Esse investimento na habitação é detrimento de investir em ações ou pôr em depósitos ou qualquer coisa que rendesse um bocado mais. Essa seria a minha intuição, não é? Que o simples facto de Portugal entrar num mercado global...
Sandra Marques Pereira
Entra num mercado global e porque as pessoas investem num bem... Como podiam investir aqui? As pessoas nem sabem. Os chamados fundos de investimento imobiliário.
José Maria Pimentel
Imaginemos,
Sandra Marques Pereira
eu vou ao meu banco em Berlim, por exemplo, sou alemã, e invisto num fundo que por acaso tem casas em Portugal e portanto, ou seja, é uma coisa muito mais complexa. Sim, claro. Ou seja, o mercado hoje em dia, o mercado este, isto é um mercado financeiro e portanto é uma coisa muito, em que não há uma relação direta, está a perceber, entre quem compra, quem vende e quem financia. Porque a procura por aquele bem financeiro, que por acaso é uma habitação que se situa na cidade de Lisboa, na cidade do Porto, aumentou imenso em termos internacionais. E como a procura aumenta, é evidente, mas e sobretudo vai valorizar, vai classificar o valor daquele imóvel em função das expectativas e dos preços do mercado internacional. É uma questão de investimento financeiro.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. Eu estava a pensar, e se calhar até terminamos assim, a conversa já vai a longo. Gostava de saber a sua opinião. Há um problema imediato e há um problema mais de longo prazo. O problema de longo prazo, no fundo, é aproveitar esta onda da melhor forma, tentando minimizar-lhe os riscos e aumentar os benefícios. E depois há um problema imediato e evidente, que é o problema de, como a Sandra falava há bocadinho, da discrepância entre os salários. E que tem a ver com, por exemplo, se amanhã as pastilhas elásticas dobrarem de preço, eu não sou muito consumidor de pastilhas elásticas, vou ver se depois quer, não penso mais do que cinco minutos sobre o
Sandra Marques Pereira
assunto. Mas é um bem essencial.
José Maria Pimentel
Não, não, porque a pastilha elástica custa cinco cêntimos ou dez cêntimos, e portanto se dobrar para dez ou vinte isso não me causa uma grande moça. Agora, se a renda que eu pago dobrar de 500 para 1000 euros, são mais 500 euros, o efeito absoluto daquilo é gigante. Que eu acho que é o grande problema aqui, não é? Quer dizer, um aumento de 66%, por exemplo, aqui, significa um aumento, em termos absolutos, muito grande.
Sandra Marques Pereira
E sobretudo com um rendimento
José Maria Pimentel
baixíssimo. Exatamente, com um rendimento baixíssimo e depois cria taxas de esforço muito grandes. Esse é o problema de mais curto prazo que precisa ser resolvido. E depois, a longo prazo, nós não sabemos o que é que vai acontecer aí, não sabemos se o turismo se vai manter, se o interesse mais no sentido do lado estrangeiro se vai manter, não sabemos o que é que vai acontecer a essa atratividade do investimento no mercado imobiliário. Temos também a questão de, quer dizer, num nível mais fino, de também tentar perceber qual é o investimento estrangeiro que surge, porque há investimento estrangeiro que nos pode beneficiar imenso, até por efeitos indiretos que tem, sabe, porque cria emprego e não sei o quê, e depois há outro investimento estrangeiro que pode, que muitas vezes tem a estar associada à corrupção, por exemplo, que os vistos gold, por exemplo, noutros países tiveram problemas desse género, porque criou uma óbvia promiscuidade entre poder político e poder económico, e põe nas mãos de poucas pessoas decisões desse género. E isso tudo parece-me que são desafios para o futuro, a questão que eu estava a lidar há bocadinho de como assegurar que no fundo a cidade não perde a alma. Pelo menos para mim isto vai para lá de uma espécie de direito das pessoas a viver num determinado sítio, que eu pessoalmente acho difícil de justificar. Obviamente que a vida da cidade é a vida dos habitantes e não de quem está de passagem. Portanto, se há uma determinada zona que deixa quase ter habitantes, é inevitável que ele vá ter um efeito pernicioso a prazo, porque desce ou retira ali uma teia de socialização que deixa de existir. E, portanto, depois aqui há uma série de coisas em cima
Sandra Marques Pereira
da mesa.
José Maria Pimentel
Pode pegar-nos o que quiser, mas terminamos assim. Eu gostava de saber a sua visão para
Sandra Marques Pereira
o futuro. Então, o que estava a dizer há bocado. Em relação às políticas públicas de atacar esse problema, em essência, imediato e urgente, que aliás não começou agora, começou em 2016, 2017, da acessibilidade à habitação, do aumento brutal do preço. Nós já estamos a assistir a medidas, só que tem um problema, é que elas estão a ser lentas, não é?
José Maria Pimentel
Pois, e o problema é urgente. E o problema é imediato,
Sandra Marques Pereira
é urgente, aliás não é por acaso que a Secretaria de Estado é criada, a Secretaria de Estado da Habitação que não existia durante 13 anos é criada em 2017, porque há a percepção de que há um problema novo que surge e que é um problema de acessibilidade designado da acessibilidade da habitação às classes médias, que é um grupo social particularmente importante para os governos. Agora, como lhe digo, os Estados têm neste momento as medidas de política do Estado, as da Administração Central, portanto foi aquele programa de arrendamento acessível que não funcionou, não sei se tem noção, que era os 20%. Teve
José Maria Pimentel
pouco adesão, não foi?
Sandra Marques Pereira
Teve pouco adesão, tem dois problemas. Por um lado é porque o critério de acessibilidade, porque definiu o critério de acessibilidade 20% abaixo do valor de mercado, e isso já é um valor muito alto para as pessoas. Mas eu acho que também tem um problema da operacionalização que tem a ver com a plataforma de funcionamento, que não faz o match direto entre os potenciais arredentais e os potenciais inclinos e, portanto, os potenciais perpetuais e, portanto, aquilo não funciona. Até à data deve ter 100 ou qualquer coisa, contratos realizados. Já percebemos que os princípios são bons ou a intenção é boa, mas o programa não funciona. Agora o que nós verificamos é que são as duas cidades e sobretudo as mais afetadas pelo problema, nomeadamente Lisboa, que está a começar a atacar o problema de forma mais robusta, com o tal problema de arrendamento acessível, o problema de renda acessível, os dois nomes são parecidos, e que eu acho que agora vai desbloquear um bocadinho. E por outro lado, o Orçamento do Estado. O Orçamento do Estado também, eu acho que não há aqui soluções, tem que haver múltiplas soluções e neste momento estamos a assistir apenas a soluções direcionadas para o arrendamento acessível. Por exemplo, a questão da propriedade e do acesso à propriedade está a ser muito descurada e não toca naquela questão que eu disse há bocado, que um dos problemas internacionais neste momento é que, sobretudo as gerações mais noves que não tiveram acesso, que não se autonomizaram até à crise ou que se autonomizaram depois da crise, estão a ser arredadas da propriedade e a propriedade hoje em dia, e sobretudo em determinadas zonas, é um fator importante de distribuição da riqueza e sobretudo quando nós temos situações de grande precariedade laboral é um fator muito importante de manutenção, até porque o arrendamento cria, as pessoas tendem a ter mais risco. Portanto, As soluções têm que ser muito diversas, quer do ponto de vista do tipo do regime de ocupação, do arrendamento, mas dos tempos e, sobretudo, dos tempos de execução, ou seja, um programa que se limita… Por exemplo, o do Estado, aquilo que eu falei, tinha a vantagem de ser uma solução, tinha-se, funcionasse, de ser uma coisa de curto prazo. Qual? Aquilo que eu falei da plataforma do programa de arrendamento acessível. O que me parece também importante aqui é coordenar programas com tempos também muito diferenciados, ou seja, porque os programas da Câmara de Criação de Arrendamento Acessível estão muito vocacionados para a construção ou para a reabilitação e isso é amoroso. Agora criar um programa novo que é subsidiar senhorios, enfim. Mas eu acho que eles começam a perceber a urgência da coisa e a necessidade de criar várias soluções. Só uma coisa, há aqui duas coisas, há essa necessidade, a União Europeia nunca teve habitação como política sua, foi sempre considerada subsidiária, ou seja, era uma responsabilidade dos Estados de nação e, Portanto, há agora uma crescente pressão no sentido e a política fiscal é fundamental. Ou seja, é preciso haver aqui uma redistribuição justa dos custos e benefícios destas questões todas. Um exemplo muito concreto, um dado que eu não dei à bocado. Nós vimos o grande diferencial entre os preços em Lisboa e no país, vemos o pequeno diferencial entre os salários em Lisboa, mas não vimos outro valor que tem a ver com isto, é a grande diferença, a grande diferencial entre, por exemplo, o valor do IMT, que é o Imposto Municipal de Transações Honorosas no país e na sociedade per capita, ou seja, Lisboa tem um valor brutal. E portanto tem que haver aqui uma espécie de circuito de ir buscar também, isto é um outro aspecto, de ir buscar também, buscar financiamento às causas, se quisermos, e neste caso do imobiliário e também do alojamento local, que é aí, evidentemente, e aí há várias formas e, portanto, haver aqui uma lógica de redistribuição dos custos e benefícios por quem tem mais responsabilidades e poder contributivo. Acho que há um dado importante, eu acho que há muito desconhecimento concreto, ou seja, Houve aquela polêmica do ministro dos negócios estrangeiros que disse que os empresários não eram qualificados. Eu não digo que o governo não é qualificado, não é essa a questão, mas eu acho que o governo e a administração pública, seja a administração local e central, deviam estudar mais. E às vezes, como sabem, o estudo não tem resultados direitos, mas é importante. Por exemplo, uma coisa fundamental é a estrutura da propriedade atualmente. Quem é que são os proprietários? Porque o Governo tem, por exemplo, aquela coisa desse programa de arrendamento acessível, está muito vocacionado nos senhorios. Mas quem são os senhorios hoje em dia? Nós hoje temos senhorios completamente diversos e não temos uma noção clara da estrutura da propriedade, da habitação e não vamos ter com os censos. Eu gostava que tivéssemos, mas não vamos ter. Ah é? Não, porque eu acho que vai ser, imaginemos, o que nós vamos provavelmente ter é muitos fogos vagos, porque não encontramos, por exemplo, no caso do alojamento local, não encontramos lá o residente para fazer o inquérito e, portanto, possivelmente vamos ter uma percentagem grande de fogos-vagos. Eu acho que é um aspecto fundamental também perceber exatamente estas noções todas que nós temos, do investimento, não sei o que, as coisas do investimento, mas como é que isto se concretiza?
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. É um desafio grande. Até porque as soluções são... Há umas que têm efeito imediato e
Sandra Marques Pereira
outras... E é muito complexo.
José Maria Pimentel
A questão de tentar aumentar a oferta, faz todo sentido. A compensadora dizia, É evidente que isso não tem o efeito de imediato, não pode resolver. E depois há a questão de... Uma coisa é o problema da habitação acessível, no geral, outra coisa é se há interesse em criar habitação acessível no centro. São duas questões diferentes. Nós podemos concordar com o primeiro e achar que o segundo é menos importante ou achar que eles são ambos muito importantes, por exemplo. Tudo isso é um debate grande.
Sandra Marques Pereira
E depois há uma outra questão, quer dizer, por exemplo, só mesmo para terminar, é que nós aqui estamos muito dependentes, Nós temos uma economia, tem a ver com a economia, estamos muito dependentes do turismo e do próprio imobiliário, ou seja, há pessoas que têm rendimentos muito precários, apesar de terem qualificações muito elevadas, mas que conseguiram comprar uma ou duas casas na altura, ainda que
José Maria Pimentel
não conseguiram comprar,
Sandra Marques Pereira
E vivem completamente isso. Por isso também, quem é que são os proprietários e de quem é que vivem os proprietários? Ou seja, porque a situação é complexa e eu acho que há falta de conhecimento desta realidade e é importante.
José Maria Pimentel
Sim, claro. Para isso é que servem estas conversas. Exatamente. Olha, pronto. Bom, terminamos aqui. Muito obrigado por ter vindo. O 45 Horaos é um projeto tornado possível pela comunidade de mecenas que o apoia e cujos nomes encontram na descrição deste episódio. Agradeço em particular a Carlos Martins, Gustavo Pimenta, Eduardo Correia de Matos, Joana Monteiro, Rui Oliveira Gomes, Corto Lemos, Joana Farialve, João Baltazar, Mafalda Lopes da Costa, Rogério Jorge, Salvador Cunha e Tiago Leite. Até ao próximo episódio!