#79 Luana Cunha Ferreira - A psicologia das relações amorosas: intimidade, atracção e os...
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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o
45°. Desta vez estou à conversa com a psicóloga Luana Cunha Ferreira.
A convidada é simultaneamente professora, investigadora em temas como a intimidade e
o desejo nos casais e ainda terapeuta de casal e familiar, por
isso traz uma perspectiva muito bem informada sobre, e à falta de
melhor termo, a psicologia das relações amorosas. Este tema é ao mesmo
tempo interessante pelo que permite compreender da psicologia humana e relevante para...
Bem, para qualquer homo sapiens a não celibatário. E pensando bem, em
celibatários, até no caso dos padres. Ao mesmo tempo, porém, é extraordinariamente
difícil chegar a conclusões muito nítidas neste tema, uma vez que há
poucas coisas simultaneamente tão complexas e variáveis como a realidade das relações
dos casais. Apesar destas limitações, não deixa de ser um tema com
muito pano para mangas. Por um lado temos a natureza humana, que
vai dos ímpetos às emoções, que tem aqui uma influência óbvia e
essa sim possível de identificar apesar da variação que existe entre os
indivíduos. Por outro lado, temos o modo como hoje em dia a
nossa moral, a nossa forma de ver o mundo e as nossas
vontades, desde a liberdade à igualdade, à procura de uma intimidade plena,
criam novas dificuldades nas relações que obrigam a repensar caso a caso
os modelos que até aqui tomávamos mais ou menos por adquiridos. Durante
a conversa percorremos de forma livre este e outros tópicos que podem
encontrar, como habitual, na descrição do episódio e foi de tal forma
variada a conversa que tive alguma dificuldade quer em fazer este resumo
quer sobretudo em dar um título ao episódio. Espero que gostem. 🎶
Olá, muito bem-vindo ao podcast. Eu vou-te começar por perguntar... Acho que
é giro começar por aí, porque tu tens prática clínica nesta área,
e eu imagino que esteve a ser uma experiência ultra-rica. É uma
especificidade interessante dos psicólogos que, no fundo, têm um acesso quase transversal
à sociedade e aos aspectos da maneira de ser das pessoas que
muitas vezes estão escondidos do resto das outras pessoas, não é? Isso
é um privilégio. E neste caso, eu imagino que tu tenhas um
padrão, se calhar mais do que um padrão, não haverá só um
único caso, mas haverá uma série de casos que são mais paradigmáticos
do tipo de pessoa que te procura ou do tipo de problemas
que as pessoas que se procuram trazem, no caso casais ou não.
Como é que tu encontrarias isso? Quais são os principais problemas que
levam as pessoas a irem ter contigo?
Luana Cunha Ferreira
Sim, está no YouTube. Estou a falar disto porque eu acho que
começava esta talk com uma frase, pode parecer um bocadinho clichê, não
é? Acho que era, cada casal é um planeta, cada família é
um planeta. E efetivamente é assim que eu me sinto como clínica,
eu acho que muitos colegas também se sentem assim. Quando nós estamos
a visitar um casal, melhor, quando o casal nos visita no consultório,
parece que estamos mesmo ali num sítio muito privilegiado, portanto com um
acesso altamente íntimo àquilo que normalmente não se mostra, que se revela
no dia-a-dia das pessoas, mas que não se mostra. E nós temos
ali aquele canal de acesso e é de facto uma experiência muito
rica e que nos devolve muitas vezes muita humildade também. Acho que
isso é definidor da nossa profissão. Como estamos a tentar calçar os
sapatos dos outros, que é aquele esforço permanente
de colocarmos
as lentes dos outros, percebemos o quão singular é a experiência do
outro. Por isso é que eu tenho sempre muita dificuldade em responder
a questões sobre os padrões ou os tipos. Porque...
Luana Cunha Ferreira
todos separados uns dos outros? Acho que há clusters, sim. Podemos falar
em clusters, sim. Neste momento o que é que… Também depende do
meu trabalho mais de consultório, mais da Associação Casa Estrela do Mar,
mais da faculdade, que também recebo casos. À partida, em termos de
casal, aquilo que me chega mais é a diminuição do desejo, portanto,
problemas que as pessoas identificam mais na parte da sexualidade e no
desejo sexual, Também porque foi esse o foco do meu doutoramento, então
acho que também vem a ter comigo muito
por
causa disso. Questões de infidelidade, acho que cada vez mais, mais uma
vez não estou a dizer que a infidelidade está a aumentar, é
a minha amostra reduzida, Não tenho dados para dizer isso, mas certamente
que me procuram mais por isso. Adaptação a novos estilos, novas fases
da vida, por
Luana Cunha Ferreira
Sim, eu acho que há um grande embate e cada vez mais
pedem ajuda, porque acham que também não tem que ser assim. Em
termos de familiares, portanto, mais famílias que procuram, sobretudo, aquilo que nós
chamamos de práticas parentais, Portanto, ter um filho ou uma filha com
problemas de comportamento e os pais procurarem ajuda para gerirem melhor o
comportamento dos filhos em sistémica. Isto é muito visto em terapia familiar,
é muito visto com alguma desconfiança benigna em relação à família, porque
nós normalmente até chamamos o paciente identificado. Aquilo filho não é necessariamente
o paciente, mas é a pessoa que a família identifica como paciente.
E isso para nós muda tudo, porque aquilo que nós vamos avaliar
e trabalhar é a família e as relações familiares que, eventualmente, podem
ter contribuído para produzir aquele sintoma naquela pessoa. Portanto, práticas parentais, muitas
questões de ajustamento também à doença crónica, de ajustamento a Divórcios, separações,
novas formas de família, claro que sim, os meus, os teus e
os nossos. Sim,
sim, claro.
Como é que se gera esta gente toda agora? Portanto, sim, há
alguns clusters de planetas que vão aparecendo. Então vamos,
José Maria Pimentel
Ok, então não traduzi o self, já percebi. Self é demasiado poderoso
para ser
traduzido. Que no
fundo tem que ver, é uma coisa engraçada, porque eu acho que
vai um bocadinho contra uma narrativa implícita que nós temos hoje em
dia e que está relacionada com, no fundo, a pessoa pensa que
o casamento feliz ou a relação feliz, não tem que ser o
casamento, é algo em que as pessoas estão mais unidas possível. E
aquilo que tu chamas a atenção ali é que para haver desejo,
desejo no sentido de lato, não é? No fundo, a atração pelo
outro. Sim, isso é muito
José Maria Pimentel
Claro, claro, exatamente, é a atração, não é? No fundo. Se eu
tiver, se eu usar algum termo que acho que é impreciso, intervenho,
por favor, porque obviamente sou um leiga, portanto estou a usar as
coisas não necessariamente no contexto certo. Mas dizia, para isso é importante,
obviamente, proximidade e simbiose, mas também é preciso haver a separação suficiente
entre dois indivíduos para o outro nos continuar a parecer atraente neste
sentido de lado, Porque nós, se for igual a nós próprios, se
houver uma fusão tão grande que é quase como se fôssemos nós,
isso depois desaparece como é natural, não é? Porque aí é como
se fosse uma pessoa só nesse sentido. Eu achei isso interessante, eu
já tinha apanhado isso na série Parallel, que estávamos a falar há
um bocadinho, e achei uma conclusão engraçada porque é relativamente contraintuitiva, ou
vai pelo menos um bocadinho contra aquilo que a pessoa acha que
é o ideal.
Luana Cunha Ferreira
Mas é uma ideia, quer dizer, parece que nós sentimos isto de
forma já um bocadinho espontânea, que este mito do sempre junto, ou
cada vez mais juntos, ou unicarno, ou sempre unidos, acho que a
maioria das pessoas já desconfiam um bocadinho. Mas mesmo assim é um
mito extraordinariamente resistente. Parece que nós já percebemos que este ideal do
amor romântico não funciona para grande parte das pessoas, mas não o
conseguimos retirar do pedestal de ideal. Apesar de... Quer dizer, há uma
data de outras configurações a surgirem. Configurações de casal e mesmo mantendo
a questão monogâmica mais tradicional, configurações de casal lá dentro, só de
duas pessoas também. Cada vez mais eu vejo casais em que a
liberdade e a autonomia é uma coisa importante, quase que estão nos
votos de casamento também. Mas parece que custa sedimentar esse modelo, parece
que estamos muito inseguros. E há muitas pessoas muito inseguras desta distância,
quase como se fosse… os ingleses têm uma expressão, the next best
thing. Aquilo que conseguimos num casamento com autonomia, ou numa relação com
autonomia, é bom, é gerível, até nos dá muitos frutos daquilo que
nós estamos à procura. Mas bom, bom era aquele ideal do amor
romântico que ninguém consegue, ou que se consegue durante os primeiros dois,
três anos da relação. Sim,
José Maria Pimentel
mas aqui houve uma dúvida que eu nunca fiquei em relação a
isto, que é nós estamos a falar, ou neste caso tu e
outras pessoas têm escrito sobre isto, que é exatamente quando se fala
desta diferenciação, porque ela pode ser duas coisas. Por exemplo, essa autonomia,
por exemplo, pode querer dizer vidas separadas ou haver um lado, no
fundo, que é nosso, da nossa vida, enquanto indivíduo que faz parte
de um casal e que, no fundo, é completamente separado da outra
pessoa, é como se ela não tivesse acesso, é que ela é
o teu... É como se fosse uma espécie de plafom de individualidade,
mas também pode ser, e eu confesso que sou mais fã deste
segundo, embora seja um equilíbrio difícil, uma individualidade integrada, ou seja, algo
que tu fazes mas que não deixa de ter a participação da
outra pessoa. Esse termo de integração foi um termo que nós chegamos
nessa conversa que eu estou a aludir, porque eu achei interessante que
no fundo é isso, ou seja, cada pessoa tem, cada elemento do
casal tem a sua individualidade, mas isso está integrado na relação em
si e não fica como uma espécie de coisa à parte, onde
não se pode tocar. Os
Luana Cunha Ferreira
A diferenciação do self é um dos conceitos mais úteis que eu
tenho descoberto, por além de ser interessante teoricamente, na prática clínica, são
após, são com os casais e com as famílias e até na
psicoterapia individual, é extraordinariamente útil, porque tem estas duas componentes e depois
uma terceira que é aquela inundita, que é a tal da integração.
Isto vem do Bone, do Murray Bone, que era um terapeuta familiar
dos anos 70, que tem um modelo muito específico, também sistémico, e
ele propôs esta ideia que nós quando crescemos, na adolescência, há ali
uma fase em que estamos numa luta com os nossos pais, porque
queremos, obviamente, ser independentes, mas ainda não somos autónomos. E portanto, andamos
neste chega para lá, chega para cá, isto é meu, isto é
partilhado, isto é só o vosso, anda ali naquela luta, que é
uma luta pela diferenciação do self. Qual é que é o objetivo
desta fase, tendo em conta esta ideia? É tu conseguires crescer com
uma intimidade suficiente com os teus pais que não te seja ameaçadora.
Portanto, uma intimidade que não seja fusão. E ao mesmo tempo, conseguires
estar autónomo mas sem estares completamente independente. Portanto, eu, em algumas aulas
que costumo dar, sou muito gráfica, portanto, funciono muito por imagens, tenho
uma imagem que é um casal a dançar e de um lado
está escrito independência, ou autonomia, não tenho a certeza, e do outro
está escrito fusão. Portanto, a diferenciação do self é mesmo esta dança
entre estes dois polos. Portanto, é considerada uma má diferenciação do self
se tu estiveres numa relação com os teus pais ou com os
teus parceiros, porque vários psicólogos adaptaram este conceito da diferenciação na família
do self ao casal.
Luana Cunha Ferreira
em relação à família de origem, portanto esta coisa entre o filho
adolescente ou o filho adolescente e os pais. Sim,
que Faz sentido.
Faz todo sentido, mas depois vem um senhor que é interessante e
problemático, que é o David Schnark, que tem muita coisa publicada também
muito interessante. E o David Schnark foi dizer, ah, tá bem, mas
diferenciar-se dos teus pais até não é uma coisa assim tão difícil,
porque é normativo. É natural. Ou seja, é suposto fazeres isso. Agora
tu estás em economia comum, completamente apaixonado por alguém que hierarquicamente, se
pensares no genograma, que é um dos instrumentos que os terapeutas familiares
usam para investigar a família, basicamente uma árvore genealógica, Alguém que está
ao teu nível em termos de hierarquia familiar, o teu parceiro, o
teu par, quer dizer, diferenciares dessa pessoa, isso sim é verdadeiramente difícil.
Então, o conceito de diferenciação do self ficou muito mais focado para
a parte do casal. Como esta dança entre conseguir ser autónomo, ter
as tuas coisas, os teus projetos, e ao mesmo tempo estares numa
intimidade emocional com o outro que é profunda,
que não
é leve, que não é superficial, porque isso também é uma má
diferenciação do self. Há muita gente que não se consegue diferenciar e
por isso a única opção é a distância.
José Maria Pimentel
E essa questão da família, que é uma questão engraçada, ainda há
bocadinho estávamos a falar disso em Day Of, já percebi que tu
vês isso como estando fora da personalidade. Conceptualmente, eu imagino que isso
é um debate em si mesmo, mas não é especialmente interessante para
aqui, não é? Porque, obviamente, a tua família influencia a tua personalidade,
mas o que no fundo imagino que tu queres dizer é que
há valores e práticas e uma espécie de pressupostos procedimentais até que
não têm necessariamente a ver com a tua personalidade, mas que foram
coisas a que tu te habituaste no comportamento dos teus pais, no
comportamento deles contigo, os teus irmãos, o resto da família, que depois
tu trazes para o casal. Que rimas contigo. Isso é engraçado porque,
por um lado, imagina-se que as pessoas, imagine que isso aconteça, não
é? As pessoas também se selecionam com base nesses antecedentes comuns, ou
seja, tu tendes, provavelmente, é um fator a favor de tu te
sentires atraído por alguém, atraído no sentido de, não no sentido sexual,
mas no sentido emocional, Por essa pessoa também trazer consigo modos de
estar e valores que tenham a ver com os teus, mesmo que
a pessoa não tenha sequer
Luana Cunha Ferreira
A comunidade imigrante muitas vezes fica relativamente fechada. É nisso, não sempre
e cada vez menos acho eu. Mas eu não estou a falar...
Portanto, também há mais probabilidade de se encontrar. Mas é muito interessante,
porque eu acho que as pessoas têm muito isto ainda, esta ideia
da compatibilidade. E de facto, em termos científicos, há alguns indicadores. Por
exemplo, claro que tendes a ter um grupo de amigos mais próximo,
se calhar, dos teus ideais, até das tuas questões políticas ou etc.
Mas em termos de casal, A pessoa que nós escolhemos como casal,
não há propriamente uma indicação muito clara da ciência sobre se favorece
ser parecido. Estou a usar aqui este parecido. Serem semelhantes, não serem
semelhantes, o que é que eu te posso dizer? Tanto em termos
de vinculação, como em termos, que é outro conceito muito trabalhado na
Psicologia, como em termos de diferenciação do self. Claro que se tens
uma pessoa, um parceiro, com grandes necessidades de autonomia e que sente
até como uma ameaça para si próprio as tentativas do outro estar
íntimo e próximo emocionalmente dele. E tens do outro lado alguém que
precisa de níveis de intimidade emocional elevadíssimos, pois vai ser um casal
muito divertido, no sentido da intensidade e da discussão. Hoje em dia
eu não sei se isso necessariamente é uma coisa má por si
só, porque já vi casais sobreviverem de... Pronto, em modelos completamente improváveis,
mas que de alguma maneira funcionam e as pessoas conseguem ajustar-se e
conseguem responder às necessidades uns dos outros, não é? E depois tantas
vezes não.
Exato, claro.
Por isso é que temos a nossa taxa de divórcio também alta.
José Maria Pimentel
Lá está tudo. Isto é uma mistura de uma série de coisas.
Por acaso nem ia falar sobre isso, mas agora lembraste-me de uma
coisa que está relacionada com isto que nós falávamos no fundo da
bagagem da família que nós vimos. A certa altura estava na apresentação
de um livro que tinha que ver com... Era mais ou menos
diferenças de personalidade no sentido do lado. E obviamente tudo aquilo era
questionável, mas houve ali um exercício que não deixou de ser interessante,
embora tivesse muito provavelmente de auto-sugestão ou de efeito da sugestão. Aquilo
foi uma apresentação engraçada porque era uma apresentação um pouco convencional de
um livro. Era uma apresentação em que as pessoas estavam de pé,
o modelo era apresentado, que era um modelo destes mais ou menos
simples, com quatro ou cinco caixas, onde as pessoas no fundo se
poderiam enfiar, e era-lhes pedido que pusessem o pai e a mãe
numa daquelas caixas. Sim. E depois no fim perguntava-se quantas das pessoas
é que tinham casado com alguém que eles identificavam como tendo a
mesma personalidade do que o pai e a mãe. Curiosamente eu fui
uma das pessoas que não correspondia a esse modelo, mas houve uma
série de gente a auto-identificar-se dessa forma. Obviamente tudo isto é muito
simplista, não é? E também não havia... Basta ver que não havia
tantas categorias assim para que não fosse difícil. Mas não deixa, provavelmente,
ter algum poder explicativo o facto de nós, inconscientemente, procurarmos pessoas que
tenham a ver com determinados padrões de comportamentos a que nós fomos
habituados enquanto éramos miúdos.
Luana Cunha Ferreira
Portanto, efetivamente, acho que não temos dados muito claros. Eu acho que
essa ideia, às vezes nos casais é danosa, porque temos esta... Estávamos
a falar há bocadinho do amor romântico, e temos várias ideias, o
Dan Savage chama-lhe mentiras, não chama mentiras, chama ideias, mitos, que vêm
com a questão do amor romântico e uma delas é a da
compatibilidade. Tu vais encontrar a pessoa, aquela tua pessoa e quando tu
encontras aquela tua pessoa vão ser compatíveis, se não forem compatíveis é
porque não é a tua pessoa. E como é que tu sabes
que é a tua pessoa? Sabes que é a tua pessoa porque
a paixão com essa pessoa vai durar para todo o sempre. Isto
são uma data de ideias que a dada altura vão caindo por
terra, mas nós não nos conseguimos livrar delas. E, portanto, às vezes
sinto muito que alguns casais em terapia vêm ainda com esta ideia
de será que é mesmo a minha pessoa, será que não é
a minha pessoa, será que é a pessoa certa para mim? E
isto é pouco útil. Há
perguntas
mais interessantes para fazer em terapia do que essa que é muito
fechada. A terapia visa, sobretudo, abrir.
Luana Cunha Ferreira
E é auto-falsificado, não é? Esta ideia, se só há uma pessoa
certa para ti. E se tu estás muito apaixonado por aquela pessoa
e aquele casal funciona muito bem durante três anos e depois deixa
de funcionar, quer dizer, metendo na máquina qual é que é o
resultado. É que não há uma pessoa certa para ti, é que
estragaste, só vi uma e estragaste
tudo, ou
que era aquela pessoa mesmo para ti, mas não eram compatíveis.
Claro, claro.
Porque a prova deste amor romântico, a prova que a coisa é
para durar, é a questão da paixão. E nós sabemos que em
termos químicos, em termos relacionais, em termos de tanta coisa, em tantos
termos, a questão da paixão e do desejo, como estávamos a dizer
no início, não é a coisa mais resistente que há por aí.
É muito sensível e modifica-se.
José Maria Pimentel
Sim, sim, até porque não está feita para isso, não está feita
para ser resistente, não está feita para tudo. E deixando-me só voltar
àquela questão da diferenciação, porque havia um aspecto que depois não te
perguntei. Acho que era giro ter aqui alguns exemplos práticos, até da
tua prática clínica. Se me conseguires dar um exemplo específico, era giro,
para perceber no fundo quais são as resistências que existem às pessoas
não terem no fundo essa capacidade ou mesmo identificando essa lacuna não
a consigo mudar, porque não é nada fácil nós mudarmos hábitos de
vida, muito menos num casal, uma espécie de equilíbrio tácito existe na
relação.
Luana Cunha Ferreira
E, além disso, quer dizer, a nossa profissão seria muito mais fácil
se pela simples consciência de uma dimensão as pessoas conseguissem logo a
alterá-la. Isso é espetacular. Claro. Imagina, sim. Tinha
sessões
mais curtas e as pessoas se livravam de mim mais cedo. Mas
há várias dimensões. Qualquer história que eu contar aqui é uma construção
de várias histórias, está
bem? Porque nunca
vou contar alguma coisa de um cliente. Sim, claro. Melhor. É sempre
uma construção. Estou a dizer isto porque numa sessão de casal típica,
que é uma coisa que não existe, mas pronto, vamos esforçar. Eu
muitas vezes peço aos casais para discutirem. Muitas vezes até lhes dão
um exercício que é de 0 a 10. Escolham um tema que
seja mais ou menos um 5 de intensidade, mas normalmente é nas
primeiras sessões, e discutam como se eu não estivesse aqui. Discutam, ou
seja, conversem sobre este tema.
Luana Cunha Ferreira
Sim. Por exemplo, máquina da louça. Exato. Normalmente é um bom 5,
não é? Porque, claro, toda a gente sabe que há formas corretas
de fazer a máquina da louça e outras extraordinariamente incorretas. Portanto é
um bom cinco, normalmente. E é muito giro ver, e é útil
porque é um mecanismo de avaliação que eu tenho, quando eles falam,
como é que falam se se colocam numa posição, eu ouço, dizem,
tu és sempre x, y, z, se fazem críticas destrutivas, críticas à
personalidade do outro, como é que o outro reage a isto, ou
seja, se imediatamente vai para uma grande defensividade, portanto eu sinto uma
acusação e digo logo mas tu, qualquer coisa, qualquer coisa que não
tem nada a ver, não estávamos a falar disso tudo isto são
indicadores de reatividade emocional, portanto eu não consigo colocar-me num sítio afastado
o suficiente do meu parceiro para de facto o ouvir porque estou
demasiado próximo, Ou então, que também acontece, porque estou demasiado longe e
nem sequer o consigo ver e ouvir. Sim, portanto, isto é um
exemplo, estou a dizer isto porque é dos mais comuns esta coisa
da discussão, efetivamente. Depois, outra muito tradicional e muito cultural é a
questão dos ciúmes. Nós temos muita proximidade com o tema dos ciúmes
e claro que se tu não conseguires conceptualizar o outro como estando
contigo por escolha, assim de forma verdadeira, E se vires o outro
como uma extensão de ti, uma representação de ti, claro que os
níveis de ciúmes à partida vão ser bastante mais elevados também, não
é? Portanto, nós vemos isto em alguns casais. As questões de ciúmes
normalmente começam a surgir quando a diferenciação do self também começa a
pitar, por assim dizer.
Luana Cunha Ferreira
por acaso na questão dos ciúmes eu não deteto muito. Também não
estou a par, se calhar, da investigação mais recente sobre isto, mas
no consultório eu não deteto grandes diferenças em termos de ciúmes. Acho
que pode ser um bocado. Lá está, Acho que culturalmente níveis baixos
de ciúme, baixos no sentido em que está presente, são recompensados. Mas
já vi isto sair fora de mão muitas vezes, em situações mais
de violência, etc, em que de repente o ciúme já não é
só aquilo, já significa outras coisas.
José Maria Pimentel
Estou a fazer esta pergunta porque eu já apanhei isso várias vezes
e confesso que a minha experiência faz algum sentido mas, quer dizer,
essas coisas são sempre motividas de dizer. Até lá está evolutivamente que
No caso das mulheres os filmes tendem a ser mais emocionais, no
sentido de alguém, quer dizer, o parceiro ser, que estou a falar
de uma relação heterossexual, obviamente, do parceiro ser intimamente, ficar intimamente ligado
a outra pessoa. Ah, ok,
Luana Cunha Ferreira
mas já relacionado com a infidelidade também. Já relacionado com a infidelidade,
sim. Sim, aí há diferenças, sim, parece haver algumas diferenças. Sim, cada
vez, Diferenças cada vez mais estreitadas. Até na frequência de infidelidade, em
que os homens tinham aparentemente a predominância, os estudos dizem que entre
50 a 70% dos homens seriam inféis a dada altura, as mulheres
entre 30 a 40%, penso que é, mas acho que os estudos
mais recentes mostram que este fosso está a diminuir. Até porque por
José Maria Pimentel
surgirem a dar a doce. Sim, eu por acaso imagino que deve
ser muito interessante isso, porque a dinâmica... Quer dizer, tu de um
tens três púlsi, nem se calhar tens duas. Terás um padrão, ou
vários, mas também temos sempre a falar em tendências, num casal heterossexual
e depois dentro de casais homossexuais terás também dois padrões diferentes, ou
seja, não será a mesma coisa. Ou mais. Ou mais. Mas isto
para dizer, não é a mesma coisa, eu imagino que a dinâmica
não seja a mesma num casal de dois homens ou num casal
de duas mulheres.
Luana Cunha Ferreira
aqui. Sim, mas é giro porque a investigação que está a surgir,
por exemplo, nomeadamente a nível do desenvolvimento dos filhos, mostra que há
diferenças. Por exemplo, uma parentalidade numa família heterossexual, ou heteroafetiva neste caso,
e numa família homoafetiva. E essas diferenças depois, quando temos tudo na
máquina, não são diferentes. O que é que eu quero dizer com
isto? Em termos de outcomes, nunca há consenso nestas coisas, mas a
vastíssima maioria dos dados indicam que os filhos têm desenvolvimento perfeitamente adequado
e muitas vezes até superior. Eu acho que hoje passou-me pelos olhos
um estudo quantitativo sobre casais de lésbicas e o que mostravam era
que o teor emocional, a relação com o conflito e mais outras
variáveis de qualidade familiar, quando contrastadas, eram superiores às das famílias heteronormativas,
heteroafetivas, aliás. E, portanto, isto é interessante. Há diferenças, claro que sim,
mas cada vez mais o que nos interessa é os processos, é
os padrões, efetivamente. Mas
José Maria Pimentel
agora deixa-me fazer aqui uma curva de 90 graus. Gostava muito de
ter a tua opinião que é toda esta ideia do casamento. Casamento
no sentido lá de casamento barra relação foi evoluindo ao longo da
história. Nós hoje em dia temos um estado em que há uma
série de coisas que nós assumimos e o nosso modelo atual, tendo
uma série de vantagens sobre os modelos que o precederam, depois também
cria muitas vezes tensões e desafios grandes. E, no fundo, em relação
aos quais é difícil nós termos uma visão crítica porque, claro, crescemos
neste modelo e há uma série de coisas giras, acho eu, para
discutir. Fazendo-te a pergunta a seco, quais é que tu achas que
são os grandes desafios que o modelo que nós somos criados, no
fundo culturalmente, achar
que é um
modelo correto, criam sobre as pessoas? Nós já falámos sobre alguns, não
é? Tens a questão do self, de achar que o melhor modelo
é o mais unido possível. Tens a questão da infidelidade, que o
Dan Savage fala, de nós, evolutivamente, estando obviamente nós construídos para nos
sentirmos atraídos por outras pessoas e como lidar com isso. E a
maneira de lidar com isso não é assumir que isso não existe,
numa espécie de versão idílica. E depois há uma série de outras
coisas. Também falámos há um bocadinho da questão da liberdade, no fundo
da autonomia versus pretensa. Por um lado queres pretencer, mas por outro
lado queres ter a tua individualidade preservada. Quais é que tu achas
que são os principais desafios?
Luana Cunha Ferreira
Estou a ouvir agora e uma palavra estava sempre a surgir, que
é a palavra negociação. Quando nós nascemos e compramos um modelo já
feito, é muito cómodo. Já está tudo feito, não é preciso pensar
em nada. Achei que esse modelo nos foi efetivamente desconfortável, como foi
por exemplo desconfortável para muitas mulheres e para muitos homens o modelo
do casamento tradicional, com as questões de género todas envolvidas. Esta questão
das famílias, dos casais homossexuais ou das famílias homoafetivas, homoaparentais também, é
muito interessante não só para as próprias, porque como tiveram que criar
modelos de raiz, estão efetivamente a criar coisas novas que podem, tal
como diz às vezes o Dan Savage também, ser soluções para as
famílias mais normativas
que
andam para aqui a casar-se e a descasar-se, a tentar encontrar novas
formas, mas que não têm muitas... Como não tiveram que construir coisas
de raiz, e os outros tiveram, aqui os outros com O, grande,
no sentido dos grupos mais minoritários. No
Luana Cunha Ferreira
Uma destas coisas, e é das coisas que me têm interessado mais,
e é francamente das coisas, dos problemas que mais me têm chegado
ao consultório também. Problemas, desafios, porque não são só negativos efetivamente, que
é a questão da parentalidade masculina. Esta questão que as mulheres, sim
senhor, entraram já no mercado de trabalho, já há não sei quanto
tempo, em Portugal até quase parece desde sempre, e os homens estavam
a demorar a entrar no mundo doméstico, e a ocupar o mundo
doméstico, e o mundo doméstico é muito feito também da parentalidade, mas
não só. E, portanto, durante muito tempo falava-se desta dupla jornada, as
mulheres continuam a fazer o trabalho do dia e o trabalho doméstico,
familiar, de cuidar, etc. E neste momento aquilo que eu observo são
muitos homens, e aqui estou a falar em estruturas familiares mais normativas,
muitos homens a tentarem apanhar o comboio em casa e a não
fazerem a mínima ideia como. E às vezes com parceiras muito colaborativas
e que quase que os levam ao colo para mostrar como. E
outras parceiras que também resistem. E parece que se tem que criar...
Mas é
José Maria Pimentel
Sim, mas neste contexto, obviamente, claro que sim. Porque aqui as questões...
Com essa ressalva. Agora, a partir do momento em que surgem crianças
no retrato é muito giro, de repente há um brotar de papéis
de género engraçados, em certo sentido compreensíveis, ou seja, eu acho que
há uma razão evolutiva biológica mais do que evolutiva, ou seja, a
mulher tem o filho, tem uma série de hormonas que se libertam,
que leva a que no fundo tenha uma predisposição tendencialmente maior para
cuidar do filho, mas depois há todo um exagero que leva a
que, por exemplo, sendo homem, tu fiques um bocadinho fora da...
José Maria Pimentel
é? Sim, sim, sim. Obviamente que haverá um lado cultural, mas o
que eu quero dizer com isto é, independentemente da pessoa achar que
o ponto certo seria no meio ou até um pouco deslocado do
meio, ele está demasiado deslocado, é o que eu quero dizer. E
a giro, eu lembro, por exemplo, de um caso que me ficou
na memória. Não há muito tempo em que estávamos numa festa com
amigos e era uma festa de uma miúda, de uma criança. E
portanto, estava lá muita gente com bebés ou semibebés. E eu estava
a segurar na minha filha, reparei que estavam outros homens a segurar
nos respectivos e de repente chegou a altura de tirar a fotografia.
Eu estava a segurar na miúda, continuei. E depois quando estava a
tirar a fotografia reparei que era o único homem a segurar na
miúda. Ah, que engraçado. Houve uma troca, estás a perceber? Agora
Luana Cunha Ferreira
isso faz todo o sentido daquilo que tu estás a dizer. Porque
eu acho que, lá está, numa determinada classe, nível sociocultural, etc. Acho
que os homens estão a entrar imenso, mais do que mudar fraldas.
E há qualquer coisa que as mulheres estão, muitas eu acho que
posso dizer até este verbo, estão a tentar prescindir, mas que está
também a ter custos. Exatamente. E esta ideia do para a fotografia
fica com a mãe, sem que as pessoas se calhar ativamente pensem
nisso. Provavelmente foi tudo completamente espontâneo, mas faz sentido porque é aquele
papel que nos foi atribuído e que por vezes custa muito descolar,
às vezes não temos que descolar e anda tudo aqui nesta negociação
de queremos todos ser mais pais. Parece que as mães querem ser
mais pais com mais autonomia também. E os pais querem ser mais
pais por boas razões, porque também estavam sonegados dessa parte. Mas isto
está a criar toda uma espécie de confrontos, de negociações, de coisas
muito ricas que, para o olhar se calhar mais sistémico, como estamos
sempre a falar do contexto, revela, portanto põe aberto, outras questões de
poder dentro do casal e outras questões de género dentro do casal.
Portanto, às vezes parece que o mudar a fralda é quase uma
metáfora para tudo o resto. O mudar a fralda, a máquina de
lavar a louça, quem é que organiza melhor a máquina de lavar
a louça, etc. E muitas vezes pegamos nestas coisas como metáforas de
tudo aquilo que está a mudar e de facto que papeis é
que as pessoas querem ter e os ganhos secundários que têm a
dada altura se prescindirem de algumas coisas também.
Luana Cunha Ferreira
Não, eu acho que não, mas têm que ser negociadas, porque é
diferente para mim como mãe, a minha filha cair, quem é que
ela vai pedir socorro? Então eu e o pai. Este pai é
muito participativo. Se for tudo 50-50, eu também tenho 50% de hipóteses
de quando a minha filha se folou ao joelho vir a correr
para mim e outros 50% ir a correr para o pai. E
se calhar se isto for em casa, uma pessoa nem pensa duas
vezes, desde que ela saia consolada tudo bem. Mas se estiver na
rua, no meio do supermercado, e se este pai é colher a
filha, este pai vai ser provavelmente super elogiado, vai ser um paizão,
vai ser a exceção, vai ser uma coisa extraordinária, quando basicamente só
pegou a minha docol, e consolou que é o trabalho mais básico
da parentalidade. A mesma mãe a fazer exatamente a mesma coisa, está
só a fazer o seu trabalho, o normal. Portanto, depois há esta
decalagem na valorização, que para algumas mulheres pode ser muito difícil, porque
supostamente era um papel que nos era dado e que era nosso
e de repente há outra pessoa a ocupar e se calhar nós
até queríamos isto, mas de repente perdemos esta valorização social. E depois
do outro lado andam os homens, por exemplo, nos centros comerciais à
procura de casas de banho masculinas com fraldários e depois não há.
E depois têm que mudar a fralda no chão, como acontece tantas
vezes.
Luana Cunha Ferreira
tem uma data de contradições, é muito interessante porque aí, tocando na
parte, falando agora de uma atração mais sexual, nós aí ainda somos
mais individuais do que em todos os temas que nós estivemos a
debater até agora. Aquilo que de facto as pessoas na sua sexualidade
privada consideram atraente ou não, pode ter N âncoras E não há
esta ideia de, mais uma vez, de compatibilidade também, mas esta ideia
de ter que haver uma diferença. Às vezes não, tantas vezes não.
Pode haver mulheres mais clássicas que considerem extraordinariamente atraente um homem mais
dominador e mulheres mais clássicas consideram extraordinariamente atraente um homem mais dominador
e mulheres mais clássicas que consideram extraordinariamente atraente um homem mais participativo
na plenaridade, por exemplo. E pode haver homens que na prática queiram
efetivamente uma parceira super autónoma, super independente, profissionalmente bem-sucedida e que efetivamente
durante o dia, passo clichê, olham para ela com grande admiração por
isso, mas que efetivamente depois à noite não consideram isso a parte
mais sexualmente atraente da parceira. Nós somos muito complicados
e
estes níveis não foram feitos, parece, para estarem todos arrumadinhos. Somos todos
muito desarrumados. E
Luana Cunha Ferreira
vida, por exemplo. Claro, claro. Isto são tudo camadas. Depois, lá está,
volto à palavra para mim chave, que é esta questão da negociação.
Eu uso muito com os casais esta ideia que, sexualmente falando, em
termos de fantasias, desejos, etc., cada um deve ter o seu jardim
privado, e que é privado e que não é para ser partilhado,
e escolher um canteiro ou alguns canteiros desse jardim para, efetivamente, estar
ali um quintal partilhado. Claro que quanto mais partilhado for esse quintal,
melhor pode ser para o casal. É difícil um casal que não
tenha pontos que se toquem, efetivamente. Mas estas três entidades devem existir.
Não partilhado no sentido em que aquilo que eu acho atraente não
tem absolutamente nada a ver com aquilo que o meu parceiro acha
atraente em termos de práticas sexuais, por exemplo. Convém haver coisas partilhadas,
mas como eu digo muitas vezes aos meus casais, vocês não têm
que ser manos, não têm que ser iguaizinhos.
Luana Cunha Ferreira
da sexualidade, com algumas acusações de sexualização e tudo, mas eu não
sei se o nosso conforto com o prazer cresceu assim tanto. Eu
acho que nós estamos cada vez mais virados para a eficácia, para
a produção, falando
assim de
forma lata, e aquilo que se calhar era esperado com toda esta
evolução, que era nós virarmos todos um bocadinho mais uns para os
outros em termos afetivos e em termos sociais, não acompanhou. Sinto muito
triste que não acompanhou. Parece que agora as pessoas têm que ser
treinadas a estar uns com os outros e a ouvirem-se. E para
além disso a questão do corpo, eu acho que sim, o corpo
foi libertado. Não tanto quanto se esperaria, sobretudo a questão do prazer.
E a questão do prazer na família, como também fala a Esther
Perel, não é? Temos esta ideia ainda, que a partir do momento
em que há uma família, não há só um casal, mas há
uma família, e estamos aqui a falar de formas muito normativas, a
sexualidade desaparece, e é suposto desaparecer. E depois, se queres que te
diga, na minha prática clínica, aquilo que eu vejo é casais absolutamente
exaustos. Ponto. E a sexualidade também precisa... Ressente-se. Ressente-se completamente. O meu
doutoramento foi um dos temas que os casais mais focaram em relação
ao desejo. Quando perguntados o que é que influencia o vosso desejo,
uma das principais questões era a questão do cansaço. E, efetivamente, as
pessoas trabalham cada vez mais, trabalham até muito tarde, têm as vidas
muito espartilhadas. Quer dizer, não há magia, efetivamente não há varinhas mágicas
para o desejo acontecer, o desejo é muito sensível.
José Maria Pimentel
Agora falavas da Stéphane Pirelli, ela apanhou uma coisa que eu achei
interessante em relação a isso, que ela dizia, ok, podemos assumir que
existe mais stress hoje em dia e tudo indica que sim, mas
o stress sempre existiu, não é? Nós evoluímos com o stress, às
vezes o stress é muito pior, não é? Aparte um leão do
outro lado da rocha e comer-nos. E no entanto não foi por
isso que não nos reproduzimos, não é? Também haverá mais do que
o fator stress a intervir, não é?
Luana Cunha Ferreira
Claramente, claramente que sim. Acho que é mesmo esta conjuntura de fatores
e depois efetivamente é a expectativa, não é? Eu não sei se
a sexualidade sempre foi uma escolha para toda a gente envolvida nas
respectivas relações, nomeadamente para as mulheres. Era um dever conjugal. Acho que
em direito, em Portugal, até há pouco tempo havia a questão do
débito conjugal, algo que a mulher efetivamente devia ao homem. Hoje em
dia nós queremos também estar autónomos, queremos fazer aquilo que nos apetece.
E esta ideia da pressão para também não funciona bem com o
desejo. Mas é assim, tendo dito isto, claro que estamos a falar
em média, em geral, em tendência, e os números gerais indicam isso.
Mas nas investigações que tenho visto também há boas notícias, não é?
Portanto, cada vez mais também há alguns casais que ou que pedem
ajuda ou que optam por, por exemplo, alternativas em termos de conjunturas
relacionais e optam por outros modelos menos clássicos, podem também ter contributos
positivos para o desejo. Portanto, lá está a negociação, as pessoas estão-se
a renegociar.
José Maria Pimentel
Sim, e para sobretudo, eu acho que lá está uma alteração, nós
falámos disso há bocadinho, O panorama das relações mudou, ou seja, tu
tiveste várias alterações de paradigma, não tinhas um paradigma antigo. Recentemente mudaste
para um paradigma paritário, pelo menos tendencialmente paritário. Tendencialmente. E sobretudo de
pessoas, de indivíduos diferentes e de casamento consensual no sentido de, não
é que muitas vezes vamos falar de consensual antes, mas em que
ela é uma decisão tua e não uma instituição social que te
surge naturalmente, como a maioria, como quem chega aos 18 anos, que
era que tu assumes por defeito. Hoje em dia há pessoas que
se não quiser casar-se não se casa, não tem que se casar.
E mesmo usando o termo no sentido lato, no sentido de não
necessariamente casar o papel, mas de ter uma relação conjugal. Se a
pessoa não quiser, se quiser ficar solteiro com relações onanófobas a vida
toda, pode ficar tranquilamente. E os
José Maria Pimentel
Isso significa que cada um de nós... Tu sentes uma agência sobre
a relação que vais construir muito maior para o bem e para
o mal. Porque quando digo para o bem e para o mal,
do ponto de vista da eficácia. Para o bem no sentido em
que permite... E é até interessante abordar os dois temas. Para o
bem no sentido em que permite criar variações. À bocado pareceu-me que
estavas a aludir à questão do poliamor, que é uma coisa que
tem um enorme problema de branding, mas parece... Porque em português soa
péssimo. Mas eu acho que faz sentido discutir, porque é claramente, quer
dizer, mais vai explicar melhor do que eu, mas no fundo é
ter, é tentar fazer o unbundling, acho eu, entre a questão afetiva
e a questão sexual, mais ou menos. E embora também, provavelmente, isto
não seja a melhor explicação de todas, porque as duas podem estar
envolvidas. Mas, no fundo, é dizer, ok, vamos tentar ter uma espécie
de meio termo entre uma relação monogâmica e uma relação livre, ou
uma não-relação, em que há uma espécie de casal base, mas depois
cada pessoa, dentro de determinados limites, tem liberdade para ter relações com
outras pessoas. Claro que lá está que podem ser simplesmente sexo, mas
também podem ser relações emocionais. Isso tem várias vertentes. E isto no
fundo é tentar desconstruir, é tentar pensar que há aqui estas limitações
que algumas pessoas sentem, vamos tentar, em vez de andar de, já
não sei quem é que dizia isso também,
José Maria Pimentel
Monogamia em série, não é? Tipo uma espécie de... Que é
efetivamente o padrão.
Que é o que acontece, que as pessoas são monógamas mas têm
várias relações ao longo da vida, tentam ter uma base com uma
pessoa, mas mais flexível. Que eles representam-se, de alguma maneira. Esse é
um exemplo interessante de, lá está, de as pessoas tentarem explorar e
tentarem... Outra hipótese é, dentro de uma relação monógama, a questão da
individualidade, não é? Que falámos há bocadinho. E este é o lado
bom, não é? O lado bom no sentido exploratório. Criativo. Criativo, não
é? Sentido de criar uma coisa nova. E sobretudo de flexibilizar um
conceito, não é? Porque é difícil que um determinado conceito sirva para
toda a gente. O mais normal é que nós não vivemos todos
no mesmo tipo de casa. Vivemos em casas diferentes justamente porque cada
um de nós tem preferências pelo número de quartos, pela acessibilidade, por
viver numa casa, tipo vivendo ou viver num apartamento, uma série de
coisas. O lado mau, digamos assim, ou o lado difícil isto, é
que esta maior agência nossa sobre as relações também leva a que
nós estejamos muito mais insatisfeitos.
Luana Cunha Ferreira
tudo e queres só que seja uma pessoa a dar-te... Exato, sim,
sim. ...Muitas vezes, não é? Como essa diz. Em termos do poliamor,
eu não sou nem de perto nem de longe especialista. O Daniel
Cardoso é que investiga e escreve muito bem sobre o poliamor. Ele
tem coisas muito interessantes. Ele é muitas vezes muito injustiçado por algumas
intervenções que teve, mas ele é um grande investigador e devia ser
efetivamente mais lido. Também em relação às famílias homoaparentais, devo dizer também
que não sou especialista, o Jorge Gata é que tem coisas muitíssimo
interessantes sobre este tema, mas em relação a estas novas configurações, isto
só porque eu gosto de dar crédito a quem deve ter, nós
não somos especialistas em tudo e eu tenho muito sorte de ter
muitos colegas muito bons que investigam muito bem. Mas em termos destas
novas configurações, eu acho que o interessante aqui é que nós estamos
todos à procura mais ou menos da mesma coisa, das mesmas duas
coisas, identidade e pertença. Tenho a ideia que seja qual for o
modelo de psicologia que tu pegues, seja qual for a família que
te chega ou o casal que te chega, as pessoas precisam destas
coisas, identidade, se sentirem representados por aquilo que apresentam e pela forma
como os outros vêm e a pertença aliás sentir que estão bem
em algum lado e que são vistos também de uma forma que
acolhe essa identidade.
Luana Cunha Ferreira
Há muitas variantes,
sim.
Portanto, essa é uma das questões que eu, do pouco que sei
do poliamor, percebo que muitas vezes não é aposta de uma forma
clara, mas daquilo que eu percebo depende, é como se fosse um
cristal, que depende a faceta para a qual olhas para ele. Há
muito mais diversidade também dentro do quali amor do que contrastando. Podes
ter um parceiro ou uma pessoa que é como se fosse a
raiz de tudo, e depois tem parceiros ou parceiras à volta que
se podem relacionar ou não entre si, ou então tens um casal
básico que depois tem outras configurações. Acho que há muitas formas de
fazer isto, às vezes de forma mais ou menos aberta, aberta no
sentido antigo, quase, anos 70, do amor livre, mas aquilo que eu
acho que é mais definidor e mais interessante nas questões da poliamoria
é também a questão da negociação, Ou seja, como não está feito,
tudo tem que ser absolutamente posto em cima da mesa, para ninguém
se magoar. E provavelmente muitas vezes as pessoas magoam-se. De tudo aquilo
que eu tenho lido, parece que se magoam menos. Ou seja, não
estou a dizer isto num termo comparativo, que as estruturas poliambrosas são
melhores que as outras, não é isso que eu estou a dizer.
Aliás, porque elas não são prescritivas, não é? Não querem impor absolutamente
nada. E
José Maria Pimentel
interessa nada, porque se fosse só entre eles os dois, estavam os
dois sozinhos numa sala, não precisavam de fazer nada. Sim, é um
acto performativo também. Exatamente, não é? Portanto, tem essa função. E aí
também existe... Antigamente, tu tinhas, na forma antiga, sendo ela uma forma
rígida, ela estava feita para funcionar de uma maneira muito ágil socialmente.
No fundo, permitia a cooperação entre os membros do casal, porque cada
um tinha a sua função. A partir do momento em que tu
passas por um paradigma diferente, cada um tem que negociar a sua
função. E, por exemplo, coisas difíceis que hoje em dia estão por
trás de muitas dificuldades nas relações e nos divórcios é a questão
intertemporal, que é que tu dizes, por exemplo, alguém vai trabalhar para...
Tem uma proposta no estrangeiro, por exemplo, ou tem uma proposta em
que vai ganhar mais, por exemplo, mas vai ter que trabalhar mais
tempo, o que é que o outro faz? Ou há um filho,
quem é que vai cuidar? Antigamente tudo isso estava segregado e escrito
no papel. Agora tudo isso tem que ser decidido. Sim,
Luana Cunha Ferreira
e as coisas são postas efetivamente em cima da mesa, nomeadamente em
relação aos rendimentos familiares. Ter um filho hoje em dia tens de
decidir também. Aqui em Portugal, se vais partilhar a licença, se não
vais partilhar a licença, isto depois não é tão bonito como está
escrito efetivamente na lei também. E muitas vezes os casais dão-se com
estas dificuldades que somos muito iguais, muito iguais, mas alguns são um
bocadinho mais iguais do que outros. E há custos a nível de
rendimento, há sempre esta ideia, não é? Quando se fala do gender
gap em Portugal, que não quer dizer que as empresas literalmente paguem
menos às mulheres, quer dizer que efetivamente depois no todo esse diferencial
sente-se, nomeadamente, em mulheres com filhos. Claro que sim, isso tem que
estar tudo em cima da mesa e tem que ser feito de
novo. O que continua a deixar-me bastante incrédula é que para muitos
casais isso ainda não é feito. Entram direitinhos no casamento como se
tudo fosse automático, esta nova tendência mais igualitária e como se tivessem
um manual já feito e depois ficam muito surpreendidos ao fim de
dois anos de casamento que afinal aquilo não está a funcionar porque
o modelo antigo não funcionava e porque eles esqueceram que tinham que
criar um modelo próprio daquela relação com as suas regras e as
suas coisas.
José Maria Pimentel
há uma crítica que afeta, não sei se tu... Uma crítica mais
sociológica, mais, quer dizer, um bocado conservadora, mas eu acho que vale
a pena ser discutida, que é a questão de nós hoje em
dia termos uma pulsão por querer ser felizes, não é? E mesmo
pensando do querer ser felizes para a realização, que não é bem
a mesma coisa, que no fundo pode ser mais uma felicidade a
longo prazo. O casamento, como lá está, com pessoas a trabalhar e
com filhos, não é isso no dia a dia. Uma crítica de
índole mais conservadora que é muitas vezes feita que é dizer, e
isto leva-nos à questão da taxa de divórcios, que passámos a mesmo
tempo para ir à meia hora, que é a questão de dizer
que as pessoas estão-se a divorciar mais porque foram habituadas a querer
ser feliz e mais ou menos hedonistas, numa vida relativamente fácil em
que a pessoa procura o prazer e depois de repente chegas a
uma... A relação conjugal é normal que tenhas uma série de obstáculos
pelo caminho, né? E isso levando...
Luana Cunha Ferreira
E nós não estamos propriamente treinados para nos mostrarmos vulneráveis e negociarmos
numa situação de vulnerabilidade, Esta coisa da diferenciação do selvo que estávamos
a falar no início. Isto é uma coisa muito difícil. Tu mostras
ao outro, um aparecer que provavelmente é que é mais confias, mas
também mais te magoa, se a relação teve alguma intensidade. Sim. Tu
mostras as tuas dimensões mais vulneráveis, isto é efetivamente difícil. E quando
nós falamos de um casal que já se tem que readaptar, que
a felicidade já não é completamente espontânea, ou natural, porque é o
início da relação, e nós damos muito valor a estas duas palavras,
o espontâneo e o natural é que são bons. Aí nós estamos,
como dizia também o Dan Savage, a assinar uma certidão de óbito
prevista de um casamento, se vamos dizer que as coisas vão funcionar
porque as coisas vão funcionar e ninguém tem que efetivamente passar aqui
a dada altura as passas do agarve para se revelar vulnerável e
para querer trabalhar as coisas de uma forma diferente. Há muita gente
que não lida bem com esta coisa do ter que trabalhar para.
Como assim ter que trabalhar para uma relação amorosa funcionar? Como assim
as coisas não são espontâneas? Mais uma vez leva-nos àquele mito que
estávamos a falar há bocadinho, não é? Parece que se não for
espontâneo não vale a pena. Se não for espontâneo é porque não
é certo para ti, se não for espontânea é porque não é
para fazer. Se não era natural e ninguém tinha que pensar nisto.
Isto são duas necessidades completamente antagónicas e deixam as pessoas muitas vezes
muito aflitas. Se não for
Luana Cunha Ferreira
é uma pergunta muito estudada, curiosamente, por outros, mas também pela sistémica.
A sistémica tenta ter pelo menos aquela ideia, não da psicologia positiva
mais banal, mas efetivamente da área científica da Psicologia Positiva, que é
também muito interessante, que é o que é que funciona. Vamos lá
ver o que é que funciona. E no meu doutoramento eu tentei
perguntar também isso aos casais, de forma mais qualitativa e mais quantitativa,
O que é que eu posso dizer? O que é que funciona?
Para já, acho que quem nos estiver a ouvir já vai ter
esta palavra da negociação. A questão da negociação, não tanto aquilo que
tu fazes, mas o sentir-se seguro naquela relação, para poderes dizer ao
outro que olha esta parte não está a funcionar, vamos criar um
plano, vamos tentar outra coisa, tentar fazer diferente. Uma coisa que parece
muito simples mas que muitos casais não conseguem fazer. Depois, alguns casais,
a investigação também nos mostra, isso não é a minha, é dos
Gottman, penso eu, se não estou em erro, Os casais felizes tendem
a ter uma ideia de si próprios, em termos de qualidade conjugal,
muito superior àquilo que efetivamente são. Portanto, eles acham que nós é
que somos os bons casais. Nós somos muito melhores que os outros.
Essa
Luana Cunha Ferreira
E depois, em relação às discussões, à forma de discutir, nós aí
também temos indicadores muito claros, por exemplo, crítica destrutiva, apostamento preditivo de
divórcio, questões como o desprezo, etc. E no contraste, lá está, casais
que conseguem efetivamente estar numa posição de escuta, escuta aqui é um
verbo largo, que não tenham a necessidade de se estar constantemente a
defender dos ataques do outro, claro que isto depois também tem melhores
outcomes. Em relação a mais coisas que funcionem para os casais, eu
acho que em termos de intimidade, A vastíssima maioria da minha amostra
deu-me uma palavra, uma palavra para mim muito cara, que é autenticidade.
A capacidade de colocar a sua autenticidade no casal. De sentirem que
a sua autenticidade, a sua genuinidade é bem-vinda no casal e haver
espaço para isto. Isto tem a ver com a diferenciação do self,
que nós
estávamos a falar.
Luana Cunha Ferreira
De individualidade, sim. Os meus casais, entre as que os meus participantes
chamaram-lhe também de... Deram-lhe este nome, é do ser autêntico. Eu neste
casal posso ser autêntico. E o ser autêntico tem coisas boas e
tem coisas más, não é? Mas haver um espaço ali, ou seja,
não tem que fazer bonito sempre, não está numa performance propriamente. Isto
eram casais satisfeitos nesta amostra, eu só investiguei casais satisfeitos. Por acaso,
soube-se isso à posteriori, mas foi interessante. Ah é? Sim. Eu não
abri o anúncio de jornal a pedir casais satisfeitos, eu pedi só
casais, basicamente. Mas depois, na análise que fiz, qualitativa e quantitativa, vi
que, com exceção de um, eram todos casais com dificuldades, claro, mas
satisfeitos na conjugalidade. Depois em termos de desejos, especificamente, a questão da
autonomia, que não estava descrita em nenhum modelos de relívio em termos
de desejo sexual, apareceu imenso também na amostra. Portanto, a capacidade de
ouvir o outro como alguém separado de mim, lá está separado, mas
íntimo, é uma coisa que aumenta o meu desejo. Mas
Luana Cunha Ferreira
bem ou mal. Nós estamos um bocadinho estranhos, para variar. É? É,
nós estivemos ali na parte da crise de 2011, nomeadamente, portanto na
crise mais expressiva de um pico de divórcios incrível, penso que chegamos
a 74, ponto 74 de divórcios por casamento, e na altura isso
rebentava com todas as calas praticamente, se não estávamos no número 1
estaríamos
no número
2 ou 3, não me lembro. E depois tem vindo a reduzir,
neste momento já estamos, não sei se temos já os números de
2018, Sim, temos os 2018, é para os pontos 64, estão a
diminuir os divórcios. E não sei se é porque as pessoas estão
a dar melhor. Ou há menos pessoas para se divorciar. Pois é,
que há menos casamentos também. E também estão, na crise depois houve
ali um picozinho, e depois também estão a decrescer. Claro que só
se divorcia quem se casa. E em Portugal nós não temos os
dados das uniões de facto, o que também me irrita profundamente. É
porque se precisares de uma declaração de união de facto, fazes a
junta de freguesia e podes pedir se estiveres em economia comum há
dois anos. Mas a maioria das pessoas não precisa desta declaração para
absolutamente
José Maria Pimentel
Sendo certo que há um problema social, uma coisa é o divórcio
do ponto de vista do bem-estar das pessoas e aí eu sou
mais cético em relação a haver um problema. Outra coisa é o
divórcio enquanto problema social, por exemplo, no que diz respeito às crianças,
não é?
E
Obviamente que para uma criança é melhor viver... Quer dizer, o pior
tudo acho eu é viver com dois pais que se deem mal.
Mas é melhor viver com dois pais que se deem... Os estudos
mostram e são muito claros. Viver numa relação de conflito é para
baixo da escala. Divórcio é melhor do que pais que se deem
mal. Mas o ideal é pais que se deem bem, não é?
Portanto, do ponto de vista dessa externalidade para os miúdos, claro que
sim. Do ponto de vista dos próprios, já por acaso não tenho
tanta certeza porque acho que é muito difícil tu analisar, não é?
Porque tu vais comparar com quê? Com períodos na história em que
as pessoas não se divorciavam porque nem se tinha pensado nisso, não
é?
Luana Cunha Ferreira
Isso também é muito protetor do self, não é? Mandando agora assim
um palavrão, porque, quer dizer, se tu nunca entrares em profundidade e
se tiveres sempre as escondas todas abertas, ficas sempre muito confortável ali
na tua rede, ou seja, nunca tu mostras efetivamente vulnerável. É difícil
uma pessoa mostrar-se vulnerável, por isso é que os casais para mim
são tão interessantes, porque é o local mais difícil para ser vulnerável
e é mesmo o local onde para funcionar tens de ser vulnerável.
Portanto, em si é um paradoxo. E é difícil. Nem sei como
é que conseguimos fazer isto e continuamos a insistir. Aliás, é um
José Maria Pimentel
seja, o aumento da liberdade, tu tens mais liberdade, não te torna
necessariamente... Eu acho que a liberdade é um fim em si mesmo,
mas como meio para aumentar a satisfação não é óbvio que seja...
Pois nada disto para mim é óbvio. E deixa-me falar de outro
tema que nós também já abordámos mais ou menos, que é a
questão da infidelidade ou traição, o que lhe quisermos chamar. Nós andamos
aqui um bocadinho a zigzaguear na conversa porque na verdade aquela tua
TED Talk que tu falavas no início aludia justamente a isso. E
esse é um tema interessante porque, acho que a pergunta mais interessante
a fazer em relação a isso é, nós seres humanos traímos por
motivos emocionais ou por motivos de atração? Atração sexual, no sentido em
que, qual é a força motriz? É o facto de nós sermos
homo sapiens sapiens que evoluíram para se sentir atraídos por outras pessoas,
mesmo estando numa relação e mesmo gostando da pessoa ou... Ou
Luana Cunha Ferreira
Pois, a tua pergunta parte de um pressuposto que eu não sei
se é correto. É que essas duas coisas são diferentes. São categorias
cómodas, n? Nós temos que pensar em categorias de adaptoria.
É muito
importante pensarmos em que categorias é que pensamos quando pensamos nas coisas?
Dito isto, eu tenho que responder ambas, porque nós não temos, claro
que temos o nosso cérebro de lagarto, mas hoje em dia nós
sabemos que o nosso cérebro de lagarto, portanto o nosso cérebro mais
profundo, que também regula partes do desejo sexual, não tem o domínio
total sobre o desejo. Também vi isso nas entrevistas que fiz. O
desejo é mesmo muito permeável a outras influências do exterior. Porque senão
a resposta Era muito simples, bastava arranjarmos respostas para essas necessidades e
não tínhamos outro tipo de necessidades psicológicas. Só que o desejo é
muito confuso e confunde-se efetivamente os dois, essas duas categorias. Tanto que
eu tenho dificuldade em colocar limites. Mas
Luana Cunha Ferreira
está, para mim, na direção da negociação. O Dan Savage até diz
uma coisa que eu acho interessante. Ele considera-se um casal monogâmico, não
é? Portanto, tendencialmente monogâmico, não é poliamoroso, nem em relação aberta, propriamente
dito. É tendencialmente monogâmico, mas de vez em quando com os convidados
especiais. Acho que é a figura que ele até utiliza. Mas ele
diz, efetivamente, que aquilo que lhe dá mais prazer é estar com
o seu parceiro, não é? Portanto, os outros que lhe acontecem muito
de vez em quando, parece-me pela forma como ele explica a coisa,
são algo muito enriquecedor da sua vida, mas efetivamente muito pontual. E
ele diz que para seres parte, consideras esta categoria de monógames, para
seres um casal
Luana Cunha Ferreira
achei que sim ao princípio, mas depois vendo melhor, quer dizer, vendo
uma segunda ou uma terceira vez a coisa, e eu achei que
ele estava a dizer que basta abrir o espaço mental para que,
sim, é normal sentir-nos atraído por outras pessoas, e isso não quer
dizer que façamos alguma coisa nesse sentido, mas quer dizer que deitamos
um bocado por terra, mais não seja aqui entre nós os dois,
este ideal romântico, em que percebemos que isto, pronto, se calhar é
um conjunto de mentiras muito bem intencionadas, ou pelo menos com uma
intenção muito clara. O simples facto de tu assumires dentro do teu
casal que isso é um ideal, mas que as coisas não acontecem
assim, ou seja, que naturalmente a paixão não dura a vida toda
e é suposto nunca mais desejar durante os próximos 60 anos outra
pessoa, que isso é um sinal do amor verdadeiro. Mas
Luana Cunha Ferreira
também. E pode-se transformar e há pessoas para as quais a transformação
naquele sentido, num sentido mais à direita está muito bem e mais
à esquerda não está e outras ao contrário. Há muitas configurações, mas
eu acho interessante esta ideia que não temos que desatar, só porque
toda a gente é fiel, não temos que desatar todos a dizer
que agora não fazemos parte da monogamia ou não queremos uma configuração
assim mais clássica, porque de facto somos muito dirigidos para o par,
mas acho interessante esta ideia que mesmo para os casais monogâmicos e
mesmo à série monogâmicos, esta ideia é útil. Esta ideia que tendencialmente
nós não somos monogâmicos e, portanto, se estás a ser, isso pode
ser um esforço. E isso pode ser até positivo e pode ser
vivido
como algo sedutor no casal, mas que não seja uma coisa espontânea
e fácil, porque provavelmente não é.
José Maria Pimentel
E a nossa... Nós temos uma tensão, como em muitas outras coisas,
entre a nossa moralidade e os nossos instintos. E parte da nossa
moralidade, ou grande parte da nossa moralidade, é justamente ir contra os
nossos instintos. Ou, necessariamente, ir contra. Controlar-los. Controlar-los, lidar com eles. Ou
causar um contorno. A violência, por exemplo. Nós temos uma moral anti-violência
à partida, a não ser quando ela é justificada. Isso não é
mais do que ir contra o nosso instinto violento de... E nós...
Lá está o nosso córtex pré-frontal. Resolver. Exatamente. E fazer esse filtro,
não é? O nosso ideal de relação monogâmica é uma coisa muito
parecida com isso. No fundo, nós temos uma moral que vê como
o bom e eu acho que há várias razões para ver isso
como o bom, porque Nós, seres humanos, não é por acaso que
temos moral e os bonobos, por exemplo, os bonobos que estão sempre
a fazer
José Maria Pimentel
mas é diferente. Certo, há sempre prótipo a moral, mas não tem
moral como os seres humanos. Sem par. Portanto, é normal que nós
tenhamos... E os chimpanzés, que por acaso são excelentes, e sempre foi
isso que eu estou a falar, do ponto de vista da violência.
Da guerra. Da
guerra, como não têm moral, andam a abulhuns com os outros o
tempo todo. A nossa moral serve justamente para controlar esses instintos, mas
isto vai ao encontro do teu ponto, reconhecendo esses instintos.
Pois.
E não fingindo que eles não existem.
José Maria Pimentel
violência, por exemplo. Os nossos instintos violentos continuam cá. Não, lá está
de novo. Não é que todos tenhamos instintos violentos, mas todos nós
temos que há qualquer coisa, uns mais outros menos. E socialmente desenvolvemos
uma série de maneiras de os canalizar. O futebol, que eu já
falei aqui, é um deles. A pessoa ir ao estádio, libertar aquela
raiva, insultar o árbitro e tal. Pessoas seriíssimas que depois vão ao
estádio e dizem aquelas coisas. O trânsito é outro, acho que socialmente
menos bom. Não está a me lembrar desse agora. Acho que o
trânsito não é tão inócuo, não é? Mas é giro, não é?
Porque no fundo tu estás a... Nós, sociedade, vivemos sempre neste... Lidamos
sempre mal com o nosso lado animal, não é? É uma coisa
difícil de gerir. E
Luana Cunha Ferreira
para isso, ainda bem temos algumas estruturas postas em ação para nos
ajudarem a moderar isso, não é? Dada a altura temos também pensar
um bocadinho no som de perigo, de perigo ou de custo, que
a monogamia não é a coisa mais fácil do mundo para muita
gente, ou pelo menos não é um given, não é uma coisa
espontânea, pode ter algum risco, mas quer dizer, vai acabar a sociedade
ocidental e eu tenho muitas desconfianças desses medos muito aprofundados que hoje
em dia também vêm em reação. Parece-me que temos mais a ganhar
com a satisfação das pessoas, com a negociação, com as pessoas magoarem-se
menos, com as pessoas sentirem-se mais autênticas, com pertencerem a sítios onde
sentem que a sua identidade é acolhida. Parece-me interessante pelo menos a
explorar.
Luana Cunha Ferreira
Pois, porque eu sou também uma pessoa indecisa, não é? Mas trouxe
um que efetivamente recomendo e é de uma autora portuguesa, a Ana
Carvalheira, uma colega minha psicóloga de outra instituição, do ISPA, que escreveu
um livro chamado Em Defesa do Erotismo, que eu acho que tem
muito a ver também com as questões que nós falamos aqui hoje
dos casais, da identidade e sobretudo do desejo. Ela tem uma abordagem
muito interessante ao desejo e é uma pessoa que investiga também de
uma forma extraordinária. E depois trouxe outro, e portanto esse livro já
li e recomendo devidamente, e trouxe outro que acabei de comprar, estava
a te dizer este domingo e portanto vou recomendar apesar de ainda
não o ter lido porque acho que é mesmo interessante. Comprei na
livraria Atravessa, ali no Príncipe Real, uma livraria brasileira. Chama-se Alternativas Sistémicas,
Bem-Viver, Decrescimento, Comuns, Ecofeminismo, Direitos da Mãe Terra e Desglobalização. Apesar de
ser um nome um bocadinho mais romântico do que eu gosto, gosto
de termos mais específicos, parece-me que faz todo o sentido em 2019
e no fim de 2019, com tudo aquilo que tem acontecido, exploramos
mais estas avenidas.
José Maria Pimentel
O 45 Graus é um projeto tornado possível pela comunidade de mecenas
que o apoia. Mecenas como Gustavo Pimenta, Eduardo Correia de Matos, João
Baltazar, Salvador Cunha, Duarte Dória, Tiago Leite, Joana Farialve, João Manzarra, Mafalda
Lopes da Costa, Rui Oliveira Costa, Carlos Martins, entre muitos outros a
quem agradeço e cujos nomes encontro na descrição deste episódio. Até à
próxima.