#78 Pedro Morgado - Doenças psiquiátricas: causas, tratamento e os mistérios que persistem
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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o
45°. Neste episódio eu converso com Pedro Morgado, médico-psiquiatra. O Pedro é
professor nas áreas de psiquiatria, neuroanatomia e comunicação clínica na Escola de
Medicina da Universidade do Minho, da qual é também vice-presidente. Ao mesmo
tempo tem prática clínica enquanto psiquiatra no Hospital de Braga e no
Centro de Medicina Digital P5. O tema saúde mental é, na verdade,
um que já tardava no podcast e, aliás, hei-de voltar a ele
no futuro. Nesta conversa escolhi o Pedro por ser psiquiatra com experiência
quer na investigação quer em prática clínica. E por isso falamos sobretudo
de doenças psiquiátricas que não esgotam minimamente o âmbito da saúde mental
e sobretudo sob a perspectiva da medicina. Como disse, É provável que
voltei a este tema no futuro e, nesse caso, será provavelmente com
alguém que traga a perspectiva da psicologia clínica. Este foi um episódio
em que aprendi imenso. O Pedro não só sabe muito do que
fala, como é um ótimo comunicador. Durante a conversa percorremos as principais
doenças psiquiátricas, Falámos do eterno debate entre causas biológicas e causas psicológicas
barra sociais e ainda tivemos tempo para uma discussão mais livre sobre
o que explica o facto quer de Portugal ser um dos países
europeus com maior prevalência de doenças mentais ou psiquiátricas, quer o facto
de termos um perfil de doenças, entre as mais comuns e os
menos comuns, bastante diferentes dos nossos países vizinhos e à partida culturalmente
e geograficamente próximos. Já sabem que podem encontrar o índice dos tópicos
abordados e ainda algumas leituras adicionais na descrição do episódio. Mas agora,
deixo-vos com Pedro Morgado.
Pedro Morgado
Bem-vindo ao podcast, Pedro. Vamos falar de saúde mental e doença psiquiátrica,
que acho que eu vou começar mesmo por essa pergunta. Qual é
a diferença entre as duas e,
ao
mesmo tempo, também te perguntava qual é exatamente a definição de doença
psiquiátrica porque me parece que não será completamente óbvio definir o que
é que é uma doença, aliás, se nós pensarmos. Até não só
pelas doenças que existiram ao longo da história, como pelo facto de
hoje em dia haver coisas que já não são consideradas doenças, pelo
contrário, são consideradas absolutamente normais, como a homossexualidade, por exemplo, e coisas
que antigamente não eram consideradas doenças e hoje em dia já são,
o que significa que a definição não será muito
Pedro Morgado
fácil. Olá, bom dia, obrigado pelo convite E eu acho que essa
é uma boa pergunta para começarmos a nossa conversa. Em primeiro lugar,
penso que é importante percebermos a diferença entre saúde mental e doença
psiquiátrica. A saúde mental diz respeito ao nosso completo bem-estar E o
bem-estar tem vários componentes, tem um componente naturalmente que é um componente
físico e que está muito ligado e que é indissociável também deste
componente menos tangível e é que nós chamamos a saúde mental. E
saúde mental diz respeito à nossa capacidade de estarmos bem, à nossa
capacidade de desufruirmos dos diferentes componentes da nossa vida, a nossa capacidade
de termos recursos para gerir a nossa vida, a nossa capacidade de
podermos fazer exercício físico, de podermos expressar a nossa espiritualidade, portanto, tudo
aquilo que nos faz sentir bem. Por outro lado, quando falamos de
doença, já estamos a falar de algo muito mais circunscrito e por
isso é que eu penso que aí faz sentido falarmos mais de
doença psiquiátrica e falamos de algo mais circunscrito porque estamos a falar
de uma manifestação de algum nível de disfuncionalidade. Portanto, eu defenderia doença
psiquiátrica como uma doença do cérebro que tem um impacto no pensamento,
no comportamento, nas emoções de uma determinada pessoa. Mas é muito importante
nós não perdermos de vista que para haver uma doença tem que
haver a tal disfunção cerebral que lhe está subjacente e isso é
que fez que ao longo da história nós às vezes nos confundíssemos
e olhássemos para determinado comportamento e achássemos que este comportamento pode ser
desviante, pode ser menos frequente e chamámos-lhe doença, mas hoje quando olhamos
para esse comportamento e tentamos perceber se há a tal disfunção subjacente
descobrimos que não e, portanto, doença implica haver uma desfunção do cérebro.
Porquê é que eu penso que é importante o termo doença psiquiátrica
em vez de doença mental? Porque a separação entre o corpo e
mente, que é uma coisa completamente obsoleta, foi muito importante para a
estigmatização da psiquiatria. Enquanto nós não olharmos para a psiquiatria como uma
disciplina médica, como uma disciplina científica da medicina e a tratarmos como
tratamos todas as outras áreas da medicina, nós vamos correr o risco
de continuar a estigmatizar as situações de doença e, portanto, eu acho
que é mais correto falarmos em doença psiquiátrica. Tu aludiste a uma
questão interessante que é a questão de,
Pedro Morgado
no fundo, para ser considerada uma doença psiquiátrica tem que ter uma
causa visível no cérebro, ou seja, tem que ser identificável e, portanto,
acaba por haver, de certa forma, uma ligação entre uma coisa e
outra. Ou seja, se tu tiveres um determinado comportamento que... Ou queixas
da pessoa, mas depois a medicina tem o desafio de encontrar uma
causa visível, não é? De fazer uma ressonância magnética ou o que
seja, para encontrar uma alteração no cérebro que consiga, de alguma forma,
explicar aquela doença. Por exemplo, no caso da depressão, há um debate
até grande entre pessoas que dizem que a depressão é apenas causas
biológicas, no sentido em que é sempre uma disfunção do cérebro, porque
tens uma maior ação de determinados neurotransmissores, ou pelo contrário, uma ação
demasiado baixa desses neurotransmissores, ou determinadas características do córtex da pessoa, por
exemplo, e do outro lado tens as pessoas que dizem que tem
sobretudo que ver com questões psicológicas da nossa mente. É muito
Pedro Morgado
facto, na realidade, os psiquiatras, a maior parte das vezes, não utilizam
esses exames que demonstram a existência de alterações para fazer diagnóstico. Isto
parece quase um paradoxo, não é? Eu acabei de dizer que tem
que haver disfunção para ser doença e depois estou agora a referir
que aquilo que é verdade é que nós não usamos esses exames
na prática clínica. Então qual é que é aqui a diferença? É
que para algumas doenças nós até podemos ainda não ter detalhado quais
são os mecanismos cerebrais que estão disfuncionais. Isso não implica que não
exista uma disfunção. Como é que nós trabalhamos na prática? Como é
que no dia a dia nós fazemos este diagnóstico? Portanto, as pessoas
chegam até nós com uma história de vida, com algumas queixas, outras
vezes nem sequer têm queixas, não é? Mas a sua narrativa, o
seu discurso ajuda-nos a perceber aquilo que está a acontecer de diferente
ao longo do seu percurso e a maior parte das vezes nas
doenças em que as pessoas não têm queixas porque não têm insight,
não têm capacidade de perceber que estão doentes. Há uma mudança... Como,
por exemplo, desculpa interromper-te... Por exemplo, na psicose. Na psicose a pessoa
pode estar a experienciar um delírio que
para
ela é real, que é uma crença falsa, que tem uma extraordinária
convicção de certeza. Mas aquilo que nós fazemos enquanto psiquiatras é tentar
identificar na narrativa e na biografia desta pessoa se há um corte,
se há uma mudança. E se esta mudança não pode ser explicada
por qualquer outro fenómeno que não seja o tal fenómeno patológico que
está ali
Pedro Morgado
subjacente. Mas, cientificamente, para estabelecer a existência de uma psicose, tu tens
que encontrar esse substrato cerebral. Tu estás a dizer que, naquele caso
específico, como tu sabes, como já está comprovado que a psicose é
uma doença que existe, tu não precisas, naquele caso específico, ir fazê-lo.
Mas para estabelecer a existência da psicose, há algum tempo foi preciso...
Exatamente. E
Pedro Morgado
a psicose até é um bom exemplo, porque a psicose esquizofrénica, por
exemplo, quando não tratada, muda completamente a pessoa, muda a sua personalidade,
muda a sua maneira de ser quando não tratada. E, portanto, nós
tínhamos já historicamente, desde há muitos anos atrás, descrições muito claras de
que havia ali uma evolução patológica, que tinha que estar a acontecer
alguma coisa no cérebro e no corpo da pessoa, porque, por exemplo,
a psicose esquizofrénica em fases avançadas tem muitos sintomas físicos e tinha
que estar ali a acontecer alguma coisa no seu sistema nervoso central
que estava a proporcionar esta mudança. Depois há uma outra dificuldade que
a psiquiatria tem, é que há muitas situações que são um espectro.
Nós temos até um determinado nível, aceitamos aquele comportamento, aquele pensamento ou
aquela emoção como normal, a partir de determinado nível ou em determinado
contexto começamos a pôr em causa a sua normalidade. E eu posso
dar aqui outro exemplo, até porque foi falado esta questão da depressão
e da tristeza. Se uma pessoa tem um evento de vida adverso,
é natural, é expectável, é aceitável que fique triste e que essa
tristeza possa durar algum tempo. Também é expectável que a pessoa possa
integrar aquilo que lhe aconteceu, fazer o luto e recuperar dessa tristeza.
Ora, quando a tristeza é demasiado profunda, quando ela tem um impacto
demasiado significativo na vida da pessoa e até desproporcional àquilo que o
motivou, nós temos razões para pensar que se calhar estabeleceu-se ali um
fenómeno patológico. E, portanto, esta é a medida que nós utilizamos para
fazer o diagnóstico em psiquiatria e a investigação o que é que
nos traz? Traz-nos depois uma explicação para estes fenómenos. Porquê que a
pessoa que ficou triste não conseguiu recuperar e até teve uma tristeza
que é extraordinariamente excessiva, teve perturbações do sono, teve perturbações do apetite,
portanto, teve todos os sintomas
Pedro Morgado
que eu sei que estão presentes num quadro de depressão. Pois, porque
já até podemos começar pela depressão e até porque é interessante tentar
fazer um bocadinho a taxonomia das doenças psiquiátricas. A depressão é um
caso, se calhar, dos casos mais interessantes por várias razões, porque é
muito prevalente, porque é muito misterioso em termos das causas e também,
acho eu, porque a definição ou aquilo que constitui a depressão não
é muito óbvio para... Bem, não só tem manifestações diferentes entre as
pessoas, mas também se calhar não é muito óbvio para o senso
comum, porque depressão não é simplesmente estar triste. Daí, se morrer um
familiar e tu ficares triste, isso em si mesmo não por supôr
ser uma depressão, não apenas por ter pouca duração, mas também por
não ter uma série de outros sintomas associados a que estavas a
aludir agora. Prostração, na pessoa não conseguir fazer-se fazer coisas, com massa
redundância, não conseguir sair da cama, não conseguir ter gozo, e há
mais, estão-me a escapar alguns
Pedro Morgado
provavelmente. Certo. É precisamente essa a diferença. A tristeza que é reativa,
como eu já referi, tem uma proporcionalidade em relação àquilo que a
provocou. A depressão não é só tristeza, e este é um aspecto
importante. O humor deprimido é uma das características que está na depressão,
mas como estavas a mencionar, há muitos outros sintomas, nomeadamente a estrenia,
que é o grande cansaço que as pessoas com depressão sentem-se. Sentem-se
esvaziadas, muitas vezes, do seu sentido de vida, sentem-se incapazes de experienciar
prazer em coisas que antes eram muito prazerosas, como estar com os
filhos, com os companheiros, estar com os amigos, portanto, passam a ser
eventos sem qualquer significado do ponto de vista da ressonância e daquilo
que é a experiência emocional. Há os sintomas somáticos, falámos aqui das
questões do apetite, as questões do sono, o desinteresse sexual, portanto há
uma série de sintomas que se agrupam e que formam aquilo que
nós chamamos de um síndrome. Porque nós, e já agora acrescento aqui
a outra questão... É porque é um síndrome, não é uma doença?
É um síndrome depressivo, porque síndrome também pode ser uma doença, é
um conjunto de sintomas. Nós diagnosticamos
por
um conjunto de sintomas. Por acaso, como nós sabemos que o cérebro
tem determinadas alterações, é uma doença. Temos uma explicação fisiotontológica para os
sintomas. Mas, se calhar, até temos vários tipos de depressão. Durante muitos
anos nós até dividíamos as depressões entre aquelas que chamávamos endógenas e
as que chamávamos exógenas, o que significava endógeno que vem de dentro,
portanto
depressões
mais biológicas e mais relacionadas com a própria natureza da pessoa e
não com eventos de vida e falávamos das depressões exógenas, ou seja,
aquelas que surgiam reativamente a alguma coisa que aconteceu. Essa divisão tem
sido posta em causa. Porquê? Porque tanto numa como na outra há
fatores endógenos e exógenos que concorrem para o estabelecimento da depressão. Depois
há aqui outro fator que também é muito importante nós termos em
conta, que é a narrativa que as pessoas constroem quando experienciam um
quadro depressivo. Nós podemos ter ao longo da nossa vida situações muito
adversas, que vamos gerindo e vamos conseguindo ultrapassar. E há um determinado
ponto da vida em que não conseguimos ultrapassar essa situação ou de
outra forma em que adoecemos. E pode haver um nível de relação
temporal entre o adoecer e aquele evento negativo. E eu posso usar
aquele evento negativo para explicar o episódio depressivo que eu estou a
experienciar, mas isto não significa que haja aqui uma relação de causa
e efeito. Nós sabemos que em termos de grupo há relações de
causa e efeito, nós sabemos que as pessoas que têm mais condições
de vida, as pessoas que têm eventos de vida adversas, as pessoas
que têm menos condições económicas, as pessoas que estão solteiras, viúvas ou
divorciadas, as pessoas que estão desempregadas, têm maior risco de sofrer depressão.
Mas isto é em termos médios. Há pessoas que têm todas estas
características e não deprimem. É preciso cuidado quando fazemos uma excessiva associação
entre os eventos de vida e aquele episódio depressivo em concreto. Pode
haver essa ligação, mas também pode não ser uma ligação de causa
e efeito. Sim,
Pedro Morgado
Sim. No fundo é parecido, não é? Psicológicas barra sociais. É muito
parecido e é um debate que eu penso que faz cada vez
menos sentido na psiquiatria, porque nós temos que olhar para a realidade
dos diferentes prismas que a acompanham e, portanto, todas as expressões têm
seguramente causas mais biológicas, no sentido de mais físicas, mais de funcionamento
cerebral, causas mais psicológicas, que também têm uma relação com a biologia.
Pois, claro. E depois causas sociais, de vida, de ambiente em que
a pessoa está.
Pedro Morgado
Mas, aliás, eu tenho que te dizer uma coisa, que eu gostava
de perguntar. Esse debate do biológico versus psicológico, ou do nature versus
nurture, muitas vezes há um relativismo que é feito e com o
qual eu tendo a concordar, de dizer que no fundo não é
bem possível fazer essa distinção. Mas eu diria que isso também pode
enganar um bocadinho em certo sentido. O que me parece não é
que a distinção não seja possível ser feita, é que ela, no
caso individual, acaba por não ser relevante na medida em que acontecem
pelo menos duas coisas. Primeiro, a tua mente age sobre a tua
biologia. Por exemplo, um estudo, acho que até foi um dos maiores
progressos na investigação nos últimos anos, foi ter conseguido perceber quais eram
os genes que provocavam maior tendência para a depressão, por exemplo, mas
isso lá está como a palavra que eu utilizo indica uma tendência
tu podes ter os alelos, podes ter a versão desse gene ou
podes ter no conjunto desses genes mais das versões que são mais
conduzentes à depressão e não ter depressão nenhuma e eu não ter
e ter precisamente porque depois isso implica depois o nosso caso individual
e isso é conjugado com a nossa vida, a interpretação que fazemos
da nossa vida, o contexto social em que estamos e isso seria
isso, lá está, se estamos desempregados ou não estamos, se estamos viúvos
ou não estamos e uma série de coisas. Agora, ainda assim, no
caso
Pedro Morgado
no caso clínico concreto, há de haver situações em que é mais...
Em que a explicação tende mais para um lado, tende mais para
o outro. Ou seja, tu podes ter alguém, parece-me haver casos, podes
ter alguém que, por ter uma doença física, por exemplo, que induzisse.
Era uma das coisas que falavas. Há bocado falavas do facto da
depressão poder conduzir a manifestações físicas, mas também existe o contrário. Também
existem doenças como diabetes, salvo erro, não é? Sim. Que muitas vezes
provocam... Portanto, nesse caso, se não é puramente biológico, pelo menos tem
muito de biológico, no sentido em que é uma doença física que
está a provocar... Não sei qual é o caminho pelo qual isso
acontece.
Pedro Morgado
pistas muito interessantes para compreendermos algumas doenças, mas até o momento no
campo da psiquiatria não trouxeram praticamente nada do ponto de vista prático.
Nós identificamos N genes que têm uma associação às doenças e encontramos
outro fenómeno curioso que é há os mesmos genes associados a doenças
muito diferentes, mas depois na prática é como tu dizias, não conseguimos
prever esta pessoa por ter este género, vai de certeza ter uma
doença ou pelo menos tem uma probabilidade X de vir a ter
essa doença porque os outros fatores têm uma importância muito grande quando
nós também estamos a avaliar o que é que levou as pessoas
a adoecerem. Portanto, neste momento, o que é mais importante é, para
cada caso, perceber o que é que se passa com aquela pessoa
e construir uma resposta terapêutica que integre os diferentes componentes que estão
aqui em jogo. Portanto, a resposta terapêutica, o tratamento que nós vamos
ter que montar para a pessoa, e isso é um aspecto muito
importante, porque há um objetivo na relação, que é na relação clínica,
é um objetivo que é ajudar a pessoa a melhorar e a
ver-se livre da situação de doença, e a resposta que nós vamos
montar tem que olhar para as diferentes coisas. Por isso é que
eu há pouco dizia que já não faz muito sentido andarmos a
dividir isto entre biologia e psicologia e sociologia. Temos que atuar nas
diferentes dimensões que compõem os quadros e que
Pedro Morgado
motivam os quadros. Mas a minha pergunta tinha exatamente a ver com
isso. Parece-me evidente que essa distinção na caracterização da doença serve de
pouco, porque ela obviamente tem os dois tipos de causas. Agora, a
minha pergunta era, Nos casos específicos, ou seja, pegando no caso da
diabetes, porquê que, eu na verdade não sei qual é a causalidade
entre a diabetes e a depressão, quer dizer, como é que a
diabetes leva à depressão fisicamente, como é que isso acontece? Pois, isso
está por explorar. Há muitas
Pedro Morgado
razões para que
isso
possa acontecer. Poderá haver razões relacionadas com a própria fisiopatologia da diabetes,
mas também com o facto de, do ponto de vista psicológico e
emocional, a diabetes trazer uma série de problemas, uma série de receios
associados e uma série de limitações associadas que aumentam o risco de…
portanto, também há uma relação, por exemplo, com o infarto agudo do
miocárdio. Também há uma relação com uma série de doenças endocrinológicas. E
depois há aqui outra questão que é, pode haver uma causa comum.
Não tem que ser uma doença a provocar a outra. Mas, por
exemplo, uma pessoa sujeita a stress crónico tem um nível basal mais
elevado do cortisol e, por essa via, está mais exposta a sofrer
das duas doenças. Não tem que ser uma provocar a outra.
Pedro Morgado
É altamente complexo. Sim, sim. Esse feedback loop, não é? Entre as
coisas todas que estávamos a falar. Ele é o segundo fator que
eu ia dizer há bocadinho e que depois me passou. Tinha exatamente
que ver com isso. É que a nossa experiência também alimenta o
funcionamento do nosso cérebro. Totalmente. Pela criação de sinapses diferentes, pela ativação
de zonas diferentes, ou seja, essa relação é, na prática, quase impossível
de estabelecer. Ainda assim, haverá casos, parece-me, mas diz-me se estiver enganado,
e parece-me que isso pode ser um desafio clínico complicado. Haverá casos
em que a causa é de facto maioritariamente biológica, porque tem que
ver com qualquer coisa que a pessoa sofreu, que lhe provocou. Lá
está um desequilíbrio, de repente há um desequilíbrio nos neurotransmissores do cérebro
e a pessoa cria uma depressão que não tem caso, não foi
porque a vida dela mudou, foi simplesmente por uma causa biológica. E
aí, por exemplo, a psicoterapia, à partida, servirá de pouco. Terá menos
utilidade, mas tem a sua
Pedro Morgado
que clinicamente deve ser tramado, porque tu tens, no fundo, tu estás
a lidar com um espectro de situações e é que poderá haver
situações em que a psicoterapia, no fundo, seja a raiz da solução,
não é porque a pessoa está a passar por um momento que
se divorciou, quer dizer, são causas, nesse caso, de facto, maioritariamente extrínsecas,
para usar a terminologia de há pouco, e depois haverá outras situações
em que parece que é possível estabelecer que as causas de facto
terão muito pouco de psicológico, não é? Tem a ver… Mas pode
estar enganada, por isso é que eu estou a perguntar. E
Pedro Morgado
E agora temos aqui uma questão que é, isto é a mesma
depressão que a depressão da pessoa que tinha os tais fatores de
risco genéticos, que teve uma situação de vida muito difícil e que
por essa via adoeceu, do ponto de vista do síndrome, ou seja,
do ponto de vista dos sintomas e dos sinais, é muito parecida.
Talvez não seja a mesma doença. E aí estou completamente de acordo
que o tipo de intervenção que nós desenhamos vai ser diferente e
vai estar ajustado à realidade de cada pessoa. Mas isso é sempre
assim, independentemente de, se estamos a falar de uma coisa provocada por
fatores biológicos, digamos assim, ou mais provocada por fatores psicológicos, o tratamento
tem que ser sempre muito personalizável. Esse é o grande desafio da
psiquiatria hoje em dia, é personalizar cada vez mais os tratamentos.
Pedro Morgado
O caso que deixas é muito interessante. No fundo, tem a ver
com aquilo que falavas no início, tem a ver com o facto
de isto ser um espectro, de ser um contínuo e nos extremos
desse contínuo tu tens situações mais ou menos a preto e branco
da pessoa que se divorciou e ficou deprimida e provavelmente conseguiu despistar
outros fatores que são causas psicológicas, no fundo causas de...
Se
calhar nem a terminologia é mais correta, mas tem a ver com
a vida da pessoa e do outro lado tens situações, e esse
exemplo que deste é ótimo, causas puramente biológicas, puramente fisiológicas. Mas depois
no meio tens uma conjugação de situações que no fundo são uma
mistura entre essas duas coisas e que muitas vezes na prática se
autoalimentam. Na prática eu julgo que hoje em dia a maior parte
dos planos de tratamento envolverão as duas coisas, ou seja, uma intervenção
clínica, farmacológica, mas também há outros tratamentos diretos, E psicoterapia.
Pedro Morgado
Sim, falando da depressão em concreto, as opções de tratamento que nós
temos passam pela farmacologia, farmacoterapia, ou seja, os antidepressivos. Sobre isso é
importante dizer que os antidepressivos não viciam, os antidepressivos não mudam a
personalidade das pessoas, há alguma confusão à volta disso. Portanto, são fármacos
relativamente seguros, são dos mais seguros que nós temos na medicina e
os antidepressivos são normalmente muito utilizados no tratamento da depressão. Depois, como
estavas a referir, há outros tratamentos físicos e aqui estamos a falar
de estimulação cerebral, por exemplo. A estimulação cerebral neste momento tem aprovação
no tratamento da depressão. Em situações mais difíceis de tratar, mais resistentes
ao tratamento, podemos fazer electroconvulsivoterapia, aquilo que as pessoas associam aos choques
elétricos, foi muito mal visto. Não é a eletricidade que trata, é
a convulsão, daí o nome, a convulsivoterapia. Portanto, a convulsão é como
se tivesse um reset ao cérebro e a pessoa fica melhor, clinicamente
de facto há uma melhoria significativa.
Pedro Morgado
Pensa-se que será sobre as sinapses, mas ninguém consegue explicar muito bem
porquê é que funciona. O que se sabe é que funciona. A
história como isto começou também é muito interessante, porque isto começou, os
psiquiatras observaram que os doentes que tinham depressões muito graves, quando ainda
não existiam fármacos, e que também tinham epilepsia, melhoravam depois de ter
uma crise convulsiva no contexto da epilepsia, melhoravam muito da sua depressão.
E
isto
é que levou a pensar que era uma boa hipótese. Já agora,
porque falei da tuberculose, o primeiro antidepressivo, um dos primeiros antidepressivos que
surgiu, surgiu porque era um farmaco que estava a ser testado como
um antibiótico para a tuberculose e percebeu-se que os doentes melhoravam em
termos do seu humor. A tal depressão acabou por ser muito melhorada,
acabou por haver uma melhoria muito significativa do humor dos doentes e
assim percebeu-se que podia ser útil para tratar a depressão. E fazia
o
Pedro Morgado
Ok, a psicoterapia tem algumas dificuldades metodológicas em termos de perceber a
sua eficácia, mas há tratamentos de psicoterapia que têm uma eficácia completamente
demonstrada, inclusivamente, que foi possível demonstrar quais são as alterações cerebrais que
produzem, na tal fisiopatologia, de que já falámos muitas vezes, este palavrão,
na tal alteração cerebral que está disfuncional na doença e que depois
melhora com a psicoterapia. Aquela que está claramente bem demonstrada é a
psicoterapia cognitiva ou comportamental. Essa seguiu os princípios científicos de demonstração de
evidência e, portanto, eu estou muito à vontade para a recomendar para
a maioria das situações. Depois, sobretudo, estamos a falar de depressão, ansiedade,
portanto tem um enquadramento, uma justificação, uma evidência que nos deixa muito
seguros e que eu recomendo sempre que possível. Deixa-me interromper-te, não quero
cortar o raciocínio, mas fizeste
Pedro Morgado
acho que é muito maior do que aquilo que faz parte do
domínio do senso comum, parece-me, não é? Sim, é muito maior. Agora,
a psicoterapia cognitiva ou comportamental tem que ser bem efetuada, não é?
Isto é como um fármaco, um fármaco que só funciona se for
bem produzido. Sendo que aqui depende da pessoa que o... Precisamente, há
aqui um fator... Exatamente, há aqui um fator e é muito mais
difícil controlar a qualidade do serviço do que a qualidade de um
fármaco e, portanto, há alguma confusão. Eu às vezes encontro pessoas que
julgam que estiveram a fazer psicoterapia cognitiva ou comportamental e quando me
descrevem aquilo que fizeram eu percebo que não estiveram a fazer. Estiveram
a fazer outra abordagem psicoterapéutica. Isto faz a diferença. Há outras técnicas,
por exemplo, psicoterapia focada nas emoções, que também têm algum nível de
evidência em condições mais específicas e, portanto, também já estão a fazer
esse percurso de mostrar que funciona. A psicoterapia esteve muitos anos ligada
à psicanálise, não é? E aquela ideia que nós temos as teorias
mais dinâmicas e que, como o próprio nome diz, são teorias. Uma
teoria é algo que é uma explicação, mas que ainda não demonstrou
que é uma realidade, que é uma verdade. Portanto, são explicações, obviamente
que foram teorias desenvolvidas com estudo, foram teorias desenvolvidas com muita observação
de situações clínicas, mas às quais eu reconheço algum nível de realismo,
mas das quais também me distancio em algumas leituras que fazem dos
fenómenos que vão acontecendo às pessoas. A psicanálise tem um componente especulativo
acerca do significado das coisas que eu acho que nós devemos olhar
com moderação,
com
ponderação e com algum cuidado. O problema da psicanálise é que não
demonstrou eficácia. Portanto, embora às vezes faça bem às pessoas, mas o
exercício físico também faz bem, a meditação também faz bem, ainda não
demonstrou eficácia dos meios através dos quais a ciência demonstra eficácia.
Pedro Morgado
a primeira nem a segunda opção. Tiraste-me as palavras da boca, era
isso que eu ia te dizer. Pegando o exemplo da depressão, mas
isto vai para lá, da depressão, que está relacionado com aquilo que
falavas há um bocadinho, eu ouvi, por acaso agora escapa-me o nome,
eu depois ponho nas referências, mas era um tipo que é psiquiatra
e foi, acho que foi, um psiquiatra do nome, que acho que
foi presidente daquela associação mais conhecida dos Estados Unidos de psiquiatria, ele
falava de uma coisa muito interessante que eu me levei a pensar
e pensei que seria interessante perguntar-te. Ele dizia que, ele punha a
tónica na questão biológica e depois até fazia uma coisa interessante, que
dizia, calma, que eu não estou, isso não é para voltar àquele
debate de dizer que todas as doenças psiquiátricas são puramente biológicas, mas
para chamar a atenção para um aspecto particular que é o seguinte,
em muitas doenças o impacto
Pedro Morgado
Tal qual. A esquizofrenia é um excelente exemplo disso. As alterações começam
muito cedo, provavelmente dentro do desenvolvimento intratorino. Começam alterações que vão ser
muito importantes para o desenvolvimento da esquizofrenia. Nós não sabemos se essas
alterações são inesoráveis, ou seja, se por terem acontecido é certo que
a pessoa vai desenvolver esquizofrenia, mas nós sabemos que quando um doente
tem um primeiro episódio psicótico tudo o que é crítico já aconteceu
no seu cérebro, tudo o que é crítico para o desenvolvimento da
doença já aconteceu. E o que nós vamos fazer a partir dali
é tratar os sintomas e evitar que a doença progrida, mas tudo
o que tinha para acontecer já aconteceu. O aspecto positivo disto é
que se nós formos mesmo muito rápidos a atuar e se nós
conseguirmos travar a expressão sintomática naquele momento, a probabilidade da pessoa manter
um enorme nível de funcionalidade é muito grande E daí a importância
de nós tratarmos muito bem as pessoas desde o primeiro episódio psicótico.
Mas a esquizofrenia é um bom exemplo disso. Mas há outras doenças
onde nós vemos essa situação, por exemplo, mais à frente a virmos
falar da doença obsessiva compulsiva.
Nós
participamos, na Universidade do Minho, num consórcio internacional que é o Enigma,
que partilha dados, ou analisa conjuntamente dados de ressonância magnética de pessoas
com doença obsessiva compulsiva, e o que nós verificamos é que na
idade pediátrica já há alterações cerebrais que depois vão justificar o aparecimento
dos sintomas mais tarde. Portanto, nós temos claramente muitas doenças onde as
alterações cerebrais acontecem muito mais cedo do que a emergência dos sintomas.
E na depressão isso pode acontecer também? Na depressão isso pode acontecer
também e há alguns estudos que também já identificam quais são as
alterações que com grande nível de probabilidade vulnerabilizam a pessoa para depois
experienciar um episódio depressivo.
Pedro Morgado
parte das vezes sim. Há um número muito reduzido de casos em
que isso pode não acontecer, mas a maior parte das vezes sim.
E como tem noção da sua inadequabilidade fica muito ansiosa e também
faz com que a pessoa tenha vergonha daquilo que está a experienciar
e tenha muita dificuldade em falar sobre isto e em procurar ajuda
de pessoas próximas e também de profissionais de saúde. Portanto, isto é
o componente obsessivo da doença. O componente compulsivo é aquilo que a
pessoa faz para aliviar o sofrimento que é provocado pelas obsessões. E
aquilo que a pessoa faz pode fazê-lo mentalmente ou fisicamente. Fisicamente, lavar
as mãos, ir ligar e desligar o do interruptor vezes sem conta,
ir confirmar uma coisa que tem a certeza que não aconteceu, mas
para ter a certeza que não aconteceu vai confirmar cem vezes numa
hora, ou por exemplo, mentalmente, anular os pensamentos que teve e que
são terríveis porque são completamente contrários à natureza da pessoa. E então
isto forma um círculo vicioso, terrível, do qual é muito difícil sair
e provoca um enorme sofrimento às pessoas e uma perda de horas
e de dias de vida saudáveis, que é muito significativa. É uma
das doenças que implica maior perda de qualidade de vida de todas
as doenças que nós conhecemos. Além disto, as pessoas podem ter outro
tipo de sintomas, que são mais relacionados com alguns fenómenos psicológicos, por
exemplo, dão um valor muito significativo aos pensamentos, acham que é tão
mal pensar uma coisa como fazer, são pessoas normalmente com um elevado
nível de responsabilidade, são pessoas que têm muita intolerância à ambiguidade e
que portanto retraem-se muito em termos de risco, portanto, têm algumas características
que estão ali acessórias e que acabam por também dificultar muito a
sua vida. É uma doença que surge cedo em termos de idade,
normalmente surge entre a idade pediátrica, tanto que as crianças podem já
ter sintomas desta doença, e o início da idade adulta. É mais
raro aparecerem formas tardias. E é uma doença, como eu dizia, com
um impacto muito grande na vida das pessoas. Claro que já Agora
faço já aqui o contraponto, alguém está a ouvir-nos e está a
dizer, mas eu, quando saio do carro, vou muitas vezes atrás verificar
se ele ficou bem fechado. Isto não significa que esta pessoa tenha
uma doença. Há uma série de comportamentos de verificação que são adaptativos,
que têm a ver com o contexto que nós vivemos, que não
têm que ser doença. A doença surge quando estes pensamentos são excessivos,
provocam um sofrimento muito grande e consomem muito tempo às pessoas.
Pedro Morgado
É possível ter uma vida aparentemente normal, sofrendo imenso com a doença.
Eu tenho o privilégio de trabalhar com muitas pessoas com esta doença.
Eu acho que é mesmo um privilégio porque elas ensinam-nos imenso. Das
coisas mais, talvez, brutais que eu já ouvi é pessoas dizerem-me assim,
eu estou feliz por me ter dito que tenho uma doença.
Tirou-me um
peso
de cima, não é? Isso, Tirou-me um peso de cima. Eu achava
que a minha vida era isto e afinal eu tenho um diagnóstico
e estou feliz porque descobri que a minha vida não é isto.
Descobri que há outra vida e que a minha pessoa não tem
que estar consumida e carregar esta cruz. Vejo pessoas que me chegam
com 45 anos, que têm as profissões mais diferenciadas que se pode
imaginar e que viveram anos a ter 10 horas de sintomas, 10
horas em 24 consumidas pelos sintomas da doença. A sério, a sério.
Para termos ideia do impacto brutal que esta doença tem. E dentro
da psiquiatria, curiosamente, é uma doença bastante negligenciada, não há muita gente
dedicada a ela, mesmo aqui em Portugal, não há muito investimento nesta
doença, porque é uma doença... Por ser
invisível, em certo sentido. Sim,
é uma doença que mesmo dentro da própria psiquiatria tem esse lastro
de alguma invisibilidade, curiosamente, apesar de ser muito frequente.
Pedro Morgado
de grande disfuncionalidade, há situações muito graves de disfuncionalidade, mas as pessoas
vão conseguindo acomodar os sintomas com grande sofrimento, por causa da culpa,
por causa da vergonha e com grande sofrimento. São histórias de sofrimento
absolutamente brutais, que nos esmagam quando as ouvimos. E é por isso
que é uma pena, e eu digo sempre isto, que as pessoas
não procurem tratamento mais cedo, porque de facto, num número importante de
pessoas, os tratamentos são muito eficazes e portanto não tem que esparecer
isso.
Pedro Morgado
Mas é engraçado, porque tu falaste aí, tu fazes de casos que
apesar de tudo me parecem diferentes, mas isto pode ser... Pode ser
que eu estou a ver isto em termos demasiado simplistas e não
estou a ver a causa comum, mas tu teres uma pessoa que,
porque vive num ambiente cultural em que ou foi educada de determinada
maneira, a, sei lá, ver a homossexualidade, por exemplo, como uma perversão
e que vai, no fundo, recalcando, esta palavra tem várias conotações na
psicologia, mas vai mais ou menos recalcando esses pensamentos ou tentando geri-los
de uma forma, dessa forma compulsiva, no fundo contrariando aqueles pensamentos e
provavelmente tendo ações que de certa forma contrariam ou conseguem, não sei
qual é a palavra certa, mas conseguem neutralizar de alguma forma esses
pensamentos, Esse caso é diferente, ou parece-me ser diferente, da pessoa que
tem a obsessão de ver se o bico do fogão está ligado.
Pedro Morgado
Ok. É um bom exemplo. E toca aí em vários pontos que
vale a pena clarificar. Primeiro é, há diferentes sub-tipos da doença, de
facto. Portanto, há pessoas... Nós falamos classicamente em cinco sub-tipos, mas há
pessoas que são mais de verificação, há pessoas que são mais de
pensamentos proibidos, como as questões religiosas ou da homossexualidade e também da
agressividade, há pessoas que têm mais acumulação, portanto têm muita dificuldade em
desfazer-se das coisas que têm em casa. Casa, portanto, e nós agrupamos
mais ou menos assim, dentro dos pensamentos proibidos ainda podemos fazer uma
subdivisão, e daí os 5 tipos. Mas, de facto, há pessoas que
têm só um subtipo e também há pessoas que experienciam os diferentes
domínios, os diferentes subtipos na mesma pessoa. São casos mais complexos e
normalmente mais difíceis de tratar. Essa é uma questão. Agora, há outra
questão, e este caso dos pensamentos sobre a homossexualidade é muito interessante,
outros pensamentos religiosos.
Pedro Morgado
é? É, por exemplo, Uma pessoa que é religiosa ter pensamentos de
blasfémia em relação a Deus ou a Jesus, se for a religião
católica, ou por exemplo ter imagens cerebrais de um santo nu ou
a ter relações sexuais, portanto uma coisa que é muito agressiva para
a crença que aquela pessoa tem. E tocas aí num ponto que
é importante, que é, de facto, a doença está relacionada com esta
construção que a pessoa tem. Numa pessoa que não é religiosa, num
ateu, não vai existir sintomatologia obsessiva dessa natureza. Portanto, há uma relação
com a vida. Mas, por exemplo, no caso das orientações sexuais, e
isso também é muito curioso, não há uma relação, esse recalcamento que
estavas a falar da pessoa que até pode ter uma orientação sexual
minoritária e porque o seu contexto social não lhe permitiu uma expressão
saudável dessa sexualidade. A reprime. Isso não tem nada a ver com
a doença obsessiva. Na doença obsessiva nós podemos ter um homem que
é heterossexual, não tenho qualquer dúvida em relação à sua orientação sexual,
que não é nada homofóbico, nada homofóbico, mas que tem um pensamento
altamente perturbador de que, se calhar, é homossexual e está enganado. E
que, nos relatos que as pessoas me dizem, muitas vezes dizem-me assim,
eu não teria nenhum problema em ter este pensamento ou em ter
esta imagem, se esta fosse a minha orientação sexual. Aliás, para mim
até era mais tranquilo, porque o que está mal é o pensamento
não estar de acordo com a pessoa.
Pedro Morgado
é? Precisamente. Podemos sair desta questão da orientação sexual. Pode levantar mais
dúvidas. Por exemplo, pensamentos obsessivos de teor pedófilo. Uma pessoa que não
tem nada a ver com pedofilia nunca vai praticar um ato pedófilo,
ok? Nunca, jamais. Eu, nos meus doentes, era capaz de assinar que
isso não ia acontecer, porque conheço bem a natureza da doença e
que a pedofilia é a coisa mais inaceitável que existe para esta
pessoa, mas quando passa em frente a uma escola, há um pensamento
que invada o seu cérebro e que lhe diz eu posso, mesmo
sem querer, atacar alguém.
Pedro Morgado
ou sentir-me atraído, eu posso fazer isto. Isto é uma coisa terrível.
Isto invada a cabeça de uma pessoa e provoca-lhe um sofrimento que
eu acho que quem não tem esta doença não imagina o sofrimento
que isto é. É uma coisa que é completamente contrária à natureza
da pessoa e daí a pessoa ficar compelida a fazer as compulsões
que são formas de aliviar esse sofrimento. As compulsões são coisas absolutamente
absurdas e ilógicas, mas que só são feitas por uma pessoa que
tem um enorme sofrimento com isto. Podia ser, por exemplo, alguns dos
doentes que eu acompanho, que contém pensamentos sexuais, têm que verificar se
foi um homem que se teve uma ereção ou não. Que é
óbvio que não vai ter, porque não há aqui nenhuma relação com
o desejo da pessoa, com a natureza da pessoa. Portanto, é uma
coisa muito visceralmente oposta ao que a pessoa é. Mas posso dar
outros exemplos, para também percebermos a natureza disto. Uma mãe que mora
no oitavo piso e que está permanentemente com medo de atirar com
o filho pela janela, que é uma coisa que nunca vai acontecer.
Nunca. Jamais. E que está sistematicamente a descer o elevador até o
piso zero para se aliviar e ter a certeza que não vai
acontecer e sobe e volta a ter o pensamento. Isto dá para
as pessoas perceberem o nível de sofrimento que uma doença destas implica
em algumas situações.
Pedro Morgado
Isso parece-me ter um lado... É engraçado porque eu estava a estabelecer
essa diferença e depois estava a te ouvir falar e a perceber
um fator que é mais ou menos comum a isso tudo, que
é uma questão de pureza, não é? Ou de limpeza, porque tanto
se aplica às questões físicas como às questões sexuais, por exemplo, à
moral sexual. Nesse caso, por exemplo, do exemplo da mãe até nem
tanto, mas não haverá um lado disso que tenha que ver com
o facto de nós não termos acesso à consciência uns dos outros.
E a consciência de qualquer um de nós tem muito lixo. Por
definição, isto é uma coisa que não é muito dita normalmente, mas
é uma evidência, não é? Sim, nós pensamos
Pedro Morgado
orgulhamos, completamente absurdas, que são... E isso não é muito conhecido, nem
muito dito, e não é muito admitido, até por razões normais, não
é? É normal que assim seja. Essa reação também me parece ter
que ver com como nós temos acesso à consciência dos outros, filtrada,
aos pensamentos dos outros, filtrados pela sua consciência, ou seja, eu partilho
contigo. Há pessoas que não têm tanto esse filtro, não é? Mas
todos nós temos, todos nós o fazemos de certa forma, não é?
E portanto, o facto de se eu tomasse o teu cérebro apenas
pelo que tu dizes e tu tomasse o meu cérebro apenas pelo
que eu digo, haveria uma série de espectro de pensamentos que tu
pensavas que eu nunca teria ou que eu pensava que tu
Pedro Morgado
cérebro, por exemplo, mais comumente associadas à doença. Esta é uma das
doenças que tem melhor explicação cerebral, curiosamente. Basicamente, nós temos no nosso
cérebro uma área que é responsável pelos mecanismos automáticos. O cérebro é
como se fosse um computador que nós temos em casa, mas que
tem uma característica diferente dos computadores. Portanto, nós temos um computador, tem
um hardware, e podemos meter lá dentro software. Mas é como se
fosse um computador em que o seu próprio hardware também se vai
alterando, portanto o teclado vai ganhando características, a memória vai evoluindo ou
regredindo conforme a circunstância, conforme a utilização, portanto é como se nós
não precisássemos de estar a comprar o computador mais moderno porque este
processo vai acontecendo naturalmente. O hardware e o software estão sempre em
constante mutação. Então eu dizia, nós temos uma área do cerco que
é responsável pela automação. O que é que isto significa? Significa que
há processos nós fazemos automáticos. Um exemplo mais simples é sempre conduzir,
porque nós, quando começámos a conduzir, todos nós nos lembramos que pensávamos
em agora vou carregar no travão, agora vou pôr a mudança, agora
tenho que carregar na embreagem para pôr a mudança, agora mudar o
pé e pôr o pisca, e agora fazemos isso automaticamente e por
isso quando estamos a conduzir podemos estar a ouvir esta conversa, podemos
estar a ouvir música, podemos estar a planear o nosso dia, podemos
estar a falar ao telefone com hora e com laranja ou com
alta voz, por favor, mas podemos estar a fazer muitas coisas porque
o nosso cérebro está em piloto automático a conduzir e o resto
do cérebro está livre. Na doença, esta área que é responsável pelo
piloto automático está hiper funcionando, portanto, nós estamos a falar de uma
área genericamente, nós chamamos os ganglos da base, onde está o estriado,
e são áreas que estão hiperativas, não param, não param. E, portanto,
o pensamento é gerado, tal como eu posso ter o pensamento, vou
puxar o travão de mão, mas eu consigo pará-lo, o meu cérebro
para esse pensamento e diz assim, isto é absurdo, esquece este pensamento.
No cérebro da pessoa com doença obsessiva ou compulsiva não há mecanismo
de stop e, portanto, o pensamento tem uma consequência brutal, quase como
se fosse acontecer ou tivesse acontecido. E isto depois leva à compulsão
e depois isto vicia o próprio cérebro neste circuito de obsessão-compulsão. Isto
é uma coisa que nós seguramente sabemos que está a alterar. Depois,
há uma área, que é o cortex orbital frontal, vale a pena
falarmos sobre esta doença, porque é uma área crítica para esta doença,
o que é que esta área faz? Ela regula estes mecanismos e
faz sempre um update das condições do meio para nós podermos ativar
ou não ativar estes mecanismos automáticos. Voltamos ao carro, imaginem que é
o meu caminho diário para casa de trabalho, portanto vou em piloto
automático. Ah, hoje não é para o trabalho que eu tenho que
ir fazer outra coisa qualquer para Lisboa ou para o Porto. Então,
o córtex orbital frontal sinaliza que há uma necessidade de eu desativar
este sistema automático e de entrar no modo por objetivos, no modo
eu quero ir para outro sítio. E na doença esta área também
está desregulada e, portanto, não sinaliza bem
Pedro Morgado
Normalmente está hiperativa e, portanto, há uma desregulação que nós ainda estamos
a tentar perceber o que é que acontece, e se nós mostrarmos
às pessoas imagens relacionadas com os seus sintomas ela ainda fica mais
hiperactiva. Portanto, ela já está desregulada de base. Imagine uma pessoa que
tem obsessões de sujidade. Se nós mostramos coisas sujas, esta área ainda
se ativa muito mais e ativa-se de uma forma muito extraordinária. Na
Universidade do Minas nós estávamos interessados em perceber, ok, então porquê que
os doentes com doença obsessiva arriscam menos? Então, basicamente, era uma tarefa,
com um jogo de cartas, onde as pessoas tinham que escolher entre
dois baralhos para ganhar uma pontuação que lhes dava dinheiro e, basicamente,
aquilo que nós vimos é que quando as pessoas perdiam em situações
onde não era suposto perder, portanto de baixo risco, esta área era
muitíssimo
mais
ativada do que numa pessoa sem doença. Então, parece mesmo que esta
área não tem sensibilidade para aferir a criatividade e a materialidade das
coisas. E é uma disfunção que nós estamos a tentar perceber melhor
e modular melhor para tratar estas pessoas. É uma doença que, além
de ser muito comum, de afetar pessoas muito jovens, tem aquesta característica
de também ser um contínuo, não é? Porque de repente temos pessoas
que estão quase lá, mas que não chegam a estar lá, não
é? O que é que faz aqui a diferença entre a disfunção?
E depois, tem outra característica também curiosa, que é, há uma série
de doenças que são muito parecidas com a doença obsessiva ou compulsiva,
porque têm ou obsessões ou compulsões, mas que não são doença obsessiva
ou compulsiva e que são muito intrigantes e para as quais nós
temos muito poucas respostas terapêuticas. Por exemplo? Por exemplo, a perturbação desmórfica
corporal, que é aquela pessoa que tem uma ideia, um pensamento recorrente
que uma parte do seu corpo é disforme, mesmo sem ser, o
mais comum, por exemplo, o tamanho do nariz, o tamanho do pênis,
o tamanho do abdómen. A anorexia, por exemplo, está ao lado também,
precisamente. Há aquilo que nós chamamos muitas vezes a desmorfofobia, Ou seja,
a pessoa não consegue ver exatamente a sua compreensão física e interpretá-la
adequadamente, mas há também pensamentos recorrentes relacionados com a questão do peso.
Há as compras compulsivas, a pessoa que é uma doença que está
no limbo, ou seja, ainda não é consensual entre os psiquiatras que
seja uma doença, mas em que há seguramente uma desregulação da capacidade
da pessoa decidir adequadamente o que comprar. Há o jogo patológico, que
é uma doença muitíssimo prevalente e com um impacto social muito grande
e que também é uma doença deste espectro, porque, no fundo, também
há uma preocupação e um pensamento excessivo sobre o jogo e recorrente,
há uma série de distorções cognitivas associadas à probabilidade de ganho e
ao domínio das regras do jogo. Então há ali uma série de
doenças que partilham muitos fatores com a doença obsessiva ou compulsiva.
Pedro Morgado
Ok, não é muito fácil, vamos tentar simplificar, ao máximo. Vou ser
hiper simplista. Portanto, temos um grupo onde estão as doenças do espectro
obsessivo-compulsivo, ou seja, todas as doenças que têm uma associação com pensamentos
recorrentes e que geram ansiedade ou com comportamentos repetitivos e que são
tendentes a aliviar a ansiedade. São estas que nós falámos. Depois há
um grande grupo de doenças, nós chamamos as doenças do humor, que
são
onde
está a depressão e a doença bipolar, por exemplo. A doença bipolar
é uma doença que se caracteriza pela depressão e por episódios de
euforia, que nós chamamos... É
o antigo
mania com o depressivo, não é? Isso, mania com o depressivo. Então
o que é que são estas doenças? São doenças onde o que
é primariamente afetado é o I love e tal da pessoa, ou
seja, como é que a pessoa está num determinado período de tempo
e de que forma é que essa forma como a pessoa está
contamina toda a sua vivência, toda a sua existência e todos os
seus pensamentos. Depois temos um grupo ainda mais vasto de doenças e
com grande prevalência, que são as doenças de ansiedade, as perturbações de
ansiedade. E o que é que temos aí? Temos todas as doenças
em que a resposta ansiosa que é montada pelo nosso corpo numa
situação em que há um perigo iminente está excessivamente ativada. Portanto, nós
fomos selecionados evolutivamente para termos um bom sistema de resposta ansiosa. A
ansiedade é uma coisa boa, nos protege. Para
termos falsos positivos,
não é? Precisamente, e de repente temos muitos falsos positivos. Que doenças
é que estão aqui? Está a perturbação de ansiedade generalizada, que é
aquela pessoa que está persistentemente preocupada com coisas que podem vir a
acontecer-lhe, temos a perturbação de pânico, que é uma doença em que
a pessoa experiencia um ataque, que é uma coisa brutal, massiva, onde
tem uma sensação de que vai morrer, onde tem um aumento da
frequência cardíaca, um aumento da frequência respiratória e que depois pode estar
associado a fobias, e já lá vamos às fobias, porque é que
o ataque de pânico está muitas vezes associado a fobias? Imagina, tem
um ataque de pânico num centro comercial. O cérebro da pessoa decorou
que aconteceu uma coisa muito grave no centro comercial, que não aconteceu,
mas a pessoa experienciou-a. Então a pessoa vai evitar ir ao centro
comercial, então desenvolve uma fobia. Depois temos as fobias isoladamente, ou seja,
são pessoas que sem terem tido um ataque de pânico também têm
fobia a algumas situações, portanto evitam algumas situações, porque têm uma ansiedade
irracional associada a essas situações. Há um grupo vastíssimo que nós chamamos
de fobias específicas, que são também muito frequentes, mas que têm pouco
impacto clínico, porque, por exemplo, ter medo de aranhas, excessivo, ou de
ratos, não é uma coisa que a gente precisa de lidar no
dia-a-dia, portanto o impacto é menor. E depois temos as psicoses. Psicose
significa fora da realidade. Portanto, na psicose há sempre sintomas fora da
realidade e esses sintomas podem ser os mais frequentes, os delírios e
as alucinações. Há muita confusão, portanto se calhar vale a pena clarificar.
O delírio é uma crença falsa que a pessoa desenvolveu e que
é irrebatível à argumentação lógica e que também não é explicado pelas
crenças culturais e sociais partilhadas pela pessoa e religiosas agora partilhadas pela
pessoa. Então tem que ter estas características todas para ser um delírio.
Exemplos, para ser mais visual, eu tenho o delírio de que um
vizinho meu me anda a vigiar e quais são os argumentos que
eu vou usar para dizer às pessoas, Ele passa todos os dias
à frente da minha porta e eu digo assim mas ele mora
na casa ao lado, não é? Se calhar está a ir para
casa, pois, mas ele passa lá para me vigiar porque ele agora
antes chegava mais cedo e agora chega mais tarde para ver a
que horas é que eu faço isto ou aquilo e isto não
é partilhado pelas outras pessoas, portanto, é um delírio. As alucinações são
alterações da percepção, ou seja, são coisas que eu ouço, que eu
vejo ou que eu sinto no meu corpo, ou que eu cheiro
e que não são verdade, que não estão lá. A maior parte
das vezes na psiquiatria as alucinações são auditivas ou olfativas ou táteis.
Portanto, aquela ideia das alucinações visuais que é muito usada nos filmes
e assim, não é comum da psiquiatria normalmente indicia uma doença não
psiquiátrica, sobretudo do tipo neurológico, um tumor cerebral ou assim, é o
mais frequente isso acontecer. Finalmente, temos dois grupos que ainda não falámos
e corremos quase tudo. O grupo das perturbações aditivas, onde temos sobretudo
as dependências tóxicas, em Portugal com uma enorme prevalência e algum nível
de desresponsabilização pública a questão do álcool, que é muito, muito significativa,
e depois as outras drogas, com as quais nós politicamente lidámos mais
ou menos bem e, portanto, não temos indicadores preocupantes.
Sim, somos um caso
de sucesso até hoje. Exatamente, um caso de sucesso internacional. Curiosamente, muito
por ação política e não só por ação dos serviços de saúde,
que também funcionam neste domínio, e depois as demências. As demências que
são, no fundo, uma perda de capacidades cognitivas, competências sociais, de memória.
Não é neurológica a doença? Que acontecem com uma degeneração. Essa é
uma boa questão. A psiquiatria e a neurologia começaram juntas. Separaram-se ao
longo da história. Os meus amigos neurologistas não vão ficar a... Não
vão levar a mal. Eu costumo dizer que os psiquiatras tratam de
coisas mais complexas, como o pensamento, as emoções, as cognições, e os
neurologistas tratam de doenças que também são do sistema nervoso central, mas
para as quais foi encontrada um substrato mais rápido do que para
as doenças psiquiátricas.
Pedro Morgado
Isso, isso. E com força de vontade vamos lá, não é? Toda
esta ideia que anda à volta das doenças psiquiátricas e que é
muito estigmatizante. Outra palavra que também saiu é esteria, que, além do
mais, não era só estigmatizante do ponto de vista de psiquiátrico, mas
também do ponto de vista de género, porque estava muito associada às
mulheres. Mas essa palavra caiu num certo desuso científico porque também estava
estigmatizada e porque era demasiado vasta. Agora, qual é a grande diferença
entre neurose e psicose? Neurose, como eu já disse, são sintomas fora
da realidade. Normalmente na psicose temos sintomas que nós chamamos heterólogos, ou
seja, só aparecem numa situação patológica, só há delírio, só há alucinação
numa situação patológica. Com
Pedro Morgado
Na neurose nós temos muitos sintomas homólogos, ou seja, sintomas que nós
experienciamos em situações normais. Por exemplo, eu antes de começarmos esta conversa
estava um bocadinho nervoso, naturalmente, porque nunca tínhamos estado à conversa, porque
é uma situação diferente do que eu faço no dia a dia.
Isto são sintomas que são os mesmos que as pessoas quando têm
uma doença chamada neurótica também experienciam. O que é que muda? A
dimensão dos sintomas e a sua adequabilidade à situação. Portanto, se eu
bater com o carro o meu pensamento fica acelerado, a minha boca
fica seca, eu fico com tachicardia, fico com a aceleração da respiração.
Experiencio sintomas. Provavelmente eu vou conseguir geri-los. Se cada vez que alguém
me diz, epá, olha, é preciso assinar aqui um papel no meu
trabalho, eu ficar com os mesmos sintomas, como se estivesse batido com
o carro, se calhar eu estou a experienciar um sucesso dos tais
sintomas neuróticos. Provavelmente, neste caso, seria uma perturbação da ansiedade.
Já
estou a ver quais são as doenças que encaixam na definição clássica
e antiga de neurótico. Portanto, são as do humor, é a ansiedade
e é as doenças obsessivas como
o
Pedro Morgado
sonho. Era exatamente isso que eu estava a pensar. O grande saco
onde estavam estas doenças antigamente. Então, tu há bocadinho falaste de um...
Deixa-me fazer aqui um detour pequeno porque tenho curiosidade em ter a
tua perspectiva em relação ao seguinte. Tu há bocado até eludiste à
questão evolutiva e há doenças que nós percebemos bem, por exemplo, o
caso da ansiedade generalizada, que é uma doença que pega numa resposta
adaptativa evolutiva e extrema, e portanto tu percebes perfeitamente, ok, a ansiedade
serviu para nós não sermos comidos vivos, basicamente, por exemplo. E, portanto,
lá está. É normal que nós tenhamos a nossa sensibilidade exagerada pelos
tais falsos positivos que eu avançava um bocadinho. É que é melhor
imaginar um leão quando ele não está, do que não imaginar quando
ele está, porque aquele que não imaginou foi comido e não gerou
descendência. Mas o caso da depressão, por exemplo, é um puzzle nesse
sentido, no sentido de perceber, e eu apenho várias coisas sobre isso,
porque pode-se dizer que é uma exoadaptação, que é uma espécie de
efeito secundário que surgiu associado a outras coisas e portanto não foi
selecionado, mas está cá por outros motivos. Podes também dizer, e parte
da explicação terá a ver com isso, que o mundo atual não
é o mundo em que a espécie humana evoluiu e, portanto, há
diferenças que fazem com que nós tenhamos mais pressão para, mais tendência
para a depressão, mas é um facto que a depressão é encontrada
mesmo em tribos que aparentemente, embora isto seja muito polémico, mas pelo
menos viverão relativamente próximos do ambiente ancestral, não é? Isso é muito
difícil estabelecer, não é? Porque o próprio ambiente astral até mudado bastante,
mas há muitos antropólogos que fazem essa investigação e mesmo em tribos,
aquelas tribos das Américas, mesmo a Lito, encontras pessoas com depressão, provavelmente
com incidência menor do que aquela que acontece no mundo urbano, mas
ainda assim, e mesmo no mundo rural, no mundo pós-revolução agrícola, mas
ainda assim tens. E, portanto, no fundo a pergunta é, será que
a depressão tem efeitos positivos para além dos negativos que configura uma
adaptação? Ok. Vou tentar responder essa
pergunta por fases.
Ela é
muito
Pedro Morgado
complexa e também não quero ser demasiado simplista. Há muitas coisas que
foram selecionadas evolutivamente e sobre as quais se calhar nós não pensámos
assim tanto. Por exemplo, a psicopatia, que ainda não falámos aqui, eu
tentei não meter a psicopatia na psiquiatria Porque ela é muito diferente,
estamos a falar de perturbações de personalidade gravíssimas, com baixíssimos níveis de
empatia,
que
foram selecionadas evolutivamente. As pessoas tinham alguma vantagem. Até do ponto de
vista social e cultural, nós tivemos alguma vantagem em ter alguns psicopatas
entre nós. Quando estávamos em guerra, se calhar até dava jeito que
os psicopatas estivessem um bocado do nosso lado, porque eles iam ser
mais bem sucedidos do que aqueles que fossem muito empáticos e
muito ansiosos. E
não é por acaso, acho
Pedro Morgado
Porque é que isso acontece? E há faltas biológicas, mas também seguramente
culturais e sociais que explicam isso. Do mesmo modo, há alguns fatores
que vulnerabilizam para a depressão que também podem ter algum interesse, nomeadamente
estas questões mais da sobre-empatia, da expressão emocional, que podem ter algum
interesse evolutivo. Mas sobre esta questão das doenças psiquiátricas e da evolução,
eu acho que há um artigo na Nature que é um artigo
de certa forma especulativo, mas que reúne vários dados que foram encontrados
ao longo dos últimos tempos e tempa-se de explicar porquê que as
doenças estão a mudar ao longo da história e, sobretudo, no último
século, a epidemiologia das doenças mudou muito. E eu gosto muito da
teoria que eles desenvolvem e, portanto, acho que é, para mim, a
melhor explicação. Nós temos, na história da humanidade, dois grandes marcos. Um,
tu falaste, a reforma agrária e o outro, a reforma industrial. São
as duas vezes em que o mundo mudou significativamente. O resto são
factos históricos, mais ou menos irrelevantes. Do ponto de vista da biologia,
ambos tiveram um impacto muito significativo. Se nós nos concentrarmos na revolução
industrial, mudam os grandes fatores de pressão evolutiva e mudam radicalmente. Portanto,
nós tínhamos três grandes fatores de pressão evolutiva até à Revolução Industrial,
que eram as infecções, que dizimavam muita gente antes de chegar à
idade reprodutiva, tínhamos a questão da violência e não tanto dos predadores,
como mais precocemente, mas da violência, sobretudo entre os homens, e tínhamos
a questão da fome. Portanto, estes são os três grandes fatores que
determinam quem é que se reproduz e
Pedro Morgado
A partir da Revolução Industrial isto desaparece, Sobretudo no século XX nós
acabamos com as infecções, entre aspas, ou seja, as infecções não matam,
moem, a maior parte das vezes. E as pessoas reproduzem-se, portanto, o
fator de eu ter que ter o melhor sistema imunitário para sobreviver
deixou de ser relevante. E temos na nossa população um pool de
pessoas que foi selecionada por terem um espetacular sistema imunitário. Temos muitas
doenças autoimunas. Segundo fator, a questão da violência. O número de pessoas
que morrem em situações de violência caiu brutalmente. A mim faz-me sempre
confusão quando vemos algumas mensagens mais perigosas dizer que estamos num mundo
hiperperigoso e afins. Nós estamos na fase da humanidade em que há
menor nível de violência entre as pessoas, entre os animais e as
pessoas, o que quer que seja, verdade? A violência deixou de ser
um critério. O que é que protegia as pessoas da violência? Por
um lado, a questão da psicopatia, eu sou mais rápido a matar
e, portanto, sobrevivo, embora as pessoas com perturbações de personalidade graves tenham
uma esperança média de vida mais baixa, porque se envolvem mais vezes
em problemas, mas era sobretudo a ansiedade. Os tipos que mais sobreviviam,
os nossos antepassados que mais sobreviviam, eram os que não se metiam
em problemas, ou aqueles que cheiravam-lhes a problema, montavam o sistema de
alarme e fugiam como se estivesse ali o leão. Portanto, a ansiedade
foi selecionada evolutivamente e foi-se apurando brutalmente e nós agora não temos,
as pessoas já não pleiam tanto e temos outros fatores, e depois
já lá vou a este facto, que fazem com que tenhamos cada
vez mais doenças relacionadas com o meio e aí incluo as perturbações
de ansiedade, mas também as perturbações depressivas. E por fim a questão
da fome e aí chegamos aos problemas da obesidade e tudo aquilo
que está relacionado com esse aspecto. Ainda sobre a depressão, uma nota
importante, porque também é mencionada neste artigo, é que quando uma pessoa
é ferida e monta uma resposta imunitária,
convém
que não se metem problemas, convém que se recolha. Exato. E, portanto,
qualquer estado de hiperativação do sistema imunitário leva a um estado de
tipo depressivo. A pessoa fica mais em baixo, nós todos experimenciamos isso,
para se proteger e, portanto, se temos pessoas que têm um sistema
imunitário mais ativo também podemos por essa via ter algum maior risco
de depressão e há muitas hipóteses hoje em dia que associam inflamação
à depressão. Exatamente. E essa é outra das explicações. Agora, sobre a
ansiedade também, uma visão que também é um pouco pessoal de porquê
que nós estamos a aumentar os níveis de ansiedade, burnout, depressão. Porque
os stressores que impendem sobre as pessoas são hoje de uma natureza
muito diferente. Nós já não temos que nos proteger dos leões, nem
dos tipos que vêm como armas para nos invadir, nós temos que
nos proteger da pressão que colocam sobre nós. E é uma pressão
que é cotidiana, que vai desde a pressão laboral, à pressão para
comprar, à pressão para aparecer. Nós hoje somos sujeitos a pressões de
todo o tipo e também somos estimulados a desenvolver uma forma de
estar em que tudo depende de nós e, portanto, se nós montarmos
bem um projeto vamos ser bem-sucedidos e aí para a responsabilização individual
também tem levado a que hoje em dia as situações de ansiedade
e depressão sejam muito mais frequentes e se construam neste caldo em
que os fatores de pressão psicológica são muito mais nocivos e em
que já não há tantos fatores de pressão física para os quais
nós temos que nos proteger. Sim, a sua explicação é muito interessante.
No caso da
Pedro Morgado
depressão, por exemplo, Apanhei vários artigos sobre isso, um deles falava exatamente
nisso, nessa questão da infecção. E, por exemplo, dos genes. Acho que
ainda se estava numa fase preliminar, mas os genes que codificam para
o nosso sistema imunitário, parte deles também são os mesmos que criam
propensão para a depressão, por exemplo. Depois basta pensar no caso das
mulheres, por exemplo. Isso é difícil depois de estabelecer porque pode ter
que ver com uma maior propensão para ir ao médico, não é?
Mas acho que está mais ou menos estabelecido que a depressão incide
mais sobre as mulheres e, independentemente disso, nós sabemos que incide muito,
por exemplo, na altura da gravidez. Isso, evolutivamente, faz sentido, de novo,
não é? A
proteção,
Pedro Morgado
estar mais recatada, e claro que faz todo sentido. Isso tem muita
piada. Eu não queria acabar sem falar, de outra maneira, interessante para
olhar para toda esta questão das doenças psiquiátricas e até perceber as
causas delas, que é olhar para as diferenças entre países, e Portugal
no contexto do mundo e, sobretudo, no contexto europeu. E isso é
particularmente interessante no caso português porque Portugal é um país especial, é
um país que tem uma taxa de incidência a nível europeu bastante
elevada e ao mesmo tempo com um perfil que o torna diferente
até dos outros países, ditos latinos, dos outros países da vizinhança. Nós
temos, ao ver, temos uma taxa de depressão e ansiedade bastante alta.
Sim,
Pedro Morgado
Os estudos não são feitos da mesma maneira num país e noutros
e isso tem um impacto. Portanto, nós só nos podemos comparar se
conseguirmos fazer estudos exatamente iguais entre os diferentes países. Vamos admitir que
há aqui uma questão metodológica, mesmo assim há uma tendência para os
níveis serem superiores, até porque depois temos outros indicadores indiretos, temos a
taxa de consumo de antidepressivos em Portugal é muito elevada. Eu acho
que temos que ter cuidado quando falamos disto, não confundir que possa
haver um sucesso de prescrição com a ineficácia ou com a não
necessidade de eles serem utilizados. Eles são muito úteis e têm que
ser utilizados, mas Eu penso que os fatores culturais têm a ver
com, em primeiro lugar, com a pobreza.
Nós somos
pobres, comparativamente com o resto dos países europeus. E temos uma pobreza
que foi construída de uma forma diferente, por exemplo, da pobreza dos
países da Europa de leste. Nós fomos educados para nos conformar com
a nossa fave e com a nossa... Muito esta cultura, não é,
da tristeza, da saudade, tanto que percorre muito a nossa idiosincrasia e
a nossa cultura nacional. Depois, questões muito relacionadas com a organização das
famílias. Por várias razões não é estimulada a autonomia dos jovens, e
eu aqui incluo razões económicas, não é fácil um jovem arranjar um
trabalho e ter a sua autonomia cedo e, portanto, ter maior capacidade
de estar mais autónoma em relação à sua família nuclear, mas isso
também não é incentivado por ninguém. Socialmente não há um incentivo à
autonomia dos jovens, os pais levam os filhos à escola, os filhos
vão com os pais para a universidade, os pais resolvem os problemas
dos filhos na escola, os pais resolvem os problemas dos filhos na
universidade. É cultural esta necessidade de nós sobreprotegermos as pessoas da nossa
família, poderá ser um fator protetor em algumas situações, mas também de
vulnerabilidade, porque depois as pessoas quando têm situações de vida e quando
são defraudadas naquilo que são as suas expectativas, não têm recursos para
gerir essas dificuldades. E isto tem muito a ver na minha perspectiva
com educação e cultura e acho
que
nós precisamos de educar mais os nossos jovens para lidar com as
contrariedades, para ouvirem que não, às vezes, e para aprenderem a construir
alguma coisa com isso. Ou seja, no
Pedro Morgado
Exatamente, mas ao mesmo tempo tem uma série de defeitos perversos a
vários níveis, porque limitam a autonomia e limitam esse locus de controle
interno da pessoa perceber que é responsável, pelo menos em certa medida,
pelo resultado das suas ações, não é? E ao mesmo tempo desenvolver
uma capacidade para trabalhar com isso. Essa explicação seria suficiente se eu
visse um perfil geográfico na Europa, por exemplo, correspondente a essa dimensão
coletivismo-individualismo. Mas não parece, apesar de tudo, que ele exista completamente, porque
países como Espanha ou como Itália, por exemplo, Itália é um país
muito coletivista
Pedro Morgado
não partem em dois. Talvez, exatamente. É possível. Mas com o Espanha
eu acho que há algumas diferenças culturais interessantes e, sobretudo, o século
XX e a história que os dois países tiveram, que foi muito
diferente, afastou-nos do ponto de vista da organização social, tanto durante a
ditadura, apesar de termos tido duas ditaduras fascistas, a forma como elas
se estruturaram, muito mais passiva em Portugal, muito mais aceite, sem... Tem
que ser, não há alternativa, e em Espanha muito mais combativa a
estruturação da ditadura, como até a própria transição da ditadura para a
democracia nos dois países, quanto a mim muito melhor sucedida em Portugal,
aliás a estabilidade política demonstra isso, também tiveram um impacto nesta forma
que nós temos de olhar para os problemas e de os resolver.
E também explica a nossa muito baixa mobilização social, muito baixo envolvimento
cívico, mesmo comparando com Espanha. As diferenças
Pedro Morgado
se puséssemos a China do outro lado, por exemplo, obviamente que tem
muitas parecencias culturais, mas para dois países que estão tão próximos é
curioso serem tão diferentes. É engraçado porque no nosso caso, o que
nós temos por definição são famílias muito unidas, nos quais há uma
grande partilha e uma grande intimidade e depois temos a falta de
capital social, que é uma coisa que eu já falei várias vezes
no podcast e que está um bocadinho relacionado com isso e que
acho que até é uma dimensão que se associa a isto e
que tem que ver justamente com a confiança nos outros. Daqui de
preenche que possa haver até um trade-off, ou seja, da mesma forma
que nós teremos uma prevalência mais elevada de patologias relacionadas com uma
sociedade onde esse capital social tem algumas limitações e onde a pessoa
não confia tanto nas outras pessoas, por exemplo, em situações desse género,
haverá também o contrário? Ou seja, haverá também doenças nas quais há
uma incidência menor justamente por nós termos esse amparo familiar maior. Sim,
há vantagens, não
Pedro Morgado
tanto na quantificação das doenças, mas, por exemplo, na sua severidade. Nós
temos taxas de suicídio relativamente baixas. Temos muita carga em termos de
doença psiquiátrica, mas temos taxas de suicídio relativamente baixas no contexto europeu.
E isto tem a ver precisamente com isto. Há doença, mas há
um ganho associado no facto de termos uma melhor almofada para gerir
a doença. Portanto, acho que esse é o ganho evidente que nós
temos. As situações não são tão graves, as pessoas não estão tão
desamparadas, as pessoas não estão tão isoladas. Eu acho que também não
devemos ser hiper simplistas, porque há aqui outros fatores, por exemplo, muitas
destas doenças, já aqui dissemos, são mais prevalentes nas mulheres do que
nos homens. E a forma como a sociedade portuguesa vê as mulheres
também tem uma influência nas situações de doença. Se nós olhamos para
aquela camada, sobretudo, acima dos 50 anos, vemos muitas situações de doença
em mulheres que estão relacionadas com uma grande insatisfação com as suas
relações conjugais e, portanto, não podemos desligar as duas coisas. Há aqui
uma carga histórica, uma carga cultural que não é só… Mas se
é diferente nos outros países? O papel da mulher em Portugal ainda
é diferente comparativamente com países, por exemplo, do Norte da Europa. Nós
temos aí diferenças já muito significativas na forma como a mulher é
percepcionada nas duas realidades.
Pedro Morgado
eu não digo que não, aliás, faz todo o sentido. Eu estava
aqui a pensar a como é que isso variaria entre países, não
é? Tendemos a ver esse progresso moral de uma maneira linear, não
é? E não é bem assim. Há países, por exemplo, há pouco
tempo estive na Alemanha. A Alemanha é um país ainda muito masculinizado,
tem uma cultura muito mais masculina do que a nossa. Sim, e
muito conservadora em algumas das partes. Exatamente. Muito mais do que o
nosso país. Portugal até é um país, eu diria, se calhar, para
o nível de desenvolvimento que nós temos, nós até somos um país
muito paritário para o nível de desenvolvimento, com este caveat, não é?
Não é? É absurdo, percebe o que eu quero dizer?
Pedro Morgado
Muito bem. Estou curioso. Eu trazia livros e filmes, pode ser? Podes
dizer tudo o que quiseres. Pronto, então vamos aos livros. Então é
assim, os livros eu vou recomendar um autor que tem um nome
super estranho, que eu tenho sempre dificuldade em dizer, que é Byung-Chul
Han, que é um filósofo sul-coreano, que está radicado na Alemanha e
que escreveu uma série de livros incríveis sobre o nosso tempo. Descreve
muito bem o nosso tempo e a forma como a sociedade impacta
na saúde das pessoas, sobretudo na sua saúde mental e também no
desenvolvimento dessas psiquiátricas. Ele não tem nada a ver com psiquiatria, portanto
é uma visão interessante, vem de fora. E os dois livros que
eu gostei mais de ler dele foi o Psicopolítica e o Topografia
da Violência. Acho que são dois excelentes livros para mostrar o que
é que está a acontecer na nossa sociedade e de que forma
é que isso tem um impacto na nossa saúde. Talvez porque para
mim foi importante na fase da vida em que eu o li,
o Retrato de Orian Gray, do Oscar Wilde, é incontornável, porque eu
acho que há escritores que escrevem melhor as pessoas e a natureza
das pessoas do que as descrições dos psiquiatras e é um bom
livro para percebermos como é que a maneira de ser influencia o
comportamento e aquilo não tem necessariamente a ver com doença. Eu gostava
de o recomendar. Finalmente, três filmes, porque são filmes muito diferentes e
eu acho que são três bons filmes para as questões, para compreendermos
um pouco melhor as questões da psiquiatria. Shutter Island, porque é um
filme enigmático, que conta de uma forma muito interessante o que é
que é a psicose. O Cisne Negro, porque é, para mim, o
melhor filme sobre esquizofrenia. Não parece esquizofrenia, aquilo é esquizofrenia. Recomendo vivamente
que vejam esse filme com esta ideia. Estão a ver um filme
sobre efetivamente o que é esquizofrenia. Porque há outros filmes que são
muito falados e que são muito maus a descrever. Acho que aquele
descreve muito bem o que é. E hoje tinha que falar sobre
isto e o Joker. Eu acho que o Joker é um filme
impressionante. É muito sobre psiquiatria, mas é muito sobre a sociedade dos
nossos dias. E tem alguns riscos, porque volta a cair naquele chavão
de associar psiquiatria e doenças psiquiátricas a violência. É um risco. E
é uma mensagem importante, se estamos a terminar, dizer que as pessoas
com doença psiquiátrica não têm maior risco de cometer um crime, têm
maior risco de ser vítimas de um crime. Isto é uma mensagem
que tem mesmo que passar, mas é um bom filme porque mistura
tudo aquilo que nós falamos aqui. Mistura genética, mostra o impacto que
as relações interpessoais precoces ao longo da vida podem ter, mostra como
uma relação perturbada com a mãe pode ter um impacto tão determinante
no desenvolvimento de uma pessoa, mostra como aquilo que são as nossas
experiências de vida também constituem um capital para a nossa saúde ou
para o nosso desenvolvimento de doenças, e mostra outras coisas que eu
não gostaria de deixar de falar. Mostra como a sociedade às vezes
se desresponsabiliza de cuidar das pessoas que têm uma doença mental e
de como isso tem um impacto muito relevante para a nossa sociedade.
E, portanto, como nós tratamos pessoas que normalmente não têm uma voz,
normalmente não têm capacidade reivindicativa. E isso é um bom filme para
mostrar o que é que a sociedade perde quando não olha adequadamente
para as pessoas que têm uma doença psiquiátrica.
Pedro Morgado
Sim, eu por acaso vi o filme até há poucos, não há
muitas semanas, por acaso não gostei tanto como tu, mas relativamente a
essa questão, acho uma boa recomendação porque teve até como que nós
não falámos muito que é a questão de assumir que, aquilo que
tu dizias a propósito da neurose, é da pessoa assumir que tu
podes controlar absolutamente e que depende apenas da tua boa vontade. E
no caso da personagem dele, claramente aquilo era algo que ele não
conseguia controlar. Aquilo é uma personagem de ficção, não é? Mas é
um caso que representa justamente... E tu estás a julgar como simplesmente
sendo tipo que está armada em parvo ou resolveu ser esquisito ou
uma coisa qualquer do género. Na verdade, não é... Há ali, e
ele até era um caso extremo, ele até diz a certo ponto
no filme que nunca teve um pensamento feliz na vida. Isso, exatamente.
Pedro Morgado
Mas há ali outras coisas, há ali a estigmatização, o isolamento social
a que estas pessoas muitas vezes são votadas. Há ali uma certa
hostilidade que está presente em todo o filme. Eu percebo, e por
isso é que eu acho o filme genial, que haja muita gente
que tenha ficado com sentimentos muito negativos em relação ao filme. Porque
ele de facto mexe com muitos dos nossos princípios, dos nossos valores
e põe-nos numa situação de até conseguirmos, em algumas alturas, e isto
é perturbador, empatizar com alguém que comete crimes, não é? Que é
uma coisa perturbadora, não é? Como é que eu consigo... Sim, eu
José Maria Pimentel
O 45 Graus é um projeto tornado possível pela comunidade de mecenas
que o apoia. Mecenas como Gustavo Pimenta, Eduardo Correia de Matos, João
Baltazar, Salvador Cunha, Duarte Dória, Tiago Leite, Joana Farialve, João Manzarra, Mafalda
Lopes da Costa, Rui Oliveira Costa, Carlos Martins, entre muitos outros a
quem agradeço e cujos nomes encontro na descrição deste episódio. Até à
próxima.