#77 [série Orientações Políticas] João Costa - “Como criar uma sociedade mais justa?”

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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45°. Com este episódio regresso à série Orientações Políticas e desta vez o convidado vem da esquerda. É ele, João Costa, que é coordenador do Mecanismo Nacional de Prevenção contra a Tortura e Maus-Tratos, e também doutorando na Universidade de Cambridge, com um processo que passa por desenvolver uma ferramenta de resolução de conflitos armados em comunidades de zonas de conflito. É provável que esta conversa vos pareça um pouco mais informal que o habitual, o que é normal porque eu e o convidado somos amigos. Durante a conversa, como é habitual, falámos de uma série de temas que se foram interligando e aos quais fomos voltando durante a conversa. Comecei por perguntar, como é hábito, pela visão política do convidado, o que nos levou a abordar algumas questões marcantes dos tempos atuais, como a desigualdade económica, o progresso moral e questões de costumes, e também como construir uma sociedade coesa e onde o poder político é visto com legitimidade e, dessa forma, evitar resvalar para respostas populistas. A conversa levou-nos também à investigação do convidado, que é particularmente original, uma vez que junta conclusões da filosofia política, como por exemplo a teoria de justiça de John Rawls, com evidência que vem das ciências sociais, sobretudo da área da psicologia. Isto com o propósito de desenhar uma técnica de resolução de conflitos armados em zonas de guerra, localidades desavindas, em que com esta ferramenta se tenta levar os habitantes não apenas a negociar, mas mesmo a compreender a posição de quem está do outro lado, para dessa forma, idealmente, se conseguir alterar comportamentos de forma sustentada e de forma benéfica para todos os que habitam aquela região, no fundo progredindo para um equilíbrio social melhor do que o equilíbrio anterior. Embora a investigação nesta área estude sobretudo zonas de conflito, há paralelos óbvios entre estes conflitos acesos e a necessidade que existe em qualquer sociedade como a nossa de aumentar o capital social e melhorar as instituições políticas. A terminar a conversa tivemos ainda tempo de voltar ao tema quente da justiça económica, em particular para discutir a tensão difícil entre a necessidade, por um lado, de evitar uma desigualdade económica extrema e promover a igualdade possível de oportunidades e, por outro, a necessidade de, ao mesmo tempo, assegurar que o rendimento gerado legitimamente não é expropriado, de forma leviana, e também garantir que a sociedade continue a ser capaz de gerar crescimento económico e prosperidade. Espero que gostem da conversa. Voltamos a ouvir-nos para o ano. João, bem-vindo ao podcast. Obrigado. Vou pedir o que peço normalmente, que é para explicares onde é que vem o teu posicionamento político, quais são as tuas referências, como é que surge esse pensamento, e depois vamos, para a necessidade de nos levar a temas interessantes. Olha, vou começar com base numa história, porque falaste em referências e então lembrei-me disto, que
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é a minha avó esteve presa, foi presa política por pertencer ao movimento Mudo Juvenil, a luta... Sério, não sei, acho que não tínhamos falado sobre isto. Um movimento democrático, de luta antifascista e, portanto, também uma inspiração para mim nesse sentido e sempre fomos muito próximos. E, curiosamente, ainda para mais estando aqui neste podcast, uma coisa que eu fiz há uns anos foi comecei a gravar conversas nossas. Punho uma câmara que eu passava algum tempo quando ia a casa e conversávamos e fazia várias perguntas, também sem guião, ou seja, com algumas ideias pré-definidas e fazia algumas perguntas e não me lembro de todas mas lembro-me claramente de uma que lhe perguntei porquê é que ias de esquerda, ao qual ela me respondeu, e como se vê nunca me esqueci, que é de esquerda porque acredita na necessidade de haver uma maior redistribuição de riqueza e que deve haver menos, em consequência, menos desigualdade entre as pessoas. Portanto, Isto para mim é fundamental e é o ponto de partida, porque no fundo eu penso que sou, que me define acima de tudo como alguém que se preocupa com as ideias de justiça e de humanismo e que considera que a política deve basear-se em princípios que incitem ao desenvolvimento pessoal, que cada um possa desenvolver-se da forma que assim entender, obviamente sem prejudicar o outro, mas nunca esquecendo também que o ser humano é, acima de tudo, um ser social. E nisto até, como diz o José Ortega, e gás 7 não é que nós somos nós e a nossa circunstância
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é a segunda pessoa a ser isso já não faz desculpa
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pela falta de originalidade mas de facto eu acho que há uma frase muito interessante porque a separação do eu e do mundo para mim é algo que não que não que não ocorre acaba por ser um bocadinho até o drama, digamos assim, da liberdade. Sim, exato. E isto leva-me a crer que a percepção também é uma coisa muito relativa, ou seja, porque nós comparamos, somos seres que se comparam muito um com o outro necessariamente e ancoramos também o nosso estado pessoal, façam ponto de referência, façam determinado status quo. Também me lembro outra coisa, o Hume costumava dizer, dizia que... Qual Hume? Não, não, não, David Hume. Ah, o Hume, certo. Que é das minhas citações favoritas, à qual recorro muitas vezes, que diz, Nothing is ever present to the mind, but it's on perceptions. E depois muitas vezes a nossa perceção depende, aliás, daquilo que acontece à nossa volta. É presente na mente, mas é na percepção. Agora, feito este intro e tudo isto, tentando ser um bocadinho mais conciso, uma coisa é certa. Se eu estiver a falar com amigos, colegas, enfim, não importa, mais à esquerda, se calhar dizem-me que nem de esquerda sou, sabes? Sim, mas é normal. Se estiver Para falar com colegas de direita, liberais, e até da dita centro-esquerda, da aula mais ao centro do PS, já me veem do outro lado, se calhar, até possivelmente do Bloco ou de uma esquerda progressista, de uma ala esquerda do PS num contexto nacional, por exemplo. Eu diria que de facto considero-me algo… enfim, o valor da social-democracia é obviamente que é fundamental para mim, gosto de me pensar adepto de uma ideia de esquerda pragmática, mas o fundamental para mim é a junção desta ideia da política também à ideia da ciência, porque acho que é assim que de facto se está ao serviço da coisa pública, da reje pública. E isso para mim de facto é fundamental, ou seja, de um ponto de vista aristotélico, no sentido da sociedade de facto que percebe o indivíduo e a virtude está numa atuação mais, digamos, equilibrada, acho que é através de um diálogo informado que se pode conseguir encontrar eventuais consensos que te permitam estar ao serviço do público. E a ciência empiricamente também te permite chegar a esse tipo de respostas e a esse tipo de conjugação entre o eu e o mundo, que me parece fundamental, com o intuito último de facto de criar uma sociedade justa, em que o humanismo seja um valor de proa e que a desigualdade não seja de facto uma característica que nos tire muito tempo.
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Sim, eu concordo com o que disseste, aliás lembraste-me de uma coisa que acho que já falámos, que tem a ver com a... Tu falaste da desigualdade e há uma conversa interessante a ter, que eu não vejo ter muitas vezes desta forma, que é perceber de onde é que vem a desigualdade em Portugal e a dimensão atual dela. Uma coisa que eu já disse noutra conversa neste podcast, mas não deu na altura para aprofundar muito, que eu acho que é uma fonte de grande divergência entre esquerda e direita, não entrar aqui toda à direita, até porque há outros valores, obviamente, então é uma ultra simplificação, mas entra grande parte da direita e entra seguramente grande parte da esquerda. Tu olhas para Portugal, tu aterras em Portugal, quando digo aterras, basicamente nasces ou atinges a maioria intelectual, digamos assim, em Portugal, ou és um estrangeiro que vem viver para Portugal, e tu tens duas formas de olhar para Portugal, ou tens duas formas de diagnosticar o que está lá em Portugal, obviamente há várias coisas que estão bem. Uma é dizer, Portugal é um país subdesenvolvido comparativamente com os países que nos servem de referência, não obviamente subdesenvolvido para o mundo, mas subdesenvolvido para o contexto europeu, é um país onde o pay per capita é demasiado baixo, ou seja, não existe prosperidade material, não existe, mesmo ao nível das instituições, quer dizer, não existe qualidade institucional que nós vemos noutros países, tudo nos parece mais ou menos rasca. Essa é uma maneira de olhar. Outra maneira de olhar é tu olhares para Portugal como um país profundamente desigual. E tu dizes, Portugal é um país onde tu, basicamente, dependendo do meio em que nasces, e não só do meio, depois há outras características que agora estão muito em voga, e que têm algum poder explicativo e que têm a ver com a tua etnia, o teu sexo, uma série de coisas, e até podíamos estender isto à tua altura e outro tipo de características individuais, mas para ir para a esquerda mais clássica, o meio em que tu nasces e o meio não é só o meio económico mas também o meio social, se calhar até mais o meio social, tem um papel determinante no teu futuro, tem um papel determinante no que houves em casa, na educação que tens em casa, nas escolas para que vais, na almofada financeira que tu tens, ou seja, tu nasceres num meio relativamente privilegiado significa que a probabilidade de tu ires parar à rua, parar à rua isto é, de ser tornado um sem-abrigo é virtualmente zero e isso tem uma influência muito grande e faz com que haja muito pouca mobilidade social. Estas duas maneiras de olhar, eu acho que são ambas parcialmente verdade e dão um laço de diagnósticos completamente diferentes de tratamento, de medidas que tu vais tomar. Absolutamente, sabes o que eu acho? Muitas vezes é um lugar comum, mas
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a verdade encontra-se no meio, ou seja, não é necessário nós estarmos a opor uma outra visão e muito menos chegarmos a uma outra solução que invalida as causas e as consequências do que está por trás, do lado que nós não seguimos, certo? Portanto, isso é um ponto fundamental e, aliás, que é algo que eu procuro em qualquer tema pensar desta forma, ou seja, tentar encontrar não necessariamente um meio termo, mas não ter, digamos, medo de aproveitar pedaços de cada coisa. Dito isto, acho que concordo contigo, são temas que já falámos brevemente a nível pessoal, já tocámos neles. Parece-me que a questão da desigualdade, para começar, a questão do meio, existe, não é obviamente algo exclusivo de Portugal, não é? Portanto, nós podemos, quando tu estavas a falar, se tivéssemos apagado a parte em que tu falas Portugal é um país, se tivesses dito isto é um país desigual porque há este tipo de circunstâncias que estão na base de muito daquilo que te acontece no futuro. Não referiste um que reveres muito que eu gosto, é a lotaria do QI, por
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exemplo, que também se
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insere aqui. Portanto, fora alguns exemplos em que a desigualdade é menos latente e que de facto tem outro tipo de contexto, na larga maioria de países que tu equipararias a Portugal, tu podias ter o mesmo discurso. Portanto, caracterizar algo de concreto com base numa percepção global vale, mas só vale em parte. Portanto, é parte de um problema, mas também há um bocadinho mais do que isso,
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porque temos que... Estás a dizer que o problema da desigualdade existe em Portugal, mas também existe noutros países? Absolutamente. Mas com um nível diferente, ou seja, nós historicamente temos um nível de desigualdade maior do que... Lá está, do que países nos servem de referência, não quero dizer que... Mas comparando com... Com Espanha não tenho tanta certeza, e com os países do Sul, mas se compararmos com Reino Unido, Holanda, Alemanha, França, temos historicamente um nível de desigualdade. Mas lá está, daí que o que eu queria, ou seja,
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sublinhar é que as causas, essa questão associada ao meio, de onde é que tu vens, quais são as tuas características, como é que tu nasces, qual é o teu berço e tudo o que isso envolve, de facto, tem muita gera, está na génese da desigualdade, não apenas em Portugal. O que eu queria dizer era isso, a causa, não necessariamente a consequência, ou seja, o nível da desigualdade que depois decorre, estás a perceber, daquilo que a causa implica. Portanto, acho que isso devemos ter em conta. A questão da referência, acho também fundamental, até vai ao encontro daquilo que eu disse inicialmente, ou seja, todos os problemas, não todos os problemas obviamente não, mas muitos problemas morais, por exemplo, políticos, partem sempre de um determinado ponto de referência, é essa a questão. Tu mudas o ponto de referência e também mudas a resposta. O problema consiste em como é que tu trazes esse tal falado digo cidadão médio, não sei se é uma expressão adequada ou não, mas ao diálogo. Porque muitas vezes as pessoas estão tão afastadas, seja por falta de disponibilidade de tempo, seja por falta de interesse, por falta de às vezes sobre certos assuntos próprio conhecimento, seja mesmo por considerarem que o seu estatuto e o seu poder, ou seja o que for, não se enquadra neste tipo de elite. E muitas das reações que nós vemos estão associadas a isto, não é? A uma desconexão brutal entre a elite do poder político, não necessariamente económico, e o cidadão médio, não é? Portanto, vimos isso em todo lado, quer dizer, em muito lado. E para mim, voltando ao início, passa sempre por aí, ou seja, como é que tu consegues alargar o consenso daquilo que é uma decisão, que deve ser uma decisão informada? Ou seja, como para qualquer emprego, tens de ter determinadas qualificações, tens de conseguir cumprir com as funções que tens, com base naquilo que essa, nos skills, nas competências, como quiseres dizer, que esse mesmo emprego exige. Isso não pode ser descurado. Agora, como é que tu consegues? 1. Tens sempre que garantir que haja essa oportunidade para adquirir essas competências, isso parece-me óbvio, e depois, dois, quem não faz, que não deixe de poder participar de outra forma e que não deixe de poder ter alguma voz, seja ela qual for, ou seja, sentir-se parte de algo maior, da ideia de comunidade, porque de facto, enquanto ser social, nós precisamos desta pertença, precisamos destas ligações, que quando são inexistentes, depois acabas por governar para quem e para quê? Ou seja, e o porquê é importante. É importante as pessoas terem propósitos, é importante as pessoas se regerem por determinados princípios e por procurarem informar as políticas públicas desses mesmos princípios, princípios esses que como tu representas uma entidade maior que tu, devem ser partilhados pela maioria, ou pelo menos devem respeitar as minorias sempre, mas devem ser partilhados pelo maior número de pessoas possível. Porque quando tu... Isto, enfim, há imensos estudos sobre isso, sobre questões de legitimidade e tudo mais... Quanto mais tu conseguires dizer, ok, eu revejo-me nisto, se fosse eu estar lá faria algo idêntico se pudesse, quando tu entenderes pelo menos o porquê, porque é que isto está a ser feito, mais facilmente tu aceitas, mais facilmente cumpres com isso e mais facilmente te sentes, de facto, noutros índices que não se calhar o PIB, mas noutros índices, essa pertença contribua positivamente para o teu desenvolvimento, para o teu bem-estar e para a tua sensação de paridade ou de proximidade com o outro, que de facto é fundamental no ser humano. E, portanto, como é que isso se faz? Como é que se gera? Como é que se aumenta a legitimidade de quem tem poder, de quem diz faz isto porque sim, existe precisamente que o diálogo passe, que a mensagem passe e que seja explicado e que de facto que os motivos sejam partilháveis e aí vais outra vez ter a ideia dos valores e a ideia da própria moral porque enfim podemos argumentar sobre o relativismo moral, sobre os diferentes valores ou não. E um dos livros muito interessantes sobre o tema, é um livro de Michael Walzer chamado Thickened Scene, que basicamente há vários graus também… Já
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fica uma recomendação no livro?
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Exato, exato, porque foi-me indicado previamente que podia fazer isto. Mas, de facto, há vários níveis. Nós temos diferentes orientações políticas, temos diferentes objetivos de vida, temos diferentes orientações sexuais, seja o que for, e podemos reger a nossa vida com base em diferentes valores, também conjugando-nos com aquilo que nós queremos para nós. Mas isso não invalida que não haja algo thin, algo mais básico, que nos seja comum pelo simples facto de vivermos na mesma sociedade. Porque é essa ideia da necessidade de coexistência à qual nós não podemos fugir. Nós temos sempre que viver com o outro. E isso gera conflitos que podem ser positivos e que podem ser negativos. O negativo, e aqui como tu sabes é a minha área de investigação, é a vertente da violência armada, que é o extremo do negativo, do eu à outros tipos negativos, a discussão com o vizinho é um conflito negativo necessariamente. O positivo é a ideia da cooperação, que cada um pôr um bocado de si ao serviço do todo, da comunidade. Mas para essa cooperação e essa coexistência se tornar não só pacífica como benéfica, tem que haver alguns incentivos e tem que caber
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confiança.
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A ideia de public policy, quem decide, tem que garantir que as decisões que faz sejam reconhecidas como decisões positivas e benéficas para o bolo. E é esse discurso, é esse gap que muitas vezes falha e que deve ser pensado por quem está em cima também e não só reivindicado por quem está em baixo.
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E é um problema agora, quer dizer, nós no fundo temos aqui duas grelhas de análise para olhar para isso, porque por um lado nós aqui estivemos a falar um bocadinho dos problemas estruturais de Portugal, mas também tens um problema conjuntural que está muito ligado à ascensão do populismo, justamente de diminuição da confiança nos governos, da sensação de que tu tens umas elites lá longe muito endogâmicas que no fundo governam para si próprias e que não têm interesse nenhum no cidadão comum e depois tens problemas, sei lá, com uma espécie de fadiga da democracia e a sensação de que o voto não serve para nada. E o porquê? A questão é, e porquê?
[série Orientações Políticas] João Costa
Porquê é que diminuiu essa confiança? Porquê é que há essa fadiga? Põe-me-te a questão a ti, te
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trocamos um bocadinho de papéis. Sim, quer dizer, como imaginas, quer dizer, depende, eu acho que há uma tentação muito grande de... E aquele artigo que tu mandaste, e que já aludiste indiretamente do Jeffrey Sachs, que ele comparava o Chile... Sim, sim, os protestos, cidades gringas. Em Hong Kong e em França, todos aqueles paralelos me pareceram um bocadinho abusivos, mas...
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O autor também.
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Sim, exatamente. Mas isto reforça exatamente quão difícil é de perceber o que é comum a tudo isto. Agora, eu acho que um aspecto que é completamente indissociável disto são as redes sociais, porque as redes sociais fizeram com que as pessoas pudessem comunicar muito mais, fizeram com que desaparecessem estruturas de mediação, muitas delas é verdade que eram obsoletas e eu sou o primeiro a reconhecer isso, mas claramente perdeu-se alguma coisa, ou perdeu-se isto é, ou pelo menos atualmente. Isso perdeu-se não quer dizer que não venha a ser recuperado em que há pessoas que só consomem, não digo fake news, mas pelo menos notícias enviazadas, não é? E tudo isso faz com que lá está, ao nível das percepções que tu falavas há bocadinho, se cria um caldo que é perigoso. E depois tu tens, em alguns países, nem é bem o caso de Portugal, o nosso problema de desigualdade é histórico, não é de... Não tem tanto que ver com a tendência. A tendência salva-reis mais ou menos estável, acho que até diminuiu ligeiramente, mas é basicamente, quer dizer, em traços gerais é estável, mas noutros países não, noutros países temos igualdade económica a aumentar e tens outro fator que eu acho que tem um peso grande, que é mudanças culturais, que tem a ver com aquele rural urban-privado que tu falavas há bocadinho, com tu teres uma moral urbana do espaço público, dos médias, que é a discutida, que tu vês na televisão e que se tornou muito mais liberal, não é? Como nós hoje nos identificamos, mas alguém mais tradicionalista não se identifica. E isto é muito fácil de perceber, não é? Basta tu veres a quantidade de alterações, sei lá, o casamento homossexual, por exemplo, foi uma alteração rapidíssima. Quer dizer, tu pensas... Não, e quando digo casamento, mais interessante do que isso é, porque isso é só a lei, é a maneira como a moral das pessoas mudou, em relação a esse tema. Mudou, eu acho que nós ambos nos lembramos, quer dizer, não somos tão novos assim, para nos lembrarmos de quando éramos miúdos. Ou
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ser muito mais tabu, ou muito mais... Haver um preconceito muito maior quanto a isso.
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Sim, hoje em dia acho que mesmo, obviamente, que é diferente a maneira como tu falas. Se tiveres que escrever um texto ou se tiveres que estar a fazer uma declaração pública, como falas entre amigos, que estás mais à vontade e podes ser muito mais leviano. Mas, hoje em dia, há determinado tipo de coisas que mesmo em privado deixaram de ser aceitos, o que é curioso. E antigamente não, e foi uma mudança rapidíssima. E claramente, há pessoas que não acompanharam essa mudança. É óbvio, é muito difícil perceber isso. Aliás, no outro dia vi uma coisa engraçada, acho que tem indo muito mais para trás, e para um tema que está muito mais resolvido, é sempre interessante fazer isto, que era um panfleto antissufragistas, para tanto voto feminino. E tu pensas, que argumentos é que há para dizer que as mulheres não andam a votar? Não ocorre nenhum, mas aquilo tinha de parar a ideias. Ou seja, quem escreveu aquilo tinha pensado e tinha-lhe ocorrido de parar a ideias e as argumentos. E, sei lá, andando ainda mais para trás, a escravatura é a mesma coisa, não é? Portanto, às vezes é difícil para nós perceber. Concordem, Souto, ainda hoje também, ao almoço, estava a falar de um tema semelhante, ou seja, com
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o ata-turco e as mudanças implementadas serem tão fraturantes em certos aspectos que depois o impacto que tem na população pode não ser necessariamente o expectável ou o esperado.
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Sim, E pode ficar a borbulhar, não é?
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E depois ter um efeito contrário a médio prazo, se calhar. Digamos assim. Mas interessa-me também entender, e outra vez, acho que a ciência tem que ter um papel fundamental no estudo, ou seja, perceber empiricamente porque é que as coisas são como são, ou pelo menos perceber como é que os fenómenos evoluem e tentar entender a correlação com certas causas, não é? Porque há temas muito distintos. Eu lembro que ainda agora estavas a falar da questão que tu dizes, e concordo da relativa rapidez com que a questão da homossexualidade deixou de ser vista, especialmente por gerações mais novas, como um problema, como uma questão tão tabu, ou seja o que for. Mas há muitas outras questões em relação às quais poderia acontecer o mesmo, mas nem sempre acontece. Questões de outro tipo de discriminações. E muitas vezes, muitos autores da psicologia moral e também mais nas ciências sociais, na sociologia, etc. Do Maslow, próprio Durkheim e tudo mais, que falam da ideia de momentos de pico, de peak experiences, em que a transformação acaba por ser uma transformação coletiva, a ideia da efeverescência, que tu ou teres um movimento coletivo, para o bem ou para o mal, mas crias sentimentos que transcendem a tua experiência. A experiência
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emocional deve ser racional, não é? Exatamente,
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e que às vezes as coisas acontecem não necessariamente por tu teres dez argumentos perfeitos, que não permitam contra-argumentação ou que sejam factuais para explicar uma determinada questão, por exemplo, questões biológicas, se quiseres ver diferenças e tudo mais e mostrar-te... Enfim, seja o que for! E não consegues convencer a pessoa. Depois da discussão também deves tu ser tu a convencer a pessoa quem é que é o dono da razão, mas isso obviamente temos questões associadas àquilo que são direitos humanos. Sim,
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mas esse ponto vais fazer é interessante. Mas
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a questão é, muitas vezes, por muito que tu argumentes de forma racional, a mensagem não vai passar. Porque é emocional, é aquilo que dizias também tu há bocado, faça o voto e há democracia, mas às vezes são momentos que é muito difícil de pin-point, foi exatamente aqui, mas que a coisa muda. Isso é espetacular para estudar, não só para entender o fenómeno, mas também para os poderes criar no futuro. E como tu sabes, a questão que eu falava há pouco dos conflitos armados, uma coisa que eu procuro na violência armada é encontrar esse ponto em que tu de repente consigas, entre aspas, estalando o dedo, mudar o comportamento, mudar a percepção das pessoas do outro e por consequência amenizar algo que previamente era violento. Porque tu vês que não é por sentares à mesa às pessoas a conversar durante anos que necessariamente resolves esse problema.
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Ou por confrontá-los com factos. Ou por confrontá-los
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com factos, ou porque há sempre algo emocional que te vai enviazar e tu vais agarrar-te a isso. Mas também isto é mutável, não é? Se tu em situações de caos consegues, por vezes, o ser humano já tem inúmeros exemplos de conseguir sair de algo horrendo, chamemos-lhe assim, para algo positivo. Isso significa que se fazes uma vez, sugere que possa acontecer mais vezes. E se há estas mudanças progressivas e ótimas para a sociedade, como falámos na questão da homossexualidade, relativamente rápidas, exige perguntar porque é que noutros temas isso não acontece, estudar os casos em que aconteceu para entender os motivos para tentar acelerar a questão. Se é possível ou não, não sei, porque o ser humano é muito complexo e enfim, o Wittgenstein dizia algo como se resolvemos todos os problemas da ciência, algo na vida continua por mudar, uma coisa desse
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género. A sociedade é tão complexa que vai sempre haver problemas e descontentamentos, até por causa da questão da percepção que falámos há um bocadinho. Claro,
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mas estes porquês e esta ideia da ciência o
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serviço da política pública parece-me fundamental. Sim, a mim também, até porque não acho que a ciência não se pode dizer que seja a política, mas tem muito de que devia ser a política, pelo menos, não é? Ou seja, que não tem que ser uma coisa disputada por ambos os lados. Por exemplo, isto que nós falávamos, é engraçado porque eu acho que há quem ache que o progresso moral que houve nas últimas duas centenas de anos tem que ver com o progresso da ciência. Eu acho que foi ajudado pelo progresso da ciência, ou seja, pelo aumento do conhecimento da realidade e o facto de hoje sabermos que a homossexualidade não é uma doença, por exemplo, como se o achasse há tempos, obviamente que isso tem um papel. Mas há outro papel que é capaz de ser mais forte ainda, e vai ao encontro daquilo que estavas a dizer, que é o papel exatamente da emoção e da empatia. E, por exemplo, não acho que para esta mudança cultural as pessoas não andaram todas a ler artigos de jornais sobre investigação científica. Aquele efeito que talvez tenha sido maior é de repente tu passares a ter tido telenovelas onde tinha os casais gays, por exemplo, o apresentador de televisão que se assume como gay e que tu gostavas já imenso, mas não vais deixar de gostar dele só porque... Ele ou ela, não é? Ou Ellen DeGeneres, por exemplo, nos Estados
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Unidos. Um exemplo, quer dizer, acho que o que tu dizes sobre conhecer a história, fundamental, o exemplo que tu dás de um apresentador, seja o que for, acho absolutamente fundamental porque é um paralismo àquela frase que é atribuída ao Staline, que é uma morte, uma tragédia, humilhá-la a uma estatística. A proximidade do caso, aquilo de saberes o que é, conheceres, cria-te uma ligação. Nós somos seres valorativos, seres afetuosos e, portanto, tu conheceres algo, gera-te ali qualquer tipo de empatia ou não, de emoção, de afeto, que influencia a tua cognição, que influencia o modo como tu pensas e a forma como tu chegas a determinadas conclusões. Uma das coisas muito interessantes nos desenvolvimentos da ciência neste aspecto recente, é precisamente a... Recentes ou cada vez mais estudados, digamos assim, é precisamente a forma como tu podes induzir emoções positivas nas pessoas para ultrapassar os conflitos ou para chegar a resultados socialmente mais valiosos. A ideia do non-zero-sum game, não é? Sim, sim. Muitas vezes uma pessoa emocionalmente prefere um resultado mais negativo apenas com uma reação emocional, uma proposta má do outro. Se calhar prefere ter zero do que ter dez porque acha que devia ter cinquenta e Então fica pior. Ou seja, estas reações são reações tipicamente humanas. Não sei se isso será explicado bem, mas acho que a mensagem passa. E, portanto, é isso. Acho que passa muito por estudar essa questão, os temas associados à emoção e, por isso, convergem imensas cada vez mais. A ciência deve ser interdisciplinar, devem convergir diferentes áreas do conhecimento. Hoje em dia temos questões que a neurociência pode explicar muito melhor do que qualquer outra área.
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Questões, se calhar, que até eram estudadas pela economia, questões comportamentais. Isso que estás a falar agora é um exemplo disso, que tem sido explicado exatamente que, e tu tens feito isso no teu trabalho, como o caminho da intuição, a intuição aqui no sentido daquilo que ocorre no nosso inconsciente e, portanto, que tem muito que ver com as nossas emoções, mas que pode ir para lá das emoções. No fundo, é o nosso inconsciente a funcionar com as suas heurísticas, portanto, com conclusões rápidas, é uma maneira muito mais eficaz para alterar as suas convicções do que a razão consciente. A razão consciente também dá e até é melhor, pode ser melhor no sentido de ficar mais blindada depois para um retrocesso. Mas a emoção, a intuição é muito mais rápida, é muito mais eficaz e mais escalável, desculpa, e mais escalável, ou seja, dá para aplicar a mais gente, não é? Dificilmente tu terás toda a gente com tempo até para estudar o tema.
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Certo, não, absolutamente, só que imagina, a intuição também está muito associada à experiência, não é? Aquilo que tu já experienciaste torna que o teu comportamento intuitivo faça uma situação análoga no futuro, vai automaticamente ser uma ou outra, é questão da repetição, do hábito e tudo mais. Mas tu, portanto, também assim se torna, isto não é para se ter piada, mas contraintuitivo, como é que tu consegues mudar depois a própria intuição? Sim. E muitas vezes isso pode estar...
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Sim, tens de criar a tua intuição contrária,
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justamente. Mas está muito associada, por aquilo que eu tenho lido pelo menos, muito associada a experiências e experiências que implicam em experiências que transcendem o indivíduo, ou seja, coisas mais ligadas a grupos e a pequenos grupos, nomeadamente em si. Sim, sim, social. Exato, algo social, eventos sociais que tenham de facto um impacto na psique de quem neles participa e como é que tu podes partir daí para atingir certos resultados que lá está, que devem ser socialmente benéficos. Mas provavelmente muitas situações
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são situações em que tu desumanizavas o outro, quase como se ele não fosse um ser humano. Absolutamente. E isso cria-te uma situação em que tu tens que colaborar, por exemplo, ou cooperar com a pessoa e passas a vê-la e de repente geraste até uma, como é que dizes, uma dissonância cognitiva, que a única maneira de resolver é tu passares a ver outra pessoa como outro ser humano. Lá
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está, mas esse é um daqueles momentos em que se calhar acontece, acontece e tu consegues... É possível provavelmente conseguir explicar-lo, mas como? Até porque tu, digamos, no quotidiano não sabes quando é que há intuição, quando é racionalidade, no sentido de um processo cognitivo lento, ponderado, consciente e tudo mais, como é que se distingue um do outro? Às vezes, enfim, não há resposta actual, ou pelo menos que se saiba, digamos assim, mas são problemas muito interessantes e que estão na base de muitas destas escolhas e muitas das respostas aos problemas sociais que hoje temos.
José Maria Pimentel
Mas, Por exemplo, agora estava a ouvir, estava a pensar numa coisa, nós pegando no exemplo lá um bocadinho e fazendo aponte para o outro. Nós no fundo tivemos uma mudança, lá está, relativamente rápida dessa intuição. Antigamente, a maior parte das pessoas a experiência que tinha, o conhecimento que tinha de homossexuais, ou não conhecia, não é? Quer dizer, não é que não conhecesse, mas não sabia, não é? Sim. E os exemplos que tinha eram pessoas que, de uma forma ou de outra, eram relegadas para a margem da sociedade. Quem diz para a margem da sociedade, pode ser para a margem da escola, não é? Ou seja... Sim. E, portanto, era uma vida a lidar com o outro, com o que é diferente, com o que é... E com tudo o que isso implica, não é? Se é diferente também tem hábitos diferentes, tu desconfias, porque não partilhas o mesmo espaço e não partilhas... Lá está, não cooperas, não estás na mesma situação com aquela pessoa. E de repente passaste a ter, lá está, uma abertura muito maior, passaste a ter figuras públicas que conhecias que de repente se assumem, passaste a ter telenovelas, filmes, por aí em diante. Por exemplo, em Portugal eu acho que nós temos um... Eu não acho que nós estejamos, provavelmente, num país racista, não acho que nós tenhamos racismo como existe. Lá está, por exemplo, nos Estados Unidos. Mas há duas coisas que para mim são verdade. Por um lado, nós somos uma espécie de democracia étnica, no sentido em que eu acho que não estou a fugir muito ao conceito da ciência política de democracia étnica. Democracia étnica, basicamente, não é provavelmente uma democracia em que uma determinada etnia tenha menos direito do que as outras, mas essa etnia não participa do espaço público, não é? E eu acho que nós temos uma coisa que não está muito longe disso em Portugal e é uma coisa que até a própria esquerda descurou um bocado. E, por outro lado, isto em si mesmo leva a que tu tenhas uma grande segregação, não é? E, portanto, as pessoas, lá está, tu não vês negros ou vá, não, caucasianos, não sei o quê, ou vês muito poucos no teu local de trabalho, se tiveres um trabalho razoavelmente qualificado, não viste, se tiveste andado numa boa universidade, praticamente não tinhas pessoas e, portanto, isso leva a uma segregação grande que depois leva a uma desconfiança e depois tens o paradigma do taxista.
[série Orientações Políticas] João Costa
Claro! Só um por falar nisso, ainda há pouco tempo, na altura das eleições, depois regresso ao tema diretamente, mas só porque me lembrei, e tem a ver com questões políticas. Fiz aquela questão, estava no Uber, para o sítio, para onde, não importa, e fiz a conversa de circunstância, no dia após a eleição, e estou já agora e tal, quem é que votou? E disse-me que tinha votado no bloco de esquerda. Ok, ah, foi. Não, que não tinha ido votar, mas se votasse seria no bloco de esquerda. Assim é. Ah é? Então porquê não foi votar? E fez aquele discurso de, ah, porque acaba por ser tudo igual, então estou descontente, estou descontente, mas votasse era neles. Então, disse-lhe, eu podia mostrar esse descontentamento através de um voto qualquer, independentemente de razão, podia ser descontentamento e votar PS, não é pelo partido, obviamente. Mas perguntei-lhe, é a sua prática corrente, não vota? Ele disse-me, não, não, nas anteriores tinha votado PNR. Ou seja, acho que isto é muito, isso simplifica muito bem esta questão da emoção e da racionalidade da argumentação.
José Maria Pimentel
Era um antissistema, não é? O bloco já não é bem ante-sistema. Já não,
[série Orientações Políticas] João Costa
e falava do bloco com apreço, ou seja, gosto da Catarina, acho que ela fala bem, diz coisas certas, ajuda as pessoas, mas anteriormente... Ou seja, esta desconexão acho fascinante.
José Maria Pimentel
Mas isso é um bom exemplo, tem a ver com aquilo que falávamos há bocadinho, das pessoas se sentirem afastadas do sistema, não é? Daqueles que viram no poder nos últimos anos.
[série Orientações Políticas] João Costa
Mas ainda assim, eu estava a fazer um parênteses, porque eu queria comentar o que falavas da ideia da democracia étnica e da segregação, porque a segregação, ainda para mais, liga-se muito à questão dos negros também, porque está muito relacionado com a conversa imediatamente anterior, ou é, também falaste-o na sequência, que é, por exemplo, voltando a pegar nos Estados Unidos, mas não por ser nos Estados Unidos, havia muito esta luta contra o negro, é conhecido por mais evidente. E que é muito diferente do que se
José Maria Pimentel
passa cá, acho que é por isso que nós não achamos que sejamos um país racista nesse
[série Orientações Políticas] João Costa
sentido. Não, não, e daí a contextualização para afunilar quanto a um caso concreto. Mas o meu interesse não é discutir o porquê, nem o como, nem a evolução da questão necessariamente. É apenas lembrar que há um evento, que é o 11 de setembro, em que o outro, em que o inimigo se calhar deixa de ser tanto o negro, mas passa a ser
José Maria Pimentel
o musulmano. Ou árabe, que não é a mesma coisa. Eu estava
[série Orientações Políticas] João Costa
a pensar como é que ia colocar a questão. Sim, mas para a maior parte das pessoas é como se fosse igual. Mas, e o mais curioso ainda, é que, e se está muito bem reproduzido, se eu me lembrar depois volto ao tema, é num filme, mas já não me recordo agora qual. Muitas vezes, ao estar estudado também, é o próprio negro no seu global que tem uma reação mais hostil para com o Sulevano, muitas vezes, na reação inicial, porque passa, tem uma defesa de... Deixam de ser necessariamente o outro e há um evento que leva a isto. Neste caso é um evento negativo, obviamente, porque tu não deves, não havia motivo nenhum para colocares no mesmo saco, a maior parte, a larguíssima maioria das pessoas tem culpa zero naquilo que se passou e queria evitar-lo e evitar-o ia se tivesse podido evitar. Mas é na mesma colocada, no mesmo saco, neste caso para a negativa, em virtude de um evento que é um evento com uma carga emocional gigante. Porque é um evento em relação ao qual temos proximidade, é um
José Maria Pimentel
símbolo. Sim, foi ultramarcante. Absolutamente, mas, portanto,
[série Orientações Políticas] João Costa
se há eventos que têm estas consequências negativas, na forma como tu vês o outro, seja o outro qual for, também tem que haver, digo eu, ou também poderá haver e devem ser encontrados, eventos que tenham consequências contrárias, neste caso positivas, neste caso que incitem ou que fomentem a integração. E acho que aí, repito, acho que é fundamental quando a sociedade… Eu concordo com isso até
José Maria Pimentel
porque numa concepção um bocadinho mais l, nós em Portugal temos claramente um problema de capital social, de confiança interpessoal e haveria muitas medidas interessantes mais micro a tomar nesse sentido, no sentido de criar bolsas de cooperação. É difícil fazer mas seria interessante. Lá está, são coisas super políticas e que têm um impacto brutal. Agora só um parênteses em relação a essa história do 11 de setembro. É engraçado falar-te disso porque ainda hoje me lembrei, no propósito de outra coisa, para mostrar-te a influência que isso tem. Na primeira eleição do Obama, portanto, 2008, se eu não me engano, há um momento ultra engraçado que se passa com o McCain e que ele está no... O McCain, portanto, quem concorria contra ele e está no... Como é que se diz? No rally, como é que se chama? Pois, está num evento público, está num evento de campanha e há alguém que está a falar, a dizer que tem muito medo do Obama, não sei o quê, tem muito medo, porque ele... E o pessoal diz assim, porque ele é um árabe, ele é um neirebe, acho que assim, e ele diz, e o McCain diz uma coisa, obviamente bem intencionado, mas dito assim, é estranho que ele dize, não, não, não, ele é uma boa pessoa. E parece que está a dizer, não, ele não é árabe, é boa pessoa. Como se, mas mostra, obviamente não era isso que ele queria dizer, não é? É, eu queria
[série Orientações Políticas] João Costa
dizer que é uma maior verdade, não é? É uma caricatura, é o que tu dizes, da sorte que é. É lotaria, imagina que tu nasças, ou quando és adolescente, nessa altura, e és filho de pais árabes.
José Maria Pimentel
Sim, estás lixado.
[série Orientações Políticas] João Costa
É azar, é totalmente injusto, é completamente random, em nada diz, nada necessariamente obviamente reflete aquilo que tu és, os teus valores, aquilo que tu acreditas, mas de facto acontece, mas tem que haver formas de proteger, aliás, e elas existem no direito e não só, mas para transbordar para a opinião pública e para fazer parte desse discurso, tal como aconteceu noutro tipo de causas, como as que mencionávamos há pouco, em relação à questão da homossexualidade, tem que haver forma dessa tradução ser uma tradução não só rápida como legítima, no sentido que falava há bocados, aceite, para ter continuidade,
José Maria Pimentel
porque só com legitimidade é que há continuidade. Até para ver diálogo, exatamente. Por exemplo, esse é o exemplo em que houve diálogo em certo sentido, um sentido em que foi mais ou menos aceite por ambos os lados e foi uma coisa que evoluiu. No caso, por exemplo, nos Estados Unidos até é um exemplo, esse exemplo, o exemplo da questão terrorista barra musulmana, quer que lhe queiramos chamar, por exemplo, é uma questão em que eles estão um bocadinho segregados como nós estamos cá, em que tu tens a esquerda não diz nada que não seja politicamente correta e diz não, não, não, não, não, a religião não tem nada a ver com isto, é absolutamente indiferente, não tem nada a ver, não há aqui relação nenhuma entre o que diz o Corão, por exemplo, e os atentados. E quando obviamente há mais que descascar aqui do que simplesmente dizer isso e depois tens a reação do outro lado que diz que eles são todos uns terroristas e depois tens aqueles discursos do Trump completamente absurdos. Mas esse por exemplo é um exemplo que eu acho que nos Estados Unidos eles têm um problema de ausência de diálogo parecido com o que nós temos cá em muitas situações e se calhar até pior. Mas agora deixa-me falar de uma coisa, estou espantado ainda não teres falado do Rawls. Aliás, se não te importas até te pedia para fazeres uma, explicares, eu já falei do John Rawls no podcast, até foi com o Luís Menezes do Val, se não me engano, Mas depois a conversa acabou por divergir para temas diferentes, mas até é um ponto importante para, no fundo, explicar o que é que o Rawls propõe como exercício, que lá está, tem aplicações até em questões de peace building, mas tem...
[série Orientações Políticas] João Costa
Ainda não tem!
José Maria Pimentel
Terá, terá! Mas se não te importares de explicar, vais explicar melhor do que eu e depois havia algumas coisas que eu queria explorar a partir daí. O Rawls procura responder
[série Orientações Políticas] João Costa
a uma pergunta não muito longe daquela que nós nos estamos a colocar, ou seja, como é que tu podes ter uma sociedade justa e estável ao longo de gerações, quando nessa sociedade, a sociedade é pluralista, é uma sociedade plural em que tu tens pessoas com diferentes orientações religiosas, com diferentes características socioeconómicas, orientações sexuais, etc. E ele procura então também essa ideia de consenso, também talvez influenciado por isso. Aliás, qualquer pessoa que goste de filosofia política e de ciências políticas acaba por ser de uma forma ou de outra influenciada por Rawls, diria eu, mas muito influenciado por isso dizia eu, a ideia do consenso.
José Maria Pimentel
Mas é um consenso a priori, no fundo é o que ele propõe.
[série Orientações Políticas] João Costa
Agora, a questão é como é que esse consenso se encontra, onde é que ele o encontra e como. E o Rawls tem, já passarei para a parte da crítica depois, mas ele faz, a teoria dele é uma teoria ideal, ou seja, ele idealiza uma sociedade, aquilo que ele chama de well-ordered society, em que todos respeitam e sabem que os outros respeitam um conjunto de regras que são regras razoáveis, ou seja, regras passíveis de aceitação pelos outros. Como é que se chegam a essas regras? E aí é que entra o grande conceito do Rawls, que é o conceito da posição original e do véu da ignorância, que jogam em conjunto. O que ele diz é, nós para conseguirmos garantir que de facto a sociedade é justa e vai ser estável, independentemente do conjunto de pessoas que cá dentro, o que é que pensam as pessoas quanto a essas questões políticas, questões religiosas, etc., precisamos de uma, de um consenso que seja, como ele chama, political e free standing, que não seja derivado dessas orientações, mas que qualquer que seja a orientação, tu possas aceitar. Então ele diz, para o fazermos, temos que retirar o viés que qualquer pessoa possa ter quanto a determinado tema e colocar todas as pessoas numa posição inicial de igualdade, de igualdade política com o outro. E é o que ele chama de posição original, é um momento em que…
José Maria Pimentel
É como se todos nascessemos ao mesmo tempo. Exatamente. E
[série Orientações Políticas] João Costa
o que ele basicamente diz, ele faz um exercício intelectual em que imagina uma discussão fictícia em que nenhum dos participantes, os representantes dessa sociedade, saberia qual seria a sua posição real na sociedade quando se retirasse esse velho da ignorância. Ou seja, eu não sei se vou nascer rico ou não, com que... Enfim, bonito ou feio, se
José Maria Pimentel
quiser chamar assim.
[série Orientações Políticas] João Costa
Se vou estar no meu berço, como dizíamos há pouco, se sou rico ou não, se tenho um QI mais alto ou mais baixo, enfim, não tem as características... Até mais, desculpa
José Maria Pimentel
interromper-te, ele tem a questão da personalidade. As propensões... Tu não sabes sequer a tua personalidade.
[série Orientações Políticas] João Costa
Exato, mas isso é bastante criticado.
José Maria Pimentel
Eu sei que sim, porque é um bocado
[série Orientações Políticas] João Costa
difícil. Como é que tu consegues então chegar à conclusão se não tens... Mas isso, simplificando, não sendo simplista, mas partindo só das bases. E então, basicamente, ele pensa, na sua própria cabeça, que é a principal crítica que lhe é feita, mas ele assume quais seriam então as áreas de consenso, os alicerces depois de todas as regras subsequentes na sociedade, e depois das regras que separem, ou seja, uma espécie de base da Constituição, se é o que possamos chamar, que são os princípios da justiça. Do resultado dessa discussão fictícia, ele chega a dois princípios de justiça, um mais relacionado com a igualdade de direitos e a questões de liberdades fundamentais, e outro já que liga ao seu princípio do Maximino, que ele diz que discrepâncias socioeconómicas que possa haver na sociedade são justificáveis desde que se garanta, um, a igualdade de oportunidades, e dois, desde que ele esteja, essas desigualdades atuem a favor da posição da pessoa mais
José Maria Pimentel
desfavorecida.
[série Orientações Políticas] João Costa
Portanto, aí é o maximino, maximizar a posição do mínimo. Sim. Pronto. E isto é tudo muito interessante e Rawls parece-me, tem imensas virtudes. Primeiro, a forma como ele é tão sistemático e é tão completo à teoria dele, e eu dei o início apenas de forma hiper resumida, que tem resposta para tudo, mas que tu podes a não concordar com a resposta, não é? E parece-me um conceito altamente intuitivo. Ou seja, porque tu estás a colocarte na posição do outro. Se eu não souber quem sou, o que é que eu posso decidir de forma a que eu aceite, seja qual for a posição em que eu de facto esteja. E isso dá uma legitimidade às conclusões gigantescas. Por muito que eu seja desfavorecido, ou que eu seja, ou se eu for desfavorecido, mas se eu tiver pensado, ok, se eu não soubesse que era desfavorecido, quereria isto, é muito mais fácil de auto-justificar a consequência determinada da organização da sociedade e da distribuição económica que daí advém.
José Maria Pimentel
Desculpe interromper-te, mas eu acho que uma maneira fácil de nós, até, de nós, experenciarmos isso momentaneamente é imaginar que um cenário fictício em que todos nós íamos desaparecer agora, íamos passar por esse limbo, íamos reaparecer num mundo novo. E nós não fazíamos ideia, pode ser Portugal, não é mesmo? Nós não fazíamos ideia se íamos nascer em Lisboa, ou em Trás-os-Montes, ou no Algarve, se íamos saber qual seria a cor da nossa pele. Podes ter contatos
[série Orientações Políticas] João Costa
contemporais, podes estar no passado ou no
José Maria Pimentel
futuro. Mas agora, não me compliques. Vamos assumir que nascimos todos ao mesmo tempo, até na realidade que conhecemos, mas podíamos nascer numa família privilegiada socioeconomicamente ou não. E se houver o da ignorância na prática? É isso, exatamente. Ou seja, acho que é fácil nós pensarmos, é fácil nós identificarmos-nos com isso, não é? Claro. Que nível de, sei lá, de impostos do Estado Social... Mas, sabes, enquanto
[série Orientações Políticas] João Costa
isso, aqui tenho mesmo de facto algumas coisas a dizer que pegam mesmo nisso. Pegar no que tu disseste, que é a parte que eu acho fundamental, só dar uma ideia de algumas críticas, porque me parecem importantes, e uma das grandes críticas que se faz, Um, é a questão de não ser um exercício empírico, é exatamente o que tu estás a dizer, no sentido de, porquê é que não foi feito de facto, não é? Porquê é que não falamos com pessoas reais? Porque, basicamente, o bem-estar da sociedade depende das percepções dos seus membros. Eu não posso decidir pela sociedade, por todas as outras pessoas, o que é que elas queriam para elas próprias. E mesmo os próprios princípios de justiça a que Rawls chega são criticáveis. Porque é que nós damos prioridade, por exemplo, à questão da liberdade e não damos prioridade a outro tipo de questões. Porque é que não falamos necessariamente, ou porque é que não... O que é que me garante que a saúde e a educação não são mais relevantes que a liberdade? Ou vice-versa, ou seja, não é fácil de chegar às conclusões porque a justiça social não se pode destrinçar daquilo que é a sociedade. Essa é a principal.
José Maria Pimentel
Mas o modelo dele não abarca a saúde e educação?
[série Orientações Políticas] João Costa
Não, eu não estou a dizer que não, eu estou a dizer no abstrato, ou seja, eu não estou a criticar as conclusões a que ele chega, estou a criticar a forma como ele chega às conclusões. O que eu quero dizer, ele é muito criticado por ser, mas também ele fala de política liberalismo, não é? Isto não é necessariamente, ele idealiza a sociedade, há uma série de pressupostos de qual dependem estas questões.
José Maria Pimentel
E ele tem críticos à esquerda, não é? Ou seja, crítica marxista, por exemplo, que ele no fundo, embora ele será da esquerda do liberalismo, mas ele vem da corrente liberal. E o
[série Orientações Políticas] João Costa
mais interessante quanto às críticas, e aí era onde eu queria chegar, é que o Ross critica muito o utilitarismo, ele é um opositor do utilitarismo, porque diz que ao quereres maximizar a utilidade, o bem-estar geral de uma sociedade, mesmo numa versão mais tardia, o average, a média do bem-estar, estás a pensar como se fosses só um só homem e não estás a ter em conta as diferenças entre as pessoas, etc. Isso é o que ele diz. Agora, contudo, e era aqui que eu dizia, o exemplo que tu fazes já foi experimentado em laboratório, que é uma coisa muito interessante. Nunca foi feito na prática, e é isso que eu quero fazer em peace building e fiz em prisões também, em parte, de uma forma mais incipiente. Mas, há um livro chamado Choosing Justice, os autores são Frolich e Oppenheimer, é de 1983, portanto, se não estou em erro, mas acho que sim. É pelo menos a edição que eu li e lembro-me que eu uso na minha investigação. E o que eles fazem é muito mais restrito, é só quanto à parte da justiça distributiva, mas colocam as pessoas com um bolo de X, dizem que têm X para distribuir, que eles depois levam para casa necessariamente, e têm várias opções, que são as opções discutidas pelo Rolls. A opção do Maximin, de garantir que o último fica com mais do que em qualquer outra situação, e depois colocam-se as opções do utilitarismo moderno também. E há um consenso quase sempre, há imensos grupos, é repetido, para ter validade científica e tudo mais, é altamente repetido e a conclusão é que se chega a que 1. As pessoas têm facilidade a entrar neste esquema de roleplay e de pensar assim, que é muito interessante. E dois, escolhem todas soluções de maximizar o bem comum, são sempre utilizações de utilidade.
José Maria Pimentel
Ou seja,
[série Orientações Políticas] João Costa
é até um bocado frustrante, de certa forma, para o autor. Quando assim chega, basicamente a opção que gera consenso é maximizar o average e com um mínimo, ou seja, garantir que não vai abaixo daquilo. Há um floor, não é? Há um floor constraint, exatamente. Garantir que não vai abaixo daquilo. Mas esse floor pode ser mais baixo do que numa posição de maximin.
José Maria Pimentel
Certo. Se faz me entender? Certo, certo, sim, pode ser pior do que na posição de maximin. Sim, mas estás
[série Orientações Políticas] João Costa
a maximizar a média. Exatamente, só tens essa garantia, que me parece
José Maria Pimentel
bastante lógico. Isso é muito interessante.
[série Orientações Políticas] João Costa
E há Outro estudo mais recente que eu descobri há pouco tempo, aliás, quando eu o li há uns meses ainda não estava em preprint online, ou seja, era de uma equipa de árvore de, se não me engano, da psicologia associada à neurociência, assim uma disciplina multidisciplinar, que aplicam, que querem ver também, que é a segunda aplicação prática, prática que não é bem prática porque ainda assim é de laboratório, eu quero passar do laboratório para a vida real, porque acho que é aí que tens a utilidade prática, mas que é aplicada a dilemas morais. Basicamente há diferentes dilemas morais, aquilo que me vem à cabeça inicialmente é quando tu estás a conduzir, não é um... É um clássico, estás a conduzir um comboio, se não tu cares em nada. Há cinco pessoas que é impossível tu desviar-te se não tu cares e portanto matas cinco pessoas, mas ainda tens tempo de fazer algo e virares, mas aí só vais matar uma. Mas és tu
José Maria Pimentel
no fundo que escolhes, digamos
[série Orientações Políticas] João Costa
assim. Isto é uma questão filosófica
José Maria Pimentel
muito grande, não há
[série Orientações Políticas] João Costa
resposta nem certa nem errada. Mas uma perspectiva mais deontológica se calhar estaria associada a um
José Maria Pimentel
não fazeres nada.
[série Orientações Políticas] João Costa
E, aplicado a dilemas morais, que não são todos assim, são outros dilemas mais práticos também, há muitos exemplos neste paper, é um paper muito bom, mas também toda a gente escolhe as pessoas, quando são induzidas a pensar de acordo com o véu da ignorância, no género, imagine que pode ficar em qualquer um dos grupos, no de 5 ou no de 1. O que é que preferir neste género de lógica, não saberes qual é a tua posição atual, ou seja, tu teres que te colocar numa situação de ignorância, mas na qual tu serás também afetado, as pessoas têm sempre uma posição de utilitarismo, do greater good. Portanto aqui escolheriam agir para desviar o comboio e matar o menos. Exatamente, porque há uma questão de probabilidade. A probabilidade de seres atingidos acaba por ser muito menor. São seis perversos, não é? Sim, sim. Mas são todas, ou seja, isto agora divaguei um bocado só para dizer que tem... Não, mas fizeste bem o que quis dizer. Já houve alguns estudos de laboratório, e eu posso estar... Enfim, não os conheço todos, Estes são os que eu conheço e os, pelo menos a meu ver, mais relevantes para aqui, mas aquilo que eu acho que se deve fazer é dar um salto ainda maior. Estes dão o salto do mundo ideal do Rawls para um laboratório com pessoas reais. O que eu acho que se deve fazer é passar tanto do mundo ideal como do laboratório, para aquilo que acontece numa sociedade de facto. Como é que tu podes, e como tu sabes, eu estou a procurar fazer isso em zonas, em comunidades locais afetadas por conflito armado, no sentido de um exercício muito parecido, que é, independentemente da fação em que estão relativos ao conflito, independentemente da forma como ele os afeta, juntar em grupos de foco e perguntar, é muito intuitivo. Imaginem que estão a entrar na comunidade pela primeira vez, não sabem a que parte do conflito é que pertencem, não sabem qual é o vosso poder na comunidade, etc, etc, etc, quais são as ideias básicas que vocês acham que nesta posição todos os outros concordariam? Ou seja, tu tens que pensar pelo todo necessariamente. E pronto, Cada pessoa oferece as suas duas ideias e depois no final há uma discussão, lá está a ideia do diálogo, para ver se chega a um consenso e há vários motivos pelos quais eu penso que tal será o caso. Mas também a ideia, para além de ser uma aplicação concreta que pode ter repercussões práticas na vida de uma comunidade, porque a partir desse consenso tu podes criar políticas públicas com uma legitimidade fortíssima nas quais tu não tens a percepção de perda porque tu percebes que seria o que tu decidirias caso não soubesses quem é que tu eras.
José Maria Pimentel
Sim, sim, e isso é curioso porque isso vai mais longe, parece-me, do que o que o Rawls propõe, porque o Rawls no fundo foi revisitar o contrato social, não é? Claro. O que tu estás a fazer nesse caso é não a criar uma espécie de estado hipotético de raiz, mas a resolver um problema, ou seja, estás a partir de uma situação negativa e a tentar torná-la... Mas é muito por
[série Orientações Políticas] João Costa
isso que eu naquela pergunta inicial que me fizeste, onde é que eu me situo e tal, eu referia, ou penso que referi pelo menos, à ideia de uma esquerda pragmática. Aqui a esquerda não importa, mas a ideia do pragmatismo naquilo que subjaza a minha ideologia. Porquê? Porque eu não estou ali a impor nada a ninguém, mas quero de facto criar aqueles tais eventos em que tu percebas que o outro afinal não é assim tão diferente, que há os tais thin core values, por fazeres parte da mesma sociedade, e pegares nesses valores conjuntos, redescobri-los num evento comum, que é um evento de diálogo mas não deixa de ser um evento comum, que transcendas o pensamento individual, porque tu és obrigado pelas próprias regras do jogo a pensar pelo outro. Depois há alguns detalhes mais que eu tento induzir, emoções positivas, por exemplo, que tu pagas, dás, ou seja, cada pessoa quando chega traz alguma coisa para teres um momento inicial de partilha, de comida, seja o que for, claro que serão pagas por isso, mas não é para ganhar termos, é para partilhar. É jogar com o inconsciente outra vez. É para dispor a pessoa a ter uma emoção positiva, um mindset de maior amabilidade, se assim o quisermos chamar. Mas depois tem sempre uma segunda fase que é assumindo que há consenso, e esse consenso é um consenso que representa a essência da comunidade, porque pessoas dos mais diversos grupos conseguiram acordar que de facto se eu não soubesse em que lado é que estava, eu acho que todos deviam ter acesso à água, por exemplo. Exato. Portanto, se é tu que estás a controlar o poço de água da vila, de forma hipotética, se calhar entendes que o deves repartir. Mas depois, as intervenções mais humanitárias de desenvolvimento nessa comunidade partem de um consenso que legitima a política pública. E portanto, a esse nível de alvo, claro que eu também não sei dizer como é que tu transpões isso da vertente de conflito armado para Portugal, que falámos há pouco, por exemplo, a minha intuição informada lá está, é sempre uma coisa mais associada à ideia de comunidade, à ideia de grupo pequeno, em que tu possas partir do pequeno para depois subir. Tal como no conflito armado, eu quero fazer isto em comunidades locais, eu quero fazer numa, depois noutra, depois noutra, depois noutra, para depois, através dos exemplos mais específicos e pequenos, poder subir e chegar à resolução do curro do problema. Sim, começar por baixo, começar com level. Isso não é nada novo e tem tempo. E na verdade
José Maria Pimentel
é o que faz sentido, não é? Aquilo que eu dizia há bocadinho do capital social em Portugal só pode ser melhorado assim, não é? Com políticas rápidas.
[série Orientações Políticas] João Costa
Exatamente. O elemento novo aqui, o principalmente novo, é muita ciência para justificar o porquê de estar a fazer assim, na área do peace building, não estou a falar de outras áreas, que enfim, e muitas das coisas a que eu recorro, eu não entendo nada do que estou a dizer, tive que ir ler para perceber um mínimo, para perceber alguma coisa que justifique os vários elementos que eu proponho, obviamente. Mas lá está, para mim o essencial é tu criares, é o que eu estou a criar, é um tal evento que se traduza não em algo negativo, como nos que já falámos, mas que faça o clique positivo e que leva a alguma transformação comportamental dos membros da sociedade, que crie memória, uma memória histórica que depois influencia a intuição vindoura. É toda esta lógica que... É um círculo virtuoso, em certo sentido. Exatamente, e um círculo virtuoso que passa pela atuação, outra vez algo muito aristotélico, que é que seja atuado, ou seja, que não seja só conversado, que não seja um diálogo... Não lhe vou chamar vazio porque era um absurdo da minha parte, porque há diálogo fundamental que já é feito e que deve ser feito e que é muito bem feito, mas é um bocadinho... É um diálogo específico porque é um diálogo em evento.
José Maria Pimentel
Estamos a desviar da conversa sobre política, mas isso é um bocado irresistível. O que é interessante desse projeto é que isso se junta, e aí desvia-se um bocadinho dos roles, e se junta. Isso vai lá por duas vias, no fundo vai lá pela via inconsciente das emoções e das intuições e no fundo sentares as pessoas à mesma mesa, elas terem que fazer simbolicamente um gesto de oferenda no início, não é? E outros gestos que haverá nesse sentido. Que, no fundo, são tudo coisas que te criam, que te ativam comportamentos automáticos de empatia, não é? De proximidade. Mas depois é reforçado pela parte racional, que vai buscar também outra característica cognitiva que nós temos, que é, nós temos muita dificuldade em justificar coisas que nós intuitivamente fazemos e que possam estar erradas, temos muita dificuldade em justificá-las racionalmente, conscientemente. Se eu te disser, tu a conduzir, a andar de carro, por exemplo, já passaste um vermelho, já apitaste a pessoas quando não devia, já não sei o quê, quer dizer, já todos fizemos isso, se tu tivesse que desenhar, dar instruções a um software para te guiar o carro automaticamente, tu não ias dizer olha, passo de vez em quando em vermelhos. Não dizias, porque tu não te sentirias bem contigo próprio entrar a dar uma instrução para o software fazer batota. E aí é um bocado isso. Tu no fundo, eles se calhar no dia a dia deles olhavam para os outros tipos sem água e nem lhes passava duas vezes pela cabeça que estavam a usufruir de um privilégio. Mas depois de ter que dizer, tu não consegues justificar isso, não é? Tu não consegues justificar à mesa, dizer, não, não, nós devemos ter acesso à água e os outros não porque...
[série Orientações Políticas] João Costa
Tem a justificação de tribal. Eles são os outros, eles são os maus. Não passa. Mas lá está, se tu tiveres criado o embalo empático primeiro, depois já não consegues... Se tu retirares o viés, se retirares a ideia do outro, e se a decisão for uma decisão, o outro passas a ser tu. Tu ativas uma série de coisas que se calhar estavam a dormir, digamos assim,
José Maria Pimentel
mas dentro de ti,
[série Orientações Políticas] João Costa
diria eu. E há outra questão que me fizeste lembrar também aí, que é aquilo, eu sei que tu gostas muito dele, do Hyde, ou pelo menos gostas de Jonathan Hyde, e o que ele diz também é que muitas vezes nós chegamos a uma decisão, ou um pensamento, ou uma atuação, a diferentes graus, mas chegamos lá intuitivamente e depois usamos a razão para ir buscar argumentos que justifiquem essa mesma atuação. E esses argumentos a posteriori aqui funcionam para legitimar essa ideia de convivência com existência pacífica. Porque tu depois de tomar, chegas à decisão, sais, voltas para casa, voltas para a tua vida normal e pensas, se calhar acabei de dar aso a uma intervenção na minha comunidade que vai beneficiar a pessoa que eu pensava que era o meu inimigo, certo? Mas tu consegues perfeitamente justificar porque é que isso acontece. Acontece porque eu pensei como o outro e então faz algum sentido. Agora, não podemos ter ilusões que isto de repente vai mudar o mundo imediatamente. Obviamente que não, há bastante humildade à volta disto. Muitas coisas sugerem que funcionará, mas teremos que ver, não é? Isso é a primeira coisa. Como disse, eu já fiz isto em prisões, em outro tipo de esquema, obviamente não tenho certeza, mas é por ser uma coisa local, começar pequeno, que é mais possível que tal possa acontecer e há vários exemplos documentados. Há outro livro muito bom chamado Opting Out of War, que é de Anderson e Wallace, que fala precisamente de várias comunidades, que ela chama de non-war communities, comunidades locais que basicamente envolvidas num conflito conseguiram manter-se a suíça, digamos assim, do conflito, ou seja, conseguiram manter-se à margem, algumas com consequências, porque um dos lados acabou por chegar lá e teve consequências negativas, mas muitas vezes com sucesso e comunidades que isso não aconteceu porque foi lá alguém em investigação, porque foi lá uma ONG, ou porque foi lá quem quer que seja, fazer uma intervenção nesse sentido, que encontraram foi mecanismos interesses. Porque esses mecanismos estão lá porque nós somos um ser social e depende da forma como tu os ativas.
José Maria Pimentel
Ah, claro, sim, sim.
[série Orientações Políticas] João Costa
E é com base nestas ideias que eu estou à procura, de soluções análogas e que o meu discurso, quando falamos de orientação política, como tu agora, retrospectivamente, podes ver, está muito influenciado também por isto, porque eu não acho que seja algo exclusivo de uma sociedade com conflito armado, obviamente que não, é aplicável em qualquer sociedade com conflitos, há em diferentes graus de hostilidade e de conflito, mas há muito conflito em sociedades modernas.
José Maria Pimentel
Em qualquer sociedade tem problemas de cooperação, no fundo, não é? Claro
[série Orientações Políticas] João Costa
que sim, E cada vez mais vemos sociedades com pessoas mais isoladas, com pessoas mais detached, como temos vindo a falar agora também, desiludidas, desconectadas, etc. Isso em si mesmo é resultado de um conflito na sociedade, algo latente. Sim. Pode não ser, pode ser simplesmente, podes ter solidão que
José Maria Pimentel
não tem a ver com isso. Justo, tens razão. Acho que sim. Acho que se aplica mais a grupos, não é? A grupos isto é... É verdade, tens toda a... Aliás, é verdade. No caso até do populismo, não é? Tem muito a ver com... Do populismo, é daquilo que resulta, não é?
[série Orientações Políticas] João Costa
Mas o grupo é porque tu precisa identificar com algo, não é? Com alguém. Ou seja, acaba
José Maria Pimentel
por... E facilmente uma coisa depois manifesta na outra. Claro, claro, claro. Mas espera aí, deixa-me... Nós acabámos por encertar aqui no meio da conversa a questão do teu projeto, que é interessante. Porque isso dava quase um episódio sozinho, mas foi uma boa maneira. Mas eu também queria aproveitar o pretexto do Rolls para falar, porque acho que o modelo dele é muito desafiante, intelectualmente, ou seja, obriga-te a repensar uma série de coisas e, por exemplo, no caso português. Vamos trazer de volta ao que é o caso português e para depois também... Para rematar. Para rematar a conversa. Em Portugal, por acaso, é engraçado porque em Portugal, eu acho, isto não é obviamente uma opinião consensual, mas acho Portugal um país com um viés de esquerda em termos de economia. Eu não sei se a gente concorda com isso, mas é uma opinião um bocadinho, obviamente, um bocado liberal. Mas isto não é, está longe de ser absoluto. Depende daquilo que nós chamamos de economia. Eu acho que isso Existe em termos do peso do Estado, em alguns sectores, e da completa aversão a ter privados em determinadas áreas. Existe, por exemplo, na aversão ao risco, que faz muito parte da nossa cultura e de demolir qualquer projeto que comece a dar frutos, como é por exemplo o caso do turismo. Agora, tu tens outro lado em que se pode argumentar justamente o contrário e isso faz um bocadinho de impressão. Nós já falamos sobre isso, por isso é que eu estou a trazer este tema. E é algo que é incontrolável quando tu pensas de uma maneira Rawlsiana, não sei se isto se diz assim, que tem que ver justamente com a desigualdade de oportunidades, não é? E tu tens, e tu... Portugal até, seja por termos uma desigualdade grande, seja por reverso da medalha de uma coisa boa, que é o facto de nós termos, de sermos um país com uma cultura coletivista é, portanto, muito baseada na família. Isso é, obviamente, bom, mas depois tem o reverso da medalha de que, se a tua família tem algumas posses, significa que tu tens, estás cudado, estás amparado, não é? A tua vida está relativamente amparada, porque se calhar os teus pais têm um apartamento arrendado.
[série Orientações Políticas] João Costa
Basta olhar à nossa voz, para dentro, para nós. E,
José Maria Pimentel
portanto, no fundo, ou tens um complemento ao rendimento ou não cais, mesmo que fiques desempregado, não cais para lá.
[série Orientações Políticas] João Costa
Não tens que ter medo, que É fundamental para o teu bem-estar.
José Maria Pimentel
Até para o teu bem-estar e para a tua participação na sociedade civil. Eu acho que uma das grandes razões pelas quais o desenvolvimento económico tem uma série de benefícios que vão para lá simplesmente do efeito imediato, é também o efeito, nunca sei se traduzir isto em português, mas de compounding, ou seja, de ele se alimentando ao longo do tempo e de, ao construir prosperidade, as pessoas terem liberdade para intervir civicamente. Em Portugal há muito medo que tem muito a ver com precariedade aqui no sentido de lado, não é? Mas pronto, isso aí seria o outro lado desta conversa. Mas, extingindo-nos aqui à questão da igualdade de oportunidades, há uma coisa que nós já falámos e eu acho que fazia todo sentido, e isto é uma questão que extravasa Portugal. Eu acho que qualquer pessoa que se assume como liberal ou que se identifica com o liberalismo, devia ver com bons olhos um imposto sobre as heranças, por exemplo, um imposto sobre a riqueza, não é sobre a riqueza que te vem e que tu não fizeste nada para merecer, em certo sentido. Eu não acho que ele devesse ser 100% por várias razões, ou até porque, seja porque isso criaria várias perturbações, seja porque isso obviamente vai contra a liberdade das pessoas. Pois,
[série Orientações Políticas] João Costa
eu não sei, tu sabes que eu estou desse lado, quem acha que isso é uma medida que deve acontecer e que até poderia, também não sei como é que na prática poderia ser colocado, acontecer
José Maria Pimentel
de que… Não, isso é outra história, ou para sinalização é muito mais delicado, mas por acaso… Mas
[série Orientações Políticas] João Costa
não tem a ver com a Duna necessariamente com a ideia do liberal que tu… Eu acho, mas não é… acho que isso não vende muito bem, porque de facto estás a cortar, estás a diminuir. Imagina que a minha decisão, a minha decisão individual, enquanto indivíduo, passa pela criação de riqueza com o objetivo de a passar para a pessoa seguinte. Tu sabes que não é a minha posição sobre a vida, estou só a equacionar a questão. Então e depois vejo o Estado a vir-me retirar essa possibilidade?
José Maria Pimentel
É simples, e moro, tu tens razão que falamos de ser um ponto pacífico, por isso é que ele se torna interessante. Numa interpretação revolucionista da liberdade, focada na liberdade negativa e focada na primeira derivada da liberdade, obviamente quer dizer que tu ires seja tirares a riqueza de alguém ou parto da riqueza acumulada por alguém, seja impedires o destinatário de uma herança de receber no total quando a pessoa que morreu acumulou com esse objetivo, obviamente estás a ir contra a liberdade dela. Isso é verdade, agora, tens algo que para mim sobrepõe a isso que é não a liberdade do emissor, mas a liberdade do receptor, não é? E aí a liberdade de alguém que não nasce num meio privilegiado ter acesso à educação, ter acesso à educação como alguém que nasce num meio privilegiado. E, portanto, parece mesmo moralmente que faz mais mal a desigualdade de oportunidades, a desigualdade de berço, para usar a tua expressão de há pouco, criar desigualdade de oportunidades às pessoas, do que o facto de tu ires contra a liberdade de alguém ou estás a taxar o riqueza acumulada. Sendo, obviamente, desejavelmente não farias isso, mas isso para mim é uma visão miúpe daquilo que é a liberdade que interessa a tu privilegiares, que não é...
[série Orientações Políticas] João Costa
Sim, mas eu não sei até que ponto é que um liberal estaria tão preocupado necessariamente com a ideia de liberdade positiva, já que
José Maria Pimentel
falavas da negativa. Mas a liberdade positiva faz parte do liberalismo. É certo que é um acrescente mais
[série Orientações Políticas] João Costa
tradicional. Depende, porque é tal discussão, e digo isto porque te ouvir falar na questão de vincar, na questão clássica da tua posição.
José Maria Pimentel
Mas eu não vinco, quer dizer, eu faço isso... E
[série Orientações Políticas] João Costa
claro que nada é estático, nada... Mas eu
José Maria Pimentel
digo que estou entre o liberalismo clássico e o liberalismo social precisamente por causa
[série Orientações Políticas] João Costa
disto. E é, mas eu sou plástica e como tu dizes, com a intensidade intelectual, o que pensas pela tua... Ou seja, não é... Não segues uma cartilha, obviamente. Eu só estou a colocar a questão do ponto de vista ideológico e não do ponto de vista da maioria pimentela. Entende? Certo, certo. Mas para mim tu sabes, conheces perfeitamente e acho que quem nos estiver a ouvir também entende já onde é que eu estou neste tipo de questões, porque eu acho que aquela dicotomia inicial que falava eu-mundo, não é? Da ideia de eu enquanto indivíduo, que acho fundamental também o respeito e a possibilidade de desenvolvimento, mas no fundo nós inserimos numa sociedade e como tu dizes, e o Rolls também o reconhece, a desigualdade é benéfica até certo ponto, diria eu. Eu falei muito na questão da desigualdade, mas tu permitis que haja desigualdade também tem uma série de benefícios, isso é óbvio, porque tu crias incentivos para certas coisas. Permitis que possa haver desigualdade. Claro, sim, certo, certo, certo. O que acontecerá, a partir do momento em que permites, o ser humano garantirá que isso aconteça.
José Maria Pimentel
No fundo, é mesmo... Não, é no sentido de que o crescimento económico gera desigualdade por natureza, porque vai haver pessoas que por várias razões, porque têm as skills que são necessárias naquele momento vão crescer mais rápido e depois há outro facto que a esquerda ignora muitas vezes que é a riqueza é um jogo de soma positiva e portanto tu podes olhar para isso como uma desigualdade como há muitas pessoas que não recebem muito rendimento mas
[série Orientações Políticas] João Costa
isso... Eu aí por acaso acho que é uma coisa, eu lembro, lembro não, eu sei que tens essa posição e acho que há muitos nuances aí. Ah claro, sim, sim. Essa frase, eu não posso concordar com isso, quando tu vês a ideia do trickle down, não é que a riqueza depois... Não, não, não, isso é difícil. Eu sei que...
José Maria Pimentel
Deixa-me só... Ok, desculpa. Não
[série Orientações Políticas] João Costa
era só isso que eu queria dizer, eu queria dizer mais ainda, que é a questão de ser um jogo de soma positivo, esta ideia da perceção outra vez. Portanto, tu de facto podes ser um jogo de soma positivo, e cientificamente até pode ser impossível de o negar, se tu comparas se toda a gente cresce nesse período, por exemplo, se toda a gente… hipoteticamente. Mas e então, e o crescimento relativo? Ainda é pouco tempo. Como assim? Tu cresces, mas se esse crescimento se concentra em determinadas pessoas. Tu podes estar um pouco melhor a tua posição objetiva e real pode estar um pouco melhor, mas olhando à tua volta vês os outros muito melhor ainda, isso cria-te um sentimento, a tal perceção de pobreza que de facto não é necessariamente real. E só para arrematar este último tema, usando um número, um bocado de magogia da minha parte, trazer isto à bala, mas percebes o que é que eu quero dizer. É o estudo, penso que é da Oxfam, que sai todos os anos, se não estou em erro, as 26 pessoas mais ricas do mundo, a concentração de riqueza é equivalente a 50% da população mais pobre. Isto é um número absurdo, claro que extravasa, porque tu tens diferentes… Por isso é que eu disse que é um bocado… parece de magogia, mas acho que aqui já temos um planning que sabes que percebes o que eu posso querer dizer com isto, não é? Mas de facto, não podemos crer uma discrepância desse género. Essas 26 pessoas geraram um net positivo, não é? Se foi positivo no seu global, parece-me que é inegável. Agora, quem é que colhe esses benefícios? Será que esses benefícios se traduzem de uma forma equitativa? Se é ético, até, a consequência dessa riqueza. Lá está, estou a utilizar um argumento fácil, mas parece-me que é um argumento que se tem que fazer nesta discussão.
José Maria Pimentel
Mas esse eu não tenho... Isso vai muito para o lado da questão portuguesa, que tem outros problemas, mas Eu sei que há quem discorde disso, mas eu não tenho grandes problemas em concordar que aí estamos a falar de um nível de disparidade de rendimentos brutal. Filosoficamente o problema não é tanta disparidade dos rendimentos. Filosoficamente não há aí um problema que se possa dizer, não se pode dizer que haja um limite à riqueza acumulada legitimamente. Agora, é óbvio que há aí efeitos do winner takes all, há aí efeitos de capacidade, por exemplo, nos Estados Unidos dos ricos pagarem muitíssimo poucos impostos, e aí já não tem simplesmente que ver com a acumulação do... Não
[série Orientações Políticas] João Costa
tem nada associado a isso, mas eu penso que tu querias ir para outra questão na desigualdade, eu penso que fiz um off topic.
José Maria Pimentel
Não, o que eu queria dizer com o ponto de riqueza ser um jogo de forma positiva tem que ver com, sei lá, um tipo como o Thomas Edison, por exemplo, ter existido, que foi um tipo riquíssimo, foi bom para todos nós, como inventou uma data de... E ele até me chamava de personagem controverso. Quer dizer, foi um tipo que inventou uma série de coisas e não só inventou, como operacionalizou, que é outro aspecto que é fácil de negar e isso cria uma prosperidade em todo o mundo inegável, não é? E depois tens o lado de tudo. Já não sei quem é que dava o exemplo da J.K. Rowling, por exemplo. J.K. Rowling é multimilionária, não é? Ela não roubou dinheiro a ninguém para ser multimilionária. Ela escreveu livros que nós de modo próprio comprámos. Ou seja, isso é um jogo de soma positiva. Ela enriqueceu e as pessoas gostaram de ler os livros que ela... Porque ela não roubou dinheiro a ninguém, que não foi banheiro da máfia, do mercado negro, quer dizer, não beneficiou de regulações que a favoreceram, parece-me, ou o contágio que se pode dizer com a malta da Google e não sei o que, quer dizer, é um argumento que acho que tem algum cabimento, dizer que no fundo o Estado acabou por ter custos de investimentos que eles depois beneficiaram, no fundo darem o retorno desse investimento em termos de infraestruturas, No caso da J.K. Rowling parece-me daqueles cristalinos, não é? Difícil dizer de que é que ela beneficiou que não tenha pago.
[série Orientações Políticas] João Costa
Mas o Nozick, que é um dos grandes oponentes do Rawls, tem um exemplo quase do Wilton Chamberlain. É uma coisa parecida, as pessoas pagarem o bilhete e tudo mais é ok ou seja tu partes de um pressuposto que é se for criada uma igualdade inicial tudo que daí advenha se tu vais mas isso não está porque é isso que me está não
José Maria Pimentel
não o que eu digo é o exemplo de chamberlain já me lembrava que era ele acho que é ele ele é que as vezes não estava lembrado michael jordan sim foi muito pois é o exemplo de explicar que não sei se seria a maneira como ele explicaria, porque eu nunca ouvi, mas explicar que há um jogo de soma positiva, não é? Há um jogo de soma positiva e ele não está a fazer mal a ninguém por jogar bem basquete. Agora, isso não é a única variável, não é? E aí eu concordo contigo, não é? E portanto, se, por um lado, isso diz respeito ao que o homem fez, ao que o Timberlane fez com os talentos com que nasceu, não é? Foi perfeitamente legítimo e lá está, foi bom para quem assistiu, a quem pôde assistir, a quem pôde vê-lo jogar. Por outro lado, uma coisa é a liberdade dele de atingir aquele rendimento e isso queria-lhe uma legitimidade a ficar com ele, mas não lhe queria uma legitimidade absoluta, não é? E portanto tu... E aí, este é um argumento um bocadinho utilitarista, não é? Mas tu dizeres que aquela riqueza que ele acumulou pode ser usada para criar liberdade, lá está a liberdade positiva, numa grande franja da população que, pelo meio em que nasceu, não tem acesso à educação, por exemplo, não tem para aquilo que eles querem fazer, que eles querem fazer as condições que o Chamberlain teve para aquilo que ele queria fazer, embora ele provavelmente não tenha nascido num meio privilegiado, entre a sorte e o talento conseguiu tornar-se na altura o melhor jogador da geração dele. Ou seja, são valores em conflito, não é? Por um lado a liberdade negativa...
[série Orientações Políticas] João Costa
Mas daí que voltamos também outra vez à ideia da necessidade, ou do benefício do equilíbrio, não é? Tu não tens que estar nem por um nem por outro. E não pode ser absolutista, não é? Absolutamente. Nós nisso estamos plenamente de acordo, divergimos um bocadinho, se calhar apenas no grau de relevância que damos a cada uma das coisas, o grau de peso que damos à vertente mais liberal. Se calhar não divergimos assim. Se calhar não divergimos assim. Não, eu já, ainda hoje a conversar com um amigo meu, lhe disse, estava a explicar, ele perguntou e tal, e aí, teu amigo, como é que ele se situa politicamente e tal, e eu expliquei, eu tenho que ter algum cuidado, para quem me estiver a ouvir, que eu sei que vou concordar com ele muitas vezes, em virtude da honestidade intelectual e da forma que tu problematizares aquilo que eu vou dizer e depois estás muito aberto também a receberes o input da outra pessoa, às vezes pode parecer que eu estou de facto de um lado da barricada muito associado ao teu, o que não é, disseste na brincadeira, mas entende-se o que eu quero dizer. Eu ainda assim considero mais relevante, para mim o foco vai estar sempre na forma como tu redistribui aquilo que é legitimamente ganho, digamos assim. Ou seja, qual é o ponto de equilíbrio entre a necessidade de haver quem tenha mais e ainda assim se de facto beneficia. Qual é o ponto, não é de equilíbrio, é até o optimal de equilíbrio.
José Maria Pimentel
É o ponto de equilíbrio entre a necessidade de criar as liberdades positivas para determinadas pessoas.
[série Orientações Políticas] João Costa
Exatamente. E não pôr em causa a liberdade da
José Maria Pimentel
pessoa. Exatamente. A liberdade negativa da pessoa que acumula o rendimento. E o que muitas vezes acontece é tanto de um lado como do outro não há o reconhecimento de que são dois valores positivos da intenção. Ou seja, se eu disseres, não, não, não podes tirar nem um cêntimo de Chamberlain porque hoje em dia acho que já ninguém diz isto, o Nozick era um radical
[série Orientações Políticas] João Costa
nesse sentido.
José Maria Pimentel
Mas o argumento dele também era, suponho que fosse filosófico, mas hoje em dia ninguém diz que não deve pagar impostos por causa disso, qualquer imposto é um atentado à tua liberdade individual, não é? Então tem de vir tirar rendimento. Mas lá
[série Orientações Políticas] João Costa
está, ele era um dos grandes opositores do Ross, mas havia ali um respeito intelectual muito interessante e uma crítica muito aberta, voltando àquela questão da crítica e como isso beneficiou o discurso e
José Maria Pimentel
a discussão. E do outro lado, há muitas pessoas que falam de, que veriam, por exemplo, aquilo que falávamos há bocadinhos, que eu estava a defender e que nós concordamos de haver um imposto sobre a riqueza ou sobre as heranças, ainda por diante um imposto sobre a riqueza, em vários sentidos, é mais justo que um imposto sobre o rendimento. Era aí que eu queria, Essa foi a nossa discussão, e eu também estou absolutamente de acordo. Ou seja, independentemente do nível médio de taxação que tu achas que deve existir, há vários argumentos para dizer que o imposto sobre a riqueza é mais justo que sobre o rendimento, pois é muito mais fácil de fazer. Mas há pessoas, sobretudo acho eu mais à esquerda, que não vêem este trade-off. Não há nenhum problema de taxar porque... Mas lá está, isso não sobreviveria ao véu da ignorância, não é? Porque tu estás a defender isso porque não estás na posição de presente de dinheiro. Mas se estivesse era diferente. Antes de passarmos, como é hábito, às recomendações do convidado, deixem-me lembrar-vos que podem contribuir para a continuidade de desenvolvimento deste projeto. Visitem o site em 45guraus.parafuso.net barra apoiar para ver como podem contribuir, através do Patreon ou diretamente, bem como os vários benefícios associados a cada modalidade de contribuição. Caso não possam apoiar financeiramente, podem sempre contribuir para a continuidade do 45°, avaliando-o nas principais plataformas de podcasts e divulgando-o entre amigos e familiares. Muito obrigado pelo vosso apoio e agora, de volta à conversa. Vamos terminar. Já recomendaste uma série de livros, mas acho que havia um para o fim, não era?
[série Orientações Políticas] João Costa
Eu fui falando, sim, de alguns. O único que eu disse que era mais próximo da recomendação era aquele Thickened Theme do Michael Bowser, mas aquele que eu queria, que eu não queria deixar de recomendar, tenho aqui outras ideias que pensei hoje. E aproveito também o que falámos agora, desta lógica de evitar um discurso de oposição entre dicotomias, de tentar encontrar uma coexistência pacífica também nessa... Que é um livro do Andrew Sayer que se chama... Só sei o título em inglês, peço desculpa, não sei se sequer está traduzido, mas chama-se Why Things Matter to People E o subtítulo é Social Sciences, Values and Ethical Life. Porque precisamente esta ideia de um realismo crítico, que eu acho fundamental, procurar ultrapassar estas oposições entre extremos. O livro vai muito mais além sobre isso, é sobre a ideia de flourishing, como é que nós conseguimos o nosso desenvolvimento e a importância dos valores e da emoção no homem. Nós somos um ser que de facto sente para bem, sente para mal e isso tem que estar no seio da nossa filosofia, da nossa participação cívica, digamos assim, da nossa vida individual, enfim, está presente em todos os momentos. Mas é esta conjugação, por exemplo, entre o empírico e o normativo, ou seja, há não oposição também entre a razão e a emoção, por exemplo, mas mais nestas questões empíricas versus normativas e tudo mais, que ele encontra sempre um caminho de ir buscar o melhor das coisas e que eu de certa forma procuro imitar. Procuro imitar no sentido de reconheço nisso um valor enorme científico e acho
José Maria Pimentel
muito importante. Já me encheu de fadas do livro.
[série Orientações Políticas] João Costa
Já, eu tenho de tentar impingir todos os meus avisos a quem tem este género de conversas, até agora sem sucesso. Portanto, se alguém me ler que me diga que eu senti-me aí bem, enfim, tenho outros mas tu queres só um, não é? Agora para o final
José Maria Pimentel
ficamos assim, se calhar. Agora que disseste isso, diz mais um.
[série Orientações Políticas] João Costa
Vou dizer então dois, porque são tão em conjunto. São dois livros que conjugam dois temas para mim fundamentais. A ciência e a questão do afeto em geral. Que um, é um livro muito pequeno, que até nem sei se foi pensado inicialmente como um livro do Bertrand Russell, chamado What I Believe In, em que ele diz basicamente a importância do conhecimento da ciência, mas também da emoção, das emoções positivas como o amor e o afeto e etc. E outro muito semelhante do Viktor Frankl que foi chamado A Man's Search for Meaning, que ele esteve em Auschwitz. E é um livro basicamente sobre alguém que esteve num campo de concentração, psiquiatra de formação e depois tem teses ao nível da psiquiatria que contravasam aqui o âmbito, nem eu próprio saberia falar sobre elas, mas que de facto, como é que o homem encontra o propósito numa situação deste género, em que é que tu encontras uma razão para o teu ser e outra vez, e porquê é que eu disse que os queria falar em conjunto, porque também de forma diferente, mas chega à mesma conclusão. A ideia da obra, ou seja, de tu criares algo, e não tem que ser algo necessariamente intelectual, mas algo que tu crias, que tu queres fazer e que é algo que te exprime no mundo, associado outra vez à questão das emoções e dos afetos. Eu acho muito, creio mesmo, que é aí que está o cerne da questão, pelo menos para mim, e que isso devia formar tudo desde a nossa vida pessoal até à nossa vida
José Maria Pimentel
pública. Boa, excelente, acabamos assim. Obrigado por teres
[série Orientações Políticas] João Costa
vindo. Obrigado pelo convite, foi ótimo.
José Maria Pimentel
O 45 Graus é um projeto tornado possível pela comunidade de mecenas que o apoia. Mecenas como Gustavo Pimenta, Eduardo Correia de Matos, João Baltazar, Salvador Cunha, Duarte Dória, Tiago Leite, Joana Farialve, João Manzarra, Mafalda Lopes da Costa, Rui Oliveira Costa, Carlos Martins, entre muitos outros a quem agradeço e cujos nomes encontro na descrição deste episódio. Até à próxima. Legendas pela comunidade da Amara.org