#76 Miguel Costa Coelho - Envelhecimento celular, cancro e biotecnologia anti-envelhecimento

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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45°. Desta vez falamos de ciência e o convidado é Miguel Costa Coelho, doutorado em Biologia pelo Instituto Max Planck, na Alemanha, e atualmente investigador na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, nas áreas do cancro e do envelhecimento celular. Recentemente, o Miguel lançou também um grupo de investimento em empresas de biotecnologia. Durante esta conversa, tentei compreender melhor dois fenómenos que estão intimamente relacionados, o envelhecimento e o surgimento do cancro. No final tivemos ainda tempo para falar de algumas terapias promissoras para atrasar ou inverter o envelhecimento e também para o tratamento do cancro. Se não o ouviram na altura, aproveito para recomendar também o episódio 49 do podcast com Maria do Carmo Fonseca em que abordámos muitas questões relacionadas com esta conversa, relacionadas com a genética e a biologia molecular. Os temas desta conversa, o cancro e o envelhecimento, são simultaneamente relevantes e fascinantes. Que são relevantes, nem é preciso explicar porquê. E são fascinantes porque são uma porta para a incrível complexidade da nossa biologia. Por exemplo, porque é que a evolução levou a que envelheçamos como envelhecemos? E porque temos cancro? Por exemplo, embora não falemos nisso durante a conversa, o cancro é muito comum em alguns animais, mas muito raro noutros, por exemplo, mamíferos de grande porte como as baleias ou os elefantes. Foi por isso uma conversa desafiante e complexa. Aliás, no 45° já sabem que é com isso que contam e não ia deixar o Miguel vir ao podcast sem mergulhar a fundo no tema. Por isso este é um daqueles episódios que ganham em ter algum contexto. Prometo que vou ser rápido. Cá vai. Antes de mais, a célula. Se ouviram a conversa de que falei com a Maria do Carmo Fonseca, e que foi mais focada em genética, lembram-se que a célula é a unidade básica de todos os seres vivos, desde os micróbios aos seres complexos como nós. No núcleo de cada célula do nosso corpo está guardado o nosso genoma, uma espécie de livro muito longo onde são escritas, com moléculas de ADN, as instruções que vão servir para desenvolver e manter o nosso corpo. Cada linha desse livro de instruções é um género diferente, composto por várias moléculas de DNA, e que traz as instruções para produzir proteínas, o chamado material da vida, pois é delas que são feitos todos os diferentes tecidos do nosso corpo. E qual é a ligação entre as células e o envelhecimento e o câncer, de que vamos falar? É que ao longo da nossa vida, desde o momento em que o nosso embrião foi formado, ou seja, quando éramos apenas uma célula, começou um processo em que as células foram dividindo e multiplicando de modo a fazermos crescer e a mantermos vivos e funcionais. E ao longo desse processo, que dura a vida toda, vão surgindo, com o passar do tempo, defeitos e erros de multiplicação que afetam os genes e outras partes das células. Com o acumular desses erros, as células vão se desgastando e dividindo mais lentamente, o que vai prejudicando o funcionamento dos órgãos até que morremos. Mas isto é a versão boa, porque em alguns casos, antes de acontecer essa morte natural, surgem nas células erros de replicação que afetam alguns tipos de genes específicos e que levam que as células se multipliquem descontroladamente até formar cancro. E o cancro todos sabemos o resultado que tem. Esta foi por isso uma excelente conversa para compreender melhor estes fenómenos relacionados, o envelhecimento e o cancro, e ainda para discutir alguns tratamentos com maior potencial para retardar o primeiro e evitar o segundo. Espero que gostem. Miguel, muito bem-vindo ao 45 Graus. Se calhar a maneira mais interessante de começar isto é perceber como é que acontece o envelhecimento. Todos já vemos como é que acontece, mas como é que acontece a nível celular o envelhecimento, que é um fenómeno que é transversal a qualquer ser vivo, desde um unicelular até nós, ou qualquer outro animal, o envelhecimento ocorre, pelo menos os princípios gerais são mais ou menos os mesmos. Como é que isso acontece? Bom dia, muito obrigado pelo convite por estar aqui presente. O envelhecimento acontece inicialmente
Miguel Costa Coelho
desde a primeira divisão celular em que nós somos gerados e há um processo todo orquestrado para nós chegarmos a uma idade adulta e depois dessa idade adulta começarmos a perder as nossas funções a nível cerebral, funções a nível de tecidos, e isso pode ser sumarizado, como disseste bem, a nível de alterações celulares. E o que acontece nas células é que elas têm a capacidade de se multiplicar e regenerar, mas ao mesmo tempo vão perdendo essa capacidade com a passagem do tempo. E isso envolve diferentes tipos de tecidos, envolve diferentes tipos de estímulos que vêm também de meio ambiente, coisas tão simples como, por exemplo, fumar ou beber excessivamente. Mas O princípio fundamental é que nós fomos gerados para deixar descendentes e o nosso corpo em si é um produto desse fenómeno. Nós conseguimos passar os nossos genes à nossa descendência.
José Maria Pimentel
Sim. Se calhar a versão unicelular até é mais simples, que no fundo se vai dividindo e vai se multiplicando, vai gerando uma multiplicidade de organismos. No fundo o que vai acontecendo é que em cada replicação daquelas células, a cada replicação há uma certa probabilidade de ocorrerem erros que se vão acumulando e a partir de um certo limiar a célula morre. É isso que acontece.
Miguel Costa Coelho
Exatamente. Essa é uma excelente ideia de apoiarmos nesse exemplo. Então, pensando numa célula única, o que acontece é que à medida que esta célula se vai dividindo, exatamente como tu referiste, vão-se acumulando certos erros, que não são só a nível genético, não são só mutações que acontecem no genoma, ou por exemplo alterações nas similidades dos cromossomos, como os telómeros que vão encurtando.
José Maria Pimentel
Os telómeros são as pontas
Miguel Costa Coelho
dos cromossomos. São as pontas, exatamente. É como se nós tivéssemos uns atacadores, e são aquelas pontas de plástico que mantêm os atacadores coeses. Que sato bobo, essa é uma boa... É uma boa analogia. E estas pontas são muito importantes porque permitem às células manter a tal estabilidade genética, e vamos tocar nisso um bocado mais à frente quando falarmos de cancro, e que permitem ao mesmo tempo às células reproduzirem os cromossomas com uma certa fidelidade e não acumularem muitos erros. Mas esses erros acontecem. E também há uma propensidade para as células passarem informação genética de uma forma mais ou menos conservada. Mas o que acontece é que ao mesmo tempo que as células estão a reproduzir os seus cromossomas, criam produtos tóxicos, como por exemplo proteínas estragadas, como por exemplo as mitocôndrias que não são recicladas completamente e que também vão envelhecendo. As mitocôndrias são organelos que funcionam como as baterias, as energias da sala, e todas estas pequenas modificações que acontecem ao longo do tempo se vão integrando e vão atuando juntas para criar o tal envelhecimento solar.
José Maria Pimentel
Ok. Pois é curioso, hoje não é só no núcleo. Não é só no núcleo,
Miguel Costa Coelho
não. É o nível todo, é um processo integrado. Acho que as principais coisas que temos que ter em mente quando pensamos em envelhecimento é que não há uma única causa. Mesmo um nível tão simples como o unissolar, é uma integração de diferentes fatores.
José Maria Pimentel
Se pensarmos no envelhecimento como um acumular de idade, que é paralelo com o fenómeno humano, a célula envelhece só, ou seja, o aumento da idade, se quiseres, acontece só quando ela se divide ou acontece durante, entre divisões?
Miguel Costa Coelho
Exato, isso é uma pergunta extremamente interessante e tem a ver com aquela dicotomia de estamos a falar em envelhecimento em termos de passagem de tempo, estamos a falar em envelhecimento em termos de número de vezes que as células se dividem. E acontecem as duas coisas.
José Maria Pimentel
E de triguração, não é, no fundo?
Miguel Costa Coelho
Exatamente. Há acumulação. Um exemplo clássico de como é que esse fenómeno de somente a passagem do tempo pode afetar o funcionamento e o envelhecimento das células, acontece, por exemplo, ao nível dos nossos neurónios. Os nossos neurónios são fundamentalmente células que não se dividem com grande frequência, portanto, passam a maioria da sua vida como células que existem no nosso cérebro, mas que não se multiplicam. E essas são as tais células que vão sofrer um envelhecimento cronológico, por assim dizer. Ou seja, vão acumulando erros, podem ser erros genéticos, podem ser erros na atração nos constituintes da célula, por exemplo, na membrana solar, na forma como as células são produzidas para passar informação, e também a acumulação de proteínas danificadas, que é uma das coisas que eu estudei como cientista de investigação básico, e é um dos maiores problemas, é que estas proteínas acumulam, causam uma disfunção a nível da célula e a célula não tem capacidade de se dividir e de dominar estas proteínas e por isso envelhece cronologicamente. Nós perdemos faculdades psicológicas também por causa disso. Está
José Maria Pimentel
a ver com Parkinson e Alzheimer também. Ou seja, no caso dos neurónios, tu estavas a dizer há bocadinho, desculpa, os neurónios não se dividem, ou seja, não se multiplicam?
Miguel Costa Coelho
Não se replicam, lá está. O exemplo clássico são os neurónios também, por exemplo, os miócidos, os cardamiócidos também, células que são altamente especializadas e células que são altamente diferenciadas e como têm uma função extremamente importante, são células que não se dividem facilmente. Curioso, sim. O reverso, ou o que nós podemos pensar em coisas que podemos comprar diretamente com organismos unicelulares que se dividem a defeito, são as nossas células staminais, por exemplo. As células que nós temos por baixo da pele, na endoderma, têm uma capacidade regenerativa muito elevada, e essas sim, essas envelhecem, essencialmente não porque uma única célula existe durante largas dezenas de anos, mas porque as células se vão replicando e se vão duplicando e ao duplicarem-se conseguem acumular mais toxicidade porque ao fim e ao cabo depois de 30, 20, 20, 30, 40 divisões vão desaparecer e vão ser eliminadas do organismo. Por isso elas envelhecem talvez de uma forma mais ligada ao número de vezes com que elas se dividem
José Maria Pimentel
do que exatamente a
Miguel Costa Coelho
passagem do tempo. Nós temos, no fundo, dois relógios celulares dentro de nós. Um relógio que tem a ver com o número de vezes que as células se dividem e outro relógio que tem a ver com a passagem cronológica do tempo.
José Maria Pimentel
E o envelhecimento também é diferente? Ou seja, por exemplo, o envelhecimento que tem a ver com o número de vezes que se dividem, acontece, talvez eu expliquei, há bocado não é só isso, mas acontece, não sei se é sobretudo, mas pelo menos é mais falado, o que acontece ao nível do DNA, porque tem um fundo de uma espécie de adulteração do DNA que vai ocorrendo com essas divisões. Nos neurônios, por exemplo, ou nos tecidos do coração, isso já acontece por exemplo mais ao nível do extranúcleo, das proteínas que estão na célula, ou da membrana ou uma coisa qualquer do género?
Miguel Costa Coelho
Sim, claro. Há diferentes tipos de envelhecimento, como já referimos, que é o tal replicativo e o envelhecimento cronológico. E o que acontece no envelhecimento replicativo é que, classicamente, é definido como um limite no número de vezes que as células conseguem dividir e tem muito a ver com o facto de as células, quando se dividem, vão perdendo um bocado os pedaços dos cromossomos, que são os tástelombros,
José Maria Pimentel
que funcionam como as cápsulas que protegem
Miguel Costa Coelho
os atacadores, os nossos cromossomos, e à medida que as células se vão dividindo, elas vão sendo cortadas, ou o que é pouco. Vai chegar a um ponto em que elas não se vão conseguir dividir mais porque esses telómeros já são curtos e aí acontece estabilidade genética e por causa disso as células envelhecem rapidamente e morrem. Isso é o caso, por exemplo, das células de endodermo, que são altamente replicativas. No caso de células cerebrais, por exemplo, o mecanismo é diferente e eu acho que há uma maior propensidade para o envelhecimento ser extra-nuclear, como estávamos a referir, que é, as próteínas acumulam, e são próteínas que têm que durar durante bastante tempo, acumulam-se no citoplasma, que é a parte extranuclear das células, e por elas fazerem isso vão criando agregados, que vão bloqueando a função dessas células e vão causando às vezes até a morte desses neurônios. Portanto, há diferentes aspectos do envelhecimento. Todos estes processos, tanto o nuclear como o externuclear, ou seja, as mutações e a agregação de proteínas, coexistem, tanto no envelhecimento replicativo como no envelhecimento cronológico, mas têm efeitos diferentes e magnitudes diferentes em tipos de células diferentes. E
José Maria Pimentel
tu há bocado falaste de uma coisa que é interessante voltar, que é aquela questão das células especializadas versus as células mais genéricas. Porque, no fundo, o que acontece, os neurônios, por exemplo, são células muito especializadas, ou seja, têm uma função muito específica e que já está muito distante do tipo de comportamento de uma célula organismo unicelular, cujo objetivo é basicamente reproduzir-se sempre, multiplicar-se o máximo possível, enquanto que, por exemplo, as células da pele, por exemplo, ainda estão mais próximas desse tipo de organismo.
Miguel Costa Coelho
Não estão tão diferenciadas. Exatamente, esse problema que estabeleceste é extremamente importante e posso comentar já sobre isso que é basicamente o que acontece é que nós temos diferentes tipos de tecidos e alguns tecidos precisam de uma especialização maior E essa especialização implica que as células que dão origem aos tecidos têm que passar por mais fases de diferenciação. Quando elas chegam a ser tão especializadas e tão importantes como os neurónios, que têm que manter uma estrutura fixa para conseguirem comunicar com outros neurónios e pensar impulsos elétricos, que no fundo constitui a base do nosso pensamento.
José Maria Pimentel
Exatamente, as sinapses, sim.
Miguel Costa Coelho
Exatamente, as sinapses. É extremamente difícil essas células voltarem a dividir-se e voltarem a desdiferenciar-se exatamente porque a sua função é tão vital. É como, por exemplo, se o nosso coração, em vez de ter de bater constantemente a um ritmo de 60 batimentos por minuto, conseguisse alterar as suas células e reproduzir e continuar a regenerar as suas células e regenerar o coração. E isso, se calhar, até nos dava um tempo máximo de vida maior, mas o problema é que se isso acontecesse, íamos se calhar perder a funcionalidade e a rigidez e a força que o próprio tecido, que é o coração, a um nível muito mais simplístico do que o nível cerebral, os neurónios no cérebro, necessita de estar ativo e necessita de funcionar como um músculo que bombeia o sangue pelo corpo. Portanto, quando existe um grau muito elevado de especialização, é quase impossível continuar a haver regeneração das células.
José Maria Pimentel
Há um trade-off entre uma coisa e outra. Exatamente, é muito importante.
Miguel Costa Coelho
Portanto, nós temos que pensar, as células da nossa pele regeneram muito rapidamente, mas basicamente a pele que temos hoje não vai ser a pele que vamos ter daqui a uma semana, porque as células estão sempre a dividir, é como se tivéssemos uma carapaça que nós vamos largando com a passagem do tempo. E o que é engraçado é que essa carapaça é possível porque a nossa pele é um órgão que existe para nos proteger do ambiente. Então faz sentido que as células se dividam rapidamente, vão acumulando insultos no meio ambiente, por exemplo, radiação ultravioleta, fumo, até às vezes, por exemplo, quando temos uma ferida, as feridas secretizam rapidamente e depois nós livramos das crostas e dos produtos essas feridas e o que acontece é que esta carapaça regenera muito rapidamente e isso faz com que as células não tenham que ser tão especializadas. Elas estão lá para criar uma barreira e essa barreira não é tão diferenciada.
José Maria Pimentel
Curioso isso, pá. Isso tem muita piada. Ou seja, porque no fundo se calhar até faz sentido fazer aqui algum contexto ecorrismo se eu tiver aqui a dizer alguma coisa muito ao lado. O que acontece quando tu passas de um organismo unicelular para um multicelular, e isto é particularmente verdade em animais mais complexos como nós, e outros mamíferos, e répteis, e aves, e por aí em diante, o que acontece é que tu, as células têm que passar a funcionar não só para elas próprias mas de uma maneira coordenada com... No fundo têm que abdicar desse modo de funcionamento de uma célula que é um organismo único, que o seu objetivo é reproduzir-se. E o que é engraçado aí é que, no fundo, as células do cérebro estão no extremo máximo em certo sentido, estão especializadas e coordenadas. E as da pele, por exemplo, já estão, ainda se calhar, a meio caminho entre uma coisa e outra. Isso acontece porque, para o funcionamento do nosso cérebro, é necessário que haja uma coordenação entre as células, entre os neurónios, que não é necessário, por exemplo, na pele, em que as células podem funcionar quase cada uma por si, em certo sentido?
Miguel Costa Coelho
Exatamente. Tem a ver com o nível de diferenciação, uma vez, o nível de especialização e o nível da arquitetura dos tecidos. O nosso cérebro é extremamente complexo. A nossa pele deve ser também vista como um órgão único, mas é um órgão que é muito mais simples. É, no fundo, uma camada fininha de células que nos protege do meio ambiente, enquanto que o nosso cérebro tem diferentes regiões. Diferentes regiões respondem a diferentes estímulos. Estão envolvidas no processamento de diferentes sinais em termos de hormonas, em termos de audição, em termos de sinais sensoriais, e isso faz com que estes dois sistemas que no fundo existem, como estava a fazer a alusão, para propagar os nossos genes, aquilo que nós falámos ao início, exigem um grau muito maior de especialização, e essa especialização tem um custo, que é a capacidade de não conseguirmos regenerar esses sistemas tão facilmente. Isso tem a ver também com o facto de que quando nós pensamos em organismos unicelulares, como tu aludiste, temos uma célula que é um único organismo em que tanto os gênios que ela vai passar à próxima célula na sua descendência, como os gênios que fazem parte do organismo em si, estão num único
José Maria Pimentel
núcleo. Exato. Certo? Sim.
Miguel Costa Coelho
Conosco, com os mamíferos, aves répteis, o que acontece é muito diferente. Nós temos uma clara separação da nossa linha germinal, que no fundo são os nossos gâmetas que vamos passar à descendência, com os quais vamos fazer os nossos filhos e ajudar a educá-los a sobreviver. E temos também as células que fazem parte do nosso corpo, que existem no fundo para que essa propagação dos nossos gametas aconteça. Portanto, é como se tivéssemos um nível de especialização tal em que a linha germinal e a linha somática estão separadas enquanto que numa única célula estão-se sempre juntas e o objetivo é só dividir-se rapidamente e ocupar-se do nicho ecológico e tentar-se persistir nas melhores condições possíveis E por quanto tempo máximo conseguir. Este
José Maria Pimentel
não era o meu plano original para a conversa, mas isto é demasiado interessante para eu deixar escapar-se e fazer mais uma pergunta. Claro. Por exemplo, o caso do fígado é muitas vezes referido porque é o nosso único órgão, pelo menos interno, que se consegue regenerar. Não sei se isto é 100% verdade. Uma taxa muito elevada, sim. Mas o fígado também me pareceria um órgão complexo nesse sentido de exigir coordenação, ou não?
Miguel Costa Coelho
Sim, nós temos várias estruturas. O fígado não pode ser...
José Maria Pimentel
Desculpa, porque ele parece regenerar implica que as células se multipliquem, não é? Se estejam a dividir rapidamente.
Miguel Costa Coelho
Isso tem a ver com a estrutura do órgão em si. Por exemplo, a pele é mais simples em termos de da uniformidade do tecido. Quando pensamos no fígado, temos diferentes componentes do fígado. Eu não sou anatomista, não sou especializado, mas sei que, por exemplo, se retirarmos 30% de um fígado, ele consegue se regenerar. Mas se formos, além disso, e tocarmos em estruturas mais internas no fígado, essa regeneração já é mais difícil. Ok. Portanto, tem a ver no fundo com a quantidade de dano que nós infligimos no órgão e na capacidade de saber se esse dano é periférico ou não.
José Maria Pimentel
E depende de que parte tiras também, não
Miguel Costa Coelho
é? Claro, depende da parte e depende de se é no interior que afeta as tais células detaminais, que são as células que nós temos no nosso corpo, que são mais parecidas com os organismos insulares, porque são as tais que no fundo vão ajudar a regenerar. E é dessas células que sai a maior parte dos tecidos que nós consideramos altamente diferenciados. No fundo, os neurónios, há muitas gerações atrás, foram uma célula altamente desdiferenciada, foram uma tal célula exterminal. E isso é que é interessante. Daí eu dizer, e ter referido ao início, que nós começamos a envelhecer depois da nossa primeira divisão celular,
José Maria Pimentel
quando o
Miguel Costa Coelho
ósseto e os parmatisóides se juntam, e quando nós estamos no ambiente intrauterino, dentro da barriga das nossas mães, esse processo, se quisermos chamar de envelhecimento, já começa a acontecer, porque nós estamos a criar os nossos órgãos, as células estão a se dividir e o tal envelhecimento replicativo começa já a acontecer no nível solar. Nós não notamos isso porque só notamos os aspectos do envelhecimento, o tal clássico envelhecimento que a sociedade consegue perceber.
José Maria Pimentel
O visível, não é? Exato, acontece
Miguel Costa Coelho
muito mais tarde, mas em termos científicos e em termos práticos nós começamos a envelhecer depois da nossa primeira divisão celular.
José Maria Pimentel
Claro, e não quando acabamos de crescer. Exatamente. O envelhecimento começa quando acabas de crescer. Até porque há aí dois processos paralelos, não é? Um processo de envelhecimento no sentido dessa acumulação de erros, que ocorre paralelamente durante os primeiros, bem, depende do que estamos a falar, 15 a 16 anos do ponto de vista físico, provavelmente para aí 25 do ponto de vista cognitivo, que é um processo de expansão, expansão do número de células do corpo, porque estás a crescer. Exatamente, sim, sim. E por isso é que isso acontece. Olha, eu ia sugerir fazermos assim, vamos começar a falar de cancro e acho que isso nos vai levar de volta à questão do envelhecimento a um nível mais lato e mais aplicado ao ser humano.
Miguel Costa Coelho
Até porque tem a ver, não é?
José Maria Pimentel
Está tudo... Exatamente. O
Miguel Costa Coelho
envelhecimento e o cancro estão relacionados, há uma ciência muito maior de cancro com a idade, claro. E isso tem a ver com o fundamento do cancro, que deriva
José Maria Pimentel
da acumulação de erros. Eu e aí, exatamente. Acho que podemos começar... Porque há várias maneiras de olhar para o cancro. Há a questão de perceber o que é que acontece, que no fundo é a causa imediata que tem a ver com essa acumulação de erros, e já lá vamos. Outra pergunta, um bocadinho mais meta, mais atrás, é porquê que isso acontece? Porquê que há essas alterações? Porquê que há esses erros? Porquê que eles surgem? E isso, como estavas a dizer há pouco, tem a ver com fatores genéticos, com fatores ambientais e também com simples acaso. Exatamente, que é um componente muito
Miguel Costa Coelho
importante, que é a aleatoriedade dos processos que acontecem internos, que são processos naturais.
José Maria Pimentel
Exatamente, sim. Aliás, eu lembro na conversa com a Carme Fonseca, que ela aludia a isso e foi uma das coisas que me marcaram na altura, porque ela dizia que essa componente aleatória é uma coisa que nos causa alguma estranheza, mas na verdade é o que permitiu que existisse vida, no fundo foi essa variação, essas mutações que depois foram selecionadas, foi ali que surgiu a vida e é uma componente que faz parte da biologia.
Miguel Costa Coelho
Sim, faz parte da evolução, É um dos meus tópicos favoritos, que é a biologia evolutiva. E, no fundo, se falamos de envelhecimento, se falamos de câncer, temos também que tentar perceber isso do ponto de vista de evolução.
José Maria Pimentel
Exatamente. E eu queria lá, mas desculpa, só para fechar aquilo que eu ia dizer há pouco e dar o palco, começando pela parte das mutações. A última causa que eu ia falar, a terceira, no fundo, é exatamente a razão evolutiva. Porque é que evolutivamente isto acontece? Qual é a razão evolutiva para isto acontecer? Mas isto estou só a estabelecer a agenda, porque acho que são os três pontos interessantes. Começando pelo primeiro, pelo mais imediato, das mutações. Ou seja, o que acontece, o fenómeno do cancro observável são células que começam a crescer e a multiplicar-se de forma desordenada. Basicamente é isto, certo? É isto que se observa. Porquê é que isto acontece? Acontece porque há mutações, erros em determinadas células, em determinados genes. E é aí que entrou... Esta é a parte fácil, depois as minhas dúvidas começam a ir. Porque, segundo aquilo que eu percebo, e tu vais explicar melhor, tradicionalmente o género que se entendia como estando por trás dos poletários do câncer eram os géneros, os proto-oncogénios, que depois se tornavam oncogénios, e os géneros supressores de tumor. Mas hoje em dia sabemos que vai para lá e disso e a tua investigação, em torno de outras coisas, desvendou algumas das coisas nestas áreas. Mas se não te importas, come�a-me por explicar esta versão mais clássica e esta base e o que é que são os protooncogentes e os supressores de tumor e depois o que é que nos falta, o que é que falta incluir aqui para perceber a geração de câncer para além de simplesmente estes dois genes que têm uma intervenção mais direta?
Miguel Costa Coelho
Sim, começando no nível mais básico e, Elodino, também ao que referiste isto são processos aleatórios, são processos naturais que ocorrem no nosso organismo, e o tal fator que é que devemos pensar quando pensamos em cancro, para além dos protooncogénes e dos genes guardiões de genoma, oncogénes, é basicamente o próprio processo de divisão celular. Porque nós não nos podemos esquecer que é extremamente importante para a célula, do ponto de vista de replicação, manter um genoma o mais estável possível. Ou seja, quando as células se duplicam, é extremamente importante cometer o menor erro de números possível quando copiamos o DNA. O DNA, a tal molécula que podemos pensar como um atacador, é uma molécula que é um atacador muito comprido. E o problema é que há muita, muita, muita, muita, muita probabilidade de cada vez que uma célula se divide, acumular uma mutação, ou duas, ou três, ou mais, no estado da célula. E isso é, se calhar, o fator que é mais influente na formação de cancro, que é basicamente o processo natural de duplicação celular. A própria duplicação celular não é perfeita, e o facto de
José Maria Pimentel
essa duplicação não ser
Miguel Costa Coelho
perfeita já propencia a acumulação de erros. Esses erros, como são aleatórios, têm uma probabilidade muito pequena de acertar os protooncogentes e os oncogentes, mas uma vez que nós podemos também ser expostos a radiação ultravioleta, por exemplo, quando pensamos em cancro da pele no melanoma ou noutros tipos de cancro, o que acontece é que há uma aceleração na velocidade a que esses erros se acumulam.
José Maria Pimentel
Sim, certo, certo. Ok, isso eu percebo. Ou seja, no fundo tem que ver com a acumulação de erros. Essa acumulação de erros tem uma espécie de velocidade basal, mas que pode ser aumentada com estímulos externos ou com uma certa predisposição genética, presumo eu também. Agora, não se trata simplesmente da ocorrência de erros e até da velocidade da ocorrência de erros, mas também de onde é que eles ocorrem. Os supressores de tumor, é assim que se chama, não é? Sim, tumor suppressor. Tem exatamente como função corrigir esses erros.
Miguel Costa Coelho
Exato. Os supressores de tumor são elementos genes que ajudam a essa tal replicação a ocorrer sem problemas e controlam o chamado ciclo solar que é, no fundo, a orquestra dos fenómenos todos que acontecem dentro da célula, permitem-se-la duplicar o DNA, duplicar a massa solar e dividir-se. Todos estes aspectos podem contribuir para o cancro de diferentes ângulos e é muito importante que estes genes supressores de tumores não acumulem mutações eles próprios porque no fundo é como se estivéssemos numa situação em que nós temos médicos dentro das células que tomam conta da célula e estamos no fundo a transformar esses médicos se calhar em economistas ou engenheiros e eles deixam de conseguir ajudar a célula a replicar o DNA. E no fundo a função dos supressores, dos tumors suppressor genes, é manter esta orquestra de replicação celular a funcionar. E é extremamente importante que isso aconteça porque quando há mutações nestes géneros, às vezes é preciso duas mutações, não nos esqueçamos que temos duas cópias
José Maria Pimentel
destes géneros médicos,
Miguel Costa Coelho
quando há mutações e perdemos uma destas funções, o que acontece é que não vamos ter nenhuma forma de conseguir prevenir os erros de acontecerem, ou Deus conseguir reparar.
José Maria Pimentel
Ou seja, estes supressores de tumor no fundo funcionam como... Não sei se partilhas esta analogia, mas eu apanhei uma entrevista do autor do livro que vais comentar no final, não querendo fazer spoiling, que já os ouvintes no final vão ver quem é, em que ele usava a analogia chamando aos supressores travões e aos protooncogénios aceleradores. Exatamente,
Miguel Costa Coelho
essa analogia é excelente.
José Maria Pimentel
Eu achei interessante, porque no fundo ele dizia que os supressores de tumor são os que travam o processo de replicação e crescimento da célula e a função do próton cogente é justamente acelerá-lo se eles tiverem uma mutação, aceleram no demais.
Miguel Costa Coelho
Exato. Voltando então a esse ponto, é exatamente isso. O que acontece é que quando as células estão a replicar, durante o processo que é o chamado ciclo solar, nós temos diferentes barreiras, a diferentes fases, e essas barreiras são patrulhadas no fundo, pois está a géneros supressor de tumores. E esses géneros basicamente atuam como barreiras ou como travões no sentido em que conseguem parar o processo de replicação solar se detectarem que houve erros durante a fase anterior. Por exemplo, quando o DNA é duplicado, se houver uma parte do DNA que ainda não foi duplicada, eles param o ciclo solar e esperam que o DNA acabe de ser duplicado. Quando os cromossomas foram duplicados com sucesso e têm que ser separados, nós temos que manter, basicamente, temos que ter uma forma de a célula saber que metade dos cromossomos tem que ir para uma célula filha e a outra metade tem que ir para outra célula filha. Isso acontece basicamente com o jogo da corda, que é basicamente uns cromossomos estão a puxar de um lado da corda, Os outros cromossomos estão a puxar do outro lado e só quando a célula sente que há uma força igual a puxar os cromossomos igualmente, 23 por um lado, 23 para o outro, é que exatamente deixam essa barreira passar e passam para a próxima fase do ciclo solar. Portanto, Estas barreiras são extremamente importantes, funcionam como detectores de erros no DNA, detectores de força mecânica e capacidade de alinhamento dos cromossomos para serem segregados corretamente. E lá está. São estas barreiras que impedem as células de acumularem erros, no fundo.
José Maria Pimentel
Pois é, é engraçado. A analogia do orquestrador que estavas a usar há bocado faz sentido aqui. E
Miguel Costa Coelho
os que aceleram também, podemos falar um bocado sobre eles, porque as
José Maria Pimentel
coisas são interessantes. Os proton-cogen?
Miguel Costa Coelho
Os proton-cogen são basicamente genes que na sua função normal na célula não causam nenhum dano, mas quando são mutados aceleram certos processos celulares que basicamente contribuem para a acumulação de erros e contribuem para a quebra destas barreiras e contribuem para o facto de se elas começarem a se tornar independentes destas barreiras e se começarem a se tornar independentes do tal controle do ciclo solar e então começarem a replicar-se muito rapidamente, dividem-se enfiradamente e criam as tais massas tumorais. E a diferença é que em muitos destes protocogénos, as mutações bastam, por exemplo, uma mutação acontecer numa das duas cópias destes géneros para elas automaticamente acelerarem o processo. Portanto, é um acontecimento muito mais provável do que destruir duas cópias de um género guardião.
José Maria Pimentel
E a tua investigação incidiu sobre isso exatamente? Incidiu
Miguel Costa Coelho
também, mais focada no tal aspecto de acelerar as taxas de mutação, não tão focada nos tais oncogénios em si que alteram certas funções solares, mas a minha investigação tem a ver com o que é que no fundo controla a tal velocidade basal, que ele disse anteriormente, à qual as células estão a mutar. Portanto, as células têm que ser vistas como, no fundo, um estadio como se fosse uma orquestra, lá estará a utilizar a analogia, que está a tocar um certo ritmo, mas se pedirmos a essa orquestra para tocar mais depressa, os músicos da orquestra, ou seja, as géneros, vão começar a cometer mais erros. Ou, basicamente, ou fazer estes músicos acumular mais erros a orquestra vai fazer menos sentido a música vai ser pior e no fundo o que vai acontecer é que vamos ter um processo de aceleração do cancro muito mais rápido. No fundo é como atirar dardos para um alvo, e se atirarmos um dardo por minuto, temos se calhar uma probabilidade de acertar no vermelho, que é baixa, certo? Mas se atirarmos 100 dardos por minuto, essa probabilidade no espaço-tempo de uma hora aumenta. E é exatamente o mesmo que o ciclo solar é. No fundo, é importante manter alguma taxa de mutação para permitir que processos evolutivos aconteçam, mas ao mesmo tempo é importante manter essa taxa de mutação baixa para prevenir coisas como envelhecimento acelerado ou cancro a acontecerem.
José Maria Pimentel
Só aqui há uma coisa que eu acho que ainda não percebi bem. Para o cancro ser
Miguel Costa Coelho
despilotado tem que acontecer duas coisas fundamentalmente. Uma é uma mutação num gene que seja protetor, num tal tumor suppressor, e classicamente uma mutação pode acontecer depois, fruto da primeira mutação que já aconteceu, talvez aumentar a taxa, a velocidade a que as mutações se acumulam. A probabilidade de erros, não é? Exatamente. No fundo, é um processo contínuo. Às vezes pode acontecer só por alteração da expressão de um gene. Às vezes nem tem que ser mutações e alterar o próprio gene, mas alterar, por exemplo, a quantidade ou a frequência com que esse gene existe ou com que esse gene vai ser expresso numa célula.
José Maria Pimentel
Desculpa, o expresso aqui quer dizer o quê? Tem a ver com o RNA?
Miguel Costa Coelho
Exatamente, o expresso tem a ver com a quantidade no fundo de proteína. Os genes resultam, no fundo, a maioria deles, em produção de RNA que depois vai ser traduzida em proteínas, que são os componentes funcionais da célula. E esses componentes, às vezes, basta haver uma oscilação na quantidade da proteína. E um dos exemplos clássicos é o câncer da pele, melanoma, que basta haver uma alteração na quantidade de um gene para o processo ser iniciado. Portanto, o câncer é complexo e é muito difícil de entender exatamente porque há várias formas de o iniciar. Uma que é a que é mais interessante para mim e a que eu me dediquei durante o meu pós-doutoramento é basicamente tentar perceber como é que, alterando a probabilidade destes genes serem destruídos, conseguimos alterar a frequência com que o cancro vai acontecer. E eu acho que isso tem muito a ver e pode ser aplicado de uma forma geral a quase todos os tipos de cancro, é no fundo mexer na taxa base com que as mutações se acumulam. Uma coisa que quase de certeza vai acelerar a probabilidade de alguém adquirir cancro no futuro é o facto de ter uma taxa celular de mutação avançada. Porque isso lá está, voltando à analogia dos dardos, vai fazer com que se calhar vamos atirar mais dardos, mais mutações, e por causa disso vamos acertar mais vezes, aleatoriamente, mas vamos acertar mais vezes, tanto nos protooncogénios como nos géneros guardiões, como nos tumores suppressor, como nos suppressores de tumores. Por exemplo, temos uma célula, certo? Como há milhões de células no nosso corpo, esta célula vai adquirir uma mutação. Esta mutação, vamos pensar que vai atingir um destes genes supressores de tumores, vai criar uma fraqueza, uma fragilidade na célula e depois desta fragilidade acontecer, o que acontece é que esta célula vai se começar a dividir mais rapidamente. Exato. Portanto, há um erro inicial que cria uma diferença na célula, faz com que esta célula se comporte de forma diferente, acelera, por exemplo, a sua taxa de divisão. No fundo, se nós retirarmos uma barreira do ciclo solar, estamos a achar o ciclo solar a acontecer mais depressa. Se acontece mais depressa, vai acumular erros.
José Maria Pimentel
Claro, mas tem que afetar então, por exemplo, no caso os protocogénios, por exemplo.
Miguel Costa Coelho
Eu diria que pode afetar ou os protocogénios ou os genes supressores de tumores, ambos em combinação, mas como a acumulação de mutações é um processo que acontece de uma forma determinística, ou seja, há a mutação, há a passagem do tempo e a replicação, essa mutação é propagada e depois podem acontecer outras mutações noutros genes, é no fundo um processo de evolução, o próprio tumor e o próprio cancro evolui desta forma. Lá está, é difícil para mim responder à pergunta porque podem haver muitos eventos destes em que um gene, um protocogeno é ativado ou um gene supressor de tumor é destruído e basicamente a célula, em vez de dar origem a um cancro, cresce, divide-se mais rapidamente, forma uma pequena massa e depois morre. Exato. Ou seja,
José Maria Pimentel
Não tem que dar origem a um cancro, claro. Não tem, uma
Miguel Costa Coelho
parte das vezes não dá, porque nós temos um sistema imunitário que é muito competente a vigiar este tipo de situações, só que lá está o nosso corpo não é perfeito e há sempre erros. E o facto de alguns desses micro-tumores, que quisemos chamar assim, conseguirem escapar a vigilância do nosso sistema imunitário, é o que depois nos permite adquirir a sua própria estrutura evolutiva e também diferenciada de uma massa tumoral de células que depois já não consegue ser eliminada pelo nosso sistema imunitário. Daí criarem-se tumores. Portanto, isto são coisas que acontecem frequentemente dentro do nosso corpo e com uma probabilidade pequena, felizmente, podem dar origem a
José Maria Pimentel
um cancro. Portanto,
Miguel Costa Coelho
lá está, são diferentes degraus. Começa tudo com uma mutação. Se essa mutação acontecer numa célula que também tem outra mutação que acelera a taxa de mutações, é mais provável essas células darem origem a um cancro.
José Maria Pimentel
E outra coisa que eu apanhei, que achei interessante, tem que ver com o papel também do ambiente em que a célula está inserida. Também controla a velocidade de replicação, não é?
Miguel Costa Coelho
Extremamente importante, lá está. Por isso é que normalmente é muito mais comum termos aparecimento de cancro, há uma frequência muito maior de cancro em tecidos que são mais proliferativos.
José Maria Pimentel
Proliferativos? O que quer dizer?
Miguel Costa Coelho
São tecidos que se dividem mais rapidamente, como o câncer da pele, fígado. Por isso é que
José Maria Pimentel
é raro ver câncer do coração, por exemplo. Por
Miguel Costa Coelho
exemplo, o câncer do coração é extremamente raro. No cérebro também é bastante raro. Há casos que são extremamente letais e são muito difíceis de tratar, mas é extremamente raro. E isso tem a ver com o facto de já haver uma predisposição nesses tecidos para as células se dividirem a um ritmo mais acelerado. Portanto, é uma conjugação de todos os fatores, das mutações, que é a tua história genética e do ambiente em que tu estás, que no fundo é a tua história de desenvolvimento dentro de um organismo. Percebes? Portanto, a célula está lá, tem estas mutações, mas se tiver no ambiente essas mutações que podem dar origem ao cancro, se tiver no outro órgão, se calhar não dão origem ao cancro porque não vão ser interpretadas ou não vão conseguir despoletar o cancro da mesma forma. E
José Maria Pimentel
se nós olharmos, por exemplo, agora o que rolou-me isto, se tu tiveres um gráfico com a evolução do número ou da massa de células de câncer ao longo do tempo, no fundo tens a formação de um tumor, não é? No fundo. Isto é o quê? É uma linha reta ou é, por exemplo, exponencial?
Miguel Costa Coelho
Eu esperaria que fosse exponencial, mas é claro que vai ter diferentes estados. O próprio cancro, agora que estamos a falar de organismos em desenvolvimento, o próprio cancro tem um programa de desenvolvimento ele próprio. Portanto, temos a tal primeira célula, se quisermos pensar, a célula de cancro-estaminal, a primeira que deu origem ao cancro, e essa célula vai se dividir e depois dessa célula se dividir, vamos criar um microtumor. Esse microtumor, se não for patrulhado e eliminado pelo sistema imunitário, vai da origem de um tumor maior. Esse tumor maior já é uma massa grande, mas chega a uma altura também que essa própria massa vai ser limitada pelos nutrientes que consegue absorver. Daí, cria-se uma espécie de uma diferenciação que se chama angiogenes, que tem a ver com a formação de vasos sanguíneos, que no fundo é o tumor a espalhar-se quando deixa de conseguir crescer mais, portanto lá está ali esse exponencial até um certo ponto, e depois esse crescimento desacelera e entra uma outra fase, que é a fase basicamente de expandir a angiogénese, expandem-se os vasos sanguíneos que recrutam nutrientes para o tumor e depois há uma segunda fase de crescimento. E depois ainda há uma terceira que é... As mutástas? Exatamente, que é a pior parte. Quando o tumor já tem esta rede de vasos sanguíneos alimentar, células no tumor, que se calhar também já adquiriram muitas mutações, porque as células foram dividindo muitas e muitas vezes com uma taxa de mutação elevada. Estas células, no fundo, é como se fossem estivessem presas por um velcro, que é muito fininho, e rapidamente saem e vão para a corrente sanguínea e começam a circular pelo organismo. E com uma certa probabilidade conseguem-se fixar nos órgãos. Como já têm estabilidade genética, conseguem evoluir e adaptar-se melhor a esses órgãos e aí é que o problema se torna muito grave, é que se torna muito difícil de
José Maria Pimentel
tratar. Sim, Mas tu agora usaste aí uma expressão que eu acho que é importante, não só porque eu não tenho certeza o que isso significa, mas também porque é importante para isso, a questão da estabilidade genética. Porque o surgimento do cancro cria instabilidade genética.
Miguel Costa Coelho
E o que é que é
José Maria Pimentel
depois, que processo é esse de convergência para uma nova estabilidade genética enquanto célula cancerígena?
Miguel Costa Coelho
É exatamente o mesmo princípio que se pensarmos agora, vou voltar outra vez a um dos meus tópicos favoritos que é a evolução, tem muito a ver com o que é que a célula precisa a dado momento. Uma célula, no fundo, que é uma célula cancerígena, é como se tornasse a célula mais egoísta que nós temos no nosso organismo. Ela só se quer dividir, e dividir rapidamente. E o que acontece é que esta célula se vai dividir, vai chegar a um certo estadio em que depois vai pensar, bem, se calhar agora já não preciso é de me dividir, já tenho um número bom de células e uma massa grande, o que eu preciso agora é de acumular nutrientes. Então o que acontece é a tal instabilidade genética que ajudou esta célula a dividir-se rapidamente e a quebrar os tais bloqueios e as tais amarras do ciclo celular... Mas
José Maria Pimentel
tu chamas-te de escopo interrobeiro e instabilidade genética é uma velocidade acelerada de replicação, é isso?
Miguel Costa Coelho
A instabilidade genética é uma velocidade acelerada de acumulação de mutações que pode resultar numa replicação acelerada. Porquê? Porque quando estas células se tornam egoístas vão crescer num ambiente que lhes é hostil, em princípio. Então, elas têm que se adaptar e têm que crescer rapidamente. Depois desta adaptação acontecer, e isto é uma coisa que ainda não está aprovada, mas é uma teoria que eu tenho, é que, basicamente, esta instabilidade vai ser revertida porque as células agora não se querem tornar instáveis. Elas já se adaptaram àquele nicho. Elas querem crescer, querem criar metástases. E essas metástases, quando chegarem...
José Maria Pimentel
Compartem-se como um organismo, no fundo. Exatamente.
Miguel Costa Coelho
É como um parasita. Quando estas metástases, que são outra vez células únicas que vão colonizar ou pequenas populações de células que vão juntas na corrente sanguínea colonizar um outro órgão estas células quando chegam a outro órgão, vão ter um meio ambiente que é hostil Exato Ou seja, vão precisar outra vez de evoluir rapidamente, vão precisar outra vez de aumentar a instabilidade genética e o processo acontece outra vez Portanto, temos que pensar nisto quase como se fosse um organismo que está a evoluir num ambiente hostil. Ao início precisa de se adaptar, precisa de muitas mutações para se tornar eficiente naquele nicho e depois mais tarde perde esta taxa de mutação elevada para se adaptar e crescer rapidamente porque as mutações também criam problemas às células cancerígenas. Uma das formas de eliminar cancro é exatamente aumentar muito estas mutações, de tal forma
José Maria Pimentel
que a célula morre, porque
Miguel Costa Coelho
atingimos genes que são essenciais e são as formas clássicas de combater o cancro.
José Maria Pimentel
Mas desculpa, mas as mutações abrandam no cancro, eu não sabia disso.
Miguel Costa Coelho
O que eu sei é que há diferentes velocidades de acumulação. É muito difícil, e uma das coisas que eu gostaria de fazer um dia é exatamente pegar numa célula cancerígena e segui-la do início do cancro
José Maria Pimentel
até a parte final.
Miguel Costa Coelho
E isto é possível fazer agora indiretamente, mas respondendo à tua pergunta, é muito difícil seguir o percurso de uma célula cancerígena porque quando a célula chega ao laboratório, quando nós tiramos uma biópsia de um tumor de um paciente, as biópsias se tirarmos de uma região, se dividirmos o tumor em quatro, é como se tivéssemos quase que olhar por quatro
José Maria Pimentel
genomas, quatro pessoas diferentes.
Miguel Costa Coelho
Porque há tanta heterogeneidade que é quase impossível dizer que esta mutação aconteceu há 30 gerações, aconteceu quando o tumor ainda estava na sua fase inicial, aconteceu mais tarde. São coisas que são muito difíceis de comparar. Claro. Mas o que eu acho, e comparando agora com os organismos unicelulares e com os modelos que temos no laboratório, é que quando temos um estímulo para as células quebrarem genes ou ativarem genes, esse estímulo vai ser sempre benéfico do ponto de vista de aumentar a taxa de mutação. O que nós precisamos é mudanças rápidas no genoma. Quando isso acontece e o tumor começa a crescer, nós agora queremos o reverso. Queremos que a instabilidade genética diminua para nós agora termos as células que já estão adaptadas, dividirem-se e crescerem mais rapidamente sem acumular em tantos
José Maria Pimentel
grupos. O que é curioso aí é o tumor... Porque a ideia que eu tinha e eu próprio estava a aludir a isso há bocado é que as células tumorais no fundo comportam-se de certa forma como um organismo unicelular outra vez. Exatamente. Mas na prática esta explicação é limitada. Até certo ponto. Porque no fundo continua a haver uma coordenação.
Miguel Costa Coelho
Continua e continua a haver diferenciação. Nós temos microambientes dentro do tumor, temos células diferenciadas do tumor que não origiam as vasos, as angiogénese, e temos estas metástases que no fundo são descendentes já deste tumor e que atormentam outro tumor. Portanto, isto
José Maria Pimentel
no fundo é como se tivéssemos
Miguel Costa Coelho
um organismo, um parasita que cresce dentro de nós, nasce de nós, porque nasce das nossas células, faz parte dos nossos processos naturais, cresce dentro de nós, mas torna-se extremamente disruptivo e evasivo, porque tem esta capacidade dual. Livrar-se o sistema imunitário, porque se adapta muito depressa e consegue crescer mais rapidamente, e no fundo, crescer rapidamente, baixando essa adaptabilidade. No fundo, há uma espécie de um botão que controla o volume ou a velocidade a que as mutações acumulam. E esse botão tem a ver com o facto de... Isso é uma teoria minha, ainda não está completamente provada, mas os meus resultados indicam que isso poderá acontecer também durante o desenvolvimento de cancro, mas pensando em organismos unicelulares, basta uma mutação num dos dois genes. Ou seja, há sempre um gene que está mutado e há sempre um gene que está saudável. Esta mutação num gene único, numa das cópias, exatamente, Permite que a taxa de mutação aumente. Mas o que pode acontecer é que haja um evento de recombinação, que no fundo é como se fosse um baralhar ou um misturar dos genes, e rapidamente nos livramos da cópia que está mutada e ficamos com duas cópias saudáveis. E isso que acontece, o resultado disto é basicamente, quando estas duas cópias se tornam outra vez a ser saudáveis, nós perdemos a estabilidade genética. E isto acontece muito quando, por exemplo, temos uma infecção, temos um problema, temos uma bactéria, vamos tomar antibióticos, certo? O que é que vai acontecer? Vamos matar 99.9% dessas bactérias, vamos nos sentir melhor, mas 0.1% dessas bactérias receberam um estímulo, que é um antibiótico, que é um estímulo muito forte, e basicamente vão se tornar geneticamente instáveis e adaptar-se a isso. Exato,
José Maria Pimentel
sim. Ou seja, criam variação, era aquilo que falávamos há bocadinho. Exatamente. E dessa variação vem uma adaptação novo, no fundo, para adaptar ao seu antibiótico.
Miguel Costa Coelho
Só que para essas bactérias crescerem rapidamente vão ter que perder essa capacidade de mutar a uma velocidade muito elevada. Porquê? Porque se continuarem a mutar a uma velocidade muito elevada vão acumular mutações nos seus próprios genes essenciais, no fundo vão ser mutações suicidas, vão matar estas bactérias. Portanto, isso acontece e as células vão outra vez invadir o nosso organismo, vamos outra vez ficar doentes, até tomarmos sequer um segundo antibiótico que é diferente. E o mesmo processo volta a acontecer. No fundo é um processo que eu acho que é reversível. Quando pensamos em cancro temos que pensar sempre nos diferentes estadios. No fundo é importante ao início, sim, porque ajuda ao cancro a libertar-se das amarras no fundo dos mecanismos de vigilância do nosso organismo. Mais tarde, não, o câncer quer crescer rapidamente, então vai ter que baixar a sua taxa de mutação para conseguir expandir-se dentro do organismo. Mas num terceiro estadio, quando quer colonizar um órgão novo, vai ter outra vez que se adaptar e mutar rapidamente para que se consiga adaptar ao tal ambiente novo. Portanto, há aqui um paralelo muito grande e muito importante entre evolução a nível nocicelular e evolução de um parasita, que é o cancro, dentro de nós a nível multissolar. Que eu acho que é importante estabelecer. Não sei se respondi bem
José Maria Pimentel
à tua pergunta. Respondeste bem, respondeste bem. Em relação a esse último estadio que tu falaste, uma dúvida que eu tenho é o que é que determina que alguns cancros, que alguns tumores, aliás, sejam benignos e outros malignos? Ou seja, que alguns não se expandam e outros criem essas colónias, as metástases, ao longo do corpo.
Miguel Costa Coelho
Basicamente é sorte. Os cancros que são benignos, podemos pensar neles como um cancro que adquiriu uma mutação num género supressor, tumores, e não adquiriu mutações em outros géneros que o tornem maligno. Portanto, é um cancro que é uma massa abnormal, é uma massa de células que cresceu, mas que felizmente seguiu um caminho evolutivo que não o prometeu tornar-se maligno porque não houve mutações neutrogénios que o tornassem maligno.
José Maria Pimentel
Mas quais é que tornam, os oncógenes?
Miguel Costa Coelho
Exatamente, por exemplo, a acumulação de mutações noutros genes supressores de tumores ou em genes supressores de tumores e em protoncógenos ou em genes que são os tais que eu estudo que causam estabilidade genética, que aceleram a taxa de mutação, todos estes aumentam a probabilidade de o tumor se tornar maligno. O que não quer dizer que um tumor que começa como benigno não se possa a um certo estadio tornar maligno, mas pela sua própria natureza é um tumor que ou que se desenvolve mais lentamente ou está mais restringido pelo tipo de tecido em que se desenvolveu e que por causa disso não se torna maligno, no fundo, não se torna um cancro que possa criar metástases
José Maria Pimentel
e possa
Miguel Costa Coelho
progredir da mesma forma que um cancro maligno que cresce muito rapidamente e é muito agressivo e adquire muita heterogeneidade. A melhor forma de pensarmos de cancro, de distinguirmos, desculpa, cancro maligno e cancro benigno é que um cancro é muito mais homogéneo, o benigno é muito mais homogéneo e o maligno é muito mais heterogéneo fruto desta tal instabilidade genética.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim, Também parece uma boa distinção. E nós já falámos várias vezes da lógica evolutiva, que aqui pode querer dizer, é uma palavra que eu acho que aqui pode ser um bocadinho ambígua, porque nesta área do câncer parece-me que há pelo menos duas maneiras em que podemos, ou como a podemos utilizar. Evolutivo no sentido de a nossa evolução por seleção natural e porque é que nós temos câncer, e era disso que eu gostava de falar agora, mas também a maneira como as células cancerígenas evoluem por uma própria... Por elas próprias respondendo a uma seleção... Não, é estas duas componentes. ...Faz ou conta isto em questão no nosso corpo e que no fundo segue a mesma lógica, não é? Variação, adaptação. Claro,
Miguel Costa Coelho
tentando juntar as duas perguntas numa, o que é importante é realmente termos a noção de que é extremamente essencial e extremamente ubico a todos os sistemas vivos, o tal princípio de criar uma cópia que seja o mais semelhante possível a nós, mas introduzir um número mínimo de erros que permita a essa cópia, caso o ambiente mude, adaptar-se e tornar-se melhor. E é isso exatamente o que acontece em nós como espécie humana e acontece nas nossas células cancerígenas
José Maria Pimentel
dentro de nós.
Miguel Costa Coelho
É esse fator. Mas podemos, se calhar, falar mais tarde sobre o tal problema de porquê evolutivamente câncer existe. Isso, era aí que eu ia chegar. Porque se câncer é uma coisa que é maligna, porquê é que nós temos
José Maria Pimentel
cancro? O que é que se sabe sobre isso?
Miguel Costa Coelho
Basicamente, sabe-se que... E há uma teoria que eu gosto muito, que é a teoria do disposable soma, que é uma teoria, agora voltando ao envelhecimento, que tem a ver com um corpo descartável no fundo. Ah, é aquilo que eu ia falar. Exatamente, basicamente a nossa função como espécie é propagar a espécie.
José Maria Pimentel
É reproduzir-nos. Exato.
Miguel Costa Coelho
Ao chegarmos a uma idade reprodutiva, nós cumprimos a nossa função como espécie. O resto, o que acontece, são os produtos secundários, o nosso envelhecimento no fundo, é o que acontece como um produto secundário de tudo o que foi benéfico até aquela altura reprodutiva para nós, como espécie. Portanto, nós temos um programa de desenvolvimento, temos uma adaptação a nível cognitivo, cerebral, de infância, de comportamentos que chegando à propriedade, chegando à idade da luta, nos permitem reproduzir com sucesso e depois disso, tanto o envelhecimento como o câncer, acontecem como acasos secundários de coisas que já não interessam em
José Maria Pimentel
termos evolutivos. Porque já
Miguel Costa Coelho
são dead ends, já são pontos terminais. Nós termos cancro ou não, é importante acontecer depois da idade de reprodução. Por isso é que cancros infantis são ainda bem, são extremamente raros, certo? Tem esse aspecto. E é uma teoria, E eu acho que faz sentido porque é uma teoria que engloba todos os aspectos do que estivemos a falar agora, que é o tal envelhecimento cronológico, a acumulação de erros com a divisão solar, com a passagem do tempo, que o acumular destes erros todos acontece numa escala de tempo que normalmente só dá origem a cancro numa fase mais tardia da nossa vida. Claro que isto envolve fatores comportamentais, fatores hereditários. Se tivermos azar e nascemos com uma cópia de um gene mutado, por exemplo, para a retinoblastoma, vamos ter uma probabilidade muito maior ainda enquanto jovens, temos cancros malignos. Mas isto tem tudo a ver no fundo com
José Maria Pimentel
o que nós recebemos. Mas isso é enquanto indivíduo, não é? Isso é enquanto indivíduo, mas enquanto espécie. Enquanto espécie
Miguel Costa Coelho
não. Enquanto espécie temos esse sistema de, Ok, estamos a propagar a nossa espécie eficientemente? Estamos, sim. Check. O que é que precisamos? Precisamos de ter energia, conseguir reproduzir e depois o que acontece depois disso é um produto secundário. O cancro no fundo é um produto secundário de azar, ou seja,
José Maria Pimentel
é um superproduto da evolução. Sim,
Miguel Costa Coelho
exatamente. E do facto de nós termos tão bons naquela fase inicial da nossa vida e termos estes géneros que nos ajudam a cumprir a nossa missão enquanto espécie, que é reproduzir, no fundo, a mesma missão que uma célula única de levedura tem, que é criar uma cópia igual ou uma cópia melhor, se possível, e no fundo o cancro acontece como produto secundário
José Maria Pimentel
disso. Eu também acho, quer dizer, sou leigo obviamente, mas essa teoria que eu já tinha apanhado também me faz muito sentido por várias razões, desde logo porque há uma coisa que é uma revolução que já tem mais de quatro décadas, mas acho que ainda continua a ser pouco conhecida no senso comum, que é a questão de que a evolução, ou seja, a seleção natural e a evolução não acontece ao nível do indivíduo, do organismo, mas acontece ao nível dos genes, ou seja, no fundo são os genes que determinam a evolução. E, portanto, do ponto de vista do nosso genes, cujo objetivo é propagar-se, interessa... O momento que interessa é o momento da reprodução. Exatamente. Depois disso já não interessa. Claro que a reprodução não acontece na mesma idade em todas as pessoas. Mesmo na pré-história não acontecia, obviamente, na mesma idade em todas as pessoas. O que depois isso permite concluir, que é interessante. E agir, aliás, tem paralelos para outras coisas, para o lado da biologia. O que acontece é que se tu tiveres um gene, tu és um animal qualquer e a seleção natural continua a acontecer hoje, seria um processo que não para, se tu tiveres um gene que te provoca um cancro em idade reprodutora ou antes da idade reprodutora, provavelmente vai haver uma pressão grande da seleção natural para que esse gene desapareça, não é? Porque, no fundo, vão sobreviver, vão se reproduzir aqueles que não têm, os indivíduos
Miguel Costa Coelho
que não têm aquele gene, mas que têm e morrem antes de reproduzir. E isso naturalmente vai ser eliminado da população. Outra coisa, nós gostamos muito, somos muito antropomórficos em termos de pensarmos em nós como indivíduos, mas o que interessa no fundo é o que acontece à população. Exato. E é exatamente isso. Coisas que se poderiam tornar extremamente malignas ou detrimentais para nós como indivíduos, são eliminados da espécie porque não chegamos a reproduzir, não chegamos a passá-los à descendência. Quem
José Maria Pimentel
os tem não se chegou, pelo menos tem uma probabilidade grande de não chegar. E depois para a frente, a curiosidade é ao contrário, ou seja, se tu tiveres um género que determina... Imagina nós, seres humanos, temos um género que determinava uma morte fulminante aos 150 anos de idade. Como nunca ninguém lá chegou, ou pelo menos é altamente improvável, não
Miguel Costa Coelho
tens forma de te livrar disso, certo? Não tens forma de selecionar para envelhecimento. É uma questão extremamente complexa, mas em termos evolutivos, no fundo, o envelhecimento acontece também como um produto secundário. E embora haja programas, certas coisas que acontecem em diferentes estadios da nossa vida, portanto, o nosso desenvolvimento não é chegarmos a dar a luta, não nos reproduzimos, agora de cá é tudo ao mesmo tempo. Há estadios diferentes, há coisas que nós próprios podemos fazer para retardar esse envelhecimento e o que acontece no fundo é que há uma comunicação entre os nossos órgãos e também influenciada pelo meio ambiente e, claro, pelos nossos géneros que fazem com que este processo de envelhecimento aconteça mas que não seja fulminante. Sim, claro. E uma das coisas que eu acho que é interessante em termos de investigação na área de envelhecimento, que foi onde eu fiz o meu doutoramento, é basicamente pensar em investigação e tecnologia anti-envelhecimento, não como uma expansão da vida até aos 200 anos, mas como manutenção de saúde e de qualidade de vida até quase ao momento da nossa morte. No fim, é tentar nos manter com os tais aspectos jovens, reprodutivos, capacidade intelectual e física, até o mais tarde possível durante o nosso tempo de vida útil. Isso é um tema demasiado interessante para eu deixar fugir, depois
José Maria Pimentel
voltamos onde estávamos há um bocadinho. Porque há aí dois jogos diferentes. Isto é uma coisa que eu acho relativamente contraintuitiva, que é o grande aumento da longevidade que aconteceu nos últimos 200 anos, longevidade enquanto esperança média de vida, e é possível que tenhas uma opinião diferente em relação a isto, não foi um aumento da longevidade basal, se quiseres, ou seja, da longevidade da humanidade enquanto espécie, mas sim, eliminares o máximo possível de obstáculos pelo caminho. Exatamente. Que no fundo é parecido com isso que estávamos a falar, ou seja, a nossa longevidade média sempre andou entre os... À volta dos 80 anos. Sempre houve pessoas que viveram, e até mais do que isso, não é? Porque depois obviamente tens variância, não é? Há pessoas que por terem géneros melhor vivem até hoje sem acedo e tal, e outros que morrem mais cedo. Mas essa longevidade potencial no fundo sempre foi essa, só que antigamente podias morrer no parto, podias morrer na infância. Claro,
Miguel Costa Coelho
no fundo foram inovações tecnológicas em termos de saúde, em termos de alimentação, em termos de higiene que nos permitiram resistir mais até a idade que nós estamos no fundo predestinados a ter
José Maria Pimentel
quando nascemos. Mas não aumentou...
Miguel Costa Coelho
Não fomos selecionados evolutivamente para termos esperanças de média vida maiores. Exato. Há teorias que dizem que há certos benefícios de, por exemplo, termos os nossos avós por perto, que podem tomar conta dos nossos netos enquanto nós estamos ocupados com o nosso dia a dia no trabalho, e que isso é um dos fatores que faz com que nós não tenhamos aquela morte fulminante, como por exemplo os salmões, que se reproduzem e que morrem passado uns dias porque já cumpriram a sucessão reprodutiva. Ah, é? Curioso não saber disso. E que os próprios salmões servem depois de alimento para os descendentes quando eles vão nascer. Nós não somos assim, somos diferentes. Nós temos a tal tempo médio de vida de 80 anos.
José Maria Pimentel
Somos animais, espécies altriciais, não é?
Miguel Costa Coelho
Exato, exato. Nós estamos um bocado afastados tecnologicamente das pressões seletivas, da pressão, seleção natural que as outras espécies sofrem. Daí que o nosso tempo médio de vida tenha vindo a crescer, mas agora até recentemente tem estado a diminuir, por maus hábitos alimentares, de saúde.
José Maria Pimentel
Mas tem diminuído de facto? Depende
Miguel Costa Coelho
de algumas sociedades, sim. Por exemplo, nos Estados Unidos e outras sociedades que são consideradas avançadas, não estamos a falar de países em desenvolvimento, fatores como a alimentação, o stress, outros tipos de fatores, têm, no fundo, não se coordenam com os avanços tecnológicos e com avanços económicos, mas tem até mostrado que há uma redução temporária. Isso não tem a ver com guerras, como houve durante a Segunda Guerra
José Maria Pimentel
Mundial. Claro, as pessoas
Miguel Costa Coelho
morreram jovens porque tiveram na guerra e foram mortas durante a guerra. Tem a mesma a ver com fatores epidemiológicos, estilos de vida. Temos que ter atenção a isso. Mas, no fundo, nós como espécies conseguimos nos proteger da seleção natural através da tecnologia de saúde e da alimentação que temos. E, no fundo, pensando também um bocado no tal tentar sermos jovens o máximo tempo possível que consigamos, também podemos pensar nas terapias regenerativas, nas tais biotecnologias que nós podemos usar para criar órgãos que nós depois podemos ou implantar ou até usar terapia genética para melhorar os nossos órgãos, o que nos vai permitir ser mais saudáveis e resistir e viver jovens durante
José Maria Pimentel
mais tempo. Mas isso toca naquela assistência que eu estava a fazer há bocadinho. Essa assistência não será completamente estanco, mas uma coisa é tu desenvolveres uma possibilidade de, sei lá, fazer um... Pôr um bypass no coração ou pôr... Sei lá, a questão da higiene, da alimentação, de tudo que nós falámos, ou fazer análises que, no fundo, permitem assegurar que as pessoas não têm aquelas peripécias no caminho que as fazem morrer. Mas isto não está, ou acho que é argumentável dizer, que isto não está a aumentar essa longevidade basal. Ou seja, o teu organismo continua a estar a envelhecer à mesma velocidade. O que tu evitas é que haja no meio daquele envelhecimento, a um ritmo normal, uma coisa que corre mal e que determina a morte do organismo independentemente do resto estar mais ou menos... Quer dizer, uma pessoa pode morrer aos 40 anos. Eu posso morrer aos 40 anos com um ataque cardíaco mas o resto do meu organismo continua a ter 40 anos, não é? Mas outro jogo diferente, e aí é que eu tenho alguma curiosidade de saber o que é que... Quer dizer, a tua visão em relação a isso e os avanços que têm sido feitos, é um jogo de facto de fazer com que nós, por exemplo, envelheçamos a um ritmo muito mais lento, por exemplo, a nível celular. Ou seja, que as nossas células, que essa acumulação média de erros, por exemplo, seja... Acontece a um nível mais lento, não é? E, portanto, vamos supor, daqui a 50 anos, tu tens pessoas que, eu agora olho para ti, tu olhas para mim, percebemos mais ou menos a idade que temos, não é? Se nós, se tivesse feito isso no nosso corpo, eu se calhar tinha 32, que idade que tens? 36. E tu tinhas 36 e parecíamos ter 15. Isso sim era aumentar a longevidade.
Miguel Costa Coelho
Isso era uma coisa que era, eu acho, que a companhia de biotecnologia conseguisse desenvolver esse tipo de elixir e há muitas que estão a tentar. No fundo há dois tipos de correntes neste sentido, que é uma, tenta fazer com que o elixirmente aconteça mais lentamente, que é o que estavas a aludir, que é basicamente tentar com os nossos relógios internos, lá está, são processos integrados, o cérebro, o coração, os rins, o corpo em si, no fundo os nossos músculos também têm um componente muito importante aí. É fazer com que esses processos aconteçam mais lentamente e tens a segunda corrente de pensamento que é não, vamos é tentar rejuvemexer e voltar o relógio atrás e fazer com que pessoas, como o YouTube, que já tínhamos 32, 36 anos, consigamos voltar aos 25, não é? E isso era excelente. E nesse sentido há uma experiência que eu não posso deixar de falar porque é das mais, se calhar macabras, mas ao mesmo tempo mais bem-sucedidas neste campo, que é quando cientistas da Universidade de São Francisco, na UCSF, um deles até foi um colega meu, trabalhou com ele há uns anos atrás, num curso de verão, basicamente o que eles fizeram foi, eles juntaram dois ratos. No fundo, uniram o sistema circulatório de um ratinho ao sistema circulatório de outro. A diferença é que um dos ratos era velho e o outro rato era novo. E o que aconteceu, e foi um resultado extremamente surpreendente, é que basicamente, só partilhando o sangue do rato novo com o sangue do rato velho, fez com que montes de funções cognitivas, funções a níveis físicos, desempenho até em termos da saúde total do organismo, revertecem o rato mais velho. Isto é o chamado, a tal experiência de parabióse, em que fatores que estão a circular na corrente sanguínea do rato mais novo conseguem rejuvencer o rato mais velho. Até saíram companheiros daqui que entreteveram alguns problemas legais com os sistemas de regulamento de medicina, com a tal FDA
José Maria Pimentel
nos Estados Unidos,
Miguel Costa Coelho
em que basicamente ofereciam transfusões a pessoas de certa idade, de pacientes que eram bastante jovens, não é? Estavam a tirar sangue de adolescentes e usavam esse plasma para fazer transfusões e tratamentos e isso ainda não foi chegado a provar clinicamente que tem efeito, mas é um princípio tão básico e as moléculas já começaram a ser identificadas. Mas
José Maria Pimentel
o que é que acontecia? A nível molecular o que é que acontecia?
Miguel Costa Coelho
Era um resultado espetacular. É basicamente, há coisas em termos em termos da forma como os órgãos se comunicam, quando tens as hormonas a circular nos órgãos que estão mais envelhecidos, esses órgãos começam a regenerar o dano que acumularam. Ou seja, em termos de mutações, é mais difícil pensar porque as mutações não vão reverter, não é fácil reverter uma mutação que aconteceu, a probabilidade de acontecer é muito baixa.
José Maria Pimentel
Sim, até porque já não tens a informação, não é?
Miguel Costa Coelho
Exato. Mas, por exemplo, tecidos começaram a regenerar mais rapidamente, agregados de proteínas em neurónios que estavam a danificar os neurónios reverteram e houve uma série de sinais e de moléculas clássicas que estão relacionadas com envelhecimento que desapareceram. Ou seja, os ratos, mantendo a mesma idade cronológica, tornaram-se muito mais saudáveis como se tivessem resumido 10 ou 20 anos na idade cronológica humana.
José Maria Pimentel
E é um jogo de soma positiva, ou seja, o outro rato não envelheceu. Não, e lá está. O que aconteceu nesta experiência
Miguel Costa Coelho
em específico foi como os dois sistemas estavam partilhados, houve um ganho na parte do rato mais velho, mas é claro, como o sangue foi misturado, houve uma perda de vitalidade no rato mais novo. Ou seja, acelerou-se o envelhecimento do rato mais novo. O rato
José Maria Pimentel
mais novo lixou-se, basicamente. Exatamente. Isto Faz lembrar
Miguel Costa Coelho
aquela história dos ratos vampiros, não é? Um rato vampiro que sobe ao sangue do outro rato. Não, estou a brincar. Mas até faz alugar um bocado ao folclore dos vampiros, em que o vampiro sobe ao sangue das vítimas para se resumir a ser e para se manter jovem. Neste sentido, juntar os dois sistemas circulatórios não é alternativa, mas tirar estas moléculas de jovens, de ratos mais novos e injetá-los nos ratos mais velhos contribuem para a saúde dos ratos mais velhos sem danificar os ratos mais novos. E é que lá está, isso é o que as companhias agora de biotecnologia estão a tentar promover, fazer isso em humanos. Portanto, há hipóteses, há indícios que isso acontece. Não sei qual é que é a magnitude, não consigo estimar agora em termos absolutos, mas é uma coisa que não só atrasa o envelhecimento, mas consegue, no fundo, reverter certos sinais, certos marcadores de envelhecimento. Eu acho que está uma experiência fantástica.
José Maria Pimentel
Isso é incrível. Eu estava agora a lembrar da tua própria investigação, que quer dizer que está... O nível mais básico, sempre. Não, mais básico, não a investigação, mas os organismos em causa, porque eram organismos unicelulares. Mas aí o que acontecia era justamente que eles, sob as condições certas, certas isto é, benéficas, favoráveis, uma célula dividia-se em duas simétricas e no fundo permitia que ela diluísse o erro pelas duas uniformemente e, portanto, criasse células mais novas do que a célula original. Do que a célula original,
Miguel Costa Coelho
exatamente. Portanto, há uma partição no fundo do dano, que basicamente a analogia será em vez de juntarmos os dois sistemas sanguíneos do rato novo e do rato velho, temos uma célula que tem um certo nível de dano, mas quando se divide reparte esse dano a meias, as duas células filhas. E isso faz com que o dano não se acumule. Ou seja, há um sistema que faz com que as células se rejuvenescam a cada divisão. Daí serem não células imortais, Mas são células que morrem com uma certa frequência, têm acidentes também, têm erros no ciclo solar. Mas são células que não envelhecem porque não têm um programa de acumulação de erros sucessivos. Isto acontece porque elas se dividem simetricamente. Também se pensa que bactérias funcionem desta forma. Outros tipos de organismos unicelulares que por se dividirem simetricamente também demonstram envelhecimento como nós. Lá está, a célula mãe retém o dano, mas consegue criar células filhas completamente rejuvenescidas e capazes de propagar a população. Portanto, estas duas estratégias existem e são bastante bem sucedidas.
José Maria Pimentel
Para além disso, que outras frentes é que há em termos de longevidade?
Miguel Costa Coelho
Há várias frentes e há um grande investimento agora. As companhias já começaram a lançar os produtos, fazer os primeiros ensaios clínicos e uma que eu acho que é bastante promissora são as tais chamadas protax. E o que é que são as protax? As protax são...
José Maria Pimentel
Proteínas? Não, basicamente
Miguel Costa Coelho
não são proteínas. São moléculas que ligam proteínas. E que tipo de proteínas é que estas moléculas ligam? Proteínas que existem nos nossos neurónios e que fazem ligação entre o sistema de reciclagem de lixo na célula e os tais agregados de proteínas que eu falava ao início. Portanto, as protax são administradas a pacientes que têm doenças neurodegenerativas, por exemplo, como o Alzheimer, e o que acontece é que estas protax vão trazer o lixo que é acumulado nestes neurónios e ativamente empurrá-lo para o sistema de reciclagem dentro da célula. Isto ao acontecer faz com que os neurónios se regenerem
José Maria Pimentel
e com que
Miguel Costa Coelho
doenças que são consideradas doenças clássicas de envelhecimento, como a Alzheimer e Parkinson, consigam ser controladas, muitas vezes atrasadas e às vezes até revertidas, com bastante sucesso. Portanto, há várias companhias, uma parte delas estão baseadas nos Estados Unidos, que estão a investir neste tipo de tecnologia e é um mecanismo que eu acho que é bastante simples. Lá está uma molécula que foi pensada de uma forma muito interessante que basicamente é uma molécula que se liga aos agregados de proteínas e a outra parte, a outra metade da molécula liga-se ao sistema de reciclagem. Portanto, funciona como uma âncora
José Maria Pimentel
ou como um clico que
Miguel Costa Coelho
junta os dois. E isso faz com que estes agregados de proteínas, que normalmente não são destruídos porque o sistema de circulagem da célula sozinho não os consegue destruir, sejam encaminhados ativamente pelo sistema de circulagem e eles sejam eliminados. E
José Maria Pimentel
como é que ela vai lá parar, a proteína? É injetada ou o quê?
Miguel Costa Coelho
A tal molécula que é adicionada... A molécula, desculpa, eu estou com a proteína na cabeça. É injetada, sim, Pode ser injetada, pode ser tomada intravenoso ou até por injeções diretas para passar a barreira sanguínea cerebral, injeções diretas na zona do cérebro que está afetada.
José Maria Pimentel
Ok, boa. São
Miguel Costa Coelho
dois exemplos muito diferentes.
José Maria Pimentel
Um tem a ver com transmissão, conjunção. Não sou interessado nesse aspecto. Ou
Miguel Costa Coelho
no fundo trazer o que é um componente sanguíneo que atua a um nível geral no sistema, no organismo. E o outro é uma intervenção muito aguda, muito calculada, para melhorar um componente, uma atividade específica numa zona do cérebro. E no fundo tem os dois o mesmo outcome, no fundo o mesmo resultado, que é atrasar ou reverter o envelhecimento. E acho que estas duas tecnologias são
José Maria Pimentel
bastante permissoras. Então vamos voltar agora ao câncer. E se calhar faz sentido até dar um passo atrás, porque é uma coisa que eu acho que nós cobrimos bem a paisagem do cancro em termos de causas e de motivos por que existe. Acho que uma coisa por explicar melhor que vale a pena, que é a questão de nós sabemos que o cancro surge por causa das mutações, mas porquê é que elas surgem? E nós sabemos que elas podem surgir porque nós, enquanto indivíduos, temos uma certa propensão genética, ou seja, nós temos genes que nos tornam mais propensos para o antemão antigo do cancro. Sabemos que pode ter a ver com fatores ambientais, que pode ser maus hábitos, tipo fumar, beber, estar muito tempo ao sol ou apanhar radiação, tipo Marie Curie, por exemplo. E depois há o elemento de caso, da leaturidade, que eu falava há pouco, que a Carmo Fonseca falava, não é? Falando dos dois primeiros, tens alguma ideia de qual é que tem mais peso? Qual é que determina mais a variação?
Miguel Costa Coelho
No fundo, a parte genética é muito importante. Se nós nascemos já com um dos, por exemplo, uma das duas cópias dos géneros guardiões, dos géneros supressores de tumores mutada ou danificada, temos uma probabilidade muito, muito, muito elevada de vir desenvolver cancro porque basicamente o nosso sistema de reparação já está afetado. Isto vai estar em todas as células. Portanto, termos uma coisa que é irraditária vai ter sempre um componente muito mais forte do que termos um estímulo ambiental. A não ser que esse estímulo ambiental seja exagerado.
José Maria Pimentel
Ele próprio é muito forte, claro.
Miguel Costa Coelho
Como no caso da Curie, que até recebeu dois prémios nobres em anos diferentes por descobertas diferentes, que é engraçado. Basicamente, nesse caso, foi uma expressão muito elevada à radiação gama, certo? E o que acontece é que quando há um estímulo que é tão intenso, que é capaz de destruir cromossomas completamente e criar uma chuva de meteoritos de mutações no nosso genoma, o que acontece é que isso, claro, em si vai acelerar. Mas nunca será uma coisa que seja tão potente como uma transmissão genética que vai estar presente em todas as células do nosso organismo. Agora o problema surge quando os dois se combinam. Exato. Quando nós nascemos com uma mutação num gene que é um gene guardião de cancro, que protege o genoma, e ao mesmo tempo temos uma exposição exagerada a certos tipos de radiação ou a certos tipos de estímulos ambientais que vão contribuir com um número maior de mutações e que aceleram a probabilidade de essa mutação que nós recebemos dos nossos pais se tornar ativa e, no fundo, originar o desenvolvimento de cancro.
José Maria Pimentel
Mas o caso mais conhecido é o da Angelina Jolie, por exemplo, que foi ao médico, tinha 80 e tal, ou 90% de probabilidade de ter cancro da mama e teve que fazer uma mastectomia. Agora, porquê que a probabilidade era daquele cancro específico?
Miguel Costa Coelho
Porque há genes que
José Maria Pimentel
são associados a mais um tipo específico de cancro. O
Miguel Costa Coelho
exemplo clássico, conheço o cientista que trabalhou nisto, Steve West, é o gene o BRCA1. O BRCA1 é um gene que em quase todos os cancros da mama está mutado. Então sabe-se que há um componente muito
José Maria Pimentel
importante nesse gene, nesse tipo de tecido. Mas qual é a função daquele gene? Não é
Miguel Costa Coelho
um destes clássicos? O BRCA2 é um dos genes que regula a replicação, regula no fundo a forma como o DNA é replicado, ou seja, nós temos dois tipos de proteínas que são muito importantes, umas são as que replicam o DNA e outras são as que reparam os erros dessa replicação. E o BRCA2 está envolvido neste processo. Quando há um problema na reparação ou na replicação e esse problema não é reparado, faz com que as mutações se acumulem mais rapidamente. Aí no caso das linhas de OLLI, aí no caso infelizmente de muitas mulheres, esse é um dos testes diagnóstico mais importante e que normalmente é uma sentença que o cancro vai mesmo acontecer.
José Maria Pimentel
Ok, boa, boa. Então em termos de tratamentos, em termos de investigação, basicamente essa é uma área muito interessante também porque os tratamentos originais, os tratamentos clássicos são um tipo bazooka, não é? Tu mandas uma coisa, seja radiação, seja quimioterapia, é tu tentares...
Miguel Costa Coelho
Atingir o sistema e não atingir a causa instrumental. Exatamente, estás a atingir o
José Maria Pimentel
sistema, por isso é que tens queda de cabelo, porque os nossos folículos são desse tipo... São um problema destruído. E as células que se reproduzem muito também. Portanto, no fundo, por exemplo, da quimioterapia é afetar as células que se dividem, que se multiplicam mais rápido. Portanto, vai afetar tanto as de cancro... Como as outras todas.
Miguel Costa Coelho
E isso é um dos problemas das quimioterapias e das radioterapias. A radioterapia pode ter um componente mais localizado porque pode ser direcionada
José Maria Pimentel
para um certo tipo de órgão
Miguel Costa Coelho
e a terapia de prótons também é um exemplo disso. No caso da quimioterapia, normalmente é sistémica, portanto são compromissos que tomamos. Estes compromissos têm químicos que, de forma geral, afetam a capacidade das células a se reproduzirem e fazem com que elas reproduzam mais lentamente. Mas, alguns destes químicos, eles próprios, também vão criar instabilidade genética porque também interferem com processos celulares que, ao criar esta instabilidade genética e, no fundo, numa primeira linha de tratamento, atrasarem o cancro, vão também estar a contribuir para esse cancro se tornar geneticamente instável e numa segunda linha, num segundo ressurgimento do cancro, este cancro se adaptar muito mais rapidamente a qualquer tipo de tratamento que nós possamos
José Maria Pimentel
ter. A questão da evolução que falávamos há bocadinho, não é?
Miguel Costa Coelho
É extremamente importante. Daí que termos terapias que tenham uma eficiência muito maior e que sejam muito mais localizadas, seja extremamente importante. E eu se calhar gostava agora de mencionar uma dessas terapias, que é a terapia CAR-T, que tem a ver com usar células do nosso sistema imunitário para atacar o câncer em si, de uma forma mais focada.
José Maria Pimentel
Ok, mas como é que... Não, não, explica-me só melhor como é que isso funciona, exatamente.
Miguel Costa Coelho
Basicamente, às vezes nós temos de tomar um comprimido ou termos de levar uma dose de radiação num órgão específico dentro do nosso corpo, ou tomamos um comprimido que vai afetar o nosso sistema integral, o que acontece é que nós temos já células que são muito boas a tratar de danos e doenças e de problemas que temos no nosso organismo, que são as células brancas, os linfócitos. No fundo, os linfócitos T são células que patrulham, que andam, entram e saem dos nossos órgãos, patrulham o nosso organismo inteiro e cada vez que detectam um problema, atacam essas células. O que acontece é que muitas destas vezes, eles não conseguem detectar cancro, porque cancro são células que fazem parte do nosso organismo e que não são detectadas como estranhas.
José Maria Pimentel
Ah, ok, estou a perceber.
Miguel Costa Coelho
O que nós conseguimos fazer em termos de engenharia genética, usando ferramentas como a CRISPR, que nos permite editar genes, é basicamente distrair essas células, nossos linfócitos T, trazê-las para o laboratório e introduzir modificações genéticas específicas nessas células para as conseguirmos tornar mais ativas contra certos tipos de cancro. Não só as tornar mais ativas, mas ao mesmo tempo inserir mecanismos nessas células que nos permitam ligar e desligar as células, porque no fundo temos muita atividade para elas completamente degradarem, penetrarem o cancro e destruí-lo, mas para evitar auto-imunidade e efeitos secundários, desligá-las imediatamente a seguir. Isto faz com que nós tenhamos uma terapia muito mais focada no tipo de tumor, personalizada e ao mesmo tempo uma terapia que é mais aguda e que é capaz de eliminar o maior número de células, sem criar estas instabilidades genéticas que mais tarde podem surgir consoante as terapias normalmente utilizadas.
José Maria Pimentel
Mas isso continuará a ser mais difícil num estádio já avançado do tumor em que tens muita variação genética ou não? Exato.
Miguel Costa Coelho
Tocaste num ponto extremamente importante. No fundo, o que limita este tipo de terapias é que elas têm que ser focadas, daí temos que utilizar marcadores específicos e se o cancro já tiver um estádio muito avançado em que seja muito heterogéneo, elas funcionam mas não conseguem atacar todas as células desse cancro. No fundo, conseguem conter a progressão do cancro mas não o conseguem eliminar completamente. Daí que resulta muito melhor em cancros que são mais stáveis, como por exemplo alguns tipos de cancro cerebral, ou cancros que exibam um perfil de pouca heterogeneidade. Eles funcionam muito melhor. E não só isso, como hoje em dia já é possível tirar as células da prateleira, no fundo, criar células lifócitos T que qualquer pessoa pode receber no seu corpo. Isto chama-se células halogénicas, que são células que não criam imunidade, porque no fundo, se eu tirar as minhas células T e as introduzir em ti, tu vais ter uma reação. As tuas próprias células T vão atacar as minhas porque as tuas são... Reconhecem as minhas como sendo diferentes. Mas tendo uma solução geral, em que nós criamos células com biotecnologia, com engenharia genética, que não têm estas moléculas que são reconhecidas pelo sistema imunitário, qualquer pessoa as pode utilizar. Portanto, tornam-se terapias que são tão fáceis de obter, embora sejam mais complexas, são tão fáceis de obter como um medicamento de uma farmácia.
José Maria Pimentel
Boa, boa. Então, isso é uma boa maneira para encerrarmos a conversa. Ficou muito por discutir.
Miguel Costa Coelho
Ficou muito por discutir. Podemos estar aqui dois dias à conversa, mas foi uma conversa muito agradável. Muito obrigado pelo convite.
José Maria Pimentel
Nada, nada. Obrigado eu por teres vindo. Antes de passarmos, como é hábito, às recomendações do convidado, deixem-me lembrar-vos que podem contribuir para a continuidade e desenvolvimento deste projeto. Visitem o site em 45graus.parafuso.net barra apoiar para ver como podem contribuir, através do Patreon ou diretamente, bem como os vários benefícios associados a cada modalidade de contribuição. Caso não possam apoiar financeiramente, podem sempre contribuir para a continuidade do 45°, avaliando-o nas principais plataformas de podcasts e divulgando-o entre amigos e familiares. Muito obrigado pelo vosso apoio e agora, de volta à conversa. Para terminar, terminamos com o livro, não esqueças? Exatamente, o livro. Ficou prometido há bocado. Ficou
Miguel Costa Coelho
prometido, sim. Então, é o livro que eu recomendo. É um livro que abrange, no fundo, a história do que nós somos, do que é um género e de como é que os géneros contribuem para a nossa saúde, para o nosso comportamento, para a nossa história como espécie. E que é o livro, lá está, o gene, com o mesmo nome, o gene de Siddhartha Mukherjee, Mukherjee com K-H, Mukherjee. É um livro excelente, eu acho que é um livro muito bem escrito, que é assim vale a qualquer pessoa e que tem um componente também pessoal bastante interessante do autor e que vale a pena ler.
José Maria Pimentel
Sim, ele chama aquilo de O Géno, uma biografia, não é?
Miguel Costa Coelho
O Géno, uma biografia, que é a história basicamente de como é que os géneros, no fundo, foram criados, para que é que eles servem e como é que eles influenciam a nossa vida desde comportamentos muito simples como a nossa saúde,
José Maria Pimentel
como a evolução. Sim, a nossa personalidade, um monte de coisas. E ele é cientista e oncologista.
Miguel Costa Coelho
É cientista e oncologista, é médico e é um médico que Escreve muito bem e é uma pessoa que tem uma capacidade de se aproximar de um tema e de o tornar também muito interessante e de contar uma boa história. No fundo é uma história excelente.
José Maria Pimentel
Boa, boa. Obrigado por teres vindo. Muito obrigado. O 45 Graus é um projeto tornado possível pela comunidade de mecenas que o apoia. Mecenas como Gustavo Pimenta, Eduardo Correia de Matos, João Baltazar, Salvador Cunha, Duarte Dória, Tiago Leite, Joana Farial, João Manzarra, Mafalda Lopes da Costa, Rui Oliveira Costa, Carlos Martins, entre muitos outros a quem agradeço e cujos nomes encontro na descrição deste episódio. Até à próxima.