#74 Pedro Galvão - Ética filosófica e Direitos dos Animais

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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45°. Neste episódio o convidado é Pedro Galvão, que é filósofo e professor na Universidade de Lisboa. A investigação do convidado incide sobretudo na área da ética, também conhecida por filosofia moral, e foi este o tema da conversa. Foi uma conversa densa e muito interessante. Para quem gostar desses temas, digo já que foi dos episódios que mais gostei de gravar nos últimos tempos. Este episódio pode-se dizer que é composto por duas partes distintas. Até há cerca de uma hora de duração, falámos sobre ética filosófica no geral. O Pedro começou até por dar um passo atrás, para explicar os vários campos da filosofia e onde a ética se situa nessa taxonomia. De seguida, falámos de algumas das principais correntes e também dos principais pontos de disputa entre quem pensa estas questões. Falámos, por exemplo, da distinção clássica, mas que ainda é relevante, entre as perspetivas utilitarista e de ontológica. Falámos da discussão sobre se o certo e o errado são factos objetivos ou apenas conceitos relativos, uma disputa com implicações óbvias na política, por exemplo, e abordarmos ainda outras questões interessantes, como por exemplo, se existe ou não progresso moral. Na segunda parte, passarmos da teoria à prática, ou pelo menos a um caso concreto, um tema de ética aplicada especificamente aos direitos dos animais. Este é um campo que tem vindo a ganhar cada vez mais protagonismo. Nas últimas décadas, muitos filósofos morais, em particular o mais mediático de todos, Peter Singer, têm argumentado que é necessário alargar as fronteiras da ética para abarcar não só os nossos deveres para com outros seres humanos, mas também os nossos deveres em relação aos animais, em particular os animais sencientes, isto é, os animais que sentem de forma consciente. Obviamente que a definição do conjunto de animais sencientes é outro problema em si mesmo mas esse já está para lá da filosofia. Os pontos em contenda são mais que muitos. Será que temos de facto deveres em relação aos animais? E se sim, que deveres? E por outro lado, isto implica que os animais têm direitos? Até pode parecer uma implicação direta, mas por exemplo o convidado entende que é verdade que temos deveres para com os animais, mas não é necessariamente verdade que eles tenham direitos. E depois, há implicações práticas, o que devemos permitir, por exemplo, na indústria alimentar, ou em relação à utilização de animais para experiências científicas, ou ainda, tema inevitável, em manifestações culturais como as touradas. A ética dos animais é, por isso, como se percebe, um tema fascinante, mas que também nos for�a a diálogos internos difíceis. Por exemplo, ao contrário do convidado, inclino-me para achar que não é errado matar um animal, mesmo que senciente, para nós o comermos, desde que se evite o sofrimento do bicho, e aí já me parece que temos um dever. Mas não será esta minha visão apenas uma racionalização de uma intuição minha que não é mais do que a minha vontade de continuar a comer carne, mas ao mesmo tempo manter-me de consciência tranquila? Olhando para a sociedade como um todo, é curioso que parece que temos duas tendências de sentido contrário. Por um lado, é cada vez mais comum as pessoas tratarem os animais domésticos quase como filhos e mesmo quem como eu ache essa visão um pouco infantil, é preciso admitir que hoje em dia não vemos as nossas obrigações éticas em relação aos nossos cães e gatos de forma muito diferente da maneira como olhamos para as nossas obrigações em relação aos nossos familiares. Mas esta tendência da antropoformização dos animais convive com outra, até porque o que está longe da vista está longe do coração, e portanto continuamos, ou muitos de nós pelo menos, a comprar e a comer carne de animais de produção intensiva, fechando os olhos ao modo inaceitável como muitos destes são criados. E para quem nunca tiver visto, basta uma pesquisa rápida no Google para perceber do que falamos. Para além dos direitos dos animais, havia ainda outros dois temas de ética aplicada, sobre os quais o convidado tem escrito e que eu gostava de ter abordado, mas faltou tempo. Um deles é o tema do aborto, por ser muito desafiante filosoficamente. O outro é a eutanásia, este talvez filosoficamente menos desafiante, porque os argumentos mais relevantes da posição contra a eutanásia são sobretudo de idioprática, mas que é ao mesmo tempo mais atual, uma vez que ao que tudo indica está prestes a entrar na atualidade política. Talvez um dia volte a convidar o Pedro para terminarmos esta discussão. Fico também à espera do vosso feedback nesse sentido. E com isto, passamos à conversa. Pedro, bem-vindo ao podcast. Vamos falar de ética ou filosofia moral. Tem uma boa pergunta para começar. Há alguma diferença? Bom, eu não vejo nenhuma diferença significativa. É claro que nós
Pedro Galvão
somos livres de usar as palavras com bem entendermos e há pessoas que estabelecem certas distinções entre ética e moral. Mas eu uso os termos como sinónimos. Etimologicamente isso é legítimo. O termo ética vem do grego, o termo moral vem do latim e estes termos originários significam aproximadamente o mesmo qualquer coisa como costumes. Portanto, eu uso os termos como sinónimos e essa é uma prática muito seguida. Mas quem quiser fazer uma distinção entre as duas coisas, faça. Mas não há nenhuma discussão interessante, é
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só uma discussão terminológica. Sim, também me parece que não. Mas é engraçado. Os termos querem dizer costumes, não sabia, é curioso. Em certo sentido, o que a filosofia faz é uma revisão crítica a esses costumes,
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ou no fundo a esse comportamento por defeito. Sim, aliás, uma distinção que se faz entre ética e moral é uma distinção entre dois domínios de estudo. Podíamos dizer que estudar a moral é fazer um estudo científico, descritivo, acerca das convicções morais das pessoas nas diversas sociedades, enquanto que fazer ética é refletir criticamente sobre a moralidade, portanto é estar a fazer uma reflexão normativa e não propriamente explicativa. E essa reflexão cabe não às ciências empíricas, mas à filosofia. Exato. E uma pergunta interessante relacionada com isso. Qual é a tua opinião em relação à objetividade dos princípios éticos? Bom, talvez possamos começar por distinguir as áreas principais da ética filosófica ou filosofia moral. Desculpa, eu não...
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Desculpa interromper-te. Eu devia ter começado de outra forma, e se calhar é a altura para fazer isso, que era pedir-te para enquadrar a própria ética enquanto ramo na filosofia no geral, porque é muito diferente da metafísica, por exemplo, que falávamos há bocadinho. Tem mais que ver com o que é, enquanto a ética tem que ver com o que deve ser. Sim. Bom, é preciso
Pedro Galvão
não levar muito a sério estas gavetas disciplinares. Elas não são perfeitas. São apenas convenientes. E não podemos supor que correspondem a compartimentos isolados uns dos outros dentro da reflexão filosófica. Mas pronto, dá jeito a distinguir várias áreas da filosofia e tradicionalmente há quatro áreas principais na filosofia. Há a lógica, que é o estudo do raciocínio correto. Não é a psicologia. Não queremos saber como é que as pessoas raciocinam de facto. O que se procura é descobrir os padrões corretos de raciocínio. Isso é a lógica. Depois temos a epistemologia, que é o estudo filosófico do conhecimento, que curiosamente tem semelhanças com a ética. Muita da epistemologia também é normativa. Na epistemologia queremos saber, por exemplo, o que é ter boas razões para acreditar em algo. Porque aqui é isso de uma crença ou uma convicção justificada. E esta é uma investigação que eu considero normativa. O que é ter uma boa razão para acreditar em algo. As questões sobre o conhecimento em geral ou sobre conhecimento científico ou alegado conhecimento religioso, etc, são questões de epistemologia. Esse
José Maria Pimentel
é um bom ponto porque, no fundo, tem a ver com aquilo que dizias há pouco, não é? Estas classificações não são estancas, não é? Não, de maneira nenhuma. O é e o deve ser alimentam-se
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mutuamente. Sim, pois temos a métrica física que nem sempre tem boa fama, mas consiste no quê? Quando estamos a fazer a métrica física não Estamos a tentar perceber como é que nós compreendemos a realidade. Estamos a tentar perceber a estrutura da própria realidade a um nível muito abstrato. Estamos a tentar descobrir que coisas é que existem, que tipos de coisas é que existem. A melhor maneira de explicar no que é que a metafísica consiste é dar uns exemplos de questões metafísicas importantes. Por exemplo, será que Deus existe? Será
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que os agentes humanos têm livre-arbítrio? Será que existe livre-arbítrio? Mas nós falávamos disto há bocadinho. É importante dizer que já começado esta conversa há bocadinho em off, mas não se pode dizer, isto é um bocado uma provocação, mas não se pode dizer que a metafísica é simplesmente a física que ainda não se conhece, ou que ainda não se deslindou, no fundo, esse não são todos problemas de física à luz da interpretação científica que lhe é dado hoje em
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dia. Vamos lá ver, há metafísica, há certas questões metafísicas...
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Assistência de Deus, quer dizer, é um problema ontológico, mas... Sim. É eminentemente um problema científico, não é comprovável. Bom, eu não separaria a investigação em metafísica da investigação nas ciências empíricas. Eu também não, mas é pela limitação do alcance aos dias de hoje, e em alguns casos, como o hard problem da consciência que nós falámos há bocadinho. Em alguns casos, provavelmente, é uma limitação ponto, não é uma limitação para sempre, mas tem a ver com sítios onde não existe capacidade de analisar empiricamente, não é? Mas não é porque fosse absolutamente impossível, mesmo nesse caso da consciência, é porque hoje não é possível. Ou não? As questões de metafísica são questões que não podem ser resolvidas por testes experimentais. Mas muitas delas... E se
Pedro Galvão
algumas puderem ser resolvidas a partir de um certo ponto de uma forma empírica, então já deixarão de ser metafísicas, passarão a estar na ciência empírica. E ao longo da história da filosofia tem havido essa transição de algumas questões da metafísica para ciências empíricas. E algumas voltaram. No século XVIII a física chamava-se como? Chamava-se filosofia natural. E hoje muita da investigação que se faz em metafísica, quando se quer saber o que é que há na realidade, qual é a estrutura geral da realidade, alguma investigação que se faz neste domínio está em contacto com a física. Não sou competente para pronunciar sobre essas questões, mas é isso que se faz em metafísica. Discutir questões como o livre-arbítrio, como a questão que é irrelevante para a ética, a questão da nossa identidade ao longo do tempo, o que é que faz de nós o mesmo indivíduo ao longo do tempo, tudo isso são questões metafísicas. Depois então, temos a ética. E a ética, por sua vez, deixa-se de compor em três áreas principais. Vou começar pelo do meio, que é a mais central, que é aquela que corresponde ao núcleo duro da ética, aliás, é essa área que eu me dico mais, que é chamada ética normativa. Na ética normativa, queremos saber, de uma forma bastante geral, o que é que é bom ou mau, independentemente do que devemos fazer, e o que é que é bom ou mau intrinsecamente. Também queremos saber o que é que distingue os atos que são moralmente aceitáveis daqueles atos que são moralmente errados e o que é que faz a distinção entre o certo e o errado. Estas são as preocupações centrais da ética normativa. No nível inferior da abstração, temos a ética aplicada, que também é normativa. Simplesmente na ética aplicada, discutimos problemas mais específicos, tendencialmente controversos e com grande relevância pública. Aí temos a questão do aborto, a questão de eutanásia, outras questões que cá não são assim muito discutidas, mas noutros países são. A questão do direito ao porto de armas, a pena de morte. Nesta área da ética, há até uma intersecção significativa com a filosofia política. Por exemplo, a discussão da desobediência civil está tanto na filosofia política como na ética aplicada.
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No fundo, a ética normativa alimenta a ética aplicada, não é? Ou a ética
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aplicada socorre-se do... De acordo com a abordagem mais comum que eu subscrevo, os dois campos iluminam-se mutuamente.
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Exato. Pois, sim. Para nós
Pedro Galvão
chegarmos a uma boa concepção geral acerca do que é que se deve fazer, acerca do que é bom ou mau, temos de ocupar-nos de questões mais específicas e, por sua vez, essas questões mais específicas têm de ser abordadas à luz de concepções gerais do certo e do
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errado, do que é bom ou mau. Já agora se me conseguires dar um exemplo até era interessante, um exemplo de um caso desses, de um tema, por exemplo, da eutanásia, por exemplo, que provavelmente vamos falar, em que aspectos da problematização da eutanásia que o trabalho que foi desenvolvido ou as conclusões que se chegou via ética normativa foram úteis? Sim,
Pedro Galvão
são úteis. Para nós abordarmos a questão da eutanásia, temos de investigar questões mais gerais que estão na ética normativa. Uma questão de valor é esta. O mal da morte, por exemplo. A morte é má. Será mesmo má para quem morre? E quando é que é má para quem morre? Esta é uma questão geral. E outra questão geral, esta sobre dever e não sobre valor, é o que é que torna errado o acto de matar? Muitas vezes matar é errado, é profundamente errado. Mas porquê? Há estas questões gerais que estão na ética normativa e depois para abordarmos proveitosamente as questões de ética aplicada, como a do aborto e a de eutanasia, temos de partir destas concepções
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gerais. Sim, sim, boa.
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É isso mesmo. E o terceiro é a meta-ética. O terceiro é a meta-ética, que é uma área que se interceta com a meta-física, com a epistemologia, por isso é que eu disse que não convém encarar estas gavetas convenientes com designações disciplinares como compartimentos isolados uns dos outros. Essa não é toda a realidade. Bom, na meta-ética... Porquê que é meta-ética? Porque meta indica um nível superior às questões de ética e depois há as questões sobre as questões de ética. E as questões sobre as questões de ética são as questões meta-éticas. Uma questão de ética, por exemplo, será esta. É sempre errado mentir? Agora, uma questão meta-ética será esta. Essa questão tem uma resposta objetivamente correta ou não? Quando alguém diz mentir é sempre errado, O que é que essa pessoa está a fazer quando faz esse juízo moral? Estas são questões de métria ética. Eu diria que a preocupação fundamental da métria ética é a de perceber em que medida é que a ética é objetiva. E não é fácil descobrir a resposta. O que é que tu achas? Qual é a
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tua opinião? Tendencialmente, pelo menos.
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Bom, eu diria que no mínimo a ética não é arbitrária. Eu diria que há uma objetividade mínima na ética que passa pela exigência de ser coerente. E podemos pensar, ah, mas ser coerente é fácil. Não, não é nada. Esta exigência de ser coerente envolve o quê? Bom, envolve fazer juízes morais semelhantes sobre casos que são semelhantes em todos os aspectos relevantes. Não faz sentido nenhum uma pessoa dizer este caso em todos os aspectos moralmente relevantes é como o outro, mas num caso o ato foi correto e no outro foi errado. Isto não faz sentido. A pessoa que está a pensar nestes termos está a ser incoerente. Vou dar um exemplo mais concreto. Vamos imaginar alguém que diz que o aborto, em todos os aspectos relevantes, é como um infanticídio, mas o aborto é aceitável e o infanticídio não é aceitável. Isto não faz sentido nenhum. Se uma pessoa pensa que o aborto é aceitável, mas o infanticídio não é, essa pessoa tem de apontar uma diferença moralmente relevante entre o aborto e o infanticídio. Caso contrário estará a ser incoerente. Quando alguém aceita um princípio ético, tem de aceitar todas as suas implicações. E quando se subscreve um princípio ético, não é imediatamente evidente quais é que são todas as suas implicações, de forma alguma, e podemos descobrir que afinal um princípio ético a partir da apelativa na verdade tem implicações que não estamos dispostos a aceitar. E nesse caso depois para sermos coerentes ou rejeitamos o princípio ou passamos a aceitar as suas
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implicações que à partida eram desagradáveis. Um caso provavelmente bom para ilustrar isso parece-me aquele exemplo do... Que na verdade não conheço muito bem. Até te pedi para explicares aquela hipótese do Derek Parfit, o resultado repugnante, tem um nome deste género.
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Conclusão repugnante. Conclusão repugnante, sim, em relação à população.
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Se não estou a enrer, aquilo tinha que ver com tu, se tu achares que é sempre melhor ter mais pessoas, mesmo que elas sejam menos infelizes, chegarás a um resultado em que vais ter imensa gente... Em que achas que é melhor ter imensa gente infeliz do que menos gente mais feliz. Era algo deste género, não é? Sim. Bom, Parfit foi o melhor filósofo moral do século XX. E no seu
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livro Reasons and Persons, que é a sua obra-prima, inaugurou, praticamente inaugurou, um novo território da ética normativa, que é a ética populacional. E ele andou sempre à procura de uma teoria que estivesse de acordo com todas as suas intuições ou convicções morais e não encontrou. Bom, então como é que surge a conclusão repugnante? Para alguns essa conclusão não é repugnante. A partir da boa ideia haver mais felicidade no mundo. E como é que se pode conseguir isso? Pode-se conseguir isso de duas maneiras. Uma é, não tem nada de objetável, uma é tornando as pessoas existentes mais felizes. E a outra é criando mais pessoas felizes, aumentando a população, adicionando indivíduos felizes à população. E para um utilitarista, Parfit não era utilitarista, mas para um utilitarista, qualquer uma das formas de aumentar a felicidade é igualmente boa. O que interessa para o utilitarista... É o resultado total, não é? É, é. A felicidade social no universo. Pois bem, mas Parfit aqui não segue o utilitarista. Vamos imaginar uma situação... Vamos comparar duas populações possíveis. Numa temos uma população pequena, onde as pessoas estão muito felizes. Na outra temos uma população enorme, mas mesmo enorme, até podemos imaginar que é a população terrestre que se expandiu para outros planetas. E as pessoas dessa população gigantesca não tem uma vida mesmo miserável mas tem uma vida quase miserável se fosse um bocadinho pior já era preferível nunca terem chegado a existir. Ah, ou seja, estão marginalmente acima do limiar de existência, é isso? Sim, como Parfit diz, é uma vida com batatas e moussak, que é aquela música de elevador.
José Maria Pimentel
Nem sabia que existia. É a
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imagem que eu uso.
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E agora vamos imaginar
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que nesta população o total de felicidades, a felicidade agregada é superior àquela que existe na população mais pequena. Então, pelo padrão utilitarista, seria melhor termos esta população gigantesca. E Parfit não concorda. Parfit entende que esta conclusão de que a população maior é preferível é uma conclusão repugnante. Mas acontece que não é muito fácil evitar esta conclusão repugnante.
José Maria Pimentel
Pois é, pois é. Isso é muito interessante, por acaso.
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E os filósofos literistas dizem que, na verdade, quando pensamos melhor no assunto, não há aqui nada de repugnante. Há um filósofo literista que, por ser sueco, eu tenho dificuldade em dizer o nome, é o Tan Tchisó, que é aquele de Fendt, que, vamos lá ver, se calhar as pessoas normais dos tempos de hoje já têm vidas que praticamente não estão muito acima do miserável. Por isso não devemos imaginar as pessoas dessa população gigantesca como pessoas que estão a viver muito pior do que nós. Não, seriam mais ou menos pessoas como nós. E seriam imensas. E nós temos dificuldade a imaginar a vastidão dessa população. E talvez por isso o juízo de que essa população seria preferível nos pareça repugnante. Mas isso deve-se só às limitações da nossa imaginação e também a uma visão demasiado negativa da qualidade de vida que essas pessoas teriam. Não seria assim tão má como possa parecer à primeira vista. Não seria muito pior do que a nossa.
José Maria Pimentel
Sim, isso é interessante. Por acaso gostava saber a tua opinião em relação a isso. E já agora antes de dar-te a tua opinião, que não fizemos isso há bocadinho, se puderes explicar o utilitarismo.
Pedro Galvão
Sim. Só para arrumar a questão da meta-ética. A culpa foi minha, eu
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desmonto-o. Não, já lá vamos. Já vamos à questão da objetividade. Não quis esquivar-me,
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mas sobre o utilitarismo. É uma das teorias principais na ética normativa, que continua a ter críticos ferozes e defensores inteligentes, e no essencial é uma teoria muito simples, mas talvez enganadoramente simples, pois a sua aplicação envolve imensas subtilezas. Mas a partir da simplicidade é uma virtude teórica. Não queremos teorias escusadamente complicadas. Sim, sim, de acordo. Então, o que é que o literarista diz? O literarista é um consequencialista. Parece que ele apostar a usar tantos ismos, mas dá um jeito. Ele defende que fazer o que é moralmente correto é simplesmente isto. Realizar aqueles atos que resultarão nas melhores consequências, vistas as coisas de um ponto de vista imparcial. De acordo com esta perspectiva, agir aticamente é adotar um ponto de vista imparcial, e adotado esse ponto de vista imparcial, o meu bem vale tanto como o bem de qualquer outra pessoa, de qualquer outro indivíduo. O que eu devo fazer é fazer aquilo que resulte no maior bem. Adotado esse ponto de vista do universo, que foi a expressão usada pelo melhor euclitarista do século XIX, que é Sidwick. Do ponto de vista do universo, Há certas coisas que são melhores do que outras e o que nos cabe, como agentes morais, é, na medida do possível, adotarmos esse ponto de vista e fazer o que é imparcialmente melhor. Agora, o que é que é imparcialmente melhor? Podemos ter várias concepções de valor. E o teletierista aqui também tem uma posição muito simples. Aquilo que é intrinsecamente bom é só uma coisa, é a qualidade de vida das pessoas. Ou dos seres sencientes em geral. Nada mais tem valor intrínseco. Todas as outras coisas têm valor apenas como meios para o bem-estar, ou felicidade, como se dizia mais no século XIX, ou como ingredientes do bem-estar. Bem-estar, qualidade de vida, são usados genética e filosófica assim como sinónimos. O que é bom imparcialmente é que haja o maior bem-estar possível. Portanto, resumindo tudo, o que é que nós devemos fazer? Devemos fazer aquilo que resulte no maior bem-estar geral.
José Maria Pimentel
Maximizar o bem-estar global. Maximizar o bem-estar geral. A soma dos bem-estares individuais.
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Sim. É uma perspectiva muito simples, mas a sua aplicação é delicada. Sim, pois conduz a uma série de paradoxos. Pois, porque tentar aplicar este princípio todo o instante seria desastroso. Então, o utilitarista acaba por defender que, na prática, dadas as nossas limitações cognitivas, é melhor guiarmos por, digamos, heurísticas morais. A experiência mostra que matar pessoas inocentes tende a ter maus resultados. Que enganar os outros tende a ter maus resultados. Então, nós como agentes morais, o que devemos fazer durante a maior parte do tempo é adotar estas regras. E não vamos andar todo instante a pensar será que é uma boa ideia matar esta pessoa inocente? Será que isso vai produzir um maior bem-estar geral? Em princípio não, portanto vamos afastar isto da cabeça. O utilitarista não é um monstro que anda por aí a calcular constantemente os efeitos globais das suas ações e a ponderar sempre se há de mentir, se há de roubar, se há de matar este ou aquele. Aliás, pensando no totalitarismo, na filosofia política, os totalitaristas no campo político foram sempre muito moderados. Claro que quando eles pensam a organização da sociedade, julgam que devemos ter estruturas políticas que, quando implementadas, incrementem o bem-estar geral. Diz agora, que estruturas políticas hão de ser essas, sendo os seres humanos como são? Os utilitaristas, quando enfrentaram estas questões, acabaram por defender sociedades liberais. Politicamente andaram sempre entre um liberalismo moderado e uma social-democracia. Nunca defenderam coisa deste género. Não. A sociedade tem de estar organizada deste modo. Vai haver uma elite ilustrada a definir as políticas que depois os outros todos têm que seguir para maximizar o bem. E essa elite vai definir o estilo de vida das pessoas de uma forma paternalista, para depois as pessoas não fazerem disparados e para assim o bem agregado ser maximizado. Os elitistas não são ingênuos, eles sabem o suficiente a natureza humana para perceber que um esquema destes seria desastroso. E a experiência do século XX deu-lhes toda a razão e mais alguma, não é? Não há elites iluminadas. O melhor para maximizar o bem é ter uma sociedade que dê uma ampla liberdade às pessoas. Esse ponto a
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fazer é curioso, eu concordo. O deletarismo, embora definido teoricamente, parece poder conduzir a isso, uma espécie de moralidade que, do ponto de vista daquela que é a nossa intuição, parece quase amoral, mas na prática acabou por estar por ser utilizado por pessoas moderadas e por estar por trás de grande parte do progresso que nós hoje em dia valorizamos. Sem dúvida.
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Por exemplo, Mill, o John Stuart Mill, um utilitarista politicamente empenhado no século XIX, bateu-se pela igualdade entre homens e mulheres, bateu-se pelo reforço das instituições democráticas. Diz-me se eu estou errado nesta apreciação,
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mas o que me parece é que, mais do que focar-se nesse trabalho de calculadora, o que a visão utilitarista permitiu fazer, e hoje em dia é relativamente fácil subvalorizar isso, foi dar atenção à utilidade ou ao bem-estar de pessoas a cujos bem-estar não se estava a dar atenção. Exato. Nesse caso das mulheres, por exemplo. E não só dos seres humanos. Sim. Ou no caso da escravatura dos negros, por exemplo. Escravatura. Foram
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contra a escravatura. Mil foi também um adversário do racismo, numa época em que muitas das pessoas cultas eram racistas e Bentham, por exemplo, foi dos primeiros filósofos a dizer que o bem-estar dos animais devia ser seriamente considerado e mais, embora ele só tenha sido obligado postimamente, ele defendeu, algo que seria chocante na sua época, que a homossexualidade deveria ser descriminalizada. Porque do ponto de
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vista do
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literista, o literista tende a opor-se a crimes sem vítimas. Do ponto de vista do literista, não há nenhuma razão para proibir a homossexualidade. Todas estas coisas hoje parecem-nos banais, mas na altura em que os relitaristas as propuseram eram vistas como radicais. O movimento político deles era o dos radicais filosóficos. E depois, no século XX, os relitaristas tiveram posições políticas moderadas, entre a social-democracia e o liberalismo. Nunca estiveram por detrás de ditaduras.
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Parece-me que isso até era mais um perigo do outro lado, nessa posição filosófica, não sei o que costuma se chamar, de ontologista? É melhor explicares tu que explicas melhor do que eu, mas está mais focado em princípios gerais, no fundo. Ou
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princípios apriorísticos. O próprio utilitarismo é um princípio muito geral, não é? Devemos fazer sempre aquilo que resulte no maior bem-estar agregado. Este é o padrão ético fundamental e não há nenhum outro. O deontologista... Se calhar são mais princípios a priori, não é? Se calhar tem mais a ver com ele. Para alguns sim, mas nem todos. Aliás, para complicar mais as coisas, há utilitaristas que são deontologistas. O que é um deontologista? É alguém... Vou tentar traçar o retrato de um odontologista mais típico, é alguém que acha que temos um certo dever de promover o bem. E neste aspecto ele concorda com o odontologista. Mas ele entende que esse dever está limitado. Esse dever não é o princípio supremo da ética. Este ver está limitado por quê? Está limitado de duas maneiras. Está limitado, por um lado, por aquilo que o deontologista hoje chama prerrogativas. O que é que isto significa? Que para o deontologista nós não temos de fazer sempre tudo o que está ao nosso alcance para maximizar o bem. Por exemplo, uma pessoa pode, legitimamente, sem cometer nenhuma imoralidade, dedicar-se, sei lá, ao estudo da filosofia ou da literatura, embora ela pudesse fazer outras coisas que resultariam num maior bem-estar geral. Porque a ética utilitarista, pelo menos em teoria, é extremamente exigente. A pessoa não pode dar mais importância ao seu bem-estar do que ao bem-estar de qualquer outro indivíduo. Isto é muito exigente. O padrão de beneficência que está aqui em causa, para muitos, afigura-se intoleravelmente exigente.
José Maria Pimentel
É aquela questão daquele exemplo de, numa abordagem muito restritiva, não faz qualquer sentido tu ires, sei lá, jantar fora, por exemplo, quando aquele dinheiro, num uso alternativo, ia salvar a vida de alguém, por exemplo. Sim, é isso. E podemos pensar,
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ah, mas o utilitarismo é exigente só em teoria, não na prática. Isso é falso. Levar hoje a ética utilitarista a sério implicaria redefinir radicalmente as nossas vidas. E há pessoas que, aderindo ao utilitarismo, fazem isso. Sei lá, um aluno de filosofia que fez o doutoramento lá em filosofia e converteu-se ao literarismo. Então o que é que ele fez depois disto? Largou a filosofia e foi trabalhar para a bolsa para fazer muito, muito dinheiro, muitos, muitos, muitos milhões de dólares para doar quase tudo a organizações de beneficência. Ele sacrificou... É verdade? É verdade. À causa destes são raros, não é? Serão anomalias psicológicas. Isto não está de acordo com a natureza média do ser humano. Nunca faria um sacrifício
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desses.
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Mas quem leva o clitorismo mesmo a sério na prática, descobrirá muito rapidamente que tem de refinir toda a sua vida. A nível profissional, a nível dos relacionamentos pessoais, dos projetos para ter filhos, não é dizer, há de redefinir isso tudo em função do maior bem. E para os deontologistas não há essa exigência. Nós temos prerrogativas, nós temos opções para fazer uma série de coisas que não têm nenhum mal, embora não promovam o bem-estar geral tanto quanto possível. Há este tipo de limite. Há outro limite que é mais importante e mais distintamente deontológico que é há certos atos que mesmo que promovam o maior bem-estar geral não podem ser realizados. Porquê? Porque as pessoas têm certos direitos morais que, pelo menos até a certo ponto, as tornam invioláveis.
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Como o direito à vida, por exemplo. Direito à vida,
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direito à integridade física e psicológica, direitos de propriedade, direito à liberdade. Bom, para o odontologista, dificilmente todos estes direitos serão absolutos. Talvez alguns deles sejam, mas de qualquer maneira são direitos morais e não se pode violar um direito moral sempre que fazê-lo resulta o maior bem em estar geral. Claro que, por exemplo, o direito à liberdade não pode ser considerado absoluto. Se uma pessoa chegar aí com uma doença como ébola, ela mesmo sendo uma pessoa inocente, pode legitimamente, aliás, deve ser colocada em quarentena. Justifica-se, num caso desses, violar o seu direito à liberdade e coagila a ficar em quarentena. Porquê? Porque essa é a opção que salvaguarda o bem-estar geral, inequivocamente. Não se justifica violar direitos de propriedade, de integridade física e psicológica, do direito à vida, simplesmente porque daí resultará um maior bem-estar geral. Não, estes direitos, para o odontologista, constituem escudos morais do indivíduo. E estão acima dos interesses. Não podem ser violados simplesmente porque daí resultará uma maior satisfação de interesses. Só como uma restrição ou restrições à equação utilitarista, não é? Exato. Se
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usar uma analogia matemática. Limitam muito significativamente o dever de promover o bem-estar geral. E na prática, suponho que hoje em dia quase todos os filósofos não sejam nem puramente deotologistas, nem puramente utilitaristas e e a Neal Gurdes entre uma coisa e outra pendendo mais para um lado, pendendo mais para o outro, mas se calhar estão errados, Mas parece-me difícil ter uma teoria coesa que esteja num extremo ou no outro apenas, não é? Rejeitar integralmente o utilitarismo será muito difícil. Sim. Rejeitar integralmente a diante do... Mas há filósofos que
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não são de todo... Muitos filósofos, a maioria, diria, rejeitam qualquer versão do utilitarismo. Embora convirjam com os utilitaristas em alguns aspectos, mas não aceitam nenhuma versão da teoria utilitarista. Outros filósofos, uma minoria na qual me encontro, defendem uma teoria híbrida, que é uma teoria ao mesmo tempo utilitarista e ideontológica, que é o chamado utilitarismo das regras. Bom, o utilitarista tradicional, aquele que eu descrevi há pouco, ele avalia cada ato particular em função da promoção do bem-estar geral. O utilitarista das regras pensa que essa não é a abordagem correta. Pensa que nós devemos avaliar diretamente, em termos da promoção do bem-estar geral, não atos particulares, mas regras morais, ou melhor ainda, códigos morais. O
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nível acima, portanto, no
Pedro Galvão
sentido mais geral. Sim, ao padrão utilitarista que é o padrão da promoção do bem-estar geral. Agora, vamos aplicar este padrão a quê? Diretamente à avaliação de atos particulares ou a códigos morais alternativos? E o utilitarista das regras diz vamos aplicá-lo a códigos morais alternativos. Então ele diz que o melhor código moral é aquele código moral constituído pelas regras cuja aceitação coletiva resultaria no maior bem-estar geral. E, claro, os atos particulares, por sua vez, devem ser avaliados em função do seu acordo com este código moral. E que código moral é este? Bom, é um código moral de ontológico. É um código moral que... Do ponto de vista dos atos individuais. Depois, os atos individuais podem ser condenados por violarem direitos. Portanto, é um código moral de ontológico. Por exemplo, só que é um código moral com o fundamento último literista. Por exemplo, há um direito de propriedade e, assim, atos serão errados, certos atos serão errados, porque violam esse direito de propriedade. Mas qual é o fundamento do direito de propriedade? Bom, o fundamento é este. Se todas as pessoas reconhecerem um direito como esse, as coisas correrão melhor. O bem-estar geral será maior. E isto é mais ou menos evidente. Se não se admitissem direitos de propriedade, As pessoas teriam muita dificuldade em cooperar umas com as outras. Qualquer um poderia tirar a outros quaisquer objetos. A convivência humana seria quase impossível. Para o utilitarista das regras há uma série de direitos morais e esses direitos morais fundamentam-se na sua utilidade social. Essa é uma informação interessante,
José Maria Pimentel
ou seja, no fundo, o princípio geral é definido numa lógica utilitarista. Sim. E fica estabelecido. E a aplicação dele aos casos individuais, no fundo é como se tornasse deontológica porque passa a obedecer a esse princípio, mesmo que num caso específico individual do ponto de vista da análise utilitarista, até se pudesse justificar remover o direito de propriedade individual. Sim. Ou seja, num caso de um tipo que tem um pomar ou uma quinta cheia de galinhas, por exemplo, aumentava a utilidade das pessoas, se ele pudesse ser expropriado daquele momento para o outro. Naquele momento, provavelmente, aumentava a equação da utilidade, porque ele perderia menos do que a utilidade que teriam outras pessoas que estariam com fome, por exemplo, ou num caso desse género. Sim. Existirão desacordos em relação a casos particulares
Pedro Galvão
entre o utilitarista dos atos e o das regras. Por exemplo, um coletivista dos atos dirá se um certo ato de tortura ou de homicídio resultar no maior bem-estar geral, então há que torturar, há que matar. O coletivista das regras diz nem pensar porque as pessoas têm um direito à integridade física e psicológica e por isso à partida torturar é errado mesmo que da tortura resultasse o maior bem-estar geral. Não quer dizer que ele reconheça uma proibição absolutamente absoluta de não torturar, mas dirá que em muitos casos mesmo que torturar resulta o maior bem ainda assim não se deve torturar. Mas qual é que é o fundamento destes direitos? É a sua utilidade social. Outros discordam, outros dirão que existem direitos morais, mas o seu fundamento, aqui esta é a abordagem kantiana, o fundamento destes direitos morais, está na dignidade, num valor especial que os agentes racionais têm, que lhes confere dignidade. Eu considero esta abordagem pouco convincente e até bastante obscura.
José Maria Pimentel
Sim, e infalsificável, num certo sentido. Não consegues ir mais abaixo do que isso. A partir do momento em que a dignidade é intrínseca ao ser humano, não consegues perceber de onde é que ela vem. Do que é que ela vem e o que é que te corre daí. Por
Pedro Galvão
exemplo, em relação à eutanásia, A conversa sobre a dignidade é usada tanto por aqueles que são contra a eutanásia, como por aqueles que são a favor da eutanásia. Uns dizem que é óbvio que a eutanásia é errada porque fere a dignidade das pessoas. Há um argumento kantiano contra a eutanásia. Mas, ao outro lado, dizem não há que ter eutanásia porque a eutanásia é um exercício de respeito pela dignidade das pessoas. E eu confesso-me, assim, bastante cético com estes apelos à dignidade. Tendem só a ser assim retórica. Pois há filósofos kantianos que conseguem articular melhor
José Maria Pimentel
este discurso sobre a dignidade, mas
Pedro Galvão
não é propriamente uma abordagem que acolha a minha preferência. Então, mas já lá vamos. Antes de passarmos ao primeiro tema que eu queria falar contigo mais concreto relacionado com
José Maria Pimentel
os direitos dos animais, havia aqui uma coisa pendente. Tinha curiosidade em saber a tua opinião sobre a questão da objetividade, que nós falámos há bocadinho. No fundo, Há ou não há valores absolutos ou verdades absolutas na ética? Como não tenho uma opinião muito
Pedro Galvão
definida a esse respeito, posso explicar porquê. A ética não é selvagemmente subjetiva. Quando estamos a racionar sobre questões morais, há no mínimo certas restrições de consistência que já são muito difíceis de satisfazer. Agora, neste território da meta-ética, quais é que são as teorias disponíveis? Podemos começar por aí? Eu posso explicar o que é que me deixa insatisfeito em cada uma delas. Alguns filósofos são os chamados não-cognitivistas. E eles negam, característicamente, negam a objetividade ética. Hoje não é tanto assim, mas pronto. Os não-cognitivistas mais puros negam a objetividade ética. Porquê? Para os não-cognitivistas, fazer um juízo moral não é exprimir uma convicção, não é dizer algo que seja verdadeiro ou falso. Quando alguém faz um juízo moral, está simplesmente a exprimir uma atitude não cognitiva, daí o rótulo não-cognitivismo. Está apenas a exprimir uma preferência, um desejo, uma emoção. Por exemplo, quando alguém diz que o aborto é errado, não está a exprimir a convicção de que o aborto é errado. Ela está a
José Maria Pimentel
exprimir... Está a dizer que gostava que fosse errado. Não está a exprimir o desejo de que as pessoas não abortassem. De viver num mundo onde as pessoas não abortassem, no fundo. Não está a exprimir
Pedro Galvão
um desejo, pronto. Uma preferência, em certo sentido. Uma preferência, um desejo, uma emoção negativa a respeito do aborto. Assim, a frase, o aborto é errado, então seria analisável desta maneira abaixo o aborto! Abaixo o aborto! Esta exclamação é apenas uma expressão de emoção A frase ela própria não é verdadeira nem falsa. Pois bem, eu rejeito estas teorias porque entendo que as pessoas têm de facto convicções morais. Que ao fazerem um juízo moral podem estar a exprimir certas preferências, mas não deixam de estar a exprimir uma convicção. Convicção de que algo é bom, de que algo é certo ou errado. E eu julgo que estas análises não cognitivistas falham completamente. Não conseguem captar a riqueza da linguagem moral. Tudo bem, eu posso pegar numa frase simples como o aborto é errado e analisá-la, ou procurar analisá-la em termos desta frase, abaixo o aborto. Mas agora vamos pegar uma frase um bocadinho mais complexa, uma
José Maria Pimentel
condicional.
Pedro Galvão
Se matar seres humanos é errado, então o aborto é errado. Parece que faz sentido. Como é que o não cognitivista vai conseguir captar esta frase? É um grande problema para ele. Ficaria qualquer coisa como se abaixo matar seres humanos, então abaixo o aborto. Isto não faz sentido nenhum. Eu julgo que o não cognitivista não consegue produzir uma boa análise da linguagem moral. É uma negação do papel da razão na moral, não é? Sim. Os não cognitivistas, o que eles defendiam... Hoje à noite, sim, as águas estão mais turbas. Mas aqueles não cognitivistas da primeira metade do século XX, o que defendiam é que não há respostas objetivamente corretas para desacordos morais. Há desacordos morais que se devem a divergências factuais. Por exemplo, duas pessoas podem discordar a respeito da eutanásia, mas o seu desacordo dever-se ao seguinte, uma julga que legalizar a eutanásia terá certas consequências e outra julga que não terá essas consequências. E aqui teremos um desacordo, digamos, factual, possível, a ser resolvido cientificamente. Mas se as pessoas estão em desacordo, estão de acordo no que respeita a estes factos cientificamente averiguáveis, estão de acordo em relação a esses factos, mas continua a discordar moralmente, então dizem estes filósofos não há maneira de resolver o desacordo. Em rigor nem sequer é um desacordo, dirão alguns deles. É um puzzle do desacordo. Há apenas só ali emoções em conflito ou desejos em conflito. O antideluquista é falso. As pessoas têm mesmo desacordos morais a sério, têm convicções morais, argumentam melhor ou pior sobre questões morais, têm um discurso moral muito elaborado e o não cognitivista não consegue explicar estas coisas. O extremo disso parece-me bastante absurdo. A versão extremada desse
José Maria Pimentel
argumento parece-me bastante absurda. Uma versão parcelar desse argumento, ou mais matizada, ou por outra, a introdução de algum relativismo parece-me pode fazer mais algum sentido. Ou seja, por exemplo, dizer que a moral tem uma componente cultural, por exemplo. Sim. Isso parece-me já ter algum poder explicativo, não é? Há uma série de temas cuja discussão provavelmente não é expurgável de uma certa maneira de pensar característica do mundo
Pedro Galvão
ocidental, à falta de melhor... Sim, uma posição que parece ter sido influente entre antropólogos e sociólogos, mas que nunca foi influente entre filósofos, é aquilo que podemos chamar relativismo moral ou cultural, que também é uma posição assim meta-ética, que nos diz que... Bom, para o não-cognitivista nem sequer existem factos morais. O discurso moral é só expressivo de sentimentos, preferências e nem visa captar factos morais. O relativista moral não. Pensa que o discurso moral tem uma ambição cognitiva. As pessoas exprimem convicções quando fazem juízes morais, mas o relativista moral pensa que todos os factos morais, todos, são relativos à cultura. E isto é muito difícil de defender. Eu não percebo porque é que deveria ser assim. Agora, uma posição muito mais modesta e, eu diria, consensual é que, a existirem factos morais, alguns deles serão relativos à cultura. Alguns deles dependerão das convenções, das tradições, da cidadania, da cultura. Mas um filósofo que não seja relativista dirá, atenção, há factos morais mais fundamentais e esses não são relativos à cultura. Vou pegar no deletarismo das regras. O deletarista das regras dirá o princípio ético correto é devemos viver de acordo com o código moral cuja aceitação coletiva resultaria no maior bem-estar. Este princípio não é relativo. Agora, qual é que é esse código moral? Podemos dizer que esse código moral varia um pouco em função da cultura. Que o código moral correto para nós hoje poderá não ser idêntico, provavelmente não será, ao código moral ideal para, sei lá, os egípcios, o Templo dos Faraós, que viviam em circunstâncias diferentes, enfrentavam problemas
José Maria Pimentel
práticos diferentes,
Pedro Galvão
tinham tecnologias diferentes. O literista das regras, razoavelmente, reconhecerá uma certa relatividade à cultura do código moral correto, mas o seu princípio fundamental não é apresentado como relativo à cultura, enquanto que para o relativista moral, mesmo os princípios mais fundamentais são relativos à cultura.
José Maria Pimentel
O perigo dessa abordagem é que não há princípios... Implica dizer que não há princípios melhores do que outros?
Pedro Galvão
Sim, pois... Exato. Há quem se sinta traído por esta perspectiva por pensar que ela incentiva a tolerância entre culturas, Mas isto é um erro. Vamos imaginar que há uma cultura na qual se valoriza imenso a intolerância em relação aos outros. O relativista terá de dizer que, para os legendas dessa cultura, a intolerância será correta. Claro. E implica dizer, por exemplo, uma coisa
José Maria Pimentel
que derivará disso é dizer que não há, afirmar que não há progresso moral, por exemplo. Sim.
Pedro Galvão
Isto para o relativista estrito. Não conheço um único filósofo que defende estas coisas. Mas sim, para um relativista estrito, não há progresso, simplesmente há mudança. Os valores vão mudando, mas não vão mudando nem para melhor, nem para pior. E até depois há coisas paradoxais. Vamos imaginar, sei lá, no século XIX, mil a defender a igualdade entre homens e mulheres. E vamos imaginar que naquela altura a maior parte das pessoas, incluindo também as mulheres, achava que isto eram disparates. Então Milo naquela altura estava enganado, para o relativista moral. Mas vamos imaginar que pelo fim da sua vida, em parte graças aos seus esforços, a maior parte das pessoas tinha adgerido a esse ideal da igualdade entre homens e mulheres. Então, Mil tinha passado a ter razão, só porque tinha conquistado a aceitação da maioria. Isto é, figura-se-me tudo muito paradoxal. Os realistas morais são aqueles que pensam que não só existem factos morais, como alguns desses factos são totalmente independentes das nossas atitudes valorativas. Há aí uma realidade moral independente de nós e os nossos suíços morais são verdadeiros quando dizem algo que está de acordo com essa realidade moral. Há factos morais absolutos. Sim. Assim como a realidade contém factos físicos, biológicos, químicos, psicológicos, também há factos morais. Depois a grande questão é como é que conhecemos esses factos morais. Nós fazemos uma ideia bastante boa de como conhecemos factos físicos, químicos, biológicos, psicológicos, mas esses factos morais, como é que os conhecemos? Alguns realistas dizem, conhecemos-los empiricamente. E assim a ética filosófica no fundo seria um ramo da ciência empírica, mas isso não corresponde nada àquilo que se faz na investigação ética. Não se resolvem questões éticas empiricamente. Os dados empíricos podem ser, muitas vezes, extremamente relevantes para clarificar questões éticas, mas por si, não resolvem questões éticas. Depois há outros realistas que pensam que nós conhecemos esses factos morais por intuição racional. E aí o modelo é o conhecimento matemático. O conhecimento matemático não é empírico, é obtido por intuição racional e o conhecimento moral está nessa categoria. Mas eu também tenho dificuldades em aceitar esta perspectiva porque as tentativas de desenvolver teorias éticas segundo este modelo geométrico, que vem desde Euclides, começando por axiomas intuitivamente óbvios e depois demonstrando a partir desse axiomas teoremas, isto não tem acontecido. As tentativas de fazer isso nos séculos 17 e 18 falharam.
José Maria Pimentel
Das pessoas da atualidade mais conhecidas com essa perspectiva, com a primeira que tu falaste, com a perspectiva de que há factos morais absolutos aos quais é possível chegar através da
Pedro Galvão
ciência é o Sam Harris. Sim, mas ele é...
José Maria Pimentel
Mas eu também não... Quer dizer, estou mais perto dele, bastante mais perto dos relativistas, mas parece-me evidente que é difícil argumentar isso, Dizer que através da ciência ou... Em teoria, não é? Porque o localismo não é que pode fazer isso hoje. É que em teoria seria possível chegar a esses factos
Pedro Galvão
absolutos. Sam Harris devia ter começado por ler, assim, uma introdução elementar à meta-ética. Eu não tive paciência para ler o livro todo dele, mas apercebi bastante rapidamente a sua ingenuidade tremenda. O que ele faz é estar já a presumir uma forma do pletearismo. Ele está a presumir que o bem é o bem-estar, que o bem-estar consistirá pelo menos em parte em prazer e não ter dor e está a presumir que fazer o que é correto é promover o bem-estar é claro que depois de presumirmos estas coisas todas podemos dizer que a ciência resolve em princípio o resto vamos imaginar que eu presumo à maneira de Bentham que o que devemos fazer é maximizar o prazer. Depois a ciência pode-me ajudar a descobrir o que é que produz mais prazer, claro. Mas a ciência por si não permite descobrir que o utilitarismo é a teoria correta. E, oh, que a resposta
José Maria Pimentel
é maximizar o prazer, não é? Que essa é a resposta certa. Exato. O que acontece é que Sam Harris já está a presumir, parece que sem se aperceber disso, uma
Pedro Galvão
teoria normativa extremamente controversa, uma teoria sobre o que é bom, ele assume-a como evidente e depois diz a ciência resolve o resto. Claro que resolve o resto, mas o que está a ser pressuposto
José Maria Pimentel
não pode ser, a meu ver, resolvido cientificamente. Eu também não li o livro, mas parece-me que tem o seu quê de polémica, não é? Ou seja, tem o seu quê de provocador. E depois tem uma coisa, essa eu concordo, e presumo que tu concordarás também, que é estar a dizer que há alguma objetividade, ou seja, tu consegues ordenar valores, se quiseres, ou consegues ordenar moralidades, não é? Consegues dizer que uma sociedade de pessoas livres é moralmente melhor, moralmente superior a uma sociedade onde há uma casta dominante e o resto das pessoas estão subjugadas. E, portanto, é um argumento anti-relativista nesse sentido. Mas a objetividade absoluta, nesse sentido, de factos absolutos, também me parece que é impossível na prática. Bom,
Pedro Galvão
não vou tão longe, não estou completamente certo de que o realismo moral seja falso, simplesmente parece misterioso, não percebo como é que se obteria conhecimento de factos morais independentes das nossas atitudes. Mas há outras perspectivas. Por exemplo, uma muito interessante é chamada teoria do erro, que é atraente. Foi proposta pelo filósofo Mackie nos anos 70 do século passado. Então o que é que ele defende? Juízes morais exprimem convicções, mas exprimem convicções acerca de valores objetivos. Quando a pessoa diz o aborto é errado, ela não está só a dizer eu sou contra o aborto, ela está a dizer o aborto é errado mesmo. É errado independentemente do que nós pensemos. E depois ele acrescenta, Juízes morais são juízes sobre valores objetivos, mas valores objetivos não existem. Não existem. Na realidade, ele é um empirista, na tradição de Hume, e a investigação empírica não nos revela esses valores morais. Não existem. Então o que é que se decorre daí? Que juízes morais são todos falsos. Porque todos pressupõem algo que não existe. Daí a teoria do erro. Mas a moralidade é toda ela um engano. Estamos sistematicamente enganados quando estamos a discutir questões morais. Tanto aquele que é a favor do aborto, como aquele que é contra o aborto. Estão ambos enganados. Estão a discutir algo que não existe. Estão a presumir algo que não existe. É isso mesmo. Bom, mas acontece que esta perspectiva é difícil de levar a sério na prática, porque nós podemos ser niilistas em teoria, não há valores morais, tudo isso é uma ilusão. Mas depois, sei lá, quando nos confrontamos com um pedófilo ou um corrupto, o nosso niilismo evapora-se num stance.
José Maria Pimentel
Claro.
Pedro Galvão
Assim, No que é que eu fico? Sou assim muito da posição de intermédia, como talvez já tenha dado para ver com a discussão do literismo. Há teorias que são chamadas construtivistas. Os construtivistas acreditam em factos morais, simplesmente entendem que esses factos morais não são totalmente independentes das nossas atitudes valorativas. É um facto que as certas coisas são boas ou más, e outras são certas ou erradas, mas estes factos não são independentes do que nós valorizamos. Haverá aí uma certa subjetividade no fundo. Ou seja, para usar o exemplo do
José Maria Pimentel
Stuart Mill de há pouco, o certo e o errado no que diz respeito aos direitos das mulheres, por exemplo, não é independente da maneira de pensar das pessoas daquela época,
Pedro Galvão
entre outras coisas, das próprias beneficiárias desses direitos. Sim, agora, este construtivismo, aqui cabem muitas coisas. Alguns construtivistas pensam que agentes valorativos devidamente informados acabariam por convergir todos. E assim a objetividade ética existiria. Existiria não em virtude de a realidade conter um domínio qualquer de facto, morais, independentes de nossas atitudes, mas em virtude do facto de as gentes devidamente informadas acabarem por convergir. E com capacidades cognitivas idênticas, já agora, não é? Sim, sei lá, as gentes que não tivessem as suas atitudes contaminadas por preconceitos religiosos, que não cometessem erros de raciocínio, que conhecessem os factos não morais relevantes, vamos imaginar que todos eles acabariam por convergir. Então, a ética dessa maneira seria objetiva mesmo não havendo um domínio de factos totalmente independentes das nossas atitudes valorativas. Eu estou a trabalhar em questões meta-éticas tentando encontrar uma teoria construtivista promissora. Trabalho para os próximos anos. Boa? Não, então
José Maria Pimentel
ainda bem que perguntei isto. É interessante isso porque a limitação que eu vejo tem um bocadinho a ver com aquilo que nós falávamos há pouco em relação aos utilitaristas. O perigo deste tipo de lógica, eu sou muito mais, pendo muito mais para o lado objetivo, objetivista do que relativista, mas reconheço que há um perigo no lado objetivista de uma espécie de ditadura de uma elite, ou seja, daqueles que são donos da verdade, nesse caso, por exemplo, donos da informação correta, porque chegaram à conclusão que aquela é a informação correta que é preciso ter em consideração e que produzirá os factos corretos que já são conhecidos e que não são... No fundo não se admite esse erro. Quer dizer, que é um erro diferente. Não se admite o erro de julgamento ou o erro de... Não se admite nem o erro de um julgamento, nem que a informação de que nós dispomos não seja a informação necessária, ou a informação suficiente, aliás.
Pedro Galvão
Pelo contrário, aí...
José Maria Pimentel
Estou a dizer que é um perigo. Sim. O que acontece
Pedro Galvão
sempre. Mas muita da resistência às posições objetivistas na meta ética decorre desses receios. Quem seja um realista moral, digamos, será um dogmático em matérias morais e não admitirá que está errado. Nada disso dizer que há factos morais objetivos, isso não significa que seja fácil descobri-los, que nós é que conheçamos todos esses factos morais e que as outras sociedades estejam desenganadas, nada disso, seja de adesão ao realismo moral, não decorre nenhum tipo de dogmatismo. Não há nenhuma ligação lógica entre as duas coisas. Pelo contrário, se nós formos radicalmente subjetivistas, então é que não haverá erro moral. Então é que cada um terá razão à sua maneira.
José Maria Pimentel
Cada um terá, entre aspas, a sua verdade.
Pedro Galvão
Sim, sim, sim. Aquilo que considera ser a sua verdade, para citar...
José Maria Pimentel
Para citar alguém, não é? Para citar alguém. Que de certo.
Pedro Galvão
Portanto, há maior perigo. Aliás, é uma coisa que eu vejo. Um comentador da nossa praça que se pronuncia sobre o demais alguma coisa e numa das ocasiões ele revelou-se um subjetivista em relação à moralidade. No fundo, acho que na moral é subjetivo. E ele é extraordinariamente dogmático a defender as suas posições sobre questões de ética aplicada. Mas quem é? É um opositor das touradas, por exemplo. Esse é um dos assuntos em que ele tem opiniões muito fortes. E tem opiniões muito fortes, sobretudo, é o Daniel Oliveira.
José Maria Pimentel
Ah, mas eu me apercebo um bocadinho
Pedro Galvão
tuit serioso. Eu fiquei surpreendido agora. Não sei onde é que ele disse isto onde é que está o texto em que ele se revelou subjetivista bom, ele escreve tanto que agora teria dificuldade em o localizar não conseguiria mas uma vez defendeu assim uma posição subjetivista e o
José Maria Pimentel
relativismo? Mas acho uma pessoa extremamente dogmática a defender posições que nem é ter que aplicar. Esse é o problema do relativismo, é que se assumes uma posição relativista, como é que podes defender que uma coisa é melhor do que outra? Ou determinada coisa é pior do que outra? Essa é uma posição que tem muita atratividade à esquerda, porque permite defender, sei lá, por exemplo, países islâmicos ou as comunidades chigueras que têm práticas que nos parecem incompreensíveis, Mas ao mesmo tempo são vítimas do imperialismo, não é? Portanto, esse tipo de julgamento... Não sei se era o caso aí, atenção. É muito por aí que
Pedro Galvão
há... Mas o que ele não será, assim, um relativista desses ingênuos que diz o que é correto é o que é aceito
José Maria Pimentel
pela maioria de uma sociedade. Eu já tive discussões com amigos e para mim é bastante bizarro. Uma das coisas mais bizarras que já ouvi, mas em que eles defendiam que por exemplo, entre os tempos atuais e a Idade Média não houve progresso moral, por exemplo. Bom, eu tenho de discordar. São realidades igualmente válidas, não é? No fundo, entre
Pedro Galvão
uma e outra. Sim,
Pedro Galvão
sim. Para mim isso parece-me bastante estranho. Mas, enfim. Já agora também tenho de discordar daquela posição, segundo a qual não devemos fazer juízes morais, sei lá, sobre o que o Vasco da Gama fez. Por que não? Aliás, mesmo as pessoas da época dele ficaram escandalizadas com algumas das coisas que ele fez e se calhar nós hoje estamos em melhor posição para avaliar moralmente a sua conduta do que as pessoas no tempo dele. Porque hoje talvez estejamos moralmente um pouco
José Maria Pimentel
mais esclarecidos. Mas, mesmo aí, também há muitas coisas diferentes. Uma coisa é tu avaliares, uma coisa é dizeres, por exemplo, quão correto era o Thomas Jefferson, por exemplo, ter escravo nas plantações. Hoje em dia parece-nos claramente moralmente incorreto. Outra coisa é dizer, tendo em conta o ambiente em que ele estava, quão condenável é essa atitude naquele momento. São dois
Pedro Galvão
juízes diferentes, não é? Claro. Há que distinguir a cerca do certo e do errado de juízes sobre censurabilidade. Ah, é? Boa. Ainda bem que tens a terminologia conceptual que eu não tenho para isto. Uma coisa que podemos dizer é ter escravos naquela altura, aliás acho que em qualquer altura era moralmente errado, condenável, mas talvez não fosse... Talvez! Esta é uma coisa que eu não... Estou a afirmar, estou só assim a conhecer. Talvez não fosse censurável porque talvez naquela época fosse difícil ver, dado o ambiente cultural, talvez fosse difícil para as pessoas perceberem que era errado ter escravos.
José Maria Pimentel
Exato. Sim. Boa. É isso mesmo. Ou pelo menos o grau de censurabilidade será menor do que o grau de... Já que
Pedro Galvão
o Jefferson não estava na Roma Antiga.
José Maria Pimentel
Pois não, pois não. Sim, mas era um tipo particularmente iluminado e progressista em outras matérias. Eu também não estou a dizer que não seja censurável. É um exemplo interessante porque é claramente um exemplo em que Alguém que ficou na história como um tipo de lado certo na maior parte das outras coisas, neste estava do lado errado. E não só eu, outras pessoas daqueles tempos. Antes de passarmos como habitual às recomendações do convidado, deixem-me lembrar-vos que podem apoiar diretamente este projeto através do Patreon, a partir de apenas 2€ por mês. Visitem o site no link que encontro na descrição deste episódio, www.patreon.com.br e vejam os benefícios associados a cada modalidade de contribuição. Se não puderem apoiar financeiramente o que percebo perfeitamente, podem sempre contribuir para a continuidade do 45° avaliando nesta mesma aplicação em que estão a escutá-lo e divulgando o podcast com amigos e familiares. Muito obrigado pelo vosso apoio e agora, de volta à conversa. Vamos avançar para um caso mais concreto. Sim, claro. Era tentador nós ficarmos a falar dessas questões mais abstratas o tempo todo, mas era perder a oportunidade de discutir contigo alguns assuntos como os que tu desenvolves naquele ensaio da Fundação Francisco Melo de Santos, que eu vou pôr nas referências, e um deles, se calhar, eu tive um bocadinho de dúvida sobre por qual começar. Talvez o diéticos dos animais seja interessante porque é um tema mais recente na filosofia e ao mesmo tempo, provavelmente, que vai dar mais para falar no futuro. Ultimamente até deu alguma coisa que falar por causa do pânico e portanto acabou por estar muito nas notícias, mas é um tema interessante e sobretudo desafiante e que me parece, Embora eu não tenha uma perspectiva extremista, a minha perspectiva, já vamos ver, está mais ou menos em linha com a tua, embora eu... A minha intuição, e depois tenho algumas dúvidas na racionalização dessa intuição, mas claramente é um exemplo em muitos aspectos do que o rei vai nu, ou seja, nós, enquanto cultura, enquanto sociedade, temos uma série de incongruências que não estão reconhecidas. Lembrei-me disso quando estava a preparar o guião. Eu tenho um tio que é fotógrafo e ele contou-me uma vez que estava no Jardim Zoológico a tirar fotografias. Uma pessoa normal vai visitar o Jardim Zoológico e ele vai visitar o Jardim Zoológico e obviamente depois a tirar fotografias. E ele estava a tirar fotografias e a deixar ouvir os chimpanzés. E a certa altura ele conta que começou a ficar muito perturbado. Porque ao estar... É muito diferente. Tu passares pelas aulas dos chimpanzés, a olhar e tal, que giro. E... Estevas-te lá 5 minutos e avançaste. O que ele fez foi muito mais do que isso. Ele esteve ali provavelmente uma meia hora ou uma hora a olhar atentamente e de repente ele começou a dar por ele e a pensar, isso parece quase um ser humano que está atrás destas grades. E ele de repente começou, mas ao mesmo tempo ele era impotente para intervir de que forma fosse sobre aquilo, não é? Ele conta que começou a sentir-se bastante desconfortável com aquela situação e depois saiu, mas não se esqueceu daquele momento porque de facto o chimpanzé é muito parecido connosco. E um amigo meu dizia-me, isto acho que até era uma coisa que o André Silva do PAN dizia, não sei se é verdade isto, pode não ser verdade, mas que, embora me pareça discutível do ponto de vista ético, tem inegavelmente o seu que é de verdade, que é que um chimpanzé... Eu não sei se ele comparava com um bebê ou se comparava com uma pessoa deficiente ou alguma coisa de qualquer tipo, mas estar a pô-los em planos diferentes é... No mínimo requer uma explicação, ou seja, não é uma coisa que surja diretamente. Mas enfim, avançando para... Sim, eu recordo-me disso. Por acaso, a afirmação foi infeliz, porque,
Pedro Galvão
se bem recordo, ele comparava um chimpanzé a um ser humano em coma.
José Maria Pimentel
Ah, então era isso, talvez.
Pedro Galvão
Mas um ser humano em coma, ele continua a ser um agente racional, consciente de si, embora agora não esteja a exercer essas capacidades. Claro, era como dizer um ser humano a dormir. Exato. Eu achei a comparação desconcertante, mas se em vez de um ser humano em coma tivéssemos um ser humano em morte cerebral ou um ser humano em estado vegetativo persistente, aceitaria. Um ser humano em estado vegetativo persistente perdeu irremediavelmente todas as capacidades mentais. Um chimpanzé, na verdade até um cão, um gato, tem capacidades mentais superiores a esse ser humano. Agora, quando estamos a falar de seres humanos em coma, não. Seres humanos em coma são à mesma pessoas. Provavelmente
José Maria Pimentel
ele queria dizer isso. Pois, deve ter sido um
Pedro Galvão
lapso, mas foi um lapso infeliz, até porque depois aquela declaração foi muito citada. Mas sabes que eu não apanhei, por acaso. Não
José Maria Pimentel
me lembrava disso. Mas já lá vamos. É interessante tentar construir aqui um enquadramento racional para a coisa. A perspectiva que tu defendes, e eu acho interessante, pelo menos se tu ela no meio, que é sempre tentador, entre uma perspectiva antropocêntrica, que no fundo tem apenas em consideração os interesses dos seres humanos e, portanto, pode proteger os animais, mas falua sempre enquanto consequência de proteger os interesses dos seres humanos e, por exemplo, tu não quererás viver numa sociedade em que as pessoas andam a dar pontapés nos cães na rua porque isso é uma sociedade que se tornará mais violenta e no qual o convívio não é agradável e provavelmente porque há pessoas que não gostam de ver, mas não pelo interesse intrínseco dos animais. Sim. O que é muito paradoxal, acho que as pessoas de facto não acreditam nisso. As
Pedro Galvão
pessoas em geral não acreditam nisso. Sei lá, é extremamente estranho pensar-se assim. Não des o pontapé ao cão, porque isso faz mal a ti e faz mal às outras pessoas. Não! O que as pessoas pensam em geral, independentemente de qualquer relação ética, não se deve dar o pontapé ao cão, porque isso faz mal ao cão. O cão sofre, isso é mau para ele e isso importa. Sim, eu acho que
José Maria Pimentel
sim. Hoje em dia parece-me que A nossa empatia está muito estendida aos animais, ou seja, não me parece que o problema que pode haver, e até é mais interessante, é como é que tu... Que alterações institucionais é que tu fazes, no que diz respeito à indústria alimentar, por exemplo, no que diz respeito a instituições culturais como a tourada, por exemplo. Agora, a empatia das pessoas hoje em dia, ao contrário do que acontecia há uns séculos, está perfeitamente estendida aos animais, embora também muitas vezes isso aconteça de forma mais ou menos enviasada como tudo o que é apenas uma intuição. Por exemplo, há um caso, um exemplo giro, que é o... Entre os animais em via de extinção, por exemplo, as pessoas choram pelos ursos polares porque eles são mamíferos e, portanto, lembram-nos quase a nós próprios, mas no mínimo lembram um cão, ou animais que é fácil antropoformizar, mas depois alguma espécie qualquer, já não sei o nome de... De... Um animal marinho, a gusto dos mais da China, que é horrível, e também tem a minha distinção. E ninguém chora por ele, claro, porque ele não tem... Não provoca a nossa empatia. Agora, de um modo geral, a existência dessa empatia, ou a extensão dessa nossa empatia para espécies não-humanas é
Pedro Galvão
bom, embora convenha ser apreciado também de uma forma mais racional. Bom, é bom até certo ponto. Se uma pessoa empatizasse demasiado, ficaria tão deprimida que
Pedro Galvão
depois provavelmente teria que se suicidar, porque a situação dos animais é calamitosa. E as pessoas têm uma empatia assim muito caprichosa e, direi eu, insustentável racionalmente. Tal coisa, não é ética? Há sempre uma exigência de consistência. E não me parece que se possa defender coerentemente o seguinte, que matar gatos ou cães para alimentação é errado. Sei lá, As pessoas aí ficam escandalizadas quando soube falar do festival na China em que agarram nos cães e matam-nos e comem-nos. Que horror! Não faz sentido pensar isto e, ao mesmo tempo, pensar que é perfeitamente aceitável matar porcos e vacas, que são animais com capacidades mentais similares, os cães e os gatos, para a nossa alimentação. Qual é que é o critério? Não parece haver nenhum critério defensável. Achamos os cães e os gatos mais fofinhos, não é? Mas isto não pode ser um critério para fazer uma distinção moral.
José Maria Pimentel
Sim, é um critério da nossa relação com eles, sim. Pois.
Pedro Galvão
E podemos dizer, nós pensamos assim porque isso é cultural. Eu sei que é cultural. Mas o que estamos a perguntar é, esse conjunto de atitudes, avaliar de certa maneira a conduta exercida nos cães e gatos e avaliar de outra maneira a conduta exercida em porcos e vacas, essa diferença de atitudes é racionalmente sustentável ou não? E não
José Maria Pimentel
me parece que seja. Então, mas espera lá, também me parece que em grande medida não é, mas acho que há um resíduo de verdade apesar de tudo aí. Mas eu gostava de voltar a isso mais à frente porque tem que ver com o resquício de antropocentrismo que eu acho que vejo na tua posição e que acho que era interessante explorar. Mas antes disso gostava de ir à tua posição para quem está a seguir perceber a lógica. Ou seja, o que tu defendes não é essa visão antropocêntrica, não é o outro extremo que é a visão dos direitos dos animais e que no limite dirá que não é permissível matar... Jamais fazer um animal sofrer e nem sequer matá-lo para benefício de seres humanos. Portanto, essa é a perspectiva de estermo. Do outro lado, a tua perspectiva que tu chamas de bem-estar animal, como o nome indica, é uma perspectiva que reconhece o bem-estar aos animais. Tu reconheces interesses, acho que é a terminologia que tu usas, reconheces que os animais têm interesses que nós temos o dever de preservar mas depois faz uma distinção interessante, até podemos começar por aí tu dizes que nós temos deveres para com os animais justamente porque eles têm interesses mas os animais não têm direitos sim
Pedro Galvão
Esta conversa dos direitos também presta-se a muitas conclusões. Porque para muitas pessoas um será o simétrico do outro, não é? Bom, aqui por direitos, estou a entender aqueles direitos morais negativos que constituem as tais restrições. Que falávamos há bocadinho. Sim. Podemos falar de direitos num sentido mais amplo. Têm direitos aqueles seres que são moralmente consideráveis. Assim, nesse sentido, admito que têm direitos. Agora,
José Maria Pimentel
não têm um direito absoluto à vida, não é? Nem
Pedro Galvão
absoluto, nem, digamos, prima faca, que é o que se diz um direito que em certas circunstâncias pode ser justificadamente violado. Não têm direitos. Têm interesses eticamente significativos. O seu bem-estar merece consideração, mas não têm direitos. É uma posição que não é fácil defender, mas já agora vou explicar porque é que sou assim tão hostil à ideia de que animais têm esses direitos. Bom, porque quem se subscreve a uma teoria deste género tem que aceitar todas as suas implicações e eu julgo que as teorias deste género têm implicações inaceitáveis. Vamos imaginar uma sociedade na qual a sobrevivência dos seus membros depende deles caçarem e matarem mamíferos e aves. Não podem ter uma dieta vegana, Têm mesmo nas suas circunstâncias de matar animais, mamíferos, para sobreviverem. Não é eticamente aceitável, nessas circunstâncias, os seres humanos matarem animais para alimentação. Eu diria que sim, mas quem defende que os animais têm direitos como o direito moral à vida não poderá consistentemente dizer que sim, eles podiam matar os animais. Não, quem defende essa posição terá de defender, caso queira ser consistente, que essas pessoas teriam o dever de morrer à fome ou de andarem constantemente sobrenutridas. Porque se há um direito
José Maria Pimentel
à vida, esse direito não pode ser violado, simplesmente para salvar a nossa vida. Então ainda não podes dizer, mesmo dentro dessa perspectiva, que há uma hierarquização de direitos? Ou seja, há de facto um direito à vida... Estou a fazer um bocadinho de avogado do diabo, mas podes dizer há de facto um direito à vida dos animais, mas o nosso direito à vida sobrepõe-se,
Pedro Galvão
se for caso disso? Não, eu diria que os animais têm um... Muitos deles têm um interesse em continuar a viver. O que é que isto significa? Que para eles é mau morrer. Para eles será melhor que a vida continue. E esse interesse é eticamente significativo. Atenção, não direi que todos os animais têm este interesse. Não estou a falar de camarões e anejos. Esse é outro ponto interessante. Esse é outro ponto. Já lá vamos. Estes animais têm um interesse em continuar a viver. Matá-los é mau para eles e isso dá-nos uma razão para não os matar. E não vamos matá-los simplesmente porque gostamos do sabor da carne, quando temos aí muitas outras coisas para comer. Quando não precisamos realmente fazer isso. Agora, uma coisa muito diferente é situações em que as pessoas, para sobreviverem, precisam de matar esses animais. Mas
José Maria Pimentel
tu deste dois extremos, ou seja, isso é interessante, porque tu estás a dois extremos. Estás a dar um extremo em que comparas o possível direito à vida dos animais com o nosso direito à vida e aí o segundo sobrepõe só o primeiro. Nisto que eu estou a propor, isso. Parece-me que é mais ou menos inegável, ou seja, parece-me difícil ter subscreveu uma filosofia que não diga isso, embora já quem subscreva. E depois o extremo oposto é dizer, estás a comprar o direito à vida dos animais ou o nosso direito ao prazer gastronómico, digamos assim, ou a deleite gastronómico.
Pedro Galvão
Não reconheço um direito ao prazer gastronómico. Eu sei que não,
José Maria Pimentel
Por isso é que tu estás a dizer que aí não se justifica. Mas depois tens terreno. Imagina, por exemplo, justifica-se utilizar animais para experiências que possam prolongar a vida humana? Já não é uma questão binária de vida ou não vida, é uma questão de prolongamento. Para
Pedro Galvão
clarificar estas coisas, realmente vale a pena nós pensarmos em casos concretos. Para clarificar a diferença entre aqueles que estão no campo do bem-estar animal e aqueles que estão no campo dos direitos dos animais. Exato. Em muitos casos eles estão de acordo. Por exemplo, o caso da criação intensiva de animais para alimentação. Esse é o maior exemplo do Rei Bairnuk que existe. Isso é para acabar. Agora vamos pensar em experiências científicas com animais. Quem defende uma posição dos direitos dos animais dirá quase sempre O seguinte, que essas experiências, essa prática tem de ser abolida. Não podemos matar animais, mesmo que de forma indolor, em experiências científicas, mesmo que o seu uso seja indispensável para se alcançarem grandes benefícios biomédicos para os seres humanos e para outros animais. Dirá, aí um direito, para alguns é um direito absoluto, há vida, que pelo menos os mamíferos e as aves têm, e esse direito não pode ser nunca violado, mesmo que matar o animal fosse importante ou mesmo necessário para alcançar um grande bem. Por exemplo? Aqueles que estão no campo dos direitos dos animais são abolicionistas em relação a todas estas práticas. Aqueles que estão no campo do bem-estar animal vão com mais calma. É claro que não gostam da ideia de matar mamíferos, aves, mas entenderão que se fazê-lo for necessário para se alcançar um bem significativamente vasto, será eticamente defensável. À partida, quem esteja no campo do bem-estar animal não defenderá a abolição de rigorosamente todas as experiências com animais. Mas é claro, muitas experiências com animais são perfeitamente escusadas.
José Maria Pimentel
Certo, certo, certo. Isso eu estou a
Pedro Galvão
sugerir. Testar a segurança de cosméticos. Há outros meios, talvez um bocadinho mais dispendiosos, mas disponíveis, de testar cosméticos e além disso já temos aí muitos cosméticos testados. Ou seja, no fundo, a perspectiva do bem-estar animal, ou pelo
José Maria Pimentel
menos aquela que tu subscreves, porque mesmo dentro dessa perspectiva há várias
Pedro Galvão
sub-perspectivas. Sim, e mesmo no campo dos direitos dos animais há perspetivas mais e menos radicais.
José Maria Pimentel
Sim, exatamente, imagino que sim. A perspectiva mais radical seria contra, lá está, a caça para sobrevivência, seria contra, no exemplo menos extremo, testes que até se impactariam diretamente pelo direito à vida dos seres humanos e no exemplo menos extremo, mas ainda assim próximo do extremo, os testes laboratoriais, no caso da perspectiva dos direitos dos animais, facilmente contra a criação intensiva. No fundo, Para ilustrar, eu falo muitas vezes disso, embora tenho que reconhecer que não sou completamente conseqüente com isso do ponto de vista alimentar. É difícil sermos. Sim, pois, exato. Mas podia ser mais. É um caso do rei Irnú, no sentido em que qualquer pessoa na rua, ou a maioria das pessoas na rua, Se visitasse uma fábrica, um centro de criação em massa de animais, daqueles, dos piores que existem, que tens galinhas em espaço onde não se consegue mexer, ou que são tão gordas que partem as próprias pernas e ficam imóveis, e tens, sei lá, e animais que são separados das crias logo à nascença e depois com as consequências evidentes que isso tem, que são mesuráveis, por causa do estado dos animais, ou seja, até cerebralmente é possível medir as consequências que aquilo tem em termos de neurotransmissores, a maior parte das pessoas, se visitasse uma fábrica dessas, ficaria, sentiria repulsa, não é? Acho que a maior parte das pessoas hoje em dia subscreveria essa hipótese. Portanto, isso parece-me muito mais, neste caso, um problema do rei e nu, mais do que propriamente uma questão de desacordo filosófico em relação
Pedro Galvão
a isso. As pessoas em geral estão assim em dissonância. Os comportamentos que têm, por exemplo, no campo da sua alimentação, não estão
José Maria Pimentel
de acordo com as suas próprias convicções. Eu acho que está implícito nisto que eu estou a dizer, o facto de eu achar que existe progresso moral em relativistas e que isto não faz sentido nenhum, mas eu acho que as pessoas daqui a umas décadas vão olhar para trás para isto. Não digo como nós olhamos para a escravatura, porque são absolutamente diferentes, mas com algo dessa perspectiva, no sentido em que não parece necessário que o futuro vá ser vegetariano, por exemplo. Mas... E essa era a outra coisa que eu te queria perguntar. Mas claramente a questão da criação intensiva de animais é moralmente condenada a vários níveis, não é? Parece-me difícil de negar isso. E talvez fosse mesmo condenada, sei
Pedro Galvão
lá, por espectadores do século 17 ou 18. Porquê? Porque essa atrocidade que é a criação intensiva de animais é algo muito recente na história humana. É verdade, mas... Talvez é tão horrível que talvez mesmo pessoas de tempos mais remotos, menos sensíveis ao bem-estar animal, se vissem aquilo, eram capazes de ficar horrorizadas. É
José Maria Pimentel
verdade. Eu não quero parecer um cenobo cronológico, acho que é o termo que se usa, mas acho que não tanto assim, porque se tu fores a países menos desenvolvidos tu vês a maneira como os animais são tratados e vês animais, cavalos, coálidos, por exemplo, na rua, pessimamente tratados e não parece que a vida de um cavalo desses seja melhor do que necessariamente do que a vida de uma destas galinhas. Portanto, apesar de tudo, tendo a não concordar com isso, embora mantenha alguma prudência para não ser vítima desse noísmo cronológico, de achar que antigamente era tudo péssimo e agora é tudo bom. Não é, mas a verdade é que não... Essa extensão da empatia para com os animais era uma coisa que existiria provavelmente alguma coisa, porque muito disso terá sido esbatido por uma análise binária em que nós inevitavelmente caímos, mas tendo a achar que apesar de tudo não existia. Agora, é interessante essa questão do vegetarianismo, porque uma coisa é dizer para satisfazer o nosso prazer em comer, vamos tirar daqui aquela questão de se a proteína animal é ou não necessária, vamos deixar isso fora da mesa. Mas isso não é, isso é uma coisa científica. Isso é uma questão mais científica, Quer dizer, é um input necessário para esta discussão, mas vamos admitir que não é. Vamos admitir que não é. Ou seja, vamos admitir que a pessoa pode ter uma dieta absolutamente vegetariana. Um problema a resolver é dizer, não há limites na satisfação do nosso prazer gastronómico e portanto não há problema nenhum em haver estes regimes de criação científica, parece-me difícil defendê-lo. Outra coisa é dizer, esse nosso interesse em comer bem ou em usufruir de boa comida, por exemplo, pode sobrepor-se ao interesse dos animais em viver? E aqui, excluindo as condições, ou seja, animais criados em lar livre, em condições perfeitamente normais, mas que depois são mortos para nós os comermos. Qual é a tua posição em relação a isso? Bom,
Pedro Galvão
é uma posição extremista. Eu não sou vegano na intenção de ser, porque não tenciono deixar de comer camarões, peixe em geral, porque
Pedro Galvão
entendo que são animais... Não-sencientes.
Pedro Galvão
Podem sentir qualquer coisa, mas não muito. Não têm uma vida mental particularmente rica. Sei lá, se aparecerem os insetos comestíveis, eu tenciono comê-los, mesmo que existam indícios que são sencientes. E
José Maria Pimentel
os peixes? Há um livro qualquer sobre a senciência dos peixes?
Pedro Galvão
Sim, a respeito dos peixes, é mais ou menos consensual que sentirão qualquer coisa. A respeito dos insetos e de outros invertebrados como caracóis, é que há dúvidas maiores, mas eu até me inclino a pensar que são sencientes. Têm sentidos. Sim,
José Maria Pimentel
tem sentido. Tem um cérebro.
Pedro Galvão
Voltaire, contra Descartes, negava que os animais tivessem mentes. Dizia, então eles têm sentidos para não sentir? Como
José Maria Pimentel
é que é? Ele dizia isso? Sim. Pois a perspectiva de Descartes era muito estranha. Ele dizia que eram autómatos, basicamente. Sim. É uma perspectiva estranha e que só por um ou outro filósofo estranho é que é aceito hoje.
Pedro Galvão
Acho que é uma perspectiva anticientífica. Sim. Sim,
José Maria Pimentel
sim. Até a partir de Darwin nós percebemos que... Exato. Que nós temos... Que a nossa consciência, mesmo sendo muito mais desenvolvida do que a dos outros animais, evoluiu a partir deles. E, noutros casos, é prima, no sentido de que tem um grau de... Já os chimpanzés, por exemplo, que são
Pedro Galvão
animais com uma consciência de si extremamente robusta, que são equiparáveis mentalmente a crianças de 2 ou 3 anos. E se nós chamamos pessoas a essas crianças, parece que ser pessoa depende do tipo de natureza mental que se tem. Então temos que chamar também pessoas a esses animais, chimpanzés e grandes símios em geral. Mas voltando à alimentação, portanto, não comeria
José Maria Pimentel
chimpanzés, mamíferos e aves também. Não comeria chimpanzés jamais, não é? Como? Só estabeleceu-me hierarquia. Chimpanzés jamais. Chimpanzés,
Pedro Galvão
orangutangos, gorilas, depois há os grandes cetáceos, como baleias, golfinhos, também parecem que têm uma mente particularmente rica e desenvolvida. E hoje o que isso conta? Cães, suponho que não, e porquê vaca? Também não. Aves também não. Mas daí para baixo. Começa a não ver razões muito fortes para não comer esses animais. Sobretudo porque são animais que são capturados. Evito mesmo peixes, evito animais de criação
José Maria Pimentel
intensiva. Mas essa é a questão que falávamos
Pedro Galvão
há bocadinho, não é? Sim. Agora, animais que são capturados no oceano, não vejo grandes razões para deixar de os comer. Mesmo que tenha uma alimentação muito vegetariana, não pretendo ser vegano nem nada. Parece mais objetável, por exemplo, beber um copo de leite de vacas de criação intensiva do que comer uma sardinha. Acho mais preocupante. Não estou a dizer, talvez o ideal fosse eu ser vegano. Talvez fosse moralmente o mais recomendável. Mas é tal coisa. Eu não acho que tenha de fazer tudo o que está ao meu alcance para tornar este mundo melhor. Claro. É a questão do utilitarismo extremo.
José Maria Pimentel
Exato.
Pedro Galvão
E quanto ao veganismo, eu duvido que seja uma dieta recomendável para crianças. Eu estou razoavelmente confiante que é possível, se bem que não muito fácil, um adulto ter uma dieta vegana saudável, mas depois aplicar essa dieta aos próprios filhos parece-me um pouco temerário. Parece-me que no mínimo é estar a fazer uma experiência científica com os filhos quando se é contra as experiências científicas com animais. Exato. Sim, tens claramente bens em conflito. Isso faz-me confusão que
José Maria Pimentel
se adopta uma dieta vegana para crianças. As crianças têm necessidades nutricionais diferentes. Claro. Ou aquelas pessoas que tentam... Também há exemplos com gatos, não é? De dar de... Rações vegetarianas. Rações vegetarianas.
Pedro Galvão
Para os cães, não conheço opinião veterinária sobre o assunto, até é difícil encontrar essas rações cá. Para os gatos não dá por causa da taurina. Precisam mesmo da taurina e ela tem de ser obtida biologicamente.
José Maria Pimentel
Lógico, seria difícil, porque nós para todos os efeitos somos hominívoros. Os gatos são bem
Pedro Galvão
devagaros, felizes. Os gatos são carnívoros. Os cães estão ali... Os
José Maria Pimentel
outros são mais próximos do hominívoro. Os lobos eram carnívoros e os cães evoluíram connosco.
Pedro Galvão
Os cães evoluíram connosco e os gatos ficaram iguais. Acho
José Maria Pimentel
que não mudaram muito geneticamente. Sim, sim, como se percebe aliás pelo comportamento. Como se percebe. Então, espera aí. Há uma coisa que nós estamos... Andamos a... Há um problema que estamos a controlar e que é um input essencial para isso, que é a questão... E eu aí julgo que divides um bocadinho de ti. Tem que ver com o pressuposto que está aqui, que é a questão, não do tom de vista dos direitos, mas do interesse dos animais. Há um interesse que eu partilho, ou seja, eu acho que os animais têm interesses, claramente, e têm um interesse manifestamente em não sofrer. Ou seja, acho que é inegável que o sofrimento do animal é um mal. Isto que eu me anteseia há bocadinho, quer dizer, é uma coisa que não é particularmente polémica, tirando em situações em que ela surge em conflito com outras questões, como por exemplo nas touradas, e provavelmente já lá vamos. Mas no geral, ninguém tem dúvida disso. Agora, depois há outro problema que me parece mais difícil. Eu digo que estou em desacordo, não estou necessariamente em desacordo, estou em dúvidas. Que é o interesse em continuar a viver. Ou seja, até que ponto é que uma morte em dolor é um mal? Aí parece-me um bocadinho mais difícil, porque a análise que tu faz é interessante. No fundo, a análise passa por dizer, os animais têm um futuro valioso? Qualquer análise que nós precisamos fazer disto é bem intencionada, mas um bocadinho paternalista, portanto, não se tem para tentar pôr na cabeça, na consciência de um animal que não tem a nossa complexidade cognitiva, não é? Ou sequer a nossa... Nem pode nem ter que se quer que ver com complexidade, tem que ver com características até cognitivas. E nós dizemos, obviamente, que um cão, por exemplo, tem um futuro valioso se gostar de nós por conviver connosco e tem um futuro valioso por brincar e por comer e por proferir a sua vida. Mas já não parece tão claro que ele tenha noção da existência desse futuro valioso. Coisa que nós temos, não é? Eu não quero morrer porque há coisas que quero fazer durante o resto da minha vida e tu também. Os meus cães não terão bem essa noção. E tu dás um exemplo muito curioso, que é... Ninguém dirá que não se justifica fazer uma operação ao seu cão para-lhe prolongar a vida, mesmo que possa ser dolorosa, portanto que lhe possa provocar desagrado, mas que lhe vai fazer viver mais. E eu, uma das minhas cadelas, teve exatamente uma situação desse género, e por acaso aquilo até resultou bem. E nós fizemos-o, como qualquer pessoa faz. Mas eu não tenho a certeza que o tenhamos feito pelo interesse do cão. Não sei até que ponto é que não fizemos pelo nosso interesse. Quer dizer, eu gosto de pensar que foi pelo interesse do cão. Mas não sei se foi, na verdade. Não vejo
Pedro Galvão
razão para duvidar do que parece. É mesmo. Ou seja, o que eu quero dizer com isso... Não sou um egoísta psicológico. Também é uma posição que, sei lá, nos séculos 17 teve alguma influência entre os filósofos, mas que perdeu, e bem, a sua influência, que é a ideia de que nós, em última análise, mesmo que pareça ao contrário, somos motivados só pelo nosso interesse. Esta perspectiva é falsa. Nós, por vezes, somos motivados pelo bem-estar dos outros. Fazemos sacrifícios pelos nossos familiares, pelos nossos amigos... Porquê que quando chegamos aos animais a história psicológica haveria de ser diferente. Sim,
José Maria Pimentel
sim, claro que não. Cientificamente não tem cabimento nenhum. Mas o que me interessa deste argumento não é a questão do cão, que obviamente qualquer pessoa que tenha cães percebe que nós desenvolvemos uma tal empatia com eles que obviamente não hesitamos nesse tipo de situações e fazemos-o porque cremos que o cão continue a viver para benefício dele, pelo menos é esse o nosso sentimento. Mas no caso, por exemplo, de animais e da questão de teres ou não, por exemplo, continuares a ter ou não uma indústria alimentar com condições diferentes, mas em que sejam criadas vacas, porcos, galinhas e outros animais para nós os comermos, por exemplo, aí já deixa de ser simplesmente um desafio intelectual interessante, mas passa a ser uma discussão prática relevante. E aí eu acho que deve haver, ou pelo menos inclino para achar que deve haver, que não há problema em haver uma indústria alimentar para a alimentação humana. E gostava de discutir isso contigo porque me parece que tu discordas disto. Ou pelo menos que tendes a discordar.
Pedro Galvão
Ou seja, o que me parece é difícil manter uma consideração suficientemente séria pelos interesses dos animais, e estou a pensar no mamíferos e avos, parece-me difícil manter uma consideração séria pelos seus interesses, ao mesmo tempo que os comemos, sem necessidade disso. A questão
José Maria Pimentel
é a necessidade, não é? Mesmo que eles tenham sido
Pedro Galvão
criados em condições benignas, parece-me que ao lidar com eles dessa forma, simplesmente para satisfazer os nossos caprichos gastronómicos, ao lidar com eles dessa forma, estamos a desenvolver uma atitude psicológica que depois vai levar a que, noutros contextos, não tenhamos uma consideração suficientemente séria pelos seus interesses.
José Maria Pimentel
Sim, isso é verdade. Tudo isto é muito dinâmico, não é?
Pedro Galvão
É tal coisa como na doutorada. A minha objeção à doutorada que coloco No livro é mais ou menos esta. Vamos imaginar que alguém defenda a tourada desta forma, que é a melhor defesa da tourada que se pode fazer. Não vamos pensar na salvaguarda da raça do touro. Nós poderíamos salvaguardar a raça, Supondo que isso é desejável, poderíamos salvaguardá-la sem tourada. É possível mesmo, não foda-se muito apelativo, economicamente é possível, mas pegar na melhor defesa da tourada, que é aquele touro que está ali a ser morto para as pessoas divertirem, de facto está a passar um mau pecado. Um pecado muito mau, mas a vida dele no seu todo até foi bastante boa. Ele não foi um animal de criação intensiva. Ele viveu na Logíria, teve uma vida aprazível, e ele não teria existido se não existisse a prática de doutorada. Aquilo, animal individual que está ali agora a ser maltratado, leva a sua própria existência a este divertimento, a esta tradição. E
José Maria Pimentel
é um argumento análogo ao que se usa em relação à alimentação pois
Pedro Galvão
então qual é que
José Maria Pimentel
é parecido com o exercício do parfite que falávamos no início sim nessa lógica utilitarista
Pedro Galvão
sim mas melhor existir do que não existir um ponto de vista utilitarista parfite tem outras questões coisas muito interessantes a dizer mas já lá vamos Então qual é que é a melhor objeção? A melhor objeção é que tudo isso é verdade. Aquele animal, vamos admitir, teve uma vida muito boa, que não teria tido se não fosse a tourada. E dessa medida a tourada beneficia-o. Mas há que ter uma visão mais ampla. A pessoa que vai à tourada está a ter prazer com um espetáculo dispensável, e é um espetáculo no qual o sofrimento dos animais é totalmente desconsiderado. Assim, aquela pessoa a ir à tourada está a desenvolver uma sensibilidade moral nociva para os animais em geral. Numa sociedade decente em que os interesses dos animais sejam devidamente considerados, não existirão coisas como
José Maria Pimentel
touradas. Eu por acaso gostei muito desse teu argumento, acho um argumento muito bem conseguido sobretudo porque ao contrário de muita gente eu acho o argumento em defesa das touradas de dizer que os touros têm uma boa vida, acho o argumento com cabimento e tu
Pedro Galvão
dizes o mesmo. Bem, Eu não conheço ao por menor a vida dos touros. Será seguramente melhor do que a vida dos animais de criação intensiva. Será uma vida boa? Eu
José Maria Pimentel
não conheço bem o terreno, mas estou a conceder que sim. Sim, eu também não. No fundo, estou a pressupor não custar a creditar, tendo em conta os incentivos que existem. Tu queres ter um animal robusto, bem nutrido, com desenvolvimento muscular. Portanto, tudo isso, nesse caso, tudo isso conduz a uma vida que vai ao encontro dos interesses do touro. No caso da indústria alimentar, tu queres a galinha gorda que se desenvolva rapidamente e aí nesse caso tudo vai ao encontro ou tudo vai de encontro, neste caso vai contra... Pensando
Pedro Galvão
noutro caso que envolve espetáculos, o circo, os circos com animais são muito mais condenáveis do que a tourada porque aqueles animais que estão ali no circo que sofrem treinos, passam a vida confinados de um lado para o outro e animais selvagens, animais que precisam alguns ilos de espaço, passam a vida enjaulados e em treinos, Treinos que muitas vezes são violentos. Têm vidas miseráveis. Nessa medida, os animais usados em circos estão a ser usados num espetáculo muito mais condenável do que a tourada. Sim, o exemplo da tourada é um exemplo... Acho um exemplo
José Maria Pimentel
interessante de discutir independentemente disso, mas é um facto que é um exemplo que ganha uma preponderância muito maior do que a sua relevância nesta hierarquia de problemas, por ser um problema politicamente, aí outros têm um significado completamente diferente, porque do ponto de vista da gradação de problemas, estaria lá muito mais na escala, porque é muito menos grave do que seja do circo, seja da criação intensiva e outras coisas do género. Mas pronto, mesmo com essa ressalva, não deixa de ser um problema interessante de discutir. O que é interessante aí é que eu, de certa forma, concordo com as perspectivas, ou seja, admitindo que isso é verdade, essa questão da vida dos touros, e há um exemplo análogo a esse, que é o exemplo dos galos, das lutas de galos. Uma vez apanhei uma entrevista de um tipo que falava sobre isso e ele dizia, eu era... Achava uma coisa bárbara outra de galos e continua a achar, dizia eu, mas tenho que reconhecer que fui apanhado de surpresa quando percebi a vida que aqueles animais tinham comparado com o frango que eu comi à refeição, porque no fundo é um caso idêntico, nós tínhamos uma vida hoje. Eu não acho que isso não tenha cabimento, acho até um argumento muito interessante e válido e do ponto de vista do interesse do animal, parece-me que se pode dizer que aquilo é um neto positivo, que é uma coisa que é bom para aquele animal viver. No entanto, primeiro acho que o teu argumento é muito bem gizado, ou seja, dizer que, atenção, que nós também não estamos a falar só do animal, mas de todos os efeitos que aquele espetáculo provoca, e portanto é argumentável dizer que aquele espetáculo provoca uma série de efeitos nefastos. Já assisti a touradas quando era miúdo e não, embora nunca tenha achado grande graça, não acho que ele provocasse propriamente uma... Prazer sádico. Sim, prazer sádico nas pessoas. Pelo contrário, é mais... Mas leva a indiferença
Pedro Galvão
e a insensibilização. Justamente,
José Maria Pimentel
é isso. É muito mais indiferença do que prazer sádico. E acho esse um argumento muito interessante. E sobretudo, outra peça que me parece ser útil para resolver a equação é que as coisas também não são estanques, ou seja, tu podes até sentir que aquilo é um neto positivo para o ator, ou seja, para o ator compensa viver, mas isso não te impede de agir sobre aquilo na mesma para aumentar esse neto positivo, ou seja, não deixas de ter uma obrigação moral nesse sentido. E, por exemplo, uma coisa que eu acho, isto faz muita confusão aos defensores das touradas, mas eu acho um bom exemplo de problemas da nossa sociedade civil ainda não se ter chegado a um compromisso. Porque, claramente, há espaço aqui para um compromisso, Ou seja, tu tens razões parciais de ambos os lados. E nós não falamos aqui de uma série de coisas que é o facto de, independentemente dessa boa vida que os touros terão, depois mesmo, antes da tourada, no imediatamente antes e no pós tourada são tratados de forma repugnante ou pelo menos alegadamente so. Portanto, há claramente razão aí. Há claramente também esse argumento, o argumento de nós não falarmos de ser uma instituição cultural, portanto, obviamente, que isso não é irrelevante o facto de autorada ser uma coisa que interessa às pessoas e uma coisa que tem um papel social. Mas não há casamento nenhum ou não há compromisso nenhum entre as duas. Há uma oposição mas tu nunca tiveste um compromisso. Há aquele exemplo que parece um bocado ridículo do Velcro. Os apreciadores de tesouradas, os aficionados mandam só o ar com isso, mas na verdade parece-me fazer todo o sentido. É muito defensável dizer que o principal elemento do espetáculo é o enfiar da farpa no lombo do touro. Podia ser o caso, mas não é. Por exemplo, nas lutas de galos, de facto a luta faz parte. Será difícil tu encontrar as lutas de galos em que não haja ferimentos. É uma condição a priori, uma condição essencial daquele jogo. No caso da tourada, parece menos. E de resto, tens exemplos de
Pedro Galvão
touradas nos Estados Unidos que funcionam assim. Quando é o recusarem esse mínimo de sal da guarda do bem-estar animal, que seria o velcro, parece que a intenção é mesmo infligir sofrimentos. Parece então que o sofrimento do touro é um ingrediente essencial do espetáculo e assim parece que afinal é um espetáculo sádico. Não percebo como é que há essa oposição ao velcro. Talvez seja o receio é nós agora cedemos nisto. Justamente sim, sim. Parece-me que é por aí, sim. Depois temos que ceder em outras coisas e eles acabam por vencer e a doutorada acaba. É como aqueles que nos Estados Unidos defendem os direitos de posse de armas.
José Maria Pimentel
Eles julgam que se cederem agora um bocadinho... É isso mesmo. ...Depois
Pedro Galvão
vão ter que ceder mais e mais e depois praticamente não terão o direito
José Maria Pimentel
de possuir armas. Há um exemplo perfeito para isto, porque eu lembro a certa altura a apanhar uma política americana do Partido Republicano, não tenho a certeza, julgo que ela era senadora, mas num parlamento estadual, e não no congresso, ela era republicana, portanto, do lado para o armas. E ela tinha uma proposta que era perfeitamente razoável. Ela era a favor do direito de exportação de armas, a proposta dela não ia minimamente contra isso. Já não me lembro exatamente qual era a proposta, mas ou era simplesmente limitar, sei lá, crianças ou limitar o tipo de arma. Era uma destas coisas perfeitamente razoáveis. Ou seja, não afetava minimamente aquele direito. E, no entanto, ela não conseguiu que os colegas aprovassem aquilo e ela percebeu que eles não queriam aprovar exatamente por aquilo que tu aludias agora. É a política no seu pior. Eles achavam que... E provavelmente este exemplo é absurdo porque é muito extremo, mas é verdade que isso existe. Nem política existe. Eles achavam que ao estar a ceder um bocadinho estariam a ceder tudo. E no caso das touradas, provavelmente é por aí, parece-me. Porque... E não só. É uma explicação bem plausível. Sim. Tem que ver também com a estética. Ou seja, o sofrimento do touro não é essencial, mas tem um papel. Porque o touro vai ficando mais cansado e mais debilitado ao longo da tourada, também não sou completamente insensível ao facto de o velcro não ser esteticamente particularmente interessante, mas apesar de tudo não parece que nada disso fosse impeditivo, são limitações mas não são impedimentos a que haja um acordo. Há pouco
Pedro Galvão
tinha pensado noutro contraste interessante entre a perspectiva do bem-estar animal e a perspectiva dos direitos dos animais. Os parques zoológicos. Por exemplo, quem defende a perspectiva dos direitos dos animais dirá que parques zoológicos são para fechar, são para abolir. Porque o parque zoológico é indiretamente injusto. Porque envolve uma violação sistemática do direito à liberdade dos animais. Esta é a posição típica dos que defendem os direitos dos animais. Quem defende a perspectiva do bem-estar animal, tira os parques zoológicos, tem de salvaguardar o bem-estar dos animais. Não podemos ter lá felinos enjaulados ou chimpanzés também enjaulados, como eu cheguei a ver aqui em Lisboa e fiquei bem chocado com isso. Os animais têm que
José Maria Pimentel
ter condições para viverem bem, mas se viverem lá bem e felizes, qual é o mal? Sim, claro. No fundo tem que ver com a antropofirmização dos animais, não é? Mas também é difícil decidir onde é que paras, não é? Parece-me... Usar um conceito como liberdade no caso dos animais parece-me... Também parece difícil de justificar. Sim, eu não percebo, mas
Pedro Galvão
há de facto, não estou a inventar, o grande defensor da perspectiva dos direitos dos animais, que é o filósofo Tom Hagen, entre os direitos dos animais, inclui o direito à liberdade. Mas eu não percebo de onde é que vem este direito. É um direito que me parece só fazer sentido atribuir a agentes capazes de agir livremente, capazes de definir
José Maria Pimentel
cursos alternativos para a sua vida. É verdade. Também me parece que a postura dele é injustificavelmente extrema, mas... Há mais extremo. Há? Como é que é? Então temos o Gary
Pedro Galvão
Francione que diz que todos os seres sencientes têm esses direitos.
José Maria Pimentel
Ah, mas tem... Não é só... Não é só, pelo
Pedro Galvão
menos, os mamíferos e as aves. Todos os seres sencientes. Por exemplo, se uma mosca tiver senciência, o que é provável é que ela tenha um direito à vida tão forte como o nosso.
José Maria Pimentel
Deve ser que metemos aqui uma mosca
Pedro Galvão
na sala. Que eu bateria sem nenhum problema.
José Maria Pimentel
Mas aí tem a ver com o leque. O que eu queria dizer é que neste contínuo, como acontece muitas vezes nestes problemas éticos, tu tens um contínuo, não tens uma coisa discreta. E, portanto, tu entre dizeres é um autómato, Ou dizeres tem liberdade e, portanto, faz escolhas conscientes há uma gradação, não é? E o ponto onde nós decidimos situar-nos nessa gradação é que é o grande desafio, não é? E tu dizeres... Os cães, por exemplo. Vou usar o exemplo de há pouco. Os cães têm consciência nesse sentido de tomar decisões? Não me parece. Mas, por exemplo, uma coisa que nós fazemos...
Pedro Galvão
Não, se tem consciência aí, acho que há uma coisa, uma decisão útil a fazer. Os animais, como cães e gatos, têm desejos, preferências e fazem escolhas. Simplesmente são incapazes de refletir sobre as suas escolhas. Exatamente, sim. Não tem autoconsciência racional. É isso, que é no fundo ter estados mentais de segunda ordem. Ter estados mentais acerca dos nossos estados mentais. Um cão, um gato, pode ter desejos que são estados mentais e até desejos em conflito uns com os outros. Vou fugir ou vou arriscar para tentar comer aquilo. Mas... Não têm desejos acerca dos seus próprios desejos. Por exemplo, o desejo de deixar de fumar. É o desejo... De deixar de desejar fumar. Este tipo de desejo... De segunda ordem... Os animais... Que são inteligentes, como cães e gatos, não têm. Não têm esta capacidade de auto-reflexão,
José Maria Pimentel
racional. Não têm o desejo de vou comer menos ração desta semana.
Pedro Galvão
Não, podem hesitar, vou comer a ração ou vou comer a outra coisa. Claro, claro. Mas são incapazes de refletir sobre os seus próprios desejos, sobre as suas próprias crenças.
José Maria Pimentel
Esta questão dos direitos dos animais surge-nos em 2019 de uma maneira curiosa, porque por um lado nós, enquanto sociedade, temos vários aspectos em que somos brutalmente insensíveis aos direitos dos animais e o mais conspicuo de todos é a questão da produção intensiva e, depois, ao mesmo tempo, temos desenvolvido, até pela urbanização crescente, uma mitificação dos estados mentais de alguns animais, nomeadamente os animais domésticos, francamente exagerada. Por exemplo, no caso dos cães, as pessoas projetam nos cães estados mentais completamente irrealistas. E eu tenho dois cães, dou a duas cadelas, gosto muito delas e, no entanto, é evidente. Por exemplo, uma coisa que eu acho engraçado de ver é quando às vezes vou passear e às vezes leve só uma. E uma coisa engraçada de analisar é a completa amoralidade que existe entre elas, ou seja, aquela que vai e não olha para trás, como um ser humano faria, dizer, desculpa lá, hoje vou e eu não... Eles são completamente indiferentes a isso, o que é normal, não é? Então, estou a ver que os gatos estão um bocadinho superiores. É? Eu posso estar a ser injusto também, eles se calhar fazem um sinal que eu não
Pedro Galvão
vejo. Tem lá duas gatas que não se simpatizam nada uma com a outra. Mas, quando chegou a Cadela e a Cadela foi vista por uma das gatas, ou pelos gatos em geral, como uma ameaça quando ela julgava que a outra gata estava a ser ameaçada, vinha, era a primeira a vir em seu socorro. Ah, curioso. Sim. Portanto, havia ali um espírito de colónia nos gatos.
José Maria Pimentel
Um espírito protomoral que veio ao de cima quando surgiu aquela ameaça imaginária que era a cadela. Curioso. Essa protomoralidade imagino que os cães também tenham, vindo dos lobos, não é? Curioso isso. Mas aí está, ligado a uma cooperação ativa, não é? Agora, uma visão do certo e do errado no sentido de... Quer dizer, naquele caso, há uma escolha arbitrária em que uma delas foi privilegiada. Um ser humano sentiria que tinha tido sorte e, portanto, tinha o dever de reconhecer, de fazer o acknowledgement daquele tratamento da discriminação positiva que tinha tido em relação ao outro ser humano que ficava para trás. Em relação aos quais não existia. Mas pronto, isto é só um exemplo interessante, mas nós vemos, e eu embora gosto muito de cães e irritam-me bastante isso, vemos a enorme antropoformização que existe em relação aos animais domésticos hoje em dia. Há pessoas que... Esse comentário, então, tira-me do sério. Aquelas pessoas que dizem que preferem cães a pessoas. Pois,
Pedro Galvão
não é uma coisa assim... Mas o que é interessante nisto é que... Muito inteligente para se dizer e acho que acaba por ser nociva para a defesa dos animais. Sim, justamente. Porque as pessoas que vêm com esse tipo de discurso para o público acabam por criar a ideia de que defender os animais tem como outra face da moeda a misantropia, que é a cerbada. E isso acaba por repelir muitas pessoas da defesa dos animais. Verdade, exatamente. Não é nada inteligente as pessoas que têm esse discurso no fundo estão só a querer exibir-se. Sim, sim, sim. E
José Maria Pimentel
é uma fação que de facto tem esse lado misantrópico, mas é curioso esses dois lados conviverem, Por isso é que esse tipo de conversas são interessantes. Mas é preciso ter dois cuidados, que é, um, evitar
Pedro Galvão
a antropomorfização. Sim. O outro, também, é o extremo oposto, é não achar que somos assim tão especiais.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. O
Pedro Galvão
que nos distingue é tal coisa, mas depois vamos a ver melhor e alguns animais também têm essa coisa. E sobretudo não achar que o que nos distingue é binário. Ou
José Maria Pimentel
seja, eu posso achar e acho que o cérebro humano não é diretamente comparável mesmo no caso dos chimpanzés, mas está num contínuo gradativo, não é? Claramente, nós vimos dali. Nós não vimos dos chimpanzés, mas temos um ano passado comum, não é? Sim, mas se
Pedro Galvão
terem 98 ou 99% do nosso código genético é capaz de dizer alguma coisa A respeito da semelhança entre as nossas mentes. Sim, sim. Então,
José Maria Pimentel
só para terminar este tema e passarmos ao livro, que já vai longo, há um ponto que tu terminas e que fica... Não digo que fique em aberto, mas que tu resolve-o de uma maneira que não é... É extra-filosófica, digamos assim. Que é a questão de como é que nós resolvemos... No fundo tem que ver com a questão dos direitos dos animais. Como é que nós podemos dizer que os animais não têm direitos e ao mesmo tempo dizer que um recém-nascido ou um deficiente, ou mesmo, nós não falámos do aborto, mas mesmo o feto para lá daquilo que nós consideremos ser o limiar do aborto, têm direitos. Porque tu resolves isso de uma maneira que não é filosófica, tu resolves isso dizendo, no fundo é quase antropocêntrico em ser assim, tem que ser assim porque recém-nascidos, deficientes ou pessoas com demência, por exemplo, são importantes para os outros seres humanos e, portanto, têm direitos por serem importantes para os outros seres humanos. Mas filosoficamente é um bocadinho fraco, não é? Eu, nesse momento, não podia entrar em
Pedro Galvão
discussões muito complicadas, até porque o espaço era limitado. E eu depois acabei por escrever um artigo numa revista académica sobre o assunto. E um delito com essa questão, adotando o ponto de vista do cliterismo das regras. Certo, certo. E vamos lá, do ponto de vista do clitorista das regras, eu não vi fundamento para estender direitos morais aos animais. Justifica-se direitos morais, como direitos de propriedade, direito à vida, e isso assim, para os agentes poderem formar expectativas definidas em relação ao comportamento dos outros, para poderem cooperar e para terem incentivos para desenvolver bons planos de vida. Os direitos servem essencialmente para isto. E sendo este o fundamento dos direitos, não faz sentido estendê-los aos animais. Mas, porquê? Porque não é reconhecendo os direitos aos animais que se incentiva a cooperação entre vários agentes racionais, porque eles não são propriamente racionais. Do ponto de vista utilitarista, não há razões para estender os direitos aos animais. Mas há razões para estender estes direitos a seres humanos que ainda não são racionais. Porquê? Aqui temos que olhar para a natureza humana. A preocupação com as crianças acabadas de nascer e outras mais crescidas, com aqueles membros da nossa família que ficaram mentalmente incapacitados, a preocupação com esses seres humanos, a preocupação da mais intensa que pode haver faz parte da natureza humana, enquanto que a preocupação com os animais não faz parte da natureza humana. É uma coisa culturalmente muito variável. Seu argumento relativista. Aqui não é uma posição moral, é uma posição factual. Em todas as sociedades, a preocupação com as crianças e o seu bem-estar. O que é que isso significa? Que um código moral para agentes humanos, tal como eles são, que não desse direitos morais às crianças, que ainda não são racionais, e que portanto permitisse, sei lá, que o Estado fosse lá a casa tirar-me o filho de dois anos para usar-lo em experiências médicas a troco de uma indenização, como se fosse uma expropriação de um terreno.
José Maria Pimentel
Sim, ou de um animal.
Pedro Galvão
Quero dizer, isto seria psicologicamente insustentável. Seria impossível
Pedro Galvão
as pessoas viverem
Pedro Galvão
com um código moral que não estendesse estes direitos básicos, como o direito à vida, mesmo aqueles seres humanos que não são racionais. Seria um código moral psicologicamente insustentável. Mas há aí uma razão, ou seja, há uma utilidade bastante forte em estender os direitos morais aos bebés, às crianças de dois, três anos, que ainda não são agentes propriamente tidos. Agentes morais propriamente tidos. Sim, sim. E é uma questão de... Tive que simplificar muito esta discussão, que é uma discussão delicada e complexa, e eu a reservei para um artigo. Sim.
José Maria Pimentel
Eu depois partilho o artigo num episódio. Eu acho, parece-me que a resposta, que esse modelo que tu propôs e que eu não conhecia do utilitarismo das regras, permite justamente resolver isso. No caso dos bebés, para parecer-me é bastante fácil, porque são seres humanos futuros. Por exemplo, no caso de pessoas com demências, é um caso um bocadinho mais complicado nesse sentido, são pessoas que no fundo têm o futuro comprometido desse ponto de vista da consciência, portanto torna-se mais difícil distinguir desde logo de um 5 para 0 alguma coisa do género, mas, desse ponto de vista do utilitarismo das regras, é fácil de quadrar esse círculo, porque no fundo o que tu dizes é há um princípio de direito de todos os seres humanos à vida que é o princípio que maximiza a utilidade, em termos gerais. E portanto tu aplica-lo independentemente de em casos particulares poder ir lá a um déspota iluminado e dizer não, não, mas este seu tio que está meio demente na verdade há bem menos direito nesta experiência e portanto nós vamos levá-lo. Embora naquele caso pudesse ser argumentável que aquilo aumentava a utilidade geral, tu restringes isso ao estabelecer um princípio geral, que não vai ter que ser aplicado em todos os casos. Isso é interessante. Em termos mais intuitivos, para saber que
Pedro Galvão
o utilitarismo das regras não é uma ideia estranha, fabricada por filósofos, em termos mais intuitivos podemos dizer que o utilitarista das regras entende que a questão crucial, quando se quer entender um problema moral, é uma questão que até colocamos muito frequentemente. Então e se toda a gente sentisse à vontade para agir assim? Exato. Então e se toda a gente sentisse à vontade para educar o familiar lá à casa que não é racional? Quais é que seriam as consequências
José Maria Pimentel
disso? É um consequencialismo de segunda ordem, de certa forma. Sim,
Pedro Galvão
aplica-se só e indiretamente a atos particulares. Aplica-se diretamente a códigos morais, à luz do padrão utilitarista que definimos o código moral correto, mas os atos particulares têm de ser ajuizados em termos de acordo com esse código moral. E a questão, tudo isto pode parecer assim muito estranho, mas não, no fundo isto corresponde a uma articulação filosófica de uma ideia muito comum, que é esta, para sabermos o que é que é certo ou errado fazer, uma questão relevante, é então, e se toda a gente sentisse à vontade, livre para fazer o mesmo. Então, e se toda a gente sentisse à vontade para roubar, sem nenhuma inibição, as consequências seriam terríveis. Isso dá-nos uma razão bem forte para concluirmos que, à partida, roubar é errado. E isso fala para outros tipos de atos.
José Maria Pimentel
Sim, de acordo. Olha, desculpa lá que Já vai
Pedro Galvão
tarde, mas foi interessante. Terminamos com a tua sugestão do livro. Não sei qual vai ser, estou curioso. Não é muito surpreendente e não estou assim certo de que seja feliz, mas estou certo de que o livro é muito bom. Os métodos da ética do Henry Sidgwick não é um filósofo muito conhecido, porque não escreveu assim num estilo muito popular, não é como John Stuart Mill, que além de grande filósofo, foi um intelectual público. Sidgwick escreveu livros bastante volumosos, num estilo que eu acho admirável, mas que não tem aquela cor da prosa de John Stuart Mill. Henry Sidgwick foi o último dos grandes utilitaristas clássicos e nesta obra, Os Métodos da Ética, ele tinha um efeitivo semelhante ao meu. Era uma pessoa muito assertiva, Também uma filosofia muito assertiva.
José Maria Pimentel
Contribui para ele ficar famoso. Sim, exato, claro, claro. Se ele... Se tiver uma posição com mais cambiantes e tal.
Pedro Galvão
Se tiver muitas dúvidas. Mas eu acho que isso é que é admirável nele. O livro é uma defesa do utilitarismo, mas não é só isso de forma alguma. O que ele pretende fazer ali é examinar três métodos da ética que ele julga corresponderem às três formas reconhecidas no senso comum de lidar com problemas práticos. Que é o método que ele chama egoísta, o método literista e o método... Fala adiantológico, ele não usa este termo, mas é o que ele tem em mente.
José Maria Pimentel
O primeiro é o método sociopata, é isso? O egoísta, não, vamos lá ver.
Pedro Galvão
O egoísmo tem um grande peso na tradição ocidental. As religiões têm éticas egoístas. A pessoa não deve roubar, não deve matar e não sei o quê. Porquê? Porque é isso que Deus manda. Deus manda não fazer essas coisas. Mas porquê é que eu hei de obedecer aos mandamentos de Deus? Porque se obedeceres vais para o céu.
José Maria Pimentel
Ah, certo, certo. Sim, sim.
Pedro Galvão
Uma ideia muito influente da tradição ocidental é que aquilo que é racional fazer é aquilo que em última análise é o melhor para nós próprios.
José Maria Pimentel
Sim, e desse ponto de vista até tem
Pedro Galvão
alguma validade. Sim, e na economia há uma ideia muito influente, o que o agente racional é aquele...
José Maria Pimentel
Mas essa não é, ao contrário do que agora tocaste-me numa corda sensível, isso não é necessariamente o argumento ético, é o argumento de efeito. Sim,
Pedro Galvão
é uma teoria sobre a racionalidade. É
José Maria Pimentel
uma teoria sobre o efeito, não sobre uma
Pedro Galvão
coisa que está certa à priorística, que seja necessariamente boa. Pois. Mas, Sérgio, quem então distingue estes métodos da ética é o egoísta, o utilitarista e o deontológico. Ele clarifica muito bem estes métodos, expõe as suas dificuldades, tenta mostrar como é que se relacionam uns com os outros, tenta harmonizá-los e não consegue. Ele acaba por considerar a sua obra um fracasso, o que não foi muito bom assim para divulgá-la. Mas o livro é a melhor obra de ética filosófica do século XIX. Tem uma prosa cristalina. Quem queira saber como escrever claramente, encontrará ali um ótimo modelo. Agora, é um livro exigente. É muito claro, mas muito exigente. Pois, imagino que sim. Está publicado na Gulbenkian. Foi o que eu traduzi há uns anos. Ah, sim? Ah, curioso. Foi uma maratona de tradução, mas que fiz com muito gosto, para conseguir que no mundo da língua portuguesa se
José Maria Pimentel
começasse a falar um bocadinho de Sidwick. Boa, engraçado, curioso isso. Deve ter sido uma empresa difícil. Sim, também tive condições para realizar. Mas é curioso isso. Posso complementar essa tua recomendação, embora não estou a complementá-la com o conhecimento que causa, mas tenho também muita curiosidade de ler o Reasons and Persons do Derek Parfitt.
Pedro Galvão
Também me ocorreu, Esse tem a desvantagem de não estar disponível em língua portuguesa. Ah não? Curioso. Na verdade, está só disponível numa edição inglesa de má qualidade. Um paperback... A capa
José Maria Pimentel
é péssima. A capa não é grande coisa, é verdade. É
Pedro Galvão
verdade, mas não percebo como é que um grande clássico... E esse é muito mais divulgado. Muito mais divulgado. Já tem uns anos, é de 1984 e continua a estar só disponível num paperback de qualidade terrível. E O estilo é o Sidwick do século XX. A maneira de filosofar é aquela. Também há, ao mesmo tempo, um autor muitíssimo claro e difícil. Difícil porque muito denso. Ele pega num assunto e examina esse assunto de não sei quantos ângulos. Parece que não deixa uma pedra por levantar. E também pouco assertivo. Não é, Eu vou mostrar que esta perspectiva aqui é correta e que as outras todas são falsas. Vou arrasar as outras todas. Não é nada
José Maria Pimentel
disso. É muito mais dizer, nas outras todas havia isto que não
Pedro Galvão
estavam a considerar, não é? Sim, e no caso de Parfit, sobretudo, um grande mérito dele foi ter descoberto problemas nos quais ninguém tinha pensado e que são fascinantes. Há bocado tenha aflorado um, talvez possamos concluir aí, que é o problema da não-identidade, que veio um bocadinho à propósito da tourada. Vamos imaginar uma situação, vou dar mesmo o exemplo do próprio Parfit. Uma mulher muito jovem está grávida e se tiver o filho agora, o filho vai ter um começo de vida muito difícil. Depois Até viverá bem, mas os seus primeiros anos de vida serão miseráveis. Ou quase. Mas ela pode optar por abortar, digamos, e ter um filho mais tarde. E se tiver o filho um pouco mais tarde, esse filho terá uma vida muito melhor. Até podemos perguntar a questão do aborto imaginar que ela pode escolher conceber
José Maria Pimentel
agora
Pedro Galvão
ou conceber mais tarde. O que é que é moralmente correto? Intuitivamente, esta é uma intuição que Parfit partilha, intuitivamente o que é correto, é ela ter o filho mais tarde. Mas vamos imaginar que ela tem um filho agora. E o filho, de facto, tem uma vida muito penosa nos primeiros anos, depois recompõe-se, mas a vida dos primeiros anos realmente é terrível. Por exemplo, temos agora a perguntar, o que é que há de errado no que ela fez? Aquilo que ela fez foi mau para quem? Foi mau para o filho que nasceu? Bom, se ela não tivesse... Aqui é que entra a não-identidade. Se ela não tivesse tido o filho naquela ocasião, o que acontece é que esses filhos teriam tido uma vida melhor. Não, esses filhos nunca teriam chegado a existir. A criança que teria existido, concebida a partir de outro esperma de sóido, outro ólvo, seria outra pessoa. Portanto,
José Maria Pimentel
o problema da não-identidade é tentar explicar o que é que há de errado em ações como esta. Essa por acaso é muito bem gizada, é verdade. Esse exemplo, quando apanhei isso achei o terceiro interessante.
Pedro Galvão
E há muitas aplicações, sei lá, às vezes vejo ainda hoje ou ontem, dizer, os países como Portugal, que tiveram colónias com escravos, agora têm de indenizar... Exato, exatamente. ...Os descendentes desses escravos. E eu penso assim, se não tivesse havido escravatura, a história teria corrido de uma maneira muito diferente e hoje existiriam outras pessoas. Nenhum de nós existiria. Nenhum de nós existiria. E aquelas pessoas que, pelos vistos, querem ser indemnizadas, também não existiriam. Aqueles que foram escravizados, coitados, já não podem ser indenizados. Sim, esses seriam... Esses mereceriam indenização. E os outros estão-se a queixar de que esses nem sequer existiriam se não tivesse a vida de escravatura. Tal como nós também não existiríamos se não tivesse a vida de escravatura, peste negra, essas coisas
José Maria Pimentel
horrorosas todas. Qualquer...
Pedro Galvão
Sim. Noutro contexto em que este problema também tem aplicação. Os animais. Eu acho que é desejável deixar-se de criar certas raças de animais puras que nascem com problemas de saúde ou apuramente certas raças como aqueles... Sim, nos cães, por exemplo. Nos cães. Os bulldogs, por exemplo. Exato. Eu acho que é uma ótima ideia deixar... Não é matar os que já existem. Isso se acha horroroso. Mas era não criar animais. Depois destes morrerem já não havia mais. Porque
José Maria Pimentel
isso é a seleção artificial, não é a seleção
Pedro Galvão
natural. Sim, mas podemos pensar. Mas qual é que seria o mal de criar mais animais daqueles? Aqueles animais, apesar de terem uns problemas de saúde, têm vidas regularmente boas. E eles não existiriam se nós não decidíssemos criá-los com aquelas características. Qual é o mal de continuar a criar esses animais? Isso é mal para quem? Não é mal para eles, porque eles nem sequer isso teriam se decidíssemos deixar de os criar. É outro problema. É claro que para o utilitarista isto não há aqui grande problema, porque ele acha que se deve promover o maior bem-estar. Portanto, mais animais, mais bem-estar. Só que depois o utilitarismo, aqui parfeito concorda com o utilitarista, mas depois quando chega à conclusão repugnante, discorda do utilitarista. E anda à procura de uma coisa, de uma teoria qualquer, que acaba por não encontrar. Mas o seu livro é famoso, sobretudo por... Imerecidamente famoso, por ter levantado estas questões com um impacto tremendo na reflexão filosófica que ninguém tinha ainda levantado seriamente, ninguém ainda tinha percebido como é que são questões importantes. Parece-me,
José Maria Pimentel
como sempre acontece nestas coisas, são terrenos que implicitamente se achava que estavam completamente explorados ou praticamente explorados, porque já não seria normal nesta fase do campeonato serem... Serem... Serem descobertos problemas novos. Sídwik
Pedro Galvão
nos métodos da ética ainda tem lá, assim, umas duas páginas sobre ética populacional. Já, Sim, a tocar o adleve no assunto, mas depois Parfit, que se inspirou sobretudo em Sidwick e Kant, levou a estas questões sobre não-identidade e sobre ética populacional, mostrou como elas são questões fascinantes e complexas. Que rir. Boa. Pedro, acabamos aqui. Sim, muito obrigado pela conversa, ainda bem que não é assim uma entrevista, que não me teria dado muito bem com esse formato, mas foi uma conversa muito agradável e interessante.
José Maria Pimentel
Gostaram deste episódio? Que parte da conversa vos ficou mais no ouvido? Se puderem, partilhem comigo essa impressão por e-mail para o 45graus.com para que eu possa selecionar esse certo para o 45 Graus Express, o podcast onde publico versões reduzidas destas conversas. Obrigado! O 45 Graus é um projeto tornado possível em grande medida pela comunidade de mecenas que o apoia. Mecenas como Gustavo Pimenta, Eduardo Correia de Matos, João Baltazar, Salvador Cunha, Duarte Dória, Tiago Leite, Joana Faria Alves, João Manzarra, Mafalda Lopes da Costa, entre outros cujos nomes encontram na descrição deste episódio. Até à próxima.