#72 Miguel Farias - A Ciência da Meditação

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José Maria Pimentel
Olá, o meu nome é José Maria Pimentel e este é o 45°. Esta semana falamos de meditação, para desenjoar um bocadinho de política, que foi o tema dos últimos episódios. A propósito de política, se vos interessar, publiquei um artigo no Público sobre a entrada do Iniciativo Liberal no Parlamento e aquilo que me parece dever ser o papel de um partido liberal em Portugal, uma reflexão que foi pelo menos parcialmente inspirada nas últimas conversas que tive no podcast. Deixo o link na descrição do episódio. Voltando ao episódio de hoje, o convidado é Miguel Farias, psicólogo experimental, doutorado pela Universidade de Oxford e atualmente professor na Universidade de Coventry, também no país do Brexit. A investigação do convidado incide sobretudo na área da psicologia da crença e da espiritualidade, e foi daí que resultou o livro de que é co-autor e que serviu de mote à conversa. O livro chama-se The Buddha Pill, ou no título português, Como a Meditação Pode, ou Não, Mudar a Sua Vida, e é uma análise aprofundada da ciência por trás da meditação com uma abordagem detalhada e que vai, de certa forma, contra a euforia que existe atualmente em relação a esta técnica. O livro é uma viagem pelas experiências do Miguel e da co-autora e também pela investigação científica existente e aquilo que ela permite concluir em relação aos efeitos da meditação, seja os benefícios reais, os benefícios que parecem francamente exagerados face àquilo de que falam os promotores da meditação e mesmo ainda os perigos que esta prática pode trazer a quem a pratica. A conversa foi muito livre e por isso andamos cá e lá entre vários temas. Os efeitos da meditação, claro, mas também o enquadramento histórico, nas tradições espirituais hindus e budistas, a espiritualidade no geral e o que isso significa em relação ao funcionamento do nosso cérebro e até a comparação entre a meditação e outras abordagens, como a psicoterapia ou mesmo simples técnicas de respiração que alcançam em muitos casos resultados comparáveis dependendo daquilo de que estamos a falar. Antes de passarmos à conversa, vale a pena explicar rapidamente o que é isto da meditação. Tem sido um tema muito falado nos últimos anos. Hoje em dia é quase uma moda, por isso é provável que já tenham apanhado alguma coisa, mas convém deixar aqui uma explicação um bocadinho mais detalhada porque na conversa acabamos por não fazer essa introdução. A lógica da meditação é basicamente usar uma técnica específica de concentração para treinar a nossa atenção e aumentar a nossa consciência e dessa forma atingir, ou pelo menos essa é a ideia, um determinado estado mental diferente do nosso estado normal. E isto é a única coisa em comum aos vários tipos de meditação, porque quer a técnica específica, quer o estado que se pretende atingir, variam muito, como vão perceber durante a conversa. A meditação é praticada desde a Antiguidade, e um pouco por todo o mundo, até recentemente, sobretudo num contexto religioso e normalmente enquanto parte do caminho de desenvolvimento espiritual da pessoa. A meditação de que falamos tem, claro, origem oriental e começou a chegar ao Ocidente sobretudo a partir do século XIX. Já no século XX tivemos a entrada em força da meditação transcendental e atualmente, nas últimas décadas, foi a vez do chamado mindfulness. Aliás, se ouviram falar de meditação nos últimos anos, foi quase de certeza desta técnica. Este mindfulness tem origem no budismo, mas na maior parte das aplicações atuais usa-se apenas a técnica de concentração sem a interpretação espiritual budista associada. Nos últimos anos, esta prática tem vindo a ganhar adeptos muito para além da contracultura new age em que surgiu originalmente e aliás hoje em dia é cada vez mais aplicada em contextos muito variados que vão desde os cuidados de saúde ao ensino, passando mesmo pelas empresas. Para esta entrada do mindfulness no mainstream, tem contribuído muito o facto de uma investigação científica para ser validar cada vez mais vários dos efeitos benéficos da meditação e que vão da redução da ansiedade até ao bem-estar físico, passando pela simples, ou não tão simples, autoexploração da nossa consciência. O livro do convidado, como já perceberam, é uma espécie de água na fervura, nesta onda de entusiasmo. Como digo, algo úrgido Durante a conversa, eu próprio já experimentei esta meditação mindfulness, mas ainda de uma forma muito limitada, que não me permitiu propriamente tirar grandes conclusões. A quantidade de gente em cuja opinião confio noutros temas, e que diz que a meditação melhorou muito a sua vida, continua a fazer-me ter vontade de a explorar melhor. Mas confesso que a perspectiva trazida pelo Miguel e a análise da investigação que ele faz me deixou no mínimo com uma visão mais matizada em relação ao tempo. Ora ouçam. Miguel, muito bem vindo ao podcast. Olá Zé Maria. Vamos falar sobre meditação e uma série de coisas. Eu acho que o mais fácil é começar por te pedir que fazes um bocadinho da tua investigação. Então,
Miguel Farias
deixa-me começar por dizer a minha área de entrada na meditação. A minha área de entrada na meditação enquanto académico, investigador, de psicologia experimental, que é aquilo que eu faço há quase 20 anos, foi primeiro em relação ao meu tema de doutoramento. Eu vou para a Inglaterra porque não havia cá ninguém interessado em fazer investigação sobre estes temas de psicologia da espiritualidade e da meditação. Na altura eu não estava interessado na meditação em si, eu estava interessado na meditação apenas como uma série de práticas espirituais ou ditas espirituais em que as pessoas utilizam com a ideia de que isto as vai alterar enquanto seres humanos, De forma geral, as vai tornar melhores moralmente, mais despertas, mais acordadas, mais evoluídas espiritualmente. Há quem utilize esse tipo de terminologia. O
José Maria Pimentel
awakening, não é? Exato,
Miguel Farias
exato. Na altura, utilizava-se ainda a designação de New Age, ou nova era, essa psicologia, todo esse universo, essa constelação. Quer dizer, em praticamente qualquer coisa cabe, desde a astrologia, à meditação, ao reiki, à respiração holotrópica, em que cabe muita muita coisa. O que é interessante é que muitas das coisas desse universo que começa por volta dos anos 60 e depois têm antecedentes que são mais anteriores, provavelmente remontam ao final do século XIX com a sociedade teosófica, que interessaram a muitas pessoas, muitas intelectuais como a Fernanda Pessoa. Mas muitos desses tópicos dos anos 60 eram de contracultura, alternativos, tornaram-se, como a meditação se tornou hoje, algo aceite dentro da cultura mainstream ocidental. Portanto, na altura, a meditação era uma das técnicas que essas pessoas em que eu estava interessado em estudar utilizavam para se conhecerem melhor ou para alterarem o seu estado normal de consciência. Depois, o segundo momento Aconteceu passados alguns anos disso, 2011, creio, em que estava num encontro organizado por uma escritora inglesa em Oxford, onde eu fui viver desde 2000, e ela tinha convidado alguém que tinha estado ligado... Houve vários monges católicos que foram viver para andia desde os anos 50, sinto, o mais conhecido é o Beed Griffith, mas houve outros que foram para andia e criaram uma espécie de espiritualidade cristã, com uma sensibilidade indiana. E, nesse encontro, conheci alguém que estava à frente de uma organização não governamental em que levavam yoga e meditação a prisões, cerca de 80% das prisões do Reino Unido. E na altura era uma senhora, a presidente, e disse-me que tinha um arquivo com mais de 10 mil cartas de pessoas que já tinham feito yoga e meditação através das aulas que eles davam e tinham esse arquivo de cartas a falar dos efeitos, dos benefícios que essa prática lhes tinha trazido, mas que até agora nunca ninguém tinha feito um estudo e ela perguntou se eu estaria interessado em organizar um estudo desse género, feito segundo o rigor da ciência médica psicológica, em que vemos os efeitos disso ao longo de não sei quantas semanas e contrastamos isso com um grupo de controle. E foi essa a entrada para este universo de ciência e de meditação. Portanto, nós fizemos esse estudo, isso levou dois, três anos a fazer, Na altura tivemos, o primeiro financiamento que tivemos foi da Fundação Bial, do Porto, e publicámos isso e tinha na altura uma pessoa, uma assistente de investigação que era muito boa, a Catherine Vickle, que entretanto se tornou psicóloga clínica com quem vinha escrever este livro. E foi esse o tema de entrada. Depois, desde aí, fizemos mais algumas coisas de meditação. Voltámos a ir a prisões, desta vez para estudar uma população ainda mais difícil, de psicopatas que cometeram crimes horríveis. Fizemos outros estudos a ver com os efeitos em termos de dispersão genética da meditação. Estamos a acabar numa meta-análise em que fazemos um estudo, mais de 50 outros estudos, a ver de que forma é que as características base das pessoas, por exemplo, tu és extrovertido, será que o facto de ser extrovertido versus introvertido tem uma diferença fundamental na forma como respondes à meditação? Sim,
José Maria Pimentel
aliás, esse é um dos pontos interessantes que vocês levantam, é o facto de haver diferenças entre os indivíduos da maneira como eles reagem à meditação, o que faz todo sentido, não é?
Miguel Farias
Exatamente, mas é curioso dizer isso, que faz todo o sentido. E é muito impressionante, ao ler a literatura de meditação desde o final dos anos 60, que é quando começa, particularmente com a primeira meditação transcendental e só depois com mindfulness, é impressionante ver como há uma série de coisas de senso comum que não estão presentes nessa literatura. O que parece estar presente nessa literatura são ideias dessa espiritualidade new age que, entretanto, foi assumida de modo mais implícito ou explícito por cientistas. Isso é algo que eu não estava à espera, é algo extraordinário e duvidou-se também.
José Maria Pimentel
Também terá a ver, quer dizer, você saberá isso melhor do que eu, mas também terá a ver com o facto de haver um lado da psicologia que não está vocacionado para pensar nas diferenças individuais, mas, pelo contrário, para tentar encontrar reações comuns. A psicologia social é toda virada para isso. Diz-te que as pessoas se comportam de uma determinada forma, por exemplo, perante uma figura de autoridade, mas não te diz que há pessoas mais propensas a isso e outras menos.
Miguel Farias
Normalmente não tem. Precisamente, mas a ideia dessas diferenças de indivíduo para indivíduo, tal como diferenças culturais
José Maria Pimentel
que moldam os indivíduos,
Miguel Farias
é uma espécie de assunto recalcado, por utilizar assim uma linguagem bem psicanalítica, dentro da psicologia. No caso da meditação e da ciência da meditação, eu creio que se passa, é que muitos dos meus colegas, sobretudo aqueles que trabalham em áreas de psicologia clínica, que começaram a utilizar a meditação, eles seguem uma metodologia que é originária das ciências médicas, como estudos randomizados com controlo, mas toda a forma deles pensar, como é orientada para isso, assume essa universalidade de efeitos, que é uma coisa que dentro da própria ciência médica de ponta está também a mudar muito rapidamente e estamos a andar muito rapidamente para mesmo uma medicina mais individualizada. Mas é um assunto que incomoda muito os psicólogos, sobretudo agora, porque, como sabes, há poucos anos, foi há dois ou três anos, que saiu um artigo que tenta replicar 100 estudos importantes e a percentagem de sucesso nessa replicação é bastante mais modesta do que poderíamos imaginar. Isso não é surpresa para quem está, tem estado atento à psicologia cultural, porque coisas que nós tomamos como base, por exemplo, ilusões de percepção, que nós pensamos que uma forma de olhar para um objeto e como nós somos enganados pela nossa forma, pela nossa própria percepção, algo que julgávamos ser universal. Quando se tenta replicar isso em outras culturas vê-se que há variações extraordinárias. Aquela
José Maria Pimentel
questão dos orientais olharem mais para o contexto, por exemplo.
Miguel Farias
Por exemplo, sim, o aspecto mais coletivista. Mas conhece aquela ilusão chamada Muller-Lyon? A ilusão Muller-Lyon em que tens duas linhas e ou tens setas para dentro ou setas
José Maria Pimentel
para fora. Nós
Miguel Farias
olhamos para aquilo e sabemos que apesar de terem exatamente o mesmo comprimento,
José Maria Pimentel
Uma parece mais comprida.
Miguel Farias
A variação cultural do efeito dessa ilusão é muito impressionante. Curioso. É muito, muito curioso.
José Maria Pimentel
Não fazia ideia disso.
Miguel Farias
Mas aí está, porque a maior parte destes estudos de psicologia realizam-se numa cultura urbano-ocidental em que todos nós crescemos, por exemplo, imagina se nós crescêssemos numa floresta tropical os teus pais iam te ensinar desde na essência quais são as coisas mais perigosas a que tens de tomar, atenção, se é o tigre, é a serpente venenosa, Connosco o que é? São os carros. A primeira coisa são os carros. E tu cresceres numa floresta tropical ou num ambiente urbano com casas, carros e prédios, faz com que a tua percepção do mundo seja radicalmente diferente. O quão radical não sabemos exatamente porque há muito pouco estudos a comparar. Mas sabemos, por exemplo, mesmo por antropólogos que passaram tipo 20 anos com uma tribo nómade, passado 20 anos de eles estarem a acompanhar essa tribo, ainda não são capazes de ser caçadores como eles são. Não são capazes de seguir o rasto de um animal. Portanto, é um pouco uma aprendizagem de uma gramática que tende a acontecer. Muito cedo.
José Maria Pimentel
Sim, sim. Aliás, em relação à língua, normalmente diz-se isso em relação à língua, por exemplo, em relação ao sotaque. É difícil, praticamente impossível, quando tu aprendes uma língua enquanto adulto, não ficares com o resquício do sotaque da tua língua mãe, ou seja, de ser imperceptível. Há quem consiga fazer mais isso, mas é... Só quem é muito dotado linguisticamente. Sim, sim, sim. É difícil, não é? Isso é praticamente impossível.
Miguel Farias
E, portanto, voltando à meditação. Começamos com essa assunção universal de que é uma ideia que não existe nas tradições que desenvolveram e criaram a meditação. Não existe essa ideia que há uma prática que serve para toda a gente. Cada tradição, quer seja, tanta tradição budista, as várias, há muita heterogênea tradição indiana. Quando falamos em hinduísmo, são uma série de escolas e filosofias diferentes. Até o próprio cristianismo, judaísmo e islã, há uma série de práticas contemplativas e a ideia nunca foi que há uma que vai servir para toda a gente. Isso é uma ideia apenas muito, muito recente, que começou com a meditação transcendental. Sim, que é
José Maria Pimentel
a primeira a surgir no ocidente, não é? Ou pelo menos maciçamente. Exato,
Miguel Farias
maciçamente. Maciçamente e em que surge também a ideia muito clara de que nós vamos estudar isto cientificamente. Nós vamos provar cientificamente que isto tem estes efeitos espetaculares. E é a espetacularidade desses efeitos que tem guiado muito a... E
José Maria Pimentel
que depois aumenta brutalmente as expectativas. Exato. Mas espera lá, se calhar faz sentido dar um ou dois passos atrás para explicar o que é que é a meditação e de onde é que vem. Tu explicas no livro que no fundo há duas vagas de entrada deste fenómeno no Ocidente. Primeiro com a meditação transcendental e agora com aquilo que se chama mindfulness. Não sei exatamente se tem uma tradução portuguesa. Qual é a origem, tanto do ponto de vista do enquadramento espiritual que eles têm nandia, como da entrada deles depois no Ocidente, da maneira como nos chegam aqui.
Miguel Farias
Sim, sim. Deixa-me fazer-te uma pergunta só para começarmos do princípio. Portanto, depois de ter lido estas coisas sobre a meditação, se a tua avó te perguntasse o que é isso de meditação, O que é que te dirias?
José Maria Pimentel
É uma boa pergunta, por acaso. Me diria que é uma técnica que surge dandia, ligada ao hinduísmo e depois ao budismo. Diria primeiro para pensar numa oração, não é? Rezar, não é? Portanto, esse seria um ponto de partida interessante. E diria que se tem vindo a descobrir que, retirando, no fundo lá, a Isis-Ándoa, não é? Tirando o enquadramento espiritual que a meditação tem no contexto de origem, a técnica em si tem alguns benefícios para o nosso bem-estar psicológico. Bem-estar no sentido de lá, para o nosso desenvolvimento psicológico, que podem ser maiores ou menores. O que o teu livro tem de interessante é que cria uma série de matizes sobre isto. Primeiro explica que os benefícios são de categorias diferentes e depois explica que alguns benefícios podem ter o reverso da medalha. Até porque é diferente tu dizeres que uma coisa te relaxa, que à partida tem só um sentido, ou dizeres que uma coisa te ajuda a conheceres-te melhor, que pode ser bom, Mas também pode ter uma série de pedras no caminho, não é? É uma das coisas que... Sim, sim, sim. Para que o livro chame a atenção.
Miguel Farias
Certo. Voltando ao princípio do termo meditação, até há pouco tempo, se falássemos em meditação, estás com o ar meditativo, não é? O que é que quer dizer que estás com o ar meditativo? Estás com o ar muito pensativo, muito concentrado sobre alguma coisa. E temos, temos literatura clássica, temos as meditações de Marco Aurélio, até à cultura popular. Há um clássico da Bossa Nova que é a meditação, em que o João Gilberto canta como é que é quem acreditou no sorriso, no amor e na flor, então chorou, chorou e perdeu a paz. Portanto, é uma reflexão com um toque de sapiência, de sabedoria, não é? Em que a pessoa faz uma reflexão para chegar a uma espécie de patamar
José Maria Pimentel
de verdade ou de sabedoria.
Miguel Farias
Portanto, Dentro da tradição filosófica é esse sentido. Mas também dentro da tradição religiosa a meditação normalmente é chamada mais de contemplação, mas começa também, tanto na tradição ocidental quanto oriental, O termo meditação, por exemplo, no Pali, o Sati, a maior parte do canone budista é escrito em Pali. E o termo que dá origem, por exemplo, à mindfulness, tem a ver com uma expressão que, na verdade, não quer dizer atenção plena ou atenção pura, tem muito mais a ver com reflexão, voltar a pensar cuidadosamente. E nessa altura, em relação ao Budismo, aquilo que se deve estar a repensar é a figura do Buda. Como acontece na tradição cristã.
José Maria Pimentel
Exatamente, nesse sentido é muito próximo de uma oração.
Miguel Farias
Sim, e na vida monástica, portanto, nos monges, tanto cristãos quanto budistas, essas técnicas contemplativas, há variações, tal como o cristianismo tem vários tipos de monasticismo, temos os jesuítas, temos os dominicanos, temos os beneditinos, temos os trapistas. Dentro do budismo também há uma série de denominações, podemos dizer, ou escolas budistas que têm as suas técnicas próprias e têm as suas leituras próprias sobre como é que essas técnicas de meditação devem ser empregues. E então, a meditação surge já não apenas como um exercício de reflexão, embora esse aspecto cognitivo seja crucial nas grandes tradições religiosas, tanto nas ocidentais como orientais. E mesmo esse aspecto de libertação espiritual, ou avanço espiritual, vem muito mais do estudo das escrituras sagradas, quais elas estejam, do que do ir meditar para uma gruta. Isso foi sempre uma minoria das minorias, mesmo dentro
José Maria Pimentel
do... Sim, sim, sim. Mesmo entre os monges budistas, por exemplo, uma grande parte não tinha esse hábito.
Miguel Farias
Sim, sim. E quase sempre, quando acontecia de um modo mais intensivo, essas meditações seguiam também escritos, ditos sagrados. Mas então começa a surgir essas técnicas várias em que o objetivo, e podemos estar aqui a pensar se há uma base comum, mas no meu entender, depois de ter visto isto, estou agora a organizar um livro em que pedi aos grandes estudiadores destas tradições para falarem de como é que isto acontece na China, no taoísmo, no budismo, nos vários hinduísmos, desde o yoga ao tantra. Aquilo que me parece ser o elemento comum psicológico é que vou utilizar uma tal técnica ou prática para modificar ou alterar o meu estado de consciência comum. A forma como eu vejo as coisas no dia a dia. Portanto, provocar uma rotura com esse cotidiano. E é muito interessante pensar quando é que isto surge historicamente, quando é que nós começamos a sentir a necessidade de encontrar um espaço à parte e encontrar estas técnicas que rompam esse cotidiano. Então, a maior parte disto surge num contexto ritual, não em todos, não em todas as culturas. Por exemplo, no daoísmo, parece que muitas destas técnicas começam a ser utilizadas de um modo mais individualista. A pessoa sozinha faz isto. Mas, de forma geral, ela é feita enquanto parte de um ritual acompanhado de outras pessoas. Portanto, enquanto ritual, se calhar, isto acontece há muito tempo. O estar a cantar com um determinado propósito. E agora podes perguntar, mas estar a cantar é uma espécie de meditação? Sim, sim pode-se. Quando é feita com o propósito de modificar esse estado de consciência comum, podemos chamar a isso. E acontece em todas as tradições a utilização de cánticos mais ou menos monótonos e repetitivos. Depois surgem técnicas diferentes, surgem técnicas de visualização, de repetição de palavras únicas, que por exemplo na tradição indiana chamam-se mantras, em que há repetição de certas sílabas entendidas como sagradas, ou pequenas frases. Isso acontece também no budismo. E depois há técnicas de visualização muito complexas e longas no budismo. O detalhe é extraordinário de visualização, não de um Buda, mas de dezenas de Budas, cada um com o seu carisma, com o seu aspecto particular de como ele é representado. Temos disso até depois técnicas mais emotivas e psicofisiológicas, por exemplo, de utilizar a respiração de um determinado modo. Exato. Eu pessoalmente, quando me perguntam quais, por exemplo, há uns tempos atrás pediram para falar sobre meditação para estudantes de medicina. Estão muito estressados, há um grande nível de burnout, o que é que eles podem fazer? Devem fazer esta meditação, devem fazer aquela, sobretudo antes dos exames. Aquilo que eu costumo dizer é que se é uma coisa para ter um efeito o mais imediato possível, técnicas de respiração é a melhor coisa. De longe. É só criar um... Há vários padrões que se criam que têm o efeito fisiológico mais rápido.
José Maria Pimentel
Eu também queria ir aí porque eu acho que um exercício interessante é que tu, no fundo, tentas pegar, nisto é que se dá o nome de meditação e compõe-lo nas suas partes, não é? Eu acho que uma parte tem que ver com isso, não é? O efeito do relaxamento se calhar tem mais que ver com a técnica e vou ver, um período de calma em que tu não estás a fazer mais nada e estás focado na respiração, por exemplo, mais do que propriamente nos efeitos a mais longo prazo da meditação em termos de alteração da consciência.
Miguel Farias
Sim, sim. Então, uma coisa que é essencial, tentando falar nos potenciais mecanismos psicológicos que orientam as várias meditações, uma é um estado de absorção, ou seja, a pessoa concentra-se de tal modo, com tal intensidade sobre algum objeto, e tanto pode ser uma tal palavra sagrada quanto uma imagem, por exemplo, do catolicismo que nos é próximo do sagrado coração de Jesus, por exemplo. E dentro da tradição cristão-ortodoxa também se utilizam muito ícones, uma coisa que também é muito utilizada noutros contextos orientais, em que a pessoa se concentra com tal intensidade que fica completamente absorta nessa imagem. E dentro do contexto cristão é a aproximação da pessoa com Jesus. Dentro do Budismo e do Hinduísmo há também essas técnicas em que a pessoa fica de tal modo absorta que isso faz com que os mecanismos habituais de atenção que nós temos deixem de funcionar, porque a pessoa fica absorta de tal modo que o fluxo normal de pensamentos aparentemente cessa. Há um estado... Como
José Maria Pimentel
se ficasse a flutuar no
Miguel Farias
nada. Ou flutuar ou simplesmente deixar de pensar. E quando a pessoa deixa de pensar há uma espécie de ilação, uma espécie de expansão natural. Um estado agradável de bem-estar. E depois, a partir daqui, os estágios que seguem variam bastante de tradição para tradição e há discussões, por exemplo, muito contundentes entre escolas hindus e budistas de qual é o estado último de ser e de realização. Se
José Maria Pimentel
é um estado de não ser, se é um estado de ser... No fundo há aqui dois fenómenos paralelos, quer dizer, que seriam analisados de maneira diferente. Um é o contexto religioso, em que no fundo, até eu analisando isto de uma maneira mais ou menos evolutiva, o que acontece é que as várias religiões, e nós vemos isso lá, tanto no Ocidente como no Oriente, vão percebendo o potencial que esse tipo de técnicas têm e o potencial que elas têm de nos colocar num estado contemplativo e mais espiritual, digamos assim, e as colocam no fundo ao serviço da própria religião e eles criam um enquadramento nessa religião. E aí aquilo é apenas um meio para atingir uma proximidade com Deus, ou atingir o nirvana, ou uma coisa qualquer do género. E depois tens a versão mais secular, se quiseres, em que a pessoa olha para isto como uma técnica para... E aí é que é o ponto interessante do livro, para quê? Porque pode ser para... Há quem diga que é para gerar bem-estar, para gerar uma espécie de satisfação e aí seria quase um fim em si mesmo, terminar ali, ou então para gerar uma espécie de autoconhecimento, no fundo vês-te-se fora, ou ainda para gerar um automelhoramento, no fundo conseguires alterar o sistema operativo do teu cérebro, se quiseres dar a fatura de melhor analogia. E os contextos são muito diferentes, não é? No contexto religioso olhas para a meditação de uma maneira completamente diferente e para todos os efeitos ela foi aprimorada nesse contexto, não é? Então,
Miguel Farias
é absolutamente certo o que estás a dizer. Deixa-me só notar que desde que escrevemos o livro modifiquei ligeiramente a minha... 100%! O que é bom aos fãs. Só
José Maria Pimentel
isso já vale a pena ouvir.
Miguel Farias
Aprendi algo. E eu devo dizer que os psicólogos de forma geral são bastante ignorantes sobre as tradições de meditação, o que é pena porque acabamos por girar uma série de confusões sobre isso. Então, o que estás a dizer é absolutamente certo E é um aspecto de tensão, sobretudo entre os budistas, porque a meditação que agora se tornou muito popular tem origem em escolas budistas, embora sejam escolas budistas muito mais recentes do que aquilo que normalmente se pensa, já do final do século XIX, princípio do século XX. Mas o que se passa hoje é que a maior parte das pessoas interessadas em meditação o utilizam como um instrumento de bem-estar. E há muita gente que diz que é uma coisa quase narcisista, porque não leva a nenhuma mudança fundamental do eu. Ou hedonista. Sim, sim, sim. Portanto, é uma coisa hedonista. O que eu aprendi desde que escrevemos o livro é que nas várias tradições religiosas estão presentes já uma variedade extraordinária de motivações.
José Maria Pimentel
Ah, que curioso.
Miguel Farias
Não é? Por exemplo, dentro da espiritualidade indiana, nas várias escolas de Tantra, há motivações várias, desde utilizar técnicas de meditação para ampliar as possibilidades sensuais. Há coisas muito agradáveis nos nossos sentidos que podemos experimentar. Será que utilizando a meditação eu consigo expandir e aumentar, intensificar as sensações? Uma coisa que foi descoberta muito mais recentemente com drogas psicadélicas. Descobrem que podem ampliar as suas sensações, o estado natural das suas sensações.
José Maria Pimentel
E os efeitos da meditação e dos psicadélicos têm interseções, ou seja, esse efeito de ampliar... Nem sei qual é a palavra certa, mas... Então, como forma
Miguel Farias
de modificar, de provocar uma modificação do estado de consciência, com certeza que sim. Depois, dependendo da droga e dependendo da técnica de meditação, há mais ou menos convergências, sim. Mas então, há essa utilização já no Tantra de utilizar como uma forma de expandir a sensualidade, como forma de desenvolver o teu poder numa forma de criação de capacidades para além do normal, capacidades paranormais de veres através da parede, de ver o que é que a outra pessoa está a pensar, talvez até de levitar. Essa possibilidade de aumentar o teu poder. Algo que encontramos depois em outras escolas, mesmo ocidentais, do ocultismo. Eu vou aprender, por exemplo, a ideia de que existe um corpo astral e eu vou aprender a dominar o meu corpo astral, ideias dessas foram utilizadas, por exemplo, nos Estados Unidos pelos militares que tentaram fazer com que alguns soldados desenvolvessem técnicas para psicológicas, precisamente para aumentar o seu potencial militar. Portanto, há ideias dessas, mas mesmo dentro do taoísmo são utilizadas técnicas para prolongar a vida física e eventualmente tornarmos-nos fisicamente imortais. Uma ideia que existe também em algumas escolas de espiritualidade indiana. E aí podemos dizer, a ideia de aumentar a nossa longevidade já está muito mais próxima deste aumentar do nosso bem-estar físico e psicológico que ocorre hoje. Agora, é certo que, de forma geral, com o desenvolvimento das tradições religiosas, houve também uma espécie de padronização destas técnicas e dos objetivos, das motivações, daí dizer-se que não, não devemos utilizar isto para desenvolver técnicas paranormais porque isso vai apenas rificar o ego e não vai levar a um estado que é aquele que se deve atingir. Mas é um pouco como nas origens do cristianismo há uma série de escolas em que esse aspecto de êxtase que às vezes é provocado por estas técnicas é o mais ou menos encorajado. O exemplo mais próximo nosso do catolicismo, houve pessoas que hoje são santos e doutores da igreja, como a Teresa Dávila, São João da Cruz, que foram perseguidos pela Inquisição, porque eles estavam a ter experiências que rompiam com uma certa padronização daquilo que era esperado. E isso é uma questão que está bem presente na origem destas técnicas. Elas começam por ser técnicas de eistas. Aliás, um livro do historiador das religiões, o Mircea Eliade, que foi para andia para estudar sânscrito e percebeu-se dessa riqueza do yoga e fala dessas técnicas como técnicas de estas. E a referência mais antiga que nós temos, a referência escrita a coisas que se aproximam técnicas de meditação, aparecem precisamente em escrituras indianas, no Rig Veda em particular, mas a descrição que há são de homens de cabelo comprido, mal levados, que se comportavam de um modo perfeitamente marginal. Provavelmente eram técnicas contemplativas que estavam associadas com o tomar drogas. Mas eles aparecem, portanto, imagina, cerca de 3.000, 3.500 anos atrás, que é o mais antigo que temos. Agora, o que é curioso é que, se nós recuarmos há 10.000 anos atrás, nós temos grupos, agrupamentos humanos muito, muito pequenos. Só quando começa a haver agrupamentos maiores é que começa a haver uma certa padronização da vida. Uma padronização no sentido de ser tudo muito mais seguro e vigiado. E parece que há indivíduos que se opõem a essa patronização e aí eu se controlo. E a história de todos esses indivíduos dentro do monasticismo, desde os padres, os chamados padres da igreja, que vão para o deserto e que se recusam a fazer parte, é já uma espécie de consciência desse mal-estar, da neurose de viver em grandes coletivos humanos. Há uma espécie de standardização que nos faz mal à alma.
José Maria Pimentel
É uma tensão, sim, sim. E na Grécia Antiga também, não é? Os cínicos e... Era muito a mesma lógica também, não é? Sim, Sim, sim, sim. O que é curioso.
Miguel Farias
É interessante que muitas destas técnicas começam precisamente por ser criadas por essas pessoas que estão nas margens do que é SAIT e da sociedade e depois começam a ser processadas por essas grandes religiões do mundo e começam a ser utilizadas e mais padronizadas e chegamos aos dias 2 em que temos essa padronização ainda mais intensa. Sim,
José Maria Pimentel
esse ponto que estás a fazer é engraçado, por acaso, no fundo elas surgem numa lógica individual e até de isolamento e depois acabam por ser apropriadas para um contexto mais de grupo, associado a uma ordem religiosa ou uma coisa qualquer do género. Uma pergunta interessante a propósito disto que eu fiquei a pensar tem que ver com esta questão do êxtase que tu falavas, ou seja, aqui há claramente um potencial no cérebro humano para atingir esse êxtase que no fundo provoca uma série de sensações que depois fazem facilmente a pessoa convergir para uma espiritualidade ou apenas para uma espiritualidade ou integrada numa religião qualquer. Aquilo que eu tenho dificuldade de fazer, e tinha curiosidade de saber a tua visão em relação a isso, é o que é que há de comum a isto tudo, ou seja, o que é que todas estas técnicas, se quisermos chamar técnicas, fazem ao nosso cérebro, ou seja, o que é que acontece dentro do nosso cérebro para atingir esse estado de extas e no caso da meditação em particular. No fundo, a meditação, a técnica da meditação é uma espécie de, seja via respiração, seja via o mantra que tu falavas há pouco, ou seja, ouvir um riacho ao fundo, no fundo é uma espécie de tentativa de ver a tua mente de fora. Não sei se estou a ser muito inexato em relação a isso. Como é que isto, como é que, por exemplo, no caso da mutação, isto nos leva a esse quase trans, a esse êxtase e o que é que acontece no nosso cérebro? O que é que na nossa evolução nos dotou dessa capacidade de entrar nesse estado que ao mesmo tempo é um estado de prazer, mas também um estado que te modifica ao ponto de, por exemplo, ter modificações na tua personalidade, como é uma das coisas referidas no
Miguel Farias
livro. Eu poderia ter começado por dizer que a meditação leva a uma espécie de estado de calmia, de relaxamento. E não o disse propositadamente porque não é verdade. É assim, grande parte das técnicas de meditação que utilizamos hoje têm como objetivo primário esse relaxamento. Tanto o Mindfulness quanto a Meditação Transcendental diz-te para tu sentares de forma confortável, prestar atenção à tua respiração, de forma muito simples traz um estado de relaxamento. Agora, em termos, podemos falar, evolutivos e em termos de correlatos cerebrais, esse estado pode ser simplesmente um estado de relaxamento, tanto de ficares a prestar atenção à tua respiração ou ao teu batimento cardíaco, ao passar dos teus pensamentos, que é o que se passa com mindfulness. O que distingue mindfulness de outras técnicas de concentração é que tudo envolve atenção. Praticamente todas as técnicas de... Envolvem
José Maria Pimentel
canalizar a atenção para qualquer coisa, não é?
Miguel Farias
Exato, Exato. É uma técnica em que tu focas a tua atenção sobre algum objeto. Ou é a tua respiração, ou é uma imagem, ou é um som, ou então simplesmente notas o passar ou o fluxo dos teus pensamentos, como no mindfulness. Há outras técnicas mais táticas de canto ou mesmo dança ou caminhar. O caminhar já também mais envolve um processo também de atenção.
José Maria Pimentel
Mas o que é que todas elas têm em comum, do ponto de vista do que provocam no cérebro?
Miguel Farias
Então, aí é que está. Aquilo que nós sabemos dos vários estudos, tanto de electroencefalograma quanto de ressonância, é que varia bastante o tipo de correlato cerebral consoante a técnica que se está a utilizar. Aquilo que parece acontecer de forma mais comum entre técnicas de atenção a um mantra, por exemplo, técnicas de concentração, ou técnicas como o mindfulness, é que há uma ativação de uma zona cerebral que tem a ver com a própria oceação, ou seja, tem a ver com a tua consciência do corpo, o que faz sentido se a pessoa começa por estar atenta à respiração, a sentir o corpo, mas tudo isto são coisas que acontecem com as técnicas de relaxamento também. E não é por acaso, não é por acaso, porque as técnicas de relaxamento, as técnicas de relaxamento muscular, começam a ser utilizadas nos anos 30 e depois nos anos 60, 70 e 80, começam a ser utilizadas de forma maciça pela psicoterapia, inclusive a terapia cognitiva comportamental, elas têm também origem em técnicas ditas de meditação. Sim,
José Maria Pimentel
tem até muito em comum, não é verdade?
Miguel Farias
É a origem exatamente a mesma. E, aliás, nos anos 20 e 30, quando há um médico americano que começa a utilizar essas técnicas, o esforço dele é precisamente secularizar, retirar todo esse elemento metafísico ou espiritual em essas ditas técnicas de relaxamento, mas o contexto base delas é exatamente o mesmo contexto da meditação. Daí agora os psicólogos terem esta luta de, não, a meditação é mais do que o relaxamento físico. Depende
José Maria Pimentel
do que tu... Mas aí um ponto importante. Parece-me. Ou aí uma ressalva importante. Depende daquilo que tu chamas de meditação, porque é muito diferente uma pessoa fazer essa história do mindfulness, que é uma coisa que eu já experimentei fazer, embora não tenha tido tempo ou não tenha tido... Não tenho tido tempo é sempre uma explicação meio preguiçosa, não tenha tido... Não lhe tenha dado a prioridade suficiente para levar isso por diante. Eu já experimentei fazer aquele tipo de mindfulness que é tu fazeres um exercício dez minutos diários ou 15 ou 20 e isso é muito diferente de tu ires para um retiro em que estás duas semanas ou mais em silêncio a fazer meditação durante todo o tempo, quase mal comparada com a me ajudar a um passeio ou a ir fazer uma maratona. São exercícios que me parecem ser bastante diferentes, não só do ponto de vista da exigência, mas também dos efeitos que eles terão sobre o teu cérebro. Quer dizer, tu fazeres 10 ou 20 minutos de meditação, provavelmente provocar-te-á maior calma, menos estresse, mais autoconsciência em relação às tuas emoções e uma série de efeitos positivos. Quando tu faz um retiro, aí já estás numa liga completamente diferente, não é? E provavelmente sais de lá já com... Transformado por aquela experiência, se quiseres. Parece, não é? Mas tu tens mais experiência com isso do que eu. Sim, sim. E, portanto, ou seja, no fundo o que eu quero dizer é que enquanto o primeiro é análogo em certo sentido a um exercício de relaxamento, o segundo não me custa acreditar que vai muito para lá disso. E aliás o vosso livro também me parece colaborar um bocadinho isso, fazendo aliás a ressalva de que não só tanto vai para lá disso que pode ter outros efeitos positivos, mas também efeitos negativos.
Miguel Farias
Sim, sim, sim. Então, é certo que se estivesse a fazer meditação durante oito horas por dia é diferente do que fazê-lo durante 20 ou 40 minutos por dia. Mas, por outro lado, o exemplo que estavas a dar do caso de mindfulness é que a técnica base que é utilizada em retiros, por exemplo, de Vipassana ou técnicas de mindfulness é exatamente o mesmo. O objetivo é estar atento primeiro sobre o corpo, presta-se muita atenção ao corpo no início, tanto nos 20 minutos, tanto no Vipassana, e depois estar atento também às emoções e aos pensamentos, até progressivamente se ir dissolvendo, isso tudo. Mas claro que não é particularmente agradável passar oito horas por dia sentado a prestar atenção microscópica às sensações corporais e é quase inevitável que isso leva a um estado alterado de consciência, que pode ser mais ou menos agradável. E é interessante também perceber como as interpretações que as pessoas dão a essas experiências também variam muito. Mas o que é curioso é que há sensações, há um aprofundar da sensação, quer dizer, Quando começas a estar atento, com essa atenção microscópica aos dedos posados sobre a mesa, começas a perceber, bem, eles não estão uniformemente posados. Eu sinto um frio mais intenso no pulgar do que no mínimo, mas mais, continua a investir, começa a sentir. Até que começas a sentir coisas que provavelmente raiam o domínio da alucinação sensorial. O fluir normal da tua percepção, e isso por razões evolutivas muito boas, não é? Quer dizer, nós não fomos criados, não fomos desenvolvidos, voltando um pouco também à tua questão de como é que isto acontece, o que é que acontece no nosso cérebro. Nós não fomos criados para estar sentados durante oito horas a pensar minuciosamente sobre as sensações ou pensamentos que eu estou a ter. Se nós tivéssemos feito isso, não estávamos aqui hoje, não é? Porque não teríamos comido, poderíamos ter sido comidos por outro. Por isso, essas técnicas começam apenas a surgir quando há toda uma estrutura social, inclusive quando começa a haver uma hierarquia social que protege certas pessoas. Quando a religião começa também a tomar um papel preponderante e aqueles que se tornam os sacerdotes dessa religião é-lhes dado um determinado papel. Por isso é que criam-se até situações na Ásia, mas no Ocidente também houve os monjos ou hermitas que vivem desmolas, mas como são tomados como, ou eram tomados como homens santos, porque eles deixam tudo para estar próximos de Deus, as pessoas de facto alimentavam-nos. Mas só quando existe uma estrutura social que faz com que haja excedentes alimentícios
José Maria Pimentel
é que é possível. Esse ponto é interessante, sim, do ponto de vista histórico, isto não pode surgir entre caçadores-recoletores.
Miguel Farias
Agora, nós temos estruturas do ser, do existir, claramente também ao nível biológico e cerebral, que nos permitem ter sensações de grande gozo que não sejam meramente sexuais, não é? Quer dizer, um ritual, nós sabemos que o fazer rituais juntos, o estarmos a dançar juntos, ou mesmo fazer simplesmente gestos juntos, isso estimula a produção de endorfinas, beta-endorfinas, que traz essa sensação de relaxamento e bem-estar e que, por outro lado, cria um vínculo social forte entre indivíduos. Portanto, tem esse aspecto benéfico para o grupo também. Agora, é interessante, e nós não sabemos muito, há estudos recentes de ressonância magnética sobre o efeito do LSD, a psilocibina, em que se descobriu que havia algo paradoxal, porque normalmente a pessoa tem um excesso de sensações, vê as coisas de um modo diferente, está a ter muitas imagens, muitas sensações, mas aquilo que se viu é que na verdade há uma redução de forma mais ou menos generalizada das várias regiões do cérebro. A
José Maria Pimentel
ideia que eu tinha era como se parte do cérebro se apagasse E daí a parte que fica, quer dizer, uma analogia se calhar um bocadinho tosca, mas daí a parte que permanece acesa é ser aquela que depois domina a tua consciência, não é? E daí aquela que são, o exemplo que davas de olhar para a mão, não é? Da pessoa ter a noção que está a olhar quase como se estivesse a ver-se de fora. Sim, sim, sim. Tinha que ver com o facto de ser a parte do cérebro que está associada a essa, à nossa noção de posicionamento que fica acesa, mas há outras partes do cérebro que se apagam. Eu não sei, corrijo-me se estiver enganado. Eu li a senadora sobre isso, até comparando a meditação com as drogas psicadélicas, como provocando ambas esse mesmo efeito de quase sair do teu próprio corpo.
Miguel Farias
Então, eu creio que o problema aqui é que nós, muito rapidamente, começamos a pensar de forma simbólica e metafórica o que se passa no cérebro, porque é a nossa forma também, é a forma como evolutivamente nós chegámos aqui, nós construímos narrativas. E como O cérebro, as regiões do cérebro têm nomes esquisitos e nós não sabemos bem exatamente o que é que se passa. É um pouco como matemática. E na verdade todos estes cálculos são, no fundo, computações matemáticas. Nós começamos a pensar de forma mais simbólica do que real. E esse é um exemplo disso. Ah, o que se está a passar com as drogas psicodélicas é semelhante ao que se passa com a meditação. Há muitos tipos diferentes de drogas psicodélicas que têm efeitos diferentes e há também muitas técnicas diferentes de meditação que têm efeitos diferentes. Creio que há um perigo quando começamos a pensar que, e há sugestões de alguns desses artigos, que as drogas psicodélicas levam uma espécie de tábula rasa em que a nossa perceção se torna mais virgem ou mais pura. Que é uma coisa que está presente dentro de alguns escritos e até poesia mística, desde o William Blake até Albert Cahier, ver o mundo como se fosse uma criança recém-nascida. E não é para dizer que não haja alguma coisa de verdadeiro nisso, mas temos de ter cuidado porque é muito difícil separar a ideia poética ou simbólica daquilo que se está a passar. Isto lembra-me um pouco... Há alguns anos atrás eu conheci um físico. Um físico que teve uma carreira normal, mas depois se dedicou à espiritualidade e escreveu alguns livros sobre espiritualidade e física quântica. E quando eu depois conheci físicos teóricos da mecânica quântica, lhes perguntei sobre isto. Eles olhavam para mim muito espantados e diziam, assim um pouco como um professor primário te fala com uma criança. Não, Miguel, tudo isto é matemática. Toda e qualquer comparação que possas fazer é perfeitamente simbólica ou poética. Eu acho que temos de ter cuidado com isso. Não é para dizer que não haja dentro da experiência, tanto dos psicodélicos quanto da meditação, algo que nos liberta e que nos leva a lugares que têm alguma semelhança com o Estado. É difícil agora dizer, um Estado o quê? Um Estado mais puro ou mais infantil e que temos que ter cuidado. Mas
José Maria Pimentel
aí já é simbólico, sim, sim.
Miguel Farias
Freud falava da experiência religiosa, inclusive da experiência cósmica, oceânica, como um estado regressivo. Um estado não só infantil, mas inclusive até intrauterino.
José Maria Pimentel
Aí já é estar a tentar explicar aquele estado à luz de uma suposta causalidade que pode não fazer sentido. Agora, parece-me ser um facto que este tipo de técnicas pode ter, e quem diz isto, diz outros psicodélicos e uma série de outras maneiras, podem ser maneiras de aceder à tua consciência de uma maneira que normalmente estava dada, ou seja, que ia ter um passo atrás. A consciência, à bocado eu falava, eu puxei isto para análise evolutiva da coisa, a consciência é um mistério evolutivo, ninguém sabe bem porque é que nós temos consciência. Ou para que é que ela serve, e parece ter uma série de efeitos colaterais que nós podemos explorar, mas que podem não ser necessariamente adaptações evolutivas, mas exo-adaptações, talvez seja o termo. Por exemplo, a questão da nossa capacidade de ver filmes e fazer aquilo que se chama, como é que se diz, a suspensão da descrença, suspension of Disbelief, que tu estás a ver um filme e estás a sentir o filme como se fosse real, um extraterrestre que não tivesse visto e viesse à Terra, que é sempre um exemplo fácil, lhe daria para nós com o ar mais espantado do mundo, porque é uma coisa que não faz sentido. Quer dizer, ver um filme é uma coisa que racionalmente não faz sentido nenhum e, no entanto, nós temos essa capacidade. Da mesma forma, a consciência tem uma série de coisas e o nosso cérebro ainda para mais funciona com a consciência enquanto muitas vezes uma espécie de narrador, não é aquela metáfora do repórter, quando na verdade há um monte de motivações que são inconscientes, não é que acontecem ao nível do inconsciente. A meditação parece-me, e outras técnicas, terem o potencial para nos fazer perceber melhor o que é que está a acontecer ao nível do inconsciente, no fundo essas motivações não nos são evidentes.
Miguel Farias
Então, eu concordo que sim, que há correntes teóricas que exploram essa ideia. Para
José Maria Pimentel
mim o grande pato da atração está aqui, por isso é que eu também estou a levantar isso.
Miguel Farias
Uma pessoa com quem trabalho, desde que escrevemos esse livro, que é uma swami, uma monástica hindu, ela acredita em tudo aquilo que ela faz e tem experiências maravilhosas que ela trata com, às vezes até com uma certa ironia. Ah, tive essa experiência, que chatice. Mas, por exemplo, para ela, a ideia é muito simples. Eu ensino yoga e meditação para as pessoas se lembrarem daquilo que são. E se perguntas, lembrarem de que são como? Lembrarem que elas são o um, que não há diferença nenhuma entre o Miguel e o Zé Maria.
José Maria Pimentel
Mas aí já é uma interpretação espiritual da coisa, não é?
Miguel Farias
Mas ela diz que não, ela diz que não, ela diz que se a pessoa tem a experiência da unicidade das coisas, que é muito, muito claro, e que toda a nossa crença de que nós somos diferentes é apenas uma ilusão, que nós nos esquecemos de verdade fundamental do nosso ser. Se mudarmos isto para um contexto cristão, a maior ilusão, se podemos, ou o maior pecado, é o nosso afastamento de Deus. Daí termos de aproximar do exemplo, seguirmos o exemplo de Jesus para haver essa santificação ou a divinização do humano que está entre o macaco e o anjo, diz Teixeira de Pascoais, por exemplo. Há essa ideia de excesso implícita em quase todas estas técnicas, que nós estamos num meio termo, somos animais mas temos essa feisca espiritual ou até divina, angélica.
José Maria Pimentel
E
Miguel Farias
que, claro, depois dependendo da tradição, isso torna-se mais ou menos dualista, no sentido de que há uma tensão entre forças. Há forças que te conduzem mais para o lado animal e há outras que te conduzem mais para o lado espiritual. Dentro da tradição cristão ou ortodoxa, eles têm um esquema psicológico muito bem montado em que as várias motivações escritas, que também acontece no hinduísmo, Todos nós temos várias motivações, mas são motivações mais ligadas à matéria, à sexualidade. E quanto mais nós insistimos nisto, mais atenção prestamos a isto, mais elas se tornam reais. E depois eles falam nos demórios, mas estes demórios muitas vezes são entidades mais psicológicas do que maléficas, metafísicas em si.
José Maria Pimentel
Este, por acaso, é engraçado porque este é um tema particularmente difícil de discutir porque muitas vezes não é claro aquilo de que nós estamos a falar. Este reaproveitamento da meditação pela ciência ou por pessoas com um mindset científico, se quiseres, foca muito aquela questão da consciência que eu lhe disse há pouco, ou a tua capacidade de perceber aquilo que está a decorrer dentro do teu cérebro e que tu no dia a dia não tens acesso. Mas a meditação também tem, da mesma forma que os psicodélicos e as danças e uma série de outras coisas, também tem um potencial que se calhar é um nível à frente ou se calhar é simplesmente isto mas visto de outros olhos, de provocar esse trance em que tu te sentes, tens uma série de experiências que podem ser interpretadas de uma maneira espiritual. Para alguém ateu como eu, eu não ponho a hipóteses de interpretar de outra forma, não é? E, portanto, se quiseres, há aqui um axioma inicial que eu tenho e que impede a minha relação de chegar bem. Alguém que seja crente de ir-te-á que faz todo sentido que aquilo seja interpretado dessa forma, porque aquilo é uma experiência real.
Miguel Farias
Nisso eu estou contigo. Eu diria que a maior parte das pessoas que fazem meditação, usufruem apenas como um estado de relaxamento. Outras abrem-se portas que ou produzem estados de maior consciência de si ou experiências bastante agradáveis, mas outras abrem-se portas inesperadas. Ou se lembram de traumas que tinham esquecido, ou têm experiências muito
José Maria Pimentel
desagradáveis. Mas pode provocar alucinações também, por exemplo? Alucinações é um termo depreciativo, mas visões não ordinárias. Podem
Miguel Farias
provocar, nos casos mais extremos, pode provocar até crises agudas psicóticas. Por exemplo, no nosso livro, o capítulo sobre a noite da meditação surge precisamente de uma antiga aluna minha que foi professora de yoga durante não sei quanto tempo e tinha feito já muita meditação e um dia faz um retiro de dois dias de meditação em que tem um estado psicótico agudo que depois degenera numa depressão profunda e leva tipo 10 anos a tratar-se disto. E é uma coisa que sabemos cada vez mais, mesmo da literatura científica, porque começámos a perguntar, começámos a ver que isto acontece, começámos a perguntar às pessoas. Imagina, se perguntamos a duas pessoas que fazem meditação regular, descobrimos que cerca de 20% delas já tiveram alguma experiência desagradável. E estas experiências desagradáveis variam. Pode ser uma experiência emocionalmente desagradável ou fisicamente. Há pessoas que começam com tremores, com crises de ansiedade, até do lado mais extremo episódios psicóticos, que são mais raros. Agora, porquê é que isso acontece? A verdade é que não sabemos. A explicação, há duas explicações fáceis, que essa pessoa já tinha algum problema psicológico e isto simplesmente como se tivesse levantado as comportas e portanto aquilo que já era difícil tornou-se insuportável. Dos estudos de caso que temos mostram que mais de metade das pessoas que tiveram experiências mais difíceis, tipo psicose, estado de psicose, alucinação, de mania, que não tinham qualquer problema de saúde mental antes de terem tido isto. A segunda explicação fácil é de que isto faz parte da tua evolução, ou psicológica ou espiritual. Então, quer dizer... E pode ser verdade. Acho que aqui temos uma atitude moderada, é se a pessoa vai a psicoterapia... Pode lhe acontecer
José Maria Pimentel
o mesmo. A psicoterapia, a
Miguel Farias
dois, é uma espécie, muitas vezes, uma espécie de contemplação auxiliada, em que a pessoa inevitavelmente, se quer dizer, se aquilo funciona é porque a pessoa descobre alguma coisa sobre si da qual não estava consciente e, através dessa consciência, consegue lidar com isso de um modo diferente. Há muitos psicoterapeutas que diriam que isso é o máximo que a psicoterapia faz, torna a pessoa consciente de algo e, simplesmente, a consciência disso faz com que ela possa lidar consigo mesma e com a realidade de um modo diferente. É
José Maria Pimentel
como trazer alguma coisa do inconsciente para o consciente, não é? Sim.
Miguel Farias
Eu acredito muito pouco na autonomia, na liberdade individual. Há tantos, tantos fatores, desde biológicos a sociais, que nos constrangem de tal modo que, maior parte das vezes, a nossa margem de liberdade está simplesmente em tomar consciência de, olha, é isto que está... Pronto, é assim. Mas nessa pequena margem já faz muita diferença, faz muita diferença. E se calhar é muito, é precisamente nessa margem que surgem grande parte das manifestações artísticas, que é uma espécie também de contemplação, de reflexão sobre nós mesmos e sobre a nossa condição humana. Só para acabar com a história do cérebro, por exemplo, uma coisa que se falava muito é que estados de meditação levam a uma reatividade menor da amígdala. A amígdala, que muitas vezes é associada com estados de medo e de ansiedade. E aí, novamente, mesmo nas técnicas de mindfulness, varia. Há alguns estudos que apontam que sim, que há uma redução da atividade, que a pessoa tem... Mas
José Maria Pimentel
enquanto está a fazer ou depois? Enquanto está a fazer. E
Miguel Farias
depois. E depois. Os dois modos. Mas não são todos, mesmo todos estudos utilizando a mesma técnica não se encontra esse denominador comum.
José Maria Pimentel
Pois, e também não é o... O nome do vosso livro em inglês é engraçado, por acaso até acho mais bem conseguido que o que é português, chama-se de Budapil. A verdade é que a meditação não é um comprimido no sentido em que não é standardizado, não é? Ou seja, mesmo dentro da mesma técnica, eu aplicar a mesma técnica, Nós dois a aplicar a mesma técnica, a técnica
Miguel Farias
fala o hemos de maneira diferente. Certo, mas é isso que muitos dos meus colegas estão a tentar que aconteça. Daí terem-se criado esses programas standardizados. Exatamente, a ideia é replicar uma intervenção médica, farmacológica. E, portanto, é o paradigma da ciência médica que é transposto para a ciência psicológica. E há algo de ingênuo nisso. Uma das ingenuidades é que pensar que nós, enquanto seres, que a nossa psique, para não chamar de mente apenas, funciona como funciona, sei lá, o nosso esquema de circulação sanguínea. A verdade é que se puseres dez ou vinte psicólogos na mesma sala e lhes perguntares o que é a mente, quais são as coisas que determinam a nossa ação, eles não são capazes de concordar. Daí também as dificuldades em entender porque é que algumas pessoas reagem à meditação como uma técnica de relaxamento, umas outras aquilo funciona de modo muito positivo, Por exemplo, no caso da depressão crónica ou recorrente, descobriu-se que aqueles que já tiveram pelo menos três episódios de depressão e que têm um índice elevado de trauma de infância, são aqueles que reagem melhor à técnica
José Maria Pimentel
da meditação.
Miguel Farias
Porquê? Não sabemos. Simplesmente não sabemos. E porquê que depois há ainda uma outra porcentagem, que também não sabemos exatamente qual é, mas varia nos estudos entre 1% e 25% porquê que há estes indivíduos que reagem mal à meditação, que ficam mais estressados, ficam mais deprimidos ou têm algum tipo de consequência, outro tipo de sintoma, mas ainda mais difícil.
José Maria Pimentel
Essa conclusão é interessante por ser contra-intuitiva, aparentemente, porque ninguém fala disso. Hoje em dia, a meditação está mais ou menos na moda, tu só vês o lado positivo, mas é uma coisa que faz inteiro sentido. Por um lado, porque lá está, ou estás a fazer uma viagem ao teu inconsciente, à tua mente que não está imediatamente à superfície, é natural que vais encontrar coisas boas e coisas más. E por outro lado, porque a sanidade, como é que eu ia dizer, a exploração da mente mesmo de outras formas, está longe de ter uma correlação positiva com a estabilidade emocional. Até diria que pelo contrário, por exemplo, tu sabes, isso melhor que eu, eu tenho ideia disso ser verdade, dir-me e acho que não é, mas as pessoas muito criativas e com atividades muito criativas tendem a ser pessoas mais neuróticas ou com mais problemas de estabilidade emocional. Claro que isso pode ser uma questão de seleção à partida ou uma questão de efeito, mas não me custa acreditar que possa ser um efeito também no sentido em que... Já não sei, havia um tipo qualquer, acho que era um destes empresários americanos do século XIX que dizia que o melhor terapeuta ou a melhor terapia é teres uma vida ocupada. E em certo sentido é verdade, do ponto de vista estrito da estabilidade emocional, tirando aqui o interesse do autoconhecimento enquanto uma coisa, enquanto um interesse em si mesmo, não me custa acreditar que isso seja verdade. Todos nós sabemos isso, não é? Claro. Se tu estiveres ocupado permanentemente com uma coisa para fazer, pré-definida, um objetivo, isso dá-te muito mais estabilidade emocional do que tu teres o ser um pintor com uma tela vazia à tua frente.
Miguel Farias
Ora, aí para mim é que está a maior rotura entre a utilização nas tradições espirituais da meditação atualmente. A estabilidade emocional não era uma coisa... Que eles quisessem. Que lhes interessasse de todo. Essa normalização do ser, de certo modo, era o oposto daquilo que queria, daquilo que se deseja. Como explicar isto? Não,
José Maria Pimentel
assim, eu percebo o que queres dizer. Eles querem, pelo contrário, quebrar...
Miguel Farias
Exatamente, sim, sim, sim. Quebrar os esquemas de perceção e de estado de ser comum. É isso que desejo, utilizar isso como uma rotura da normalidade. E provavelmente é se calhar por causa disso que acontecem essas diferenças de reação à meditação, porque elas não foram desenvolvidas para uma padronização do ser. Aliás, atenta que aqui acho que há muita desonestidade intelectual dos psicólogos, que maior parte daquilo que os psicólogos fizeram, com algumas exceções, e no princípio a psicologia de facto não era assim, e a grande, chamada grande revolução do inconsciente que Freud começa. Há de facto uma ruptura em termos de paradigma do ser humano, de como é que nós somos. Mas a verdade é que passado 100, 120 anos da existência da psicologia enquanto ciência, nós sabemos muito, muito pouco sobre aquilo que nos guia e que prediz os nossos... Porquê que certas coisas que nos acontecem todos os dias, por exemplo, porquê que a noite passada sonhaste com X ou Y? Porquê que sonhaste todo? Nós ainda não temos uma resposta para isto. Porquê que tu te apaixonas por tal pessoa e não pela outra pessoa? Nos dias de hoje até temos algumas ideias mais claras que não têm nada a ver com as tuas preferências pessoais. Tem provavelmente a ver com processos biológicos dos quais não tens a mínima consciência. A ver com o cheiro, por exemplo. Certo? Uma coisa bem, bem animalesca, sobre a qual não tens controle. Mas nós detestamos isso. Nós detestamos todas essas possibilidades sobre as quais não tínhamos controle. Toda a nossa civilização está formatada para produzir esses indivíduos emocionalmente estáveis, padronizados. Porque é isso que mantém as coisas tais quais são. E qualquer coisa que rompa isso é perigoso. É
José Maria Pimentel
perigoso até para o próprio. Tu aí estás a falar perigoso no sentido... No sentido social. No sentido do status quo, não é? Sim, no status quo. Mas também é perigoso para o próprio.
Miguel Farias
Pode ser perigoso, mas pode ser extraordinário para a pessoa. Sim,
José Maria Pimentel
mas é um risco.
Miguel Farias
Agora, o problema, vê bem, há intuições muito interessantes no chamado movimento de contracultura dos anos 60. O guru das drogas psicodélicas, lembras-te do Timothy Leary? Qual é que era o dito dele?
José Maria Pimentel
Tune in, turn on, drop out. Exato,
Miguel Farias
tune in, turn on, drop out. Portanto, tu ligas-te a isto e depois drops out, não é? A pessoa sai do esquema normalizado e encontra uma vida mais verdadeira, mais genuína. E houve uma altura em que ele pensou que se eu conseguir fazer chegar estas drogas aos líderes políticos mundiais, isto vai provocar uma revolução de consciência. Eu às vezes, quando dou palestras de divulgação científica sobre meditação, eu chamo a isto o efeito Timothy Leary, que é acreditar que se a pessoa provoca uma alteração de consciência mediante drogas ou meditação, que isto vai ter o mesmo resultado para todas as pessoas. E eu penso, mas que raio de civilização é que nós criamos que pensa que as pessoas vão ter a mesma reação quando expostas a uma mesma técnica ou a um estimulante que a altera, um estímulo, uma droga que a altera profundamente o nosso estado de consciência? É uma ideia profundamente ingênua, Não passa pela cabeça de ninguém. Mas
José Maria Pimentel
é que eu imagino que isso tenha origem. Tu vês uma técnica ou uma coisa qualquer que tu ingiras e que provoca uma alteração brutal nas pessoas e na maneira como elas funcionem, que as torna, vamos supor, muito mais bondosas, por exemplo, umas com as outras, não deve ser fácil nessa situação não ter entusiasmas com o que tens à tua frente, não é?
Miguel Farias
Sim, sim, é o é que se dizia que deixa as pessoas, por exemplo, a sentirem-se muito mais bondosas para com outras. Eu só ia referir, voltando à tua questão, que é uma questão difícil de responder, sobre quais são as possibilidades que nós temos de, de facto, ter uma experiência muito diferente de nós mesmos e da realidade. Não só nos vermos de fora, mas nos vermos de formas diferentes. E aquilo que nós sabemos hoje, mesmo através de, muitas vezes, porque há pessoas que têm problemas, problemas mesmo neurológicos sérios, que vêem realidade e sentem realidade de forma diferente, Mas também mediante ilusões, por exemplo, a ilusão da mão de borracha, uma coisa descoberta há não muito tempo, em que descobrimos que eu tenho a capacidade de deixar de sentir a minha própria mão para passar a sentir como minha uma mão de borracha. Sim. Portanto, nós temos a possibilidade de sentir. Essa
José Maria Pimentel
experiência é muito divertida. Trabalhei
Miguel Farias
há pouco com um coreógrafo que estava a fazer uma variação disto para criar uma espécie de ilusão em que eu me sinto projetado sobre outro ser humano, que eu não conheço de lado nenhum, sentado à minha frente. E Eu experimentei aquilo com ele e de facto consegue-se. Portanto, nós estamos unidos biologicamente à possibilidade de ter uma experiência de realidade muito diferente daquela que normalmente temos. E isto foi constrangido culturalmente. E pelas religiões, todas as religiões, trataram certas experiências de alteração, de multiplicação do ser de uma forma bastante repressiva. Por exemplo, uma experiência de êxtase que acontece em praticamente todas as culturas é a experiência de ser possuído por um ente, um outro ente espiritual. Nós olhamos para isso com muita, muita suspeita. Acontece, por exemplo, dentro da cultura brasileira, é muito comum nas religiões afro-brasileiras, mas acontece agora, por exemplo, em muitas igrejas pentecostais evangélicas em que a pessoa também ou é ungida pelo Espírito Santo e fala em línguas e perde a consciência ou então é processa também por demónios. Portanto, há tudo isto, mas é uma coisa que nos incomoda profundamente. Aliás, a ideia de nos dividirmos ou podermos ser vários é tida como algo patológico, porque rompe precisamente essa normalização. Mas, voltando a pensar no caso bastante excepcional de pessoa que cria com todo o promenoramento estes eus, não apenas como exercício intelectual, mas como a possibilidade de se sentir e de se viver de um modo diferente. Um pouco como se fossem reencarnações diferentes, mas a acontecer na mesma vida. Aí está novamente a nossa capacidade e a nossa procura de experimentar, de experienciar de outros modos. Só que, ainda agora, se nós olhamos para isso, poeticamente é muito interessante, mas em termos psicológicos é uma coisa extremamente perigosa. Olha só o que é que dava agora para o Zé Maria pensar que é um engenheiro naval.
José Maria Pimentel
Sim, e o pessoal era particularmente neurótico, portanto eu não sei, mesmo ele não, se pudesse, se calhar, prescindia de alguns desses efeitos. Tem a ver com aquilo que estávamos a falar há bocadinho, não dá necessariamente bem-estar.
Miguel Farias
Sim, sim, sim.
José Maria Pimentel
Mas peraí, em relação àquilo que estávamos a dizer há bocadinho, eu não sei se percebi bem, porque há uma coisa é a maneira como tu olhas para todos esses fenómenos, se eles são uma ilusão ou se são reais. Outra coisa é reconhecê-los ou não, não é? Aquilo que me parecia acontecer há uns séculos é que tu aceitá-los, tu aceitá-los implicava que os fosse aceitar como reais, não é? Mas hoje em dia o nosso cérebro é capaz de uma série de coisas, não é? E a nossa consciência, até pelos constrangimentos evolutivos em que surgiu, não é? Não é provavelmente um computador, é uma coisa que foi sendo desenvolvida pela evolução, cujas regras não são uma regra de desenvolver uma coisa perfeita, mas sim desenvolver aquilo que se vai adaptando ao meio ambiente da maneira mais eficiente, é perfeitamente normal que a nossa consciência nos permita ter uma série de experiências completamente diferentes, desde logo essa questão do possuído, ou de trans, ou de... Os sonhos, quer dizer, não é preciso ir mais longe, os sonhos que toda a gente tem São uma variante disso. Os meus sonhos são ultra bizarros, presumo que os de toda a gente também sejam. Agora era interessante descobrir se eram só os meus. Até porque nos sonhos, lá está, aquilo que acontece é justamente partes do cérebro, novo, isto provavelmente é muito simplista, mas partes do cérebro desligarem-se, e portanto é como se houvesse mais latitude para coisas inverosímeas acontecerem, não é? Que na tua vida normal não acontece, ou pelo menos tu tens um discernimento diferente.
Miguel Farias
Mas deixa-me enfatizar o ponto que estavas a fazer. Muito disto tem a ver não só com a experiência mas com a interpretação da experiência. Estou de acordo. Mas mesmo se tivermos uma interpretação puramente secular, materialista, podemos ter experiências muito fora do vulgar. Agora, é verdade, lembro-me que há o Benny Shannon, por exemplo, um psicólogo cognitivo israelita, que tem um livro fabuloso sobre os efeitos da ayahuasca, que ele descobriu por acaso e depois tomou mais de 100 vezes para tentar perceber o que é que se passava. Uma vez encontrei numa conferência em que ele falava que, a certa altura, ele dava por si a tocar piano quando não sabia tocar piano e a curar outras pessoas sem fazer ideia do que é que estava a realizar. E eu perguntava, Mas então acredita nessas coisas? Ele olhou para mim. Acreditar como? Não acredita que há uma realidade, uma espécie, uma meta física? Não, não, eu sou um judeu secular, não acredito em nada disso. Mas toda a forma como ele expressava aquilo tratava-se de uma série de experiências completamente fora do espectro da normalidade, mas contudo de uma forma quase defensiva, ele dizia, não, não, não, eu sou um judeu ateu, não acredito em nada disso. E aí eu creio, eu creio que nós somos muito mais ambíguos do que gostaríamos de admitir, E isso tem a ver porque há alguns milhares de anos para cá fomos moldados e condicionados desse modo. Eu gosto muito daquele primeiro, acho que é o primeiro livro do Nietzsche, As Origens da Tragédia, em que ele diferencia entre uma forma dionisíaca e uma forma apolínea do ser. Em que, portanto, aquilo que nós desenvolvemos nos últimos milhares de anos é essa forma apolínea, portanto mais contemplativa, mais... Apolínea de Apolo? De Apolo, sim. A forma mais estruturada, enquanto a forma de Dionisia que é a forma mais estática, mais caótica, em que mais facilmente se esburou os limites, as fronteiras entre o eu e os outros e o universo. E quando isso acontece, dentro dessas experiências, elas são mal vistas. Primeiro são mal vistas ou são vistas com cuidado. Primeiro são mal vistas com um certo cuidado pelas estruturas religiosas e depois pelas estruturas que substituem as estruturas de policiamento do que é normal e anormal, que são estruturas médicas, psiquiátricas e psicológicas. Que é aquilo que nós, psicólogos, somos os novos padrões, não é? Ha ha ha ha ha! As pessoas vêm se confessar a nós como faziam.
José Maria Pimentel
Sim, sim, claro, exatamente. Isso aí é a verdade. Essa questão... O lado social tem que ver com a ordem, com a manutenção da ordem. E isso são tudo coisas que vão contra essa manutenção da ordem. E dentro de nós também se tem a ver com isso.
Miguel Farias
E o que é interessante na meditação é que ela tem tanto o aspecto da Paula quanto de Dionísio. Ela tem tanto o aspecto da contemplação regrada que relaxa, que modera, que faz com que a pessoa tenha um controle maior sobre as emoções, como tem também a outra coisa que é mais estática e mais difícil de controlar. Enfim,
José Maria Pimentel
engraçado esse ponto, por acaso.
Miguel Farias
E aí, dentro das tradições religiosas, Há aquelas figuras que se soltam, ou são ermitas, ou são os santos chamados santos loucos, que irritam também. Há um filme lindíssimo, russo, sobre uma comunidade ortodoxa monástica, em que há precisamente um desses santos loucos que irrita toda a gente dentro da comunidade, porque ele é capaz, por um lado, tem reações que rompem a norma, por outro ele tem a capacidade de ver coisas que os outros não vêem, ou vê o futuro, ou vê coisas dentro das pessoas que elas próprias não são capazes de ver. E todos se irritam com ele porque ele rompe precisamente com essa normalização e incomoda.
José Maria Pimentel
Sim, sim, cria ruído. Sim, sim,
Miguel Farias
e a meditação tem essas duas possibilidades, apesar de, nestas últimas décadas, precisamente porque ela foi tomada pelo establishment, pelo estabelecimento dos psiquiatras, dos psicólogos, ela tem seguido essa via de padronização, de normalização, de vamos acabar com as neuroses, vamos criar um indivíduo mais moderado, e isso vê-se muito sobretudo e se irrita profundamente, devo dizer, quando agora se leva para as escolas e para as crianças a meditação, dizem-se coisas perfeitamente mentirosas sobre como a nossa mente funciona, a propósito de tentar pôr as crianças a meditar. Tipo o quê? Vi uma vez, até fui num pequeno documentário, cá em Portugal, que aparecia alguém numa destas escolas a dizer, vocês pegam num frasco de água e diz, uma garrafa de água, Quando vocês acordam as vossas mentes são puras e cristalinas como esta garrafa de água. Depois expõe-me umas brilhantinas dentro de água, agita aquilo e vemos as brilhantinas todas. Depois do pequeno almoço, quando já se irritaram com os vossos pais ou com os vossos irmãos, as vossas mentes já são assim. Muito mais confusas. Por isso têm de meditar para a mente. Que desparate! Não é nada assim! Não é nada assim! Aí está, novamente, estamos a utilizar imagens simbólicas, bonitas e aparentemente sensatas, para descrever a nossa mente de um modo perfeitamente mentiroso. Mas
José Maria Pimentel
também, quer dizer, também está a ser duro demais com eles. Acho que não. Quer dizer, eles têm que usar uma analogia de... Se calhar está errado, é isso, eu que estou errado também, mas a analogia da tua mente estar absolutamente preenchida com uma torrente de coisas com as quais tu não tens capacidade de lidar e que depois geram um efeito de tal forma complexo que tu não consegues ver de fora e a meditação te pode ajudar nesse sentido. Não me parece uma analogia assim tão má.
Miguel Farias
Acho-me uma analogia péssima porque há outro exemplo que me irrita também, igualmente, que é o de que devemos meditar como devemos lavar os dentes, como devemos ir ao ginásio. Porque o nosso cérebro é um músculo que tem de ser treinado, tal qual os nossos músculos. E não, a nossa mente não é como um músculo. Em algumas situações, tipo, se eu quero aprender uma língua temos de exercitar, certo? Mas é... Isso é bem um exercício da mente, a meditação. É uma metáfora. Seria mais
José Maria Pimentel
uma limpeza da mente. Lá está, mas isso era a metáfora da abecada. É
Miguel Farias
verdade que há uma aprendizagem. Portanto, se eu não estou habituado a fazer uma determinada coisa, tipo a tocar um instrumento, se eu fizer 20 minutos todos os dias, passado um, dois anos, eu sou capaz de fazer uma série de coisas, até sem pensar praticamente. Nesse caso, a técnica de meditação tem essa semelhança. Mas dizer por causa disso que a mente é como um músculo, não. É errado. E novamente nos dá uma ideia normativa da meditação que é errada. E em relação às crianças, acho que é enganador e quase perverso, porque estamos a utilizar a meditação, porquê? Porque as crianças estão estressadas, estão ansiosas, portanto, novamente, vamos promover uma normalização. Em vez de estar a investigar quais as causas do mal-estar dessas crianças, não, vamos dar-lhe mais um rebussado ou tal comprimido para elas se portarem bem.
José Maria Pimentel
Sim, eu estou a perceber o que queres dizer. Mas não seria tão pessimista, não tem necessariamente a ver com o querer domá-las. Um querer? Domá-las, tê-las domadas. Claro que pode ter a ver com isso também, não é? Mas pode ter que ver com... Da mesma forma que as aulas têm como objetivo ensinar. Claro que o ensino tem esses dois lados, não é? Pode ser um condicionamento e pode ser um melhoramento, não é? Neste caso pode ser um auxílio a esse condicionamento, mas também pode ser uma valência que lhes é dada em termos de estabilidade emocional e de, como é que eu ia dizer, de bem-estar. Eu acho que grande parte do apelo da meditação hoje em dia tem que ver com o facto de nós termos vidas muito agitadas, não é bem agitadas, muito preenchidas e com muitos estímulos e a meditação ser uma espécie de anti-estímulo. E grande parte do apelo, julgo, é virada aí.
Miguel Farias
Mas por que não pensar que, se calhar, a forma como estamos a viver, inclusive a escolaridade das nossas crianças, é profundamente disfuncional?
José Maria Pimentel
Certo, mas isso é verdade, mas esse é um desafio muito
Miguel Farias
maior. Mas porquê que é maior? O tempo que passamos a ensiná-las a meditar, porquê que não é passado a ensinar outra coisa?
José Maria Pimentel
Como o quê? Não, eu quer dizer, eu acho que teoricamente até faz algum sentido, seria em vez de ensinar a meditar, se calhar ter uma carga horária menos exigente, por exemplo.
Miguel Farias
Por exemplo? Sim.
José Maria Pimentel
Não, esse é um ponto interessante, por acaso.
Miguel Farias
O que eu acho, e tenho pensado mais sobre a questão da educação precisamente por causa da meditação, Estimulou-me nesse sentido. O que eu acho é que se há de facto coisas que nos deixam com maiores níveis de stress, de ansiedade desde uma idade jovem, por que não dar a margem para pensar o que é que está a passar e o que é que podemos fazer de modo diferente. Será que a nossa forma de criar as crianças é adequada àquilo que nós acreditamos, que é que elas possam de facto ter um nível de bem-estar e de fruição, de desenvolvimento? Se calhar não. Se calhar nem sequer estamos a ensinar para poder desenvolver e usufruir de princípios básicos, em termos de democracia e de liberdade e autonomia.
José Maria Pimentel
Sim, sim, esse ponto é interessante. Eu estou a pensar como é que isso se resolveria, ou o que fazer em relação a isso. Por um lado, é difícil dizer que a meditação faz mal propriamente, não é? E há um lado inevitável, mas isso também tem a ver com uma pessoa...
Miguel Farias
Neste sentido, a utilização da meditação das escolas é mais um sintoma de algo mais alargado. Mas, por exemplo, falando de coisas básicas, nos dias de hoje fala-se muito de inteligência emocional. Agora, já no meu tempo se dava alguma educação sexual básica. Agora, educação relacional, certo? Porquê que eu sinto uma atração por determinada pessoa? O que é que eu faço em relação a isto? Qual a importância que lhe devo dar? Não há praticamente, tenho estado a perguntar a professores, todos os pisos que vou, nada, não se faz ou nada ou praticamente nada sobre isto. Uma coisa que vai dominar maior parte da nossa vida adulta. Curioso
José Maria Pimentel
dizeres-me isso porque ainda no outro dia estava a falar com um amigo que me estava a dizer, que também tinha falado com alguém, que estava a comentar que nunca... É curioso e não sei se a resposta certa a isto seria ter de incluir isso no currículo propriamente, mas eu dizia que era curioso que nós, em nenhum momento da escola, tivesse dada qualquer luz em relação à escolha, por exemplo, de de relações namorosas, por exemplo. Sim, sim. E, claro, como tu dizias, tem um impacto enorme, não é? Porque quer dizer, se tiveres uma relação monogâmica e tiveres filhos e não sei quem, será a pessoa que vai estar contigo mesmo que não seja para o resto da vida, pelo menos durante um tempo grande. Mesmo que seja mais do que uma pessoa ao longo do tempo. E no entanto, em nenhum momento é dada nenhuma luz em relação a isso, sendo que, como tu aludias há pouco, isso funciona, a maior parte, de uma maneira inconsciente e não de uma maneira consciente, e que tem que ver lá estar com estruturas biológicas que estão relacionadas com os cheiros, ou que estão relacionadas com, como é que eu ia dizer, até a própria fisionomia da pessoa, as proporções, sei lá, o lado das mulheres, por exemplo, a altura do mês, por exemplo, da cor do círculo menstrual, por exemplo, também tem o efeito enorme e são coisas que em nenhum momento nos são ditas, não é? Que é engraçado.
Miguel Farias
Não, aí está, novamente, são coisas que nos incomodam. Nós preferimos continuar a passar às crianças, de modo consciente ou inconsciente, mitos de eles casaram-se e foram felizes para sempre. E é isso que as crianças vão replicar. Ah, não, eu vou me apaixonar por uma pessoa e vão me casar e vão...
José Maria Pimentel
Mas isso é uma coisa, Miguel, também ao lado disto, que é muito recente o nosso conhecimento de como essas coisas funcionam. Eu diria que souberás melhor que eu, mas diria que tem umas décadas. Esta nossa noção, uma coisa é o inconsciente do Freud, que era uma coisa muito mais teórica e que tem bastantes diferenças daquilo que é o fenómeno inconsciente estudado na psicologia hoje. Sim, sim. Ele tinha que ver com os recalcamentos, com uma série de coisas do ego, super ego, e não quer dizer, tinha... Era completamente diferente. Agora, a nossa noção hoje em dia de que... Do papel na nossa cognição e na nossa ação de coisas que vêm do inconsciente é relativamente recente para ele já poder estar, queremos que é, não refletido no currículo educativo, não é? Porque aquilo que está no teu currículo são coisas que têm séculos. Aliás, não é a primeira vez que digo isto no podcast, eu tinha um professor de História que dizia uma coisa com piada, que as aulas eram provavelmente a instituição mais inalterada que nós tínhamos hoje em dia, porque se fosse o liceu do Aristóteles não funcionava de maneira muito diferente do que funciona hoje. E, portanto, as coisas demoram tempo, não é? Ou seja, demora tempo. Por acaso, a meditação é até um exemplo interessante porque faz um bocado um bypass a isso, não é? Acaba por ir autormamente, por começar a surgir, sendo uma coisa ainda muito recente, mas a maior parte das coisas demoram algum tempo a chegar aos currículos.
Miguel Farias
Mas vê bem, tu tens uma bebé de oito meses. Quando ela tiver 17, 18 anos hora de ir para a universidade, a maior parte daquilo que aprendeu será obsoleto, mesmo porque na altura em que ela entrar no mercado do trabalho vai estar tão transformada que, em termos práticos, muito pouco daquilo que aprendeu vai ser útil. Contudo, se houvesse uma aprendizagem de factos básicos da vida, isso sim, isso seria útil.
José Maria Pimentel
Sim, esse ponto é interessante. É verdade, no fundo é mais uma capacidade que te dá mais do que propriamente uma série de factos que com o tempo se tornam obsoletos. Sim, sim. Bem, com isto desviámos completamente da conversa da meditação. Eu acho que vou acabar devolvendo-te mais ou menos a pergunta que me fazias no início de se eu tivesse que explicar a meditação a alguém. No teu caso, se um amigo te perguntasse se devo experimentar meditação, O que é que lhe
Miguel Farias
dirias? Essa é uma questão que me fazem muitas vezes. A resposta padrão,
José Maria Pimentel
que eu não ouvi. Agora estás a responder depois de uma hora e meia de conversa, não há risco de ser descontextualizado.
Miguel Farias
Mas a resposta que eu costumo dar é perguntar o que é que deseja. Primeiro pergunta-te porquê desejas experimentar meditação e não aprender a tocar piano ou balé ou aprender mandarim, certo? E depois, consoante a resposta de qual é a tua motivação, Então faz, procura um determinado método e um determinado professor. E nisso eu acho importante ter-se um bom professor e aí entramos em águas bastante complicadas. Porque aí depende de qual é a pessoa que eu tenho perante mim, se a pessoa é religiosa, se não é religiosa.
José Maria Pimentel
Claro. E agora estou-me a lembrar, eu disse que ia acabar aqui, mas há um ponto interessante que não te falei há pouco, também relacionado com isto, e que tu abordas no livro, que eu achei praticamente interessante, que é o lado de... Ainda outro efeito que se fala a propósito da meditação, acho que se falava mais da meditação transcendental do que propriamente do mindfulness, mas que é a questão da empatia, ou da compaixão, de tornar as pessoas, no fundo, mais bondosas. E um ponto interessante que tu levantas, e que vai ao encontro de algumas coisas, que eu já tinha pensado, é que não é necessariamente assim e há vários indícios de a meditação provocar uma espécie de até de indiferença emocional, no fundo leva-te para um estado tão detesto, tão afastado do mundo mundano que tu desenvolves uma... Há um exemplo, eu lembro do Sam Harris no podcast dele, por exemplo, falar de um mestre qualquer budista que ele dizia que era tão... No fundo, ao fazer aqueles exercícios de estender a empatia a toda a humanidade que tu dizias há pouco, ele tinha a mesma empatia com o filho ou com o suposto filho que tinha relação a um absoluto desconhecido. Que é uma coisa que parece muito bonita mas nenhum de nós funciona assim, não é? Porque no fundo significa que o reverso da medalha é que se o filho dele e uma criança desconhecida estivessem a afogar, ele ficaria indeciso entre qual ir salvar, por exemplo, enquanto para nós seria obviamente o nosso filho. E eu lembro no livro que falaste até à propósito da tua própria experiência a meditar, de sentires-te o próprio efeito, uma espécie de... No fundo eu interpretei, mas pode não estar correto, como uma espécie de... Como quase uma menor empatia em relação aos problemas das pessoas que eram próximas, por exemplo, uma menor reatividade.
Miguel Farias
Há uma expressão que creio que em português eu traduziria como uma espécie de circunvalação da mente ou do espírito, em que a pessoa meditando-se vai afastando das emoções, precisamente arranja uma forma, em vez de confrontar-se a si próprio e diretamente com o que está a sentir, dá uma grande volta, afastando-se daquilo que é mais óbvio. Mas com todo o estado desse mestre que o Sam Harry cita, isso seria uma coisa perfeitamente culture e assaid dentro de algumas escolas de espiritualidade oriental, que a pessoa deve sentir uma equanimidade
José Maria Pimentel
total.
Miguel Farias
Por isso, dentro desse contexto, não é algo extraordinário. Mas
José Maria Pimentel
não há um lado disso de poder... Como é que eu dizer? As emoções, aliás, a palavra emoção, o étimo, é de movimento, ou seja, as emoções são aquilo que nos faz agir. E ao tu criares um afastamento em relação às tuas emoções, também vais estar, ou isso pode provocar com
Miguel Farias
que sejas menos ativo, menos... Esse é um problema que estava muito presente nesse tipo de espiritualidade, New Age, é que havia uma incapacidade extraordinária das pessoas de se organizarem e fazer qualquer tipo de ação social, por exemplo.
José Maria Pimentel
Sim. E havia uma coisa, eu acho que tu contas isto no livro, posso estar a tirar do seu tirado, mas que era alguém que até dizia, comentava que tinha tido uma experiência com um mestre budista, se calhar era hindu, e esta pessoa vê de fora, parece tudo mais ou menos o mesmo, que é sempre uma injustiça. E ele dizia que aquilo era uma tolerância sem empatia ou uma coisa desse género, porque ele dizia que contava, por exemplo, falava do sofrimento de alguém a esse monge, por exemplo, e ele tinha uma total passividade em relação a uma situação que a uma pessoa normal lhe provocaria repulso ou medo ou empatia ou uma série de coisas. Ele estava tão afastado, no fundo, das suas emoções, que aquilo lhe provocava uma quase uma indiferença. Sim, sim. E se lembra-me a crítica do escritor inglês, o
Miguel Farias
Chesterton, que ele torna-se católico a certa altura. E tem um livro, interessante mas polémico, por outro lado, em que ele fala dos sábios budistas representados com os olhos fechados, enquanto que os santos cristãos têm os olhos abertos e acesos, com uma chama viva, portanto, enquanto que os budistas deixam de interagir com o mundo real, os cristãos não. É interessante mas é também um pouco estereótipo,
José Maria Pimentel
não é completamente
Miguel Farias
verdadeiro o que ele diz.
José Maria Pimentel
Antes de passarmos, como habitual, às recomendações do convidado, deixem-me lembrar-vos que podem apoiar diretamente este projeto através do Patreon, a partir de apenas 2€ por mês. Visitem o site no link que encontro na descrição deste episódio, www.patreon.com.br e vejam os benefícios associados a cada modalidade de contribuição. Se não puderem apoiar financeiramente, o que percebo perfeitamente, podem sempre contribuir para a continuidade do 45° avaliando-o nesta mesma aplicação em que estão a escutá-lo e divulgando o podcast com amigos e familiares. Muito obrigado pelo vosso apoio e agora, de volta à conversa. A conversa já vai longa. Vou-te pedir a recomendação do livro. O livro, claro. Para encerrarmos.
Miguel Farias
Claro. O livro é A Queda do Céu, do David Kopenhauer. Ele escreve isto com um antropólogo francês, mas são na verdade as palavras dele. Foi publicado pela primeira vez em França, depois foi traduzido para português no Brasil e está publicado também nos Estados Unidos em inglês. Eu creio que é um livro que é um pouco como... Imagina que vem um habitante de Marte ou de Vênus e escreve sobre como é a vida dos humanos, portanto, visto completamente de fora. Ele é uma pessoa que se torna um ativista político e vem ao Ocidente, vai às Nações Unidas, vai ao Parlamento Europeu, Inglês, Francês. Ele dá-nos um retrato completamente fresco e diferente da nossa forma de ser, que nós não conseguimos ver porque está na nossa pele. Ao mesmo tempo que nos fala de coisas, da forma de ele ver o mundo, em que há coisas muito curiosas, por exemplo, há uma fronteira muito, muito eterna entre o mundo dos sonhos e o mundo acordado. E eu não entendo como é que isto é, mas parece ser vivido, parece que não é apenas simbólico, parece que é muito concreto, mas depois ele fala com espanto, e isto é enfaticamente repetido por ele, que parece que nós vivemos dominados por um demónio da ganância, que queremos mais e mais e mais, que não há fim ao nosso desejo de crer e dá imensos exemplos de como ele vê a nossa volta. E é verdade, só que nós, como está na nossa pele, nós não pensamos nisso.
José Maria Pimentel
Claro, claro. Sim, sim, é giro isso. Aliás, isso em si mesmo é um tema, até seria um tema interessante para um episódio. Portanto, ele é originalmente um índio, um indígena, não se deve dizer, um indígena yonomani, que depois se tornou um ativista político. Sim, curioso. Pois, e tem essa perspectiva de vista de fora. Essa crítica é uma crítica normal, mas no caso dele deve ser muito interessante porque tem uma perspectiva que está absolutamente a ver de fora. Sim, precisamente
Miguel Farias
porque ele vem de uma sociedade pequena, mas muito igualitária. Ele não percebe como é que em certos lugares pessoas não têm espaço para viver ou é preciso pagarem pela água.
José Maria Pimentel
Claro, sim, sim, sim. Tudo lhe é estranho. Claro que sim. Está bem, Miguel, obrigadíssimo. Gostei muito. Sim, olha, obrigado por teres vindo. Obrigado. Gostaram deste episódio? Que parte da conversa vos ficou mais no ouvido? Se puderem, partilhem comigo essa impressão por e-mail para o 45graus.com para que eu possa selecionar esse esquerdo para o 45 Graus Express, o podcast onde publico versões reduzidas destas conversas. Obrigado! O 45 Graus é um projeto tornado possível em grande medida pela comunidade de mecenas que o apoia. Mecenas como Gustavo Pimenta, Eduardo Correia de Matos, João Baltazar, Salvador Cunha, Duarte Dória, Tiago Leite, Joana Faria Alves, João Manzarra, Mafalda Lopes da Costa, entre outros cujos nomes encontram na descrição deste episódio. Até à próxima!