#67 Ricardo Araújo Pereira pt1/2 - Do Humor à Liberdade de Expressão, e vice-versa

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Bem-vindos ao 45°. E ao último episódio da temporada, e a pedido de várias famílias, que é como quem diz, vários ouvintes, trago finalmente o tema Humor ao podcast. E logo com o convidado ideal para este tema, Ricardo Araújo Pereira. Há muito tempo queria pegar neste tema no podcast. Acho um tema fascinante, uma vez que o humor está presente em muito do que fazemos, embora não em tudo, e ao mesmo tempo um fenómeno misterioso porque vai desde o extremamente básico até ao desafiantemente complexo. Perceber o que nos faz rir e, mais importante, porque nos rimos, é algo em que tenho pensado muito e esta foi uma ótima oportunidade para falar com alguém que não só é provavelmente o humorista português mais marcante do século XXI, mas é também uma espécie de filósofo do humor e um pensador de direito próprio sobre estes temas. O pretexto para a conversa foi um pequeno mas muito interessante livro do convidado, que ele define como, e cito, uma espécie de manual de escrita humorística. Este episódio é, na verdade, apenas a primeira parte da nossa conversa, porque a gravámos em dois dias diferentes, o que permitiu ter uma conversa mais alargada do que o normal e em que podemos discutir uma série destes temas em profundidade. O 45 Horáus regressa em Setembro e o primeiro episódio será então a segunda parte desta conversa. Os mecenas do podcast terão acesso adiantado à segunda parte da conversa, que vou colocar no Patreon durante os próximos dias. Mas voltando ao episódio, durante a conversa começámos por discutir a resposta a uma pergunta simples mas continua a ser misteriosa. Por que rimos? Falámos a propósito disto de um livro muito interessante de Matthew Hurley e Daniel Dennett, chamado Inside Jokes, que tenta dar uma explicação evolutiva para a nossa capacidade de achar graça e que acaba por ir muito ao encontro da visão que o Ricardo expõe no livro. Para compreender o fenómeno do humor passámos também pelas chamadas teorias do humor, que desde a antiguidade o tentam explicar. Um tema inevitável que também discutimos é o número crescente de pessoas ferozmente criticadas, despedidas do trabalho ou mesmo processadas por mandarem uma piada. Isto resulta do facto de o humor ser visto, hoje em dia, em alguns campos como uma fonte de poder e um meio potencial de agressão. Discutimos então se o humor pode ser uma forma de agressão. Falámos de liberdade de expressão e do papel do humor nas relações humanas e também na sociedade como um todo. Mas claro que para responder estas perguntas precisamos constantemente voltar ao início da conversa e, portanto, a discussão sobre o que é o humor e porque é que achamos graça a determinadas coisas esteve sempre presente durante a nossa conversa. E pronto, o 45° regressa então em setembro com a segunda parte da conversa, um episódio mais longo em que podemos explorar vários aspectos que ficaram de fora desta primeira parte. Fiquem atentos. Até lá, se tiverem disponibilidade, pedia-vos que respondessem a um inquérito sobre o podcast cujo link encontro na descrição deste episódio. Os ouvintes mais antigos lembrar-se-ão que já não é a primeira vez que peço para o fazerem. A verdade é que me é mesmo muito útil perceber o que vai na cabeça de quem ouve o podcast. E para além disso, neste caso, tenho também algumas ideias para o futuro do podcast para as quais é fundamental ter o vosso input. Obrigado, boas férias, mas para já fiquem com Ricardo Araújo Pereira. Ricardo, bem-vindo, estamos a gravar. Obrigado. Como eu tinha dito, eu gostava de falar, habulei do teu livro, embora para lá do livro, até porque o humor, tenho pensado muito nisto nos últimos dias, que voltei a este tema. Quer dizer, às vezes entusiasmo isso um bocadinho hiperbólico quando estou a gravar sobre um determinado tema, mas eu acho que dificilmente há um processo cognitivo mais fascinante e complexo do que o humor. São tantas coisas ao mesmo tempo. É isso. Tem mil manifestações diferentes, quer dizer, é quase impossível tu ires a pinpoint, não é? Algumas das quais contraditórias até. Algumas das quais contraditórias, exatamente. Aliás, uma das contradições, é o facto de o humor poder ser usado, quer para criticar quem está acima, quer para exercer coação sobre quem está abaixo.
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Sem dúvida. Só isso. Sim, sim. Só isso é incrível. Por exemplo, no Museu do Holocausto, uma das coisas que estão em exibição no Museu do Holocausto, o que eu visitei foi em Tel Aviv, uma das coisas que estão em exibição lá são caricaturas que os nazis faziam sobre os judeus. Ou seja, é, na verdade, de um certo ponto de vista, humor sobre vítimas. E, portanto, isso tem, quando se diz que o humor é uma arma, provavelmente isso a ser verdade, as armas também podem estar na mão do vilão e do herói, não é? Sim, sim,
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exatamente. Isto não é só flores. Uma das coisas que tu dizes, e que está um bocado relacionado com isso, há uma frase com piada, que era, acho que era baseada num poema do doutor Pimenta, se não me engano. Sim, sim. O Alberto Pimenta. O Alberto Pimenta, exatamente. O humor é contraditório como o caraças. É, exatamente. Que no fundo tem a ver com isso que nós estamos a falar. E depois há alguma coisa que tu falas, a certa altura, que aí já tem a ver com um bocadinho o cérebro do humorista, o que no fundo é uma parte do cérebro de todos nós, mas que no cérebro do humorista está especialmente desenvolvido, ou pelo menos há um enfoque maior nisso, que é a questão de olhar para a realidade de uma maneira que as pessoas normais não olham. Isso. Não é? Sim, sim. E isso lembrou-me, se calhar até vamos diretos a isso, e estava a falar nisso mais à frente, mas houve uma coisa que eu apanhei, eu não sei se tu apanhaste isto, tu no livro não abordas tanto desta perspetiva de perceber de onde é que vem esta nossa capacidade de achar graça. Acho que a tua ideia foi mais, passas um bocadinho pelas teorias do humor e depois falas sobretudo dos vários tipos de humor. Das estratégias humorísticas, digamos assim. Exatamente. E no fundo eu acho que o teu raciocínio, pelo menos da maneira como eu interpreto, é pensar isto é um poliedro tão complexo e com tantos lados que eu nem sequer conheço, que eu vou girar e focar aqui em alguns lados e tentar dar uma imagem mais clara possível. Acho que é isso, sim. Olhando para isso, andei à procura de algumas teorias que tentassem explicar de onde é que vem o humor, porque há aquelas teorias do humor, isso que provavelmente já lá vamos, mas a maior parte delas fazem uma de duas coisas, pelo menos na minha maneira de ver, ou se focam na mecânica do humor, quer dizer, o que não deixa de ter piada e de ser interessante, quer explicar, para uma piada acontecer tem que estar isto, isto e aquilo, que é aquela teoria da incongruência, dos dois factos incongruentes, ou então focam-se nas emoções que o humor gera, o alívio, a questão da tragédia, a questão da superioridade, que tem tudo a ver com como é que nós nos sentimos ao passar por uma situação, ao achar graça alguma coisa no fundo. E há um tipo, não sei se tu conheces, o Dan Dennett, que é um filósofo e cientista. Daniel Dennett, sim. O Daniel Dennett, exatamente. Aquele do, como é que se chama? Diz-se Dan Dennett, parece que é meu amigo. Dan Dennett. Sim,
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a Selfish Gene é esse, não é? Não, esse é do Dawkins. Ah, esse é o Dawkins, mas ele é, sim, sei quem é, o Daniel Dennett. É, é dessa área. Sim, sim, sei. É do Daniel Dennett. Ele estuda muito a questão da consciência, por exemplo. Isso, sei, sei, sei. Mas ele
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e o Dawkins se dão-se muito bem, portanto faz sentido essa confusão. Essa confusão. Mas sei quem é, sim, sim, sei. E ele tem uma tese, que se baseia na tese de um tipo que foi orientando o doutoramento dele, e que se calhar merecia até mais crédito do que ele, para, no fundo, explicar aquilo que me parece que é o mistério de Radeiro, não é, o mistério fundamental, que é, por exemplo, independentemente de as emoções que o humor nos desperta, e independentemente da maneira como nós podemos contar uma coisa para nos fazer rir, pá, por que raio é que nós achamos graça a coisas? Podíamos perfeitamente não achar graça, quer dizer, porque é que o nosso cérebro tem essa história de achar piada? E o que ele diz, que eu gostava de saber a tua opinião em relação a isso, que é uma proposta interessante, o que ele diz é que o proto-humor, aquilo onde o humor começou, tem a ver com o nosso cérebro ter que ter um mecanismo de recompensa, ou seja, lá está uma emoção positiva, uma sensação agradável, para lá está nos compensar, compensar o nosso cérebro de fazer um trabalho chato, que é andar a depurar erros, erros de, tu formas um modelo mental, qual que é, sobre o mundo, e tu percebes que esse modelo está errado, ou que há ali uma contradição, é uma coisa chata, e a tese dele é, a sensação de achar graça a alguma coisa, é o mecanismo do nosso cérebro, que foi construído, ou que foi selecionado, através da evolução, para nos compensar desse trabalho chato, mas necessário, de irmos recalibrando o nosso modelo, que está constantemente a ser atualizado com inputs novos, não é, não vemos ou ouvimos e lemos, não é, que é a realidade que vai
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corrigindo, não é, e a realidade vai corrigindo uma, digamos, uma teoria que nós tínhamos e que vai sendo, vai sendo desmentida pelos factos.
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Exatamente, o que pode ser nós próprios, ou seja, lá o exemplo mais básico, pá, que é tu estás em casa, pá, onde é que estão os óculos, pá, não encontras óculos de sol, e de repente vais à casa de banho, olhas-te ao espelho, pá, estão os óculos na cara, não é, mas também pode ser uma piada mandada por outra, não é, ou pode ser tu, tu a ver, uma pessoa mandar uma piada sobre outra pessoa ainda, que aí é o ideal porque não temos de olhar onde sai da coisa.
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Sim, eu acho que, quer dizer, a sensação que nós temos sempre é que qualquer tentativa de explicação fica sempre aquém da totalidade do fenómeno, não é, e há sempre alguém que põe uma objeção e a gente diz, realmente, realmente isso é uma exceção. A questão é, há uma frase do William Hazlitt que talvez resuma isso, que é, o homem é o único animal que ri porque é o único que é impressionado pelo, pelo, pelo facto de ver o que as coisas são e perceber o que as coisas deviam ser e ver o que as coisas são. Diz o William Hazlitt. Sim, está completamente ao encontro disto. Exatamente isso, sim. Naquelas teorias, não sei se vais querer falar sobre isso, são, atenção, isso são meio chatas, mas, para mim, interessantes, não é? Eu acho interessante. Sim, eu também, eu também. Mas eu não sou humorista. Naquelas teorias, se quiseres fazer uma resenha, não é, portanto, primeiro há uma, há uma, quer dizer, desde sempre que isto impressiona as pessoas, porque é que nós somos, porque é que há várias pessoas que foram dizendo, o Aristóteles diz, pá, o homem é o único animal que ri, várias pessoas que notam isso, o homem, o Rabelais, acho que é uma das epígrafes do Pantagruel, é essa, o homem é o único animal que ri, há esta frase do William Hazlitt, há uma entrevista muito gira do, não sei se conhece isso, uma entrevista do Humberto Eco à revista Paris Review, a última das perguntas, são eles a perguntar, ouça, por que é que o homem é o único animal que ri, ele disse, eu tenho uma teoria sobre isso, tentei, como eu não sou capaz de a expor, fiz o mesmo que toda a gente faz quando não consegue explicar uma coisa, que é, contei uma história, contei uma história e foi isso que eu fiz no nome da Rosa, foi isso que eu tentei fazer. Eu tive desde sempre o plano de escrever uma espécie de teoria unificada que explicasse o fenómeno, só que é extremamente difícil, mas ele diz isso, ele diz, o que ele acaba por dizer é, eu acho que é uma reação, é uma maneira da gente reagir, é pá, basicamente é isso que está aí, que é à perda, ou ao erro, ou em ultima análise, à morte, e portanto, naquelas teorias, uma das teorias que é aquela que, isto começa com a chamada teoria da superioridade, e essa teoria vigora durante, pá, aí dois mil anos, portanto vai desde Platão até Thomas Hobbes, toda essa gente durante esses dois mil anos, e isso atravessa a Idade Média, não é surpreendente que aquele, que aquela personagem do Jorge de Burgos, o bibliotecário cego do livro de Humberto Eco, tenha aquela perspectiva sobre o humor, porque a perspectiva era essa, o riso era qualquer coisa eticamente suspeita, porque se a teoria da superioridade, que era a única, vigente, diga-se, o que ela diz é que nós nos rimos porque nos sentimos superiores ao objeto do qual estamos a rir, e portanto isso, por exemplo, Sócrates no Platão dizia que as pessoas, a gente ri-se das pessoas que interpretam ao contrário o oráculo de Delfos, ou seja, aqueles que em vez de se conhecerem a si mesmos, se desconhecem a si mesmos, e por isso acham que são mais belos do que são, mais ricos do que são, mais inteligentes do que são, mais virtuosos do que são, é dessa gente que a gente ri, nós rimos porque nos sentimos superiores a eles, e o Thomas Hobbes vai, tem uma frase, um emblema que resume isso, resume a teoria toda, que é, ele usa a expressão sudden glory, glória súbita, é isso, a explicação é nós rimos porque somos tomados de uma glória súbita sobre aquilo de que estamos a rir. Claro que de repente, eu creio que falo isso no livro, de repente há alguns autores que começam a pôr isso em causa, um deles é um tipo chamado Francis Hutchison, o Francis Hutchison tem umas teorias engraçadas, o que ele diz é o seguinte, ou seja, ele começa a apontar algumas lacunas dessa teoria, o que ele diz é o seguinte, bom mas se é isso, se nós nos rimos por sentirmos superiores, se é isso, ou talvez se fosse só isso, então, quer dizer, quanto mais superiores nos sentíssemos, melhor, mais engraçado seria, e nesse caso porque é que não vamos para uma enfermaria aos domingos, rir das pessoas que estão lá com a perna partida, isso não nos dá vontade de rir, na verdade, uma das coisas que ele diz é o seguinte, um dos argumentos é, se é isso, se é a superioridade que nos dá alegria, porque é que nós temos como animais de estimação, para nos darem alegria, cães e gatos, e não bichos em relação aos quais nós tivéssemos uma superioridade manifesta, tipo lesmas, ou ameijuas, e ainda acrescenta um argumento engraçado que é, se é isso, ou seja, se é a superioridade, porque é que nós nos rimos mais de um cão quando ele está com uma saia apoiado sobre as patas de trás e se parece mais conosco do que quando ele está só a ser cão, e a nossa superioridade em relação a ele é mais evidente, é claro que a gente pode objetar a este argumento que quando o cão está com uma saia apoiado nas patas de trás, está a tentar parecer-se conosco e aí é mais ridículo, é mais ridículo a sua distância de nós, e quando está a ser cão, está só a ser cão, não é? De qualquer modo, essas críticas abrem caminho para essa tal outra explicação, a explicação que se, a teoria que se sucede à superioridade, que é a teoria da incongruência, e nessa teoria da incongruência, o que se diz é que a gente, a questão da superioridade é posta de lado, o que se diz é que nós nos rimos porque, lá está, porque aquilo que a gente está à espera que a realidade seja, não é aquilo que a realidade é, é a isso que a gente acha graça. Nessa medida, um dos autores reforça especificamente esse ponto que é, quando a gente se ri porque aquilo que a gente está à espera, ou seja, porque a nossa teoria sobre o que a realidade é, é desmentida pelos factos, nesse momento, a gente está a rir-se de uma desfeita que é feita à razão, a razão estava convencida de uma coisa e os sentidos captam que a realidade é outra, ou seja, acaba por ser uma vitória dos sentidos sobre a razão, e isso continua se calhar a tornar o riso eticamente suspeito, porque é, na verdade, uma vitória do corpo sobre, digamos, o espírito, tem esse lado engraçado, acho eu, um dos aspectos que dão má reputação ao riso tem a ver justamente com isso, com o facto de ser um fenómeno do corpo. É um prazer? Exato, pode ser um prazer, para já, se há coisas na qual toda a gente concorda, mesmo as pessoas que têm teorias opostas sobre a razão para rir, é que o riso dá prazer, é difícil encontrar alguém que diga o contrário, portanto, o prazer é uma questão. O facto de ser um fenómeno relacionado com o corpo, não exclusivo do corpo, mas relacionado com o corpo, ou seja, que faz o corpo, produz uma convulsão física de forma à cara das pessoas, aliás, essas são algumas das objeções do Jorge de Burgos naquela conversa que ele tem com o Guilherme de Baskerville, o de Baskerville é essa, é ele a dizer, isto é uma coisa terrível, as pessoas ficam com um ar, é uma coisa animalesca, as pessoas ficam com um ar deformado quando riem, e portanto, esse aspecto, ou seja, mesmo essa ideia de que o que acontece para a gente rir é o choque entre aquilo que a gente espera que a realidade seja e aquilo que a realidade é, de um certo ponto de vista consiste nisso, ou seja, numa vitória dos sentidos sobre a razão, e portanto, não é, se alguém, digamos que não é uma teoria que faça com que o riso tenha melhor reputação, na medida em que isso também talvez não seja a melhor, a coisa mais, digamos, que se preze mais, que a razão seja derrotada, no entanto, isso tem o seu valor, que a razão, um dos autores diz mesmo isso, diz, a razão que essa senhora austera, de repente é derrotada, isso tem alguma graça a isso.
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Exatamente, sim, sim, essa questão da austeridade não é irrelevante para isto, ou seja, austera no sentido de inviolável, de circunspecto, de que não aceita o erro, e esse lá tem muita piada, e depois, ao mesmo tempo, e no fundo isso está relacionado com o que estavas a dizer, no fundo, admitindo que esta tese do Dennett faz sentido, eu acho que não tenho certeza que consiga acertar no alvo, mas anda lá perto, depois o que tu tens é que na prática isso depois pode ser, essa válvula que nós temos, pode ser usada de maneira exagerada, e por provocar esse efeito físico, por provocar essa emoção, pode, acaba portando uma série de efeitos colaterais, por exemplo, ele faz uma conversa muito engraçada entre este mecanismo de recompensa que nós temos, e outros mecanismos de recompensa que nós temos que servem da mesma forma para nos fazer ter vontade de fazer coisas que, caso contrário, não digo que tivéssemos razões para não fazer, mas pelo menos teríamos uma perspectiva neutra. Por exemplo, o açúcar, o açúcar é uma fonte de energia rápida, e portanto nós evoluímos para gostar de coisas doces, e depois tu tens hoje em dia uma maneira de dar um sobre-estímulo a essa válvula, que é doces, um bolo qualquer, depois um bolo à frente do miúdo, e o miúdo corre para o bolo, porque o miúdo e nós, todos, o miúdo parece que somos superiores, se eu ver um bolo e corre para aquilo, e não consegues parar, por isso é que as pessoas comem sobremesa, que é uma coisa aparentemente contraditória, comer sobremesa quando obviamente já estás saciado no fim da refeição.
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O que estás a dizer é que há hoje, assim como há excesso de doces, é que há um excesso de estímulo logístico. Não, não acho que haja excesso. Excesso, ou pelo menos que isso tenha um peso grande, que se dê uma grande importância a isso.
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Não, eu acho que se dá, não acho que se dê importância a menos, mas é porque eu acho muita piada a humor. Acho é que, o que é interessante disto é que faz com que o papel de quem conta piadas, seja, piadas no sentido lato aqui, quem diz coisas que, ou faz coisas que façam os outros achar graça, está no fundo a criar artificialmente um estímulo, essa recompensa, artificialmente o que é giro, está a fazê-lo de forma artificial e muitas vezes exagerada, não é exagerada é o adjetivo errado, está a fazê-lo, é um sobre-estímulo, ou seja, é um estímulo maior do que aquele para que nós fomos hardwire, para que nós evoluímos, o que não deixa de ser interessante, quanto melhor tu conseguires, quanto melhor for o doce que tu conseguires dar, maior é essa reação e daí o lado físico, e portanto quando tu, dificilmente tu te partes a rir, aos cangalhos te rires quando vês os óculos na testa, ou na testa não, os óculos na nuca, mas se o vires numa grande piada, és capaz de não conseguir parar de rir, e sobretudo em situações sociais, eu lembro-me, já aconteceu a toda a gente, aquelas situações em que tu não deves rir.
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Exato, sim, sim, isso é a quantidade de vezes que, eu acho que hoje, por várias razões, já não se, o professor Abel Barros Batista dava a falar disso, sobre, acho que ele escreveu um texto sobre isso, que é sobre, já ninguém contando de outras, não há, é capaz de ser bem observado, eu realmente não me lembro de ouvir essa prática, de contar anedotas uns aos outros, excepto numa ocasião, que é em funerais, eu, em funerais, acho que é o único sítio em que eu ainda oiço. Ah é? Curioso, sim, engraçado. E eu não sei se isso tem relação com o peso da situação, que é difícil de suportar, por várias razões, porque está ali, em princípio, está uma pessoa de quem a gente gosta, ali, nós estamos a rodear uma pessoa de quem a gente gosta, e também é o facto da pessoa estar ali, recorda-nos dolorosamente, que mais cedo ou mais tarde nós também vamos estar naquela caixa. E é possível que isso seja uma forma de obter algum, digamos, algum… Paliativo, não é? Sim, um escapo, em relação a esse peso, sim.
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E lá está, e estás a fazer a mesma coisa com os doces, as pessoas quando estão tristes comem, para, agora tu quer repisar a analogia dos doces, não é? Sim. Quando estás triste tem tendência para comer doces, quando estás triste o humor é um paliativo. É engraçada essa do funeral, por acaso, porque é que ele dizia que não se contava andotas? Eu diria que é porque denuncia a piada que aí vem, não é?
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Não, não, eu acho que a razão pela qual ele diz que se contam menos andotas é porque o atual ambiente vai no sentido de rejeitar que se diga alguma coisa que seja ofensiva para alguém, e é muito difícil que uma andota não possa ser ofensiva para ninguém. Mas continua-se a ter humor, para lá das andotas. Sim, continua-se, mas acho que é inegável que há um ambiente que rodeia, a gente tem visto isso, sobretudo, internacionalmente, não é? Sim. No outro dia tivemos um senhor que foi julgado por ter ensinado o cão da namorada a fazer a saudação romana, o facto disto ir a tribunal parece-me significativo, ainda hoje saiu uma notícia segundo a qual um tipo que fez umas piadas sobre aquele caso trágico do bebê que cai por um cano em Espanha, vai ser julgado por causa de coisas que pôs no Twitter. E, portanto, quer dizer, há o caso muito famoso da Justine Sacco, aquele caso internacionalmente conhecido em que ela põe uma piada no Twitter. Ah, e quando saiu do avião. E quando saiu do avião já tinha sido despedida, sim. E depois, aliás, ele imposta uma pena que tem tendência a ser eterna, não é? Porque ela depois, aquilo dá um, ela foi trend número um do Twitter mundial. Claro que ela agora, quando vai candidatar-se a um emprego e diz o nome, as pessoas, em princípio, a primeira coisa que fazem é pôr o nome do candidato no Google, a ver o que é que acontece e aparece toda uma tempestade que leva a que as pessoas tenham alguma relutância em voltar a contratar uma pessoa assim. E talvez seja disso. Talvez haja esse tipo de relutância, não sei.
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Eu acho que essa é a hipótese do Abel Barros Batista. Eu estava a pensar nisso de outro ponto de vista, que era em relação às anedotas especificamente, no sentido em que tu continuas a ter humor, continuas a ter ainda algum humor mais negro mas feito no recato, não feito em lugares públicos, ou então em pessoas que estão nas distintas países. Exato. Que é a melhor maneira de estar. Que é a melhor maneira. As anedotas, pelo menos na nossa realidade cultural, que é a única que eu conheço de viver o dia-a-dia e tu também, eu acho que as anedotas foram perdendo terreno e bem porque nós refinámos o nosso humor, não achas? Isso é verdade, sim.
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É verdade no sentido em que a anedota é um texto humorístico pouco interessante neste sentido. Ou seja, a anedota exige demasiada atenção para a recompensa que dá, ou seja, uma anedota normalmente é um texto humorístico que dura um minuto e meio e que obtém uma gargalhada no final. É por isso que, por exemplo, gente como o Fernando Rocha, quando conta anedotas, as conta de outra maneira. Exatamente. Tu quando ouves uma anedota contada pelo Fernando Rocha, aquilo vai tendo momentos de riso, seja pela linguagem que ele utiliza, seja pelas expressões que faz, seja pelo modo como ele escolhe introduzir a partes, ele percebe, e bem, que do ponto de vista humorístico a anedota é pouco eficaz, no sentido em que leva muito tempo a obter a… O açúcar está só no final. Exatamente. É isso.
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Não, é engraçado isso. E outro exemplo, o Jimmy Carr, que tu te entrevistaste há pouco tempo.
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O Jimmy Carr, não contando anedotas, faz piadas muito curtas, ou seja, ele quer, o objetivo é exatamente esse, é meter o máximo, o maior número de gargalhadas possível no mais curto espaço de tempo. Sim, sim, exato.
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Isso é muito curioso.
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Ele tem, aliás, um culto da brevidade, portanto, ele tem, volta e meia, ele impõe-se a si próprio um desafio, que é fazer uma piada com o mínimo de palavras possíveis. Quatro palavras. Três palavras. Duas. Uma. Acho que até tem com uma, não é? Acho que tem só com uma, sim. Acho que sim. Já não sei qual é.
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As pessoas que fazem stand-up falam muito disso, não é? Exatamente. De ser muito ingrato, no sentido em que tu estás a ser julgado. É como um restaurante que está a ter uma apreciação a cada dez segundos, ou a cada cinco segundos, não é? Se tu passas dez ou vinte segundos sem ter graça, ou sem pelo menos teres uma promessa latente de graça o suficientemente forte, aquilo perde-se, não é? Porque é uma coisa engraçada. Voltando à teoria da mecânica da graça, que estávamos a ouvir há bocadinho, a questão da incongruência. Pelo menos a versão moderna, parece-me, tem essencialmente duas condições, é tu teres essa incongruência, ou seja, no fundo, violares um modelo mental que tu tinhas estabelecido previamente e que estava incompleto, não é? Ires contra uma coisa qualquer que tu tinhas concluído, pelo menos tinhas uma espécie de pré-conclusão em relação a isso. E essa violação ser benigno. Exato. E o lado benigno dessa violação é o lado, é para onde a porca torce o rabo, não é? Ou seja, é aí que, aquilo que nós falámos há bocadinho em OFF, e que é o grande tema no humor hoje em dia, que é a questão da liberdade de expressão e da polêmica por determinadas piadas, é que tu falavas há bocadinho por causa da história do mídia em Espanha, é a questão de decidir se a violação é benigna ou não é benigna. Exatamente. E é isso que muda de pessoa para pessoa, não é?
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Sim, bom, de pessoa para pessoa, certamente. Eu acho é que há, tendencialmente, ou melhor, é possível verificar, acho eu, que há uma tendência para considerar que essa violação não é benigna. E quando até há algum tempo o entendimento era de que era benigna, eu acho, o que é curioso é que eu acho que estamos a voltar, ou seja, está a entender-se agora, cada vez mais acho eu, que a comédia é uma agressão. Por exemplo, nós sentimos bastante isso no programa que estivemos a fazer agora, o programa chama-se, foi premonitoriamente chamado de gente que não sabe estar, quer dizer, não era preciso fazer premonições, era óbvio, era óbvio que, tendo em conta o sítio em que a gente estava, ou seja, incluir uma espécie de suplemento do jornal, que é um sítio respeitável, tendo em conta a maneira como a gente se comporta e as coisas que diz, que nós éramos, íamos ser considerados gente que não sabia estar e realmente a gente não se enganou. Muitas vezes foi raro o programa em que alguma voz não se levantou a dizer, epá, sobre isto não, mas pode-se fazer piadas sobre isso. E quando eu digo algumas pessoas não estou a dizer, não estou a falar em anónimos das redes sociais, não se trata disso, por exemplo, o diretor do Diário de Notícias disse, escreveu um texto a dizer, eles fizeram piadas sobre a diretora da prisão de Passos de Ferreira, epá, não se faz. E eu não percebo porquê. E havia, por exemplo, havia também objeções ao facto de a gente ter feito sobre o Armando Vara, objeções essas que eram concentradas na expressão, não se bate em quem está no chão. Eu tenho duas objeções a essa crítica, que é, primeiro, comédia não é bater, e segundo, o Armando Vara não está no chão. O meu conceito de estar no chão, eu sei que o Armando Vara está preso, e isso deve ser muito, muito desagradável, mas eu conheço gente que está livre, que está mais no chão do que o Armando Vara. O Armando Vara vai sair e vai continuar, daqui a dois, três anos, não sei quando é que a pena acaba, e vai continuar a ser um milionário. Estava numa comissão parlamentar de inquérito, que é um sítio onde raras vezes aparece gente que está no chão, gente que está no chão não vai à comissão parlamentar de inquérito. E depois, para mim o essencial é, comédia não é bater. Por exemplo, é possível que a gente diga, bom, mas toda a linguagem que rodeia a comédia é, digamos, bélica, é uma punchline, e os humoristas dizem, quando estão no palco e falham, dizem, I bombed, I died, quando arrasam, dizem, I killed. Sim, sim, não há dúvida, mas essa linguagem bélica não é reservada para os alvos das piadas. A punchline não é sobre o alvo da piada, é sobre o público. Quem leva o punch da punchline é o público, não é o alvo da piada. Nem sequer é o tema da piada, também convém não confundir o tema da piada com o alvo da piada. E o que me parece hoje é que há uma tendência, digamos, há uma inclinação, primeiro, para ser literal, e isso dá cabo da comédia e de todo o discurso que não seja, quer dizer, lá está que não seja literal. Interpretar à letra um poema é fazer figura de parvo, e portanto, interpretar à letra uma piada também é fazer figura de parvo. E depois, também acho eu que há uma inclinação, além da inclinação para a literalidade, há uma inclinação para, por exemplo, ignorar o contexto, ignorar o contexto em que uma coisa é dita.
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Isso é muito fácil de acontecer com as redes sociais, porque o contexto ficou lá na origem. Sim, é facílimo.
RAP
E isso gera dificuldades, por exemplo, a entender a ironia, a entender uma série de coisas, mas nada contra. A questão é esta. Às vezes as pessoas dizem assim, bom, mas vocês não querem é ser criticados. Não, a questão não é essa. A questão é, vamos lá ver, liberdade de expressão é, uma pessoa diz uma coisa, as outras criticam, e não fica por aqui. A pessoa criticada pode criticar a crítica que lhe foi feita, e assim sucessivamente por mim até ao infinito, se as pessoas tiverem paciência para continuar a criticar a crítica e a crítica à crítica, se quiserem continuar até ao infinito, ótimo. O que eu acho é que hoje há uma tendência para saltar daí, ou seja, a discussão não é só, vamos discutir isto então, não é só, vamos discutir isto, é, vamos processar então, vamos tentar fechar-lhe a página do Facebook, vamos tentar, isso já é outra coisa, isso já é outra coisa. É um facto de autoconfiança. Sim, isso já não é, bom, está aqui a minha liberdade de expressão de criticar, está a tua de reagires à crítica e a minha de reagir à tua reação à minha crítica. Não, não, há um passo subsequente que é dado, que é, por exemplo, o caso da, não tem a ver com o humor, mas o caso da Maria de Fátima Bonifácio. Eu sinceramente fiquei muito agradado com o que aconteceu, numa sociedade livre e aberta eu acho que é aquilo que deve acontecer, ou seja, uma senhora publica um texto abjeto, o texto submete-se àquilo a que se costuma chamar o mercado das ideias, não é, e vai ao mercado, vai à luta no mercado das ideias, leva uma coça de toda a gente. O primeiro artigo crítico saiu no Observador, foi da Marta Muznick. O Miguel Paias Maduro, por exemplo, de direita, veio fazer um texto a execrar o que a Fátima Bonifácio tinha dito e a dizer, epá, eu não percebo que o meu quadrante ideológico esteja a dizer, bom, sim, mas, mas, quer dizer, mas, ou seja, condenar sem nenhum rebusso aquilo que tinha sido dito e, portanto, há, além de ter sido desmembrado, ter sido desmontado, ter sido, ter tido os argumentos, os factos que eram apontados terem sido desmentidos com factos esses sim verdadeiros, os argumentos terem sido desmontados, etc. Além disso, o texto ainda foi escarnecido, que é excelente, porque às vezes as pessoas dizem, então, mas debate-se com o racista, há várias coisas para fazer, não precisa ser debate, por exemplo, enchevalhá-lo com escarnio é uma boa hipótese, escarnecer dele é uma boa hipótese, mesmo as pessoas que escreveram textos sobre o texto da Fátima Bonifácio estavam a debater com ela, não sei bem, mas estavam a rebater aqueles argumentos, isso sim.
JMP
Mas sendo factualmente errado, o debate parece-me uma solução bastante intuitiva.
RAP
Sim, sim, com certeza, com certeza, a mim também, só, mas nós não ficamos por aí, de repente há pessoas que dizem, não, não, agora vamos processá-lo, agora vamos tentar prendê-lo, a partir daí é, não, não, ou seja, há um momento em que alguém diz, vamos proibir este discurso, vamos puni-lo criminalmente, eu já não dou esse passo e há gente, quer dizer, felizmente apareceu, por exemplo, o Francisco Louçã e o Fernando Rosas apareceram a dizer que não concordavam com esse, que esse passo fosse dado e eu acho que essa é a minha posição também, acho bem.
JMP
Até porque tu estás a fazer, eu acho que a questão da liberdade de expressão tem algumas derivadas que são interessantes e não são óbvias, mas há um lado fundamental que é, o que nos interessa, ou o que nos interessa enquanto sociedade é atacar as ideias, não as pessoas, é como aquela analogia do sintoma e da causa na medicina, não é? Ela escrever aquele texto não é especialmente relevante para a ideia, sobretudo ela enquanto pessoa não é especialmente relevante para a ideia, a ideia ou está certa ou está errada, e no caso do humor, eu tenho curiosidade de saber o que é que tu achas em relação a isso, porque eu não acho, há aquela pergunta clichê dos limites do humor, eu não acho que a ética não esteja presente no humor, claramente está e cada pessoa tem a sua própria ética e embora possa assumir uma persona para efeitos humorísticos, de comediante, que no fundo permite criar algumas liberdades em relação a essas coisas que a pessoa diria, dizendo a brincar pode dizer outras coisas, mas não diz tudo, ou seja, a pessoa não deixa de ter alguma ética. Agora, o que acontece numa sociedade, e nós vemos isso, há determinado tipo de piadas que hoje em dia já não resultariam, mas não resultariam porque não têm piada, ou seja, porque nós já não achamos piada e isso é muito visível, eu não sei se tu partilhaste esta visão, mas quando a pessoa tenta fazer um humor negro, no fundo, aquilo é um grande desafio no sentido em que tu tens que ser muito bom, se tu não foste bom não tens piada, e ao não ter piada morres, para usar-te a apologia, por não ter piada, porque aquilo não tem graça.
RAP
Mas a questão é essa, a questão é essa, o que tu estás a dizer é, a piada é avaliada em termos humorísticos, ela não tem piada, agora, muitas das críticas que se fazem hoje são críticas morais, não são críticas humorísticas, ninguém diz nem se não têm piada, o que dizem é, não, desculpa, o senhor não pode fazer piadas sobre esse tema ou sobre essa pessoa.
JMP
Uma ponta até vai um bocadinho mais além do que isso, que é, essa questão da moral está presente, ou seja, tu quando vendes uma piada tens uma framework moral que está lá presente, está presente no teu público, mas se essa framework moral estiver incorreta e muitas vezes está, e ao longo da história nós fomos, no fundo, calibrando uma série de coisas que faziam mais mal do que bem, não é atacando quem está a dizer a piada que tu vais resolver aquilo, é ter essa discussão socialmente, e se calhar daqui a 10 ou 20 anos há determinadas coisas que já não se dizem, há determinadas piadas que já não se fazem mal ou bem, não é, mas já calibraste aquilo naquele sentido, agora, atacar o humorista porque disse aquela piada, ou atacar o não humorista, não é, ou qualquer pessoa, ou quem, estar a tirar no sentido errado, não é? Pois é pá, é possível que sim. Mas discordaste disso, eu não quero estar a...
RAP
Não, não, não, nada, eu acho que, quer dizer, eu continuo a fazer o que me apetece, quer dizer, eu faço o que me apetece, sempre foi, a minha estratégia sempre foi essa, eu faço o que me apetece, e depois verifico se há mais gente que acha graça àquilo ou se eu sou o único, esse sempre foi o nosso método. Agora, que hoje há uma tendência para avaliar, porque é que é preocupante isso, a tendência para avaliar, digamos, uma piada do ponto de vista moral e não do ponto de vista humorístico? É porque normalmente as avaliações do ponto de vista moral falham, digamos, o entendimento sobre a que, por exemplo, a piada faz referência a uma determinada realidade, mas pode não ser sobre isso, pode ser sobre outra coisa, por exemplo, o humor negro em especial, às vezes há piadas de humor negro sobre bebés mortos. Quando a gente ri de uma piada de humor negro sobre bebés mortos, não está a rir de bebés mortos, é preciso ser um tipo especial, psicopata, para rir de bebés mortos. Que haverá, possivelmente, está lá no meio. É possível que haja, aliás, uma das objeções é essa, é, bom, mas e as pessoas que de facto acham graça a bebés mortos? Não percebem que estás a ser irónico e vão rir. Sim, mas eu tenho que submeter o meu discurso, como há dois ou três energúmenos que vão achar, e isso é um bom argumento, para não se fazerem, por exemplo, documentários sobre campos de concentração. Não faças porque há nazis que vão se deliciar com aquilo. Não creio que essa gente, os que não sabem interpretar uma coisa, devam ter o poder para condicionar o nosso discurso. E, portanto, normalmente uma piada de humor negro que fala em bebés mortos, não é sobre bebés mortos, é quase todas as piadas de humor negro, aliás, são sobre um tema, que é o sentimentalismo. É isso que o humor negro ataca, ataca o sentimentalismo, e a gente pode achar o que quiser, pode achar que é de bom gosto, que é de mau gosto, que é repetitivo, que é giro, que tem graça, que não tem. O que quisermos. E agora, dizer que, confundir o tema com o alvo, lá está, parece-me que é interpretar um poema à letra, é igual a interpretar um poema à letra.
JMP
E isso até volta a ir ao encontro daquilo que falávamos no início, ou seja, esse sentimentalismo no fundo é muitas vezes uma reação desproporcionada, não digo necessariamente desproporcionada, mas não racionalizada, que tu fazes em relação a determinada coisa. E pouco produtiva, não é? Sim, e pouco produtiva.
RAP
O sentimentalismo, a gente vê isso muito, eu tenho, quer dizer, eu constato, sem grande surpresa, devo dizer, porque eu nunca tive grandes dúvidas sobre, digamos, a minha miséria moral. Eu estou disposto, estou muito disposto a admitir a minha miséria moral. O que eu às vezes sinto que a minha vida é o poema em linha reta do Fernando Pessoa, quando ele diz, todos os meus amigos têm sido campeões em tudo. Eu sou o único ridículo no meio desta história, sou o único. E eu acho, toda a gente à minha volta é santa. A gente abre um Twitter, abre um Facebook, abre uma coisa qualquer, e o que lá está escrito, o subtexto de quase todas as coisas que lá estão escritas é, valha-me Deus, eu nunca, eu nunca, eu nunca diria isso, eu nunca faria assim, eu nunca. E eu, quer dizer, as pessoas terão todas as qualidades, em princípio não têm a da modéstia, porque ninguém modesto exibe a sua santidade com este fulgor para toda a gente.
JMP
É aquela questão do virtue signalling, não é? Sim, é isso, é isso.
RAP
Mas por mim então há vontade, por mim há vontade. Se isso faz feliz as pessoas, demonstrarem que são realmente moralmente superiores a toda a gente, quer dizer, acho ótimo, eu sou a favor das pessoas estarem contentes.
JMP
E o reverso da medalha disso, que é o lado bom da coisa, é quando tu faz um espetáculo stand-up, uma coisa do género, e o tipo diz uma piada de humor negro, ou uma coisa qualquer, não convencional, e tu percebes que todas aquelas pessoas que estão ali contigo conseguem rir-se daquilo. Sim, com certeza, sim. No sentido em que aquilo não é uma impureza, não é uma coisa que podes rir sem, não é necessariamente aquilo.
RAP
Não, e são pessoas que não vão sair dali para ir matar bebés, ou para ir violar pessoas, ou para... Não é isso que está em causa, ou seja, entende-se, e eu acho que esse entendimento, em certa medida, ou em certos meios, às vezes se perde, entende-se que às vezes dizer uma coisa não tem relação nenhuma com fazer a mesma coisa. E a questão do contexto, sobretudo, também é muito importante, quer dizer, tu podes ir ao jornal da noite e dizer que os ciganos são todos para matar, não. Eu já disse na televisão que o cigano é um povo que é todo ele para ir à vida? Já. Porquê é que eu posso? Porque eu, na verdade, não estou exatamente a dizer isso, quer dizer, não estou a dizer isso. Ou seja, hoje acho eu, ah, não interessa o contexto, não interessa o contexto, ah, mas ele está a satirizar aquele tipo de discurso, não interessa, aquele discurso tem que ser banido. Sim. Mas ele não está a dizer isso, aquilo é uma coisa... Mesmo quando é irónico, não podes.
JMP
Aquilo que me parece ser, no fundo, o que os poléteis estudam, é tu passares de uma situação orgânica de tu, ou qualquer pessoa, ou até o seu público que conhece, que vai seguindo, e no fundo está dentro daquele modelo mental, está dentro do filme. É possível, sim. E passaste para ter um inorganicamente, porque quem te critica dificilmente, por exemplo, no caso do programa, é quem vê o programa todos os dias, não me parece. Ah, pois, não sei. A não ser que tenha um especial prazer.
RAP
Sim, em ser flagelado, sim, mas lá está, mais uma vez, nada contra isso, nada contra que isso aconteça. E eu espero, também, ter a liberdade de fazer objeções às críticas, porque por que raio é que eu não poderia fazer isso, não é? E se as pessoas quiserem continuar a conversa, façam objeções às minhas objeções. Estamos entretidos, temos conversa até dezembro, não há problema nenhum, pela minha parte, não há problema nenhum. Eu acho, a minha objeção é essa, eu acho que quando as pessoas dizem, não, não se batem quem está no chão, há uma diferença entre bater e comédia, se quiseres a gente testa aqui, eu dou-te uma carga de pancada, e depois a seguir faço sarcasmos mesmo muito azedos, e tu dizes-me o que é que gostaste mais, o que é que te custou mais a aceitar.
JMP
E entre outras coisas, há uma confusão entre, eu já ouvi muitas vezes o argumento, parecido com esse, que não se batem quem não está no chão, no sentido de que, bom, a comédia devia ser sátira, não é? Não devia se agosar com os políticos e tal, com o poder económico, agora vais agosar com minorias. Mas isso não é entender bem o que é comédia. Pois, pois não. Porque a comédia é dizer o indizível. Exatamente. Isso é que cobre...
RAP
A questão é essa, a questão é, às vezes eu disse isso, punching up, lá está outra vez o punching. A minha primeira objeção é essa, comédia não é punching. Esse é o primeiro aspeto. Segundo, o que é que tem mais graça, é tu criticares, é tu acertares com a maçã podre na cabeça do, na testa do rei ou na testa do criado? É na do rei, como é evidente. Mas, se tu dizes, atenção, na testa do criado, nunca. O criado está livre de levar com a maçã na testa, de um certo ponto de vista ele torna-se rei. Ah, o criado é imune a levar com a maçã na testa, então em princípio não há nada mais engraçado do que acertar-lhe com a maçã na testa. É precisamente a violação do tabu que tem graça, não é? E, portanto, a partir do momento em que tu dizes, não, não, não, há aqui um senhor que está à parte. Fica mais engraçado do que acertar no rei, não é? Exatamente. E não é só isso. A questão não é só... É que a comédia também, muitas vezes, não é acertar na testa. Às vezes, a comédia tem uma... é por isso que é tão contraditória. A comédia, às vezes, faz várias outras coisas, mesmo, por exemplo, hoje, lá está, às vezes até da parte de humoristas, no outro dia estava a ler uma coisa sobre uma teoria da parte de humoristas que dizia que a comédia autodepreciativa, quando vem de alguém que está na margem, que está na margem de alguém que, lá está, que pertence a uma minoria, ou que está na margem da sociedade, a teoria era esta, a comédia autodepreciativa, nesse caso, não é humildade, é humilhação. E eu acho que não é nem uma coisa nem outra. E acho que essa teoria nega milénios de humor judaico. A comédia judaica é, muitas vezes, voltada para o próprio judeu, e não é nem humildade nem humilhação. Até se pode argumentar que é prosápia, e é, olha, olha, eu sou capaz de rir de mim próprio, eu sou capaz de voltar o olhar crítico para mim, e assim obtenho uma espécie de redenção, uma espécie de salvação, cresço acima de mim próprio, eu sou rígido o suficiente para aguentar as tuas piadas, pá, acerta-me, à vontade, força.
JMP
Há um lado da comédia, é interessante falar-te nisso, por acaso, porque, lá está, isto é um poliádro com vários lados, não é, e eu acho que uma componente que falta na teoria do Dennett é, está muito relacionado com isso que acabaste de falar, que é, o humor tem um papel, seja na socialização no geral, seja na relação entre os sexos, por exemplo, que é muito interessante, tem um papel de sinalização. Há bocado falámos do virtue signaling, que é quando sinalizar que bom moralmente que eu sou, o humor sinaliza, de certa forma, não é só essa a função, mas uma das funções é sinalizar quão inteligente eu sou, e quão confiante eu estou comigo próprio, que me posso dar ao luxo de mandar esta piada, e até são duas coisas diferentes, por um lado é o confiante comigo que me posso dar ao luxo de mandar esta piada, e há um nível mais fundamental, eu acho muito interessante evolutivamente, que é, tu fazes-te uma piada, hoje em dia não, não é, porque estamos aqui numa casa com eletricidade, temos relativamente tranquilos, mas um tipo numa caverna, com leões e ursos à solta, e mandar uma piada, é dizer, eu domino de tal forma a situação, tenho aqui um excedente de recursos cognitivos para estudar o meu meio ambiente, que me posso dar ao luxo de desperdiçar, alguns a fazer uma coisa mais inconsequente que existe no mundo, que é mandar uma piada, que é coisa mais inconsequente, quer dizer, acho que é difícil encontrar uma coisa mais inconsequente.
RAP
Exato, é isso mesmo, e eu tenho um livro, onde é que ele anda, chama-se Laughter of the Oppressed, e tem vários capítulos, e um deles é sobre campos de concentração, e sobre o modo como, nos campos de concentração, às vezes, o humor é o último reduto de liberdade que aquela gente tem, e um fator de superação relativamente àquilo por que estão a passar. Lá está, é difícil, eu acho que hoje há essa tendência para achar que o humor é uma coisa só, é só uma coisa, e que essa coisa é agressão, e que, portanto, é legítimo usá-la para criticar os poderosos, ou para fazer comédia com os poderosos, sim, embora não todos, por exemplo, diretores de estabelecimentos prisionais, se calhar não, mas alguns, um número cada vez mais reduzido, até porque, às vezes, os poderosos, quando são do nosso partido, na verdade, não são poderosos, quem tem o poder não são eles, eles estão a tentar, há sempre uma maneira de justificar que… têm o interesse do povo, não é? Sim, exatamente, há sempre uma maneira de justificar que, se calhar, não são eles, mas já estão ao serviço do povo, lá está, essa é uma boa justificação. E, portanto, eu acho que a imposição de barreiras, normalmente, leva a um único desfecho, que é, o melhor é não fazeres isto sobre ninguém. Eu lembro-me de uma vez estarmos num, o Miguel e eu tínhamos sido convidados para falar num congresso de psicanálise sobre comédia, e entre a minha comunicação e a do Miguel falou um psicólogo muito conhecido, e as coisas que ele disse foram de tal modo interessantes que o Miguel reformulou toda a comunicação que tinha só para falar do que esse psicólogo tinha dito, porque o que esse psicólogo dizia era o seguinte, o humor sobre o outro é uma forma de violência, é uma forma de violência sobre o outro, e mesmo o humor sobre o próprio também é uma forma de violência sobre si próprio e não sei o quê. O corolário da comunicação dele era, a cautela é melhor não fazer humor sobre ninguém, sobre nada, nem sobre ninguém, era isso. Eu acredito que quando se tem uma determinada perspectiva sobre, digamos, a capacidade de uma pessoa, seja ela qual for, para ouvir uma piada, eu acho perigosíssimo que isso seja transposto para o âmbito da cidadania, ou seja, que a discussão da fragilidade mental seja transposta para o domínio da cidadania, porque isso torna uns cidadãos menores do que outros, ou seja, infantiliza-os, no sentido de que… Se é paternalista, sim. Se é paternalista, sim. Eu acho, por exemplo, aquela questão do não se batem quem está no chão relativamente ao Armando Vara, eu acho que teria sido mais ofensivo para o Armando Vara que tendo eu todas as semanas dito, assinalado coisas que eu acho cómicas e que são ditas nas comissões de inquérito. Se naquela semana eu me tivesse referiado de fazer isso porque quem lá estava era o Armando Vara que está preso, coitadinho, eu acho que essa condescendência é mais ofensiva do que qualquer coisa que eu tenha dito sobre ele. Tratá-lo dessa forma, como se ele fosse uma criança, é isso que está em causa, basicamente, é realmente as crianças têm uma proteção especial. Sim. Vou protegê-lo, não é? Aliás, uma das limitações à liberdade de expressão tem a ver com crianças, não se pode, quer dizer, as crianças em princípio não têm acesso a pornografia, ou, por exemplo, não faz um anúncio de whisky para crianças, a lei proíbe, e eu compreendo que se protejam as crianças. Eu uma vez estava a conversar sobre estas questões com uma pessoa que eu conheço e ele estava a dizer, pois é pá, eu em minha casa fui ferozmente politicamente correto aquilo que se chama politicamente correto, até as minhas filhas terem, sei lá, 14 anos, e a partir daí pronto, já sou completamente desbragado, sou completamente desbragado, porque eu já, eu sei que elas já podem ouvir as coisas que eu digo quando estou a ser desbragado porque tiveram uma sólida formação de, digamos, de correção política. E ele achava que a postura pública, a nossa postura pública, devia reproduzir aquilo, o modelo, e que lá está, uma frase que tem ressonâncias bastante perigosas, o povo português não está preparado para ouvir tudo. E portanto, o que eu lhe disse foi, mas portanto, tu queres tratar o povo português como trataste as tuas filhas até elas terem 14 anos. Exato, é isso. É pá, não contem comigo, eu não vou tratar as pessoas como se elas fossem crianças, não vou. É claro, como se elas não pudessem ouvir.
JMP
Exato. E essa é aquilo que tu falavas há bocadinho, da questão da violência, do humor ser uma violência. O humor, claramente, parte do humor é uma violência, nós falávamos ainda no início da conversa, aquela questão do humor servir, por exemplo, nós estamos num grupo a tomar café e aparece um amigo nosso que de repente surgiu com uma camisa um bocado estranha. Nós dizemos, oh Jorge, o que é isso? Agora, a camisa é essa. Isso é uma forma de violência, obviamente violência, no sentido do lato em que tu estás a dizer, é pá, para a próxima pensa duas vezes antes de vir com essa camisa. Esse papel do humor existe claramente.
RAP
Mas repara, a violência em sentido estrito, que é o teu amigo chega com uma camisa esquisita à mesa e tu dás-lhe um soco na cara, o teu amigo consegue reagir a essa violência se tiver pelo menos tanta força como tu. Se ele tiver menos força do que tu, se ele tiver mais força do que tu, consegue reagir facilmente a essa violência, ele é forte. Agora, ele, seja qual for a sua força física, está apto a responder, então pá, trouxeste essa camisa? Sim, trouxe, e então? Ele tem as mesmas armas do que tu, tem as mesmas armas do que tu. Mas ele pode não ter os mesmos números.
JMP
Eu aí percebo algum, quer dizer, aquelas que são nas minorias acho que vêm daí, ou seja, se ele for um e houver 10...
RAP
E houver 10, certo, mas repara, a maneira de reagir, digamos, a ofensas era muito diferente daquela que é hoje. Eu, por exemplo, tu vês isso quando, por exemplo, a palavra queer, que hoje designa um âmbito de estudos, queer studies, muitas vezes vou a livrarias e estão lá escritos queer studies, e estão vários livros debaixo desse rótulo. Queer quer dizer anormal, quer dizer desviante da norma, sim, aliás, a Alice no País das Maravilhas está cheia da palavra queer, ela está lá no buraco, na toca do coelho e tudo é queer. Olha que estranho, olha que esquisito, olha que coisa anormal. O que a comunidade homossexual fez, várias vezes, foi pegar num insulto e transformá-lo numa bandeira, e isso é uma maneira, acho eu, muito eficaz, muito inteligente de reagir à ofensa. Por exemplo, quando homossexuais, nos anos 70, se manifestavam com cartazes a dizer I'm a faggot and I'm proud of it, eu acho que essa maneira de reagir à ofensa é muito mais eficaz do que dizer eu proíbito de usares a palavra faggot, e os homossexuais não são menos hoje do que eram nessa altura. Portanto, a questão do número não é uma questão, eu acho que a maneira de reagir à ofensa...
JMP
Não, não, isso eu já estou a perceber onde é que é a questão. Sim, sim, sim, ou seja, a solução não é a censura, porque a censura não é o mecanismo de...
RAP
A partir de certo ponto, o que aconteceu não foi só aquilo, não foi só eles transformarem um insulto num emblema, foi também que, a partir de certo ponto, o insulto menoriza quem o prefere e não o seu alvo. Ou seja, eu acho que foi em 1963, um homem chamado George Wallace, tenho facilidade em fixar o nome dele porque há um humorista com o mesmo nome, era governador do Alabama. Em 1963, ele disse, segregação hoje, segregação amanhã, segregação sempre. Em 1964, acabou a segregação. Não foi porque alguém tenha proibido o George Wallace de apelar à segregação, é possível até que tenha sido porque o George Wallace dispôs assim, porque ele preferiu aquela enormidade. Por exemplo, o discurso da Maria de Fátima Bonifácio, é possível argumentar que ela estivesse, digamos, subterrânea e que as pessoas até dissessem, isto realmente... E de repente ela trouxe-o à superfície e foi completamente escavacado, aquilo foi desmembrado de todas as maneiras possíveis, foi enxuvalhado em todo o lado, foi satirizado. É possível que isso tenha feito com que as pessoas, se algumas pessoas pensavam aquilo, tivessem pensado, pois realmente o que acontece, este tipo de raciocínio está errado a ponto de acontecer isto a quem insiste nesta tecla.
JMP
E expôs, e esse é um ponto muito importante, porque aquilo expôs as lacunas do raciocínio, enquanto que torná-lo indizível... Isso é uma das coisas que o Stuart Mill diz. Exatamente, há aquela passagem do Stuart Mill, que aliás falava na conversa com a Isabel, não sei se apanhaste essa parte, é incrível aquilo ter sido escrito na altura em que foi escrito, porque não é melhorável aquilo que está lá.
RAP
É uma das coisas que ele diz é, silenciando uma ideia, a tua convicção, que deixa de ser desafiada, por exemplo, pelas coisas que a Bonifácio diz, a tua convicção tem tendência a deixar de ser uma convicção e transformar-se num dogma. Exatamente. E tu deixas de saber defender dogmas, tu dogmas não sabes defender, é assim porque sim. E vai ficando mais tosco, provavelmente, vai perdendo umas pernas pelo caminho. Provavelmente, porque deixa de ter a estrutura que o sustenta, não é? Basta, é instituído que é assim e acabou. Não, não, tu precisas de saber quais são os alicerces, precisas que os alicerces sejam, que alguém venha tentar abanar os alicerces para tu dizeres, não, não, são suficientemente sólidos para as tuas tentativas de o abanar.
JMP
E há um lado, que é especialmente perverso nisto, que é o humor. Sendo certo que existe, que o humor pode ser usado, como é que eu ia dizer, para, embora concordo que as minorias têm meios para responder e que não é comparável a uma violência, o humor pode ser usado para coagir minorias, mas se olharmos para a história do humor, a maior parte das vezes foi ao contrário. Exato. O humor também se serviu, todas estas causas que nós falámos, raciais, orientação sexual, todas elas foram, não sei em que medida, muito, se pouco, mas pelo menos alguma coisa, à boleia do muito que foi feito através de piadas. Exato. Tantas coisas, quer dizer.
RAP
Eu não diria, quer dizer, eu tenho uma perspectiva bastante, digamos, cética acerca do poder da comédia, também porque acho que a comédia é muito mais vezes termómetro do que termoestato, onde ela mede a temperatura, mas não modifica a temperatura, e eu acho que, quer dizer, uma das coisas, acho eu, que várias pessoas têm dificuldade em entender na comédia, é que mesmo quando há, a gente pode até dizer, pois apá, porque a comédia é cruel, e num certo sentido isso é verdadeiro, mas, ou até que é uma, lá está, ou até que é uma agressão. Por exemplo, no outro dia estava, tenho este cão aqui pequenino, estás a ver, tenho cães grandes, no outro dia este pequenino e um dos grandes estavam a brincar, como é que os cães brincam? Por exemplo, o grande deita-se no chão, e este pequenino está à derrota dele, a mordiscar-lhe as beiças, estão os dois a mordiscar-se um ao outro, estão a fazer, quem, eu já tive essa experiência com amigos meus que não têm cães, que olham para aquilo e dizem, eles estão-se a pegar, e eu digo, não, não, eles estão na brincadeira, e eu percebo a dificuldade, porque a brincadeira e a luta, neste caso, é muito parecida, ou seja, têm dentes na mesma, têm mordidas na mesma, têm o mesmo som de rosnidos, etc. Só quem participa é que percebe, não é? Só que, só lhe falta uma coisa, que é, não, não aleija, e isso para mim é fundamental, a comédia não aleija, a comédia não aleija, atenção, repara, imagina que eu tenho, imagina a seguinte cena, uma pessoa cai de um precipício abaixo, cai de um precipício e esborracha-se no chão, mas esborracha-se no chão a ponto de ficar espalmada, é preciso ir lá com uma espátula a tirá-la, tu em princípio não mostras isto a uma criança, até para adultos esta imagem é demasiado chocante, no entanto, isso acontece sempre nos desenhos animados, a toda hora acontece nos desenhos animados, o Tom e o Jerry engolem uma barra de dinamite, explodem, esbarram, lá está, caem pelo precipício, espalmam-se, não sei o quê, porquê que se pode? Porque na comédia não aleija, a gente sabe, no Chaplin, metade daquilo é pontapés no rabo, quedas, não sei o quê, a gente ri-se porquê? Porque ele é de borracha, ele não aleija aquilo, a expressão é de borracha, não é minha, é do Dinis Machado, ele diz, eu ficava fascinado com o corpo de borracha dos humoristas clássicos, e é isso, o Buster Keaton e o Chaplin, a sensação que tu tens é que o corpo deles é de borracha, e há outra coisa que é melhor ainda do que isso, que é na comédia, o ego também é de borracha, o ego é de borracha, ultimamente estou muito interessado nos filmes do Deadpool, não sei se viste, os filmes do Deadpool, eu nunca tinha, como eu não sou um consumidor de banda desenhada, eu não conhecia o Deadpool antes dos filmes, assim, vagamente, a coisa que eu gosto naquilo, é que o Deadpool não é só invulnerável fisicamente, ou seja, o Deadpool, não sei se conheces as capacidades dele, ele leva um tiro e regenera-se, cortam-lhe um braço e o braço volta a crescer, a questão não é essa, a questão é que ele é capaz de fazer isso com o próprio ego, o próprio ego dele também é inviolável, essa é a parte principal, e como é que o Deadpool consegue fazer isso? É que o Deadpool tem uma diferença relativamente aos outros heróis, que é, o Deadpool sabe que está numa banda desenhada, o Deadpool vira-se para as pessoas, vê-se de fora, isso é fundamental, o Deadpool, o super-homem nunca se vira para o público e diz, bom, lá vou eu, não, não, não, o Deadpool faz isso, o Deadpool está sempre a destruir a quarta parede e a criar, está sempre a fazer transgressões que indicam que ele tem consciência de si próprio, talvez isso seja uma boa definição para a comédia ou para a prática humorística, o humorista deve ter consciência de si próprio, essa consciência de si próprio permite-lhe fazer com que ele, por exemplo, olhe para si como se ele fosse um terceiro, e desse ponto de vista, olhar para ti como se tu fosse um terceiro, dá-te uma distância, e esta palavra é essencial, dá-te uma distância tua sobre ti próprio, e é essa distância que te permite, acho eu, ver as coisas à sua verdadeira dimensão, quando tu estás metido, engalfinhado numa luta, aquilo parece-te importantíssimo, quando dás dois passos atrás, o peso daquilo diminui, a dimensão daquilo diminui.
JMP
Há uma coisa até que tu contas no livro, já não sei com quem é que se passava, um tipo estava a discutir com a mulher e...
RAP
É isso, é a história do Neil Simon, sim, é uma história que o Neil Simon conta no prefácio de um conjunto de peças dele, é isso, é exatamente isso. Mas agora, se não te importaste, contaste-me. Sim, não importa nada, é isso, eram recém-casados, ele e a mulher, e eles estão a ter uma discussão muito acesa na cozinha, e a mulher tem uma costeleta congelada na mão e faz um gesto mais largo com a costeleta e acerta-lhe com a costeleta na testa, e ele diz que o impacto da costeleta na testa o fez levitar sobre a cena, e vendo de fora, vista de fora, ou seja, deixando de estar engalfinhado na luta, aquilo enquanto está engalfinhado na luta ele não tem capacidade para ver nada, pensa que aquilo é terrível, é uma situação com um peso enorme. Dando dois passos atrás, tendo essa calma que a pancada na cabeça lhe fez com que ele tivesse, ele percebe, espera lá, isto não é assim tão importante, eu daqui a meia hora, é óbvio que daqui a meia hora já fizemos as pazes, e só essa distância é que te dá essa perspectiva sobre as coisas.
JMP
E o público, eu acho que estavas a estender isso ao público também, ou seja, o público, nós enquanto público, ou seja, quem estiver no público está na mesma situação, estás a sair de ti, vão a dar umas tréguas ao teu processo cognitivo normal, e a poderes ver de fora determinados temas que normalmente não tocas, não é?
RAP
Ou seja, por exemplo, o público quando vai a um espetáculo de comédia, há um acordo tácito, que é, aqui há determinadas coisas que vão ficar suspensas, por exemplo, vai ficar suspenso a compaixão, às vezes, a compaixão fica em suspenso ali, quando a gente sai, retoma, mas naquele momento, há um momento em que se calhar a compaixão fica em suspenso. Há um livro do Terry Eagleton, que saiu agora, há pouquíssimo tempo, chama-se Humor, o primeiro capítulo é quase todo sobre isso, sobre essa ideia do que significa estares a dizer e a ouvir uma piada.
JMP
Aquilo que me parece é que a tua compaixão sai melhorada e não pior. Exato, é isso. Ou seja, sai mais refinada, se fizeres, porque a hipótese de a ver de fora, tu não ficas pior pessoa, certo sentido é que podes ficar melhor. E certo sentido podes ficar melhor, sim, é isso.
RAP
Até porque há ainda por cima que sobrevém um cansaço, a uma noite de gargalhadas, que é positivo, quer dizer, é, digamos, regenerador, de um certo ponto de vista é regenerador. Continuamos à manhã, não é? É isso.
JMP
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