#64 Nuno Garoupa - A falta de desenvolvimento de Portugal como um problema de cultura e de...

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José Maria Pimentel
Bem-vindos. Neste episódio o convidado é Nuno Garopa, atualmente professor de Direito na George Mason University nos Estados Unidos. A investigação académica do convidado tem-se debruçado sobretudo sobre direito comparado e a relação entre as instituições do direito e a economia. Isto, associado à vida de estrangeirado, explica porque se habitua a pensar o país vendu de fora, num olhar que é, como vão ouvir, provocador e original. A discussão sobre as causas da pobreza relativa de Portugal tem barbas, claro, que é como quem diz, séculos. É quase uma predileção nacional, uma espécie de catarse momentânea e que facilmente pode resvalar para um lamúrio inconsequente e pouco sistemático. Nesta conversa tentei fugir a essa tentação. A nossa abordagem foi crítica, mas tentei que fosse construtiva e coerente, até para não ser confundida com uma visão pessimista, porque vivemos, apesar de tudo, no melhor período dos últimos séculos, ou com uma espécie de antiportugalismo-sonobe que não só não tem razão de ser como adianta pouco. Esta foi, portanto, inevitavelmente uma conversa em que andámos cá e lá entre vários temas de fundo. Começámos por tentar ir à raiz da origem do atraso português, o que inevitavelmente nos levou ao papel da geografia, das instituições e da cultura, variáveis cujos efeitos estão inevitavelmente entrelaçados ao longo da história. Falámos do modo, muitas vezes perverso, como funcionam as elites em Portugal e das especificidades, as indesejáveis, da cultura nacional, como por exemplo a falta de confiança interpessoal, o chamado capital social de que falei neste podcast logo ao episódio 6 com o Pedro Magalhães, a falta de cultivo de pensamento crítico no nosso sistema de ensino, ou a obsessão muito católica com a culpa, ou ainda a tendência para ver a discussão de ideias como um combate moral e um jogo de soma nula. Tentei discutir também soluções possíveis, sendo que inevitavelmente, como todos os que já nos demos ao trabalho ter esta discussão sabemos, é muito mais difícil chegar a elas do que fazer o diagnóstico. Abordámos também o problema da quase estagnação da economia portuguesa nas duas últimas décadas e outras ameaças quer à prosperidade, quer à satisfação dos portugueses com a democracia. Aliás, a insatisfação essa que o convidado prevê, mais tarde ou mais cedo, como indo levar a uma alteração de regime. Na última parte da conversa, aproveitei para viajar até à área de investigação do convidado e abordarmos os desafios e as insuficiências do sistema judicial português. O Nuno, aliás, tem um livro muito interessante sobre este assunto, cujo link deixo na descrição deste episódio. E pronto, deixo-vos com o Nuno Garopa. Não liguem ao facto de nos começarmos a tratar na terceira pessoa e terminarmos a tratar
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por tu, que são especificidades dos podcasts. Até para a semana.
José Maria Pimentel
Vamos começar? Vamos começar. Então vá, no Bem Vindo ao Podcast, como eu dizia há pouco, vamos começar, se calhar, à boleia de um artigo que nos publicou há uns anos no Observador e que acaba por ser um bom ponto de partida, até porque espelha uma série de coisas e que, no fundo, trata de explicar a pobreza relativa de Portugal, não é pobreza, como eu dizia há pouco, não em termos mundiais, mas em termos dos países que estão próximos, que nos estão próximos, ou seja, em termos da Europa, da Zona Euro, da União Europeia, trata de explicar isso à luz de insuficiências institucionais e eu diria até de insuficiências culturais, já vamos aí. E por isso, se calhar a maneira mais fácil de começar isto é fazer, eu nem gosto especialmente de começar desta forma, com uma pergunta aberta, mas se calhar o mais fácil é começar por aí, ou seja, quais são as
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nossas insuficiências, O que é que é preciso corrigir? Vamos lá ver, nós em Portugal, é uma discussão, enfim, digamos, da academia e das elites portuguesas há cerca de 200 anos, do que é que explica o nosso atraso relativo, porque há uma perceção, entre quem pensa Portugal, pelo menos desde a segunda metade do século 18, de que Portugal é um país que está atrasado, evidentemente é um país que está atrasado em empobrecido em relação àquilo que são os países mais ricos da nossa área, portanto, evidentemente durante muito tempo o Reino Unido e depois a Alemanha e a França, e depois os Estados Unidos no século XX. E essa questão, evidentemente, tem levado a imensas teorizações distintas, até porque é preciso não esquecer que ao longo desses 200 ou 250 anos tivemos fases melhores ou piores, e por fases melhores e piores, quer dizer, de aproximação à média e de afastamento da média. E há evidentemente explicações, digamos, três ou quatro grandes ou cinco, se quisermos, tipos de explicações. Uma evidentemente tem a ver com a nossa área geográfica, quer a nossa localização na Europa, quer a nossa pequenez em termos de geográfica ao pé de Espanha ou dos outros países como França ou Alemanha. Depois há teorias que vêm em relação à questão cultural, não é? Portanto, no século XIX uma das teorias em vogue era exatamente o nosso catolicismo e que o facto de sermos católicos por comparação com os países protestantes explicaria porque é que nós ficámos para trás, porque é que não apanhámos a revolução industrial, porque é que não apanhámos a segunda revolução industrial e depois porque é que vamos sempre atrás dos outros países. E eu acho que começou a ganhar a partir talvez dos anos 50 esta questão da explicação das instituições, em que temos de ter algum cuidado com o que queremos dizer por instituições, porque também como comentávamos há pouco, a certa altura as instituições podem transformar-se numa tautologia, porque se nós chegamos à conclusão de que as instituições explicam o nosso atraso porque tudo o resto não explica, que é um pouco o ponto em que a certa altura se chega nestas discussões, é um pouco tautológico, não é? Quer dizer, porque é tudo que não conseguimos explicar a gente vai lhe chamar de instituições. E as instituições em si mesmo são reflexos da nossa sociedade, portanto, as instituições, até porque ao longo dos 200 anos nós já tivemos vários regimes políticos e portanto significa que já tivemos várias construções das instituições. E combinam-se aqui vários elementos. Há uma ideia que eu acho que nos últimos 40 anos ganhou força, mesmo em termos daquilo que são as teorias europeias, que é a questão de nós termos fundamentalmente elites extrativas. E elites extrativas, e por elites extrativas queremos dizer elites que vivem dos recursos disponíveis para a sociedade em vez de produzir recursos para a sociedade. E porquê é que nós temos elites extrativas? E aí há uma combinação de fatores, porque, por exemplo, uma das explicações em voga, que mesmo em conversa menos técnica as pessoas gostam de indicar, é por exemplo a pequeneza do país. Bem, mas há países muito mais pequenos que o nosso e que não têm este problema de elites extrativas. Bem, aí depois vem a questão, mas é que somos pequenos e periféricos. Bem, mas a periferia em relação a quê? Porque também podemos pensar em países pequenos periféricos e que, estou a pensar, sei lá, a Irlanda, que é um país pequeno e periférico e que nos últimos 100 anos, evidentemente, conseguiu fazer o ketchup, coisa que nós não
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conseguimos. Mais periférico do que nós, no sentido. E podemos ir buscar
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a Islândia para ir ainda mais pequeno e mais periférico. Evidentemente que é, ok, periférico e pequeno, mas depois entra a questão, ah, mas é questão cultural. Bem, mas então já é periférico, pequeno e a questão cultural. E, portanto, é evidente que há um conjunto de fatores que de alguma forma se coordenam para que expliquem este problema, que eu acho que é um problema que nós temos histórico e no presente muito concretamente, de instituições que não conseguem ser elas alicerce para o desenvolvimento económico e para fazermos de alguma forma, ou pelo menos reduzir, a diferença que existe entre nós e a média, digamos, europeia. Isso tem a ver com mecanismos da própria reprodução das elites. Um dos aspectos que eu gosto de focar é que nós temos umas elites que tendencialmente são de cooptação e não de concorrência, isto é, as pessoas não realmente concorrem na nossa sociedade para atingir os pontos, os postos das elites, são essencialmente cooptados pelas elites incumbentes. Acho que isso durante muito tempo, digamos nos últimos 70 anos, conseguiu ser feito através das universidades, porque no fundo as universidades formavam as elites, mas as próprias universidades ao não estar massificadas, elas próprias escrutinavam já quem é que podia ir à universidade. E, portanto, evidentemente isso era por processo de cooptação, porque só os filhos das elites passavam na universidade. Com a massificação da universidade os processos alteraram-se ligeiramente, mas nós continuamos a observar essa cooptação. E essa cooptação tem aspectos económicos, é evidente que nós somos um dos países na Europa com maior presença de empresas familiares, não é? Se nós pensamos os grandes grupos portugueses em geral são grupos familiares, isso evidentemente significa cooptação. São as elites políticas e são as elites universitárias, todas elas são mecanismos de cooptação e isso evidentemente, na minha opinião, explica alguns dos problemas das instituições que nós temos.
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Sim, o Nuno disse uma série de coisas que dá para nós, agora, decalcarmos e até vou fugir à tentação de pegar já neste último, que era da questão das elites e dessa cooperação que tem. É interessante até porque liga a outras questões, como o nosso extremo desconforto com, sei lá, termos, por exemplo, jornais que não se assumam justamente ao centro e tudo o que for judeu. Mas já eu vou. Porque isto é, como o Nuno aludiu, é difícil no sentido de que tudo isto está relacionado. Há feedback loops, não sei como é que se diz em português. Ah, claro. Isto é uma espécie do programa
Nuno Garoupa
da galinha e do ovo.
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Exatamente. Era a analogia até que eu ia usar. Há desde logo aqui duas características da história. A questão das instituições trativas é uma que o Nuno também eludiu há pouco, tem muito a ver até com aquele trabalho do Assemol e do Robinson e eles próprios chamam a atenção para isso, para a questão contingencial e aleatória da história. Há um lado aleatório que é impossível fugir e que tem um peso aqui grande. E depois haverá outro lado que não é aleatório. Há um lado que não sendo puramente aleatório, ainda próximo disso em termos dos efeitos, que é a questão das condições iniciais. Portanto, as condições iniciais, aquela questão da teoria do caos, mas as condições iniciais ditam, ou pequenas alterações nas condições iniciais ditam desenvolvimentos completamente diferentes. Por exemplo, uma das coisas que me ocorreram logo, quando estava a pensar nisto, tem a ver com o facto de, historicamente, os terrenos agrícolas em Portugal serem muito pouco produtivos. Hoje em dia isso não é que seja irrelevante, mas não é uma coisa particularmente importante. Mas na Idade Média era. Na Idade Média isso ditava uma decalagem no desenvolvimento. Eu
Nuno Garoupa
acho que é evidente para qualquer pessoa que os recursos naturais e aquilo que é a nossa geografia influencia. Basta pensar que, Evidentemente, se nós tivéssemos petróleo, seríamos uma economia completamente diferente que teria criado uma dinâmica completamente diferente. Podíamos
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ser piores ainda, em certo sentido, porque podia… Quer dizer,
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que o pior ou o melhor depende, evidentemente, daquilo que nós quisermos valorizar.
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Podia haver instituições ainda mais trativas, é o que quero dizer. Mais trativas,
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exato. Portanto, eu acho que é evidente que há condições iniciais e que têm a ver, evidentemente, estamos localizados onde estamos localizados na Península Ibérica, o facto de só termos há cerca de 600 ou 700 anos um único vizinho geográfico e que é um país bastante maior que o nosso e que partilha connosco muitos aspectos culturais históricos, não é um país diametralmente diferente do nosso e, portanto, tudo isso influencia. Agora, há um aspecto que eu acho que é fundamental e que ainda hoje nos distingue dentro da Europa e eu acho que é um dos grandes responsáveis, inclusivamente pela deterioração das instituições e pelos problemas político-económicos que temos hoje em dia, que é, nós somos uma sociedade que tem uma característica de muito baixa confiança interpessoal. Eu ia falar disso também, capital social. Exatamente. Portanto, nós temos muito baixa confiança interpessoal. E uma sociedade que tem muito baixa confiança interpessoal, e o que é que isto quer dizer? Quer dizer que desconfiamos de todos, cria... Menos de nós próprios. Menos de nós próprios, cria dois problemas. Primeiro, um excesso de identificação com a família, não é? Porque evidentemente que o ser humano necessita de alguns laços de confiança para poder sobreviver na sociedade e, portanto, como nós desconfiemos de todos, o único nível de confiança que temos é as pessoas que estão imediatamente à nossa volta, que é a família. Ora, isso cria um problema grande porque a sociedade não é uma mera soma de famílias. E o segundo problema é que nós não conseguimos criar instituições para promover essa confiança. Não é por acaso que, em geral, os portugueses têm uma enorme desconfiança em relação às leis, porque percebem nos seus genes que as leis são feitas para favorecer um determinado grupo em desfavor do outro e, portanto, isso geneticamente já está na nossa forma de pensar, ou seja, que a lei, nós nunca entendemos a lei como forma de melhorar a sociedade, entendemos sempre a lei como uma função redistributiva, se há lei, se estão a fazer esta lei para favorecer alguém à custa de alguém, o nosso problema é sempre perceber se esta lei me está a favorecer a mim ou se está a favorecer o vizinho, isto é um problema. E as próprias instituições políticas em que nós temos uma noção sempre meramente redistributiva, ou seja, é como se a sociedade portuguesa estivesse a jogar um jogo de salma nula. E,
José Maria Pimentel
portanto,
Nuno Garoupa
se o meu vizinho tem mais um pão, quer dizer que eu fiquei com menos um pão e, portanto, tenho um problema. E daí que vem aquela coisa que muita gente sempre também observa que há uma imensa inveja, o grau de inveja, porque o grau de inveja reflete a falta de confiança intera pessoal e a pobreza, porque nós somos um país pobre, quer dizer, nós tradicionalmente, pelo menos desde o fim do império dos descobrimentos, há 400 anos, que somos um país que está habituado a ser pobre e, portanto, é evidente que é um país fundamentalmente desconfiado e impujoso. Ou sentir-se pobre também. Mas durante muitos séculos fomos efetivamente um país pobre. Há pouco tempo saíam vários trabalhos académicos sobre a evolução do nosso PIB per capita, desde o Marquês de Pombal, e nós temos períodos de perda de PIB muito continuados no tempo, de 20, 30 e 40 anos. Portanto, nós somos um país realmente que estava habituado a ser muito pobre. E isso cria complexos e formas de pensar a sociedade que ainda hoje não fomos capazes de superar. Depois há outros aspectos que têm a ver com a própria ruralidade da nossa sociedade, que apesar de já termos feito grandes esforços e grandes progressos nos últimos 50 anos, que continuam a existir. Por exemplo, a ideia de que tudo se trata de pensamento positivo ou de pensamento negativo. Portanto, nós temos ainda uma certa obsessão com o pensamento mágico, porque na verdade numa sociedade rural o indivíduo não controla se amanhã vai haver mais produção ou menos produção, porque depende do tempo, depende da chuva, depende de condições que o próprio não controla. Ora, isso é pré-revolução industrial, porque a partir do momento em que há a fábrica, a fábrica controla o processo de produção. Mas nós, em muitos aspectos, ainda temos uma ruralidade imensa da aversão ao risco e desse pensamento mágico de que se todos fomos optimistas as coisas correm bem, se somos todos pessimistas as coisas correm mal. O que depois nos leva a uma certa bipolaridade, como também temos momentos de grande estas e somos o melhor país do mundo, seguidos de momentos em que somos o pior país do mundo, quando evidentemente não somos uma coisa nem outra, quer dizer, somos o que somos. Exato.
José Maria Pimentel
Essa era a outra que eu ia falar também, que é a questão do locus de controle, que no fundo é isso, a questão de nós, ou pelo menos eu interpreto isso como uma consequência da nossa noção de falta de locus de controle, que é basicamente termos, quanto é que nós confiamos que o resultado das nossas ações advém da nossa vontade e não de uma coisa, de uma influência qualquer externa. E esse pensamento mágico tem muito a ver com o facto de nós acharmos que há uma influência externa, seja ela os outros, seja ela uma coisa mais divina.
Nuno Garoupa
Nossa, seja Deus, seja o que for. E
José Maria Pimentel
há um exemplo disso. Pensei por início, eu sou um bocadinho o objector de consciência em relação ao Euro a milhões, portanto, irrita-me particularmente, mas fascina-me sempre a nossa predisposição para o euro ou milhões porque é claramente reflexo disso, de uma espécie de salvação rápida para os problemas, não é uma coisa… Mas isso também reflete aspectos que têm a ver,
Nuno Garoupa
historicamente, e nós vemos o século 18, século 19, que é, como em certa medida nós somos uma sociedade pré-revolução industrial, até certa medida, enfim, com limites, obviamente, e portanto há que pôr isto em contexto, porque o que eu vou dizer pode parecer que estou… e vou exagerar um pouco para o argumento, que é, até certo ponto, a acumulação de riqueza na sociedade portuguesa, historicamente, foi sempre por fatores que não estão diretamente relacionados com o modus de control ou, digamos, a alocação de capital humano e que tem a ver ou com fatores de proteção por parte da croa ou do Estado e que, portanto, autorga a determinado indivíduo o poder de monopólio numa certa área, o que leva evidentemente esse indivíduo e os descendentes desse indivíduo a acumularem riqueza ou... Uma renda no fundo. Exato, ou com fatores completamente exógenos e, portanto, não há, nós até muito tarde não temos uma burguesia pós-revolução industrial. Isso só acontece praticamente no final do século XIX e no princípio do século XX. Isso também leva à ideia, como existe na sociedade portuguesa ainda hoje, em 2019, de que quem acumula riqueza não acumula riqueza porque trabalhou ou porque fez as decisões corretas no momento correto. Acumulou riqueza porque vulgo expressões, teve taxo, conhecia a pessoa, alguém o protegeu. E esta lógica, que é uma lógica muito corriqueira, mas é uma lógica que na minha opinião, podendo estar incorreta hoje, reflete o saber dos últimos 400 anos, que de facto, grande parte dessa acumulação foi sempre uma acumulação que não tem a ver diretamente com bons investimentos ou com ganhos de produtividade. E,
José Maria Pimentel
portanto, eu acho que há esta noção na sociedade portuguesa. E a questão é que, mesmo hoje em dia, eu não sei se está completamente incorreta. Não, eu... É um gringo ouve a linha
Nuno Garoupa
outra vez. Nós continuamos a ter acumulação de riqueza que, evidentemente, não reflete, digamos, ganhos de produtividade ou investimentos bem feitos. Agora, a questão é que nós nos nossos próprios valores, atribuímos quase tudo a uma mão invisível, mas não uma mão invisível no sentido econômico... Uma mão misteriosa. Mais uma mão misteriosa, exato. Uma mão misteriosa que por alguma razão protegeu aquele indivíduo e não protegeu os outros indivíduos. Isto tem a ver, evidentemente, com o papel do Estado, não é só hoje, mas nos últimos 400 anos, em que de facto um Estado muito centralizado e muito forte fez sempre que houvesse uma enorme corte à volta desse Estado, que beneficiou e que beneficia através de rendas extra ativas desse próprio Estado. E isso é parte da nossa história, não vale a pena estar a escamutear.
José Maria Pimentel
A questão do capital social, se eu tivesse que apontar algum em particular, era aquela que eu acharia mais importante, embora lá esteja relacionada com outras coisas, porque ajuda a explicar uma série de coisas, ajuda a explicar outra coisa que o Nuno também falava, que é a nossa propensão para as revoluções em vez de evoluções. E as revoluções não são mais do que um certo estado de coisas que se torna tão incomportável que estala. E no dia anterior, e isso é sempre curioso nas nossas revoluções, já não é a primeira vez que falo disto, no dia anterior à Revolução, parece sempre estar tudo bem. E depois estala, de repente, porque não. Porque as pessoas não são capazes, a minha explicação para isso, a explicação parcial, é que não há uma capacidade de uma regeneração por dentro, não é? Numa adaptabilidade. Isso
Nuno Garoupa
parece-me a questão claríssima que nós estamos a atravessar neste período. Há uma anedota, uma piada entre os gregos, que eu acho que se aplicar a nós, não foi inventada em Portugal, mas podia se aplicar aqui, era quando é que a Grécia teve 20 milhões de habitantes, não é? E a piada era, na noite tem que ir uns corneios, porque antes de cair os corneios havia 10 milhões de apoiantes dos corneios e depois de terem caído os corneios havia 10 milhões de oposição aos corneios. E portanto, naquela noite eram 20 milhões.
José Maria Pimentel
Nunca tinha ouvido essa metáfora. Exato. E nós também
Nuno Garoupa
se pode aplicar um bocadinho aqui assim, porque nós somos um pouco assim, quer dizer, e isso tem a ver com essa questão, precisamente entre revolução e evolução. E nós, pela baixo capital social, pelo facto de termos instituições extrativas que elas próprias são incapazes de se regenerar, não é? Porque uma das coisas interessantes, talvez, das últimas revoluções que nós tivemos, seja a primeira república, seja a queda da monarquia, a primeira república e depois o Estado Novo e portanto o 25 de Abril, todas elas são revoluções que qualquer pessoa que estuda o assunto percebe que eram quase inevitáveis e no entanto as instituições foram incapazes de se regenerar para evitar a revolução. Portanto, É evidente que ninguém sabia que o 25 de Abril ia ser naquele dia de 24, ou que o 28 de Maio ia ser 28 de Maio de 26 ou 5 de Outubro, antes de acontecer. Mas toda a gente percebia que ia haver um 5 de Outubro, e que ia haver um 28 de Maio e que ia haver um 25 de Abril. E isso significa que as instituições estão de tal maneira tomadas pela procura de extração de rendas que elas próprias não são capazes de sacrificar algumas dessas suas rendas para dizer sacrifica-se um bocadinho aqui para ir ali. E esse é o grande desafio que eu acho que Portugal tem neste momento. É que nós talvez somos a primeira, o primeiro conjunto de gerações de portugueses que tem o desafio pela frente de fazer evolução em vez de revolução. Coisa que os espanhóis já fizeram em 78, obviamente, 76, 78 e coisa que até os gregos de alguma maneira fizeram nestes últimos 10 anos com o realimento do sistema partidário e com a alteração, enfim, da configuração do sistema partidário grego. Nós não conseguimos fazer ainda e esse é o grande desafio porque nós não vamos evidentemente ter agora aqui outro 25 de abril ou outro 28 de maio. Nós vamos ter que saber como é que se passa da atual geração do poder para a próxima geração do poder nos próximos 20 ou 30 anos num sistema de evolução de instituições. E eu acho que a grande dúvida neste momento é como é que isso vai ser feito, pelo simples lado, que nunca fizemos historicamente. Portanto, como é que nós vamos ter capacidade de evoluir nessas instituições? Sente-se certo que já Fernão Lopes, naquela celpe frase dizia, levanta-se uma nova geração, em que ele queria dizer exatamente o contrário, não é? Que se tinha feito 1383, 1385, para que no final do século XIV, afinal já estavam os mesmos a mandar na corte que tinham mandado no tempo de D. Fernandez. Portanto, é evidente que nós fazemos evoluções e revoluções para, no fundo, baralhar e dar de novo. Agora, a questão é, ele tem que ter períodos em que esta evolução acontece. Nós já percebemos pela Europa fora, os países mais ricos que nós, já fazem isso há várias gerações. Os alemães e os franceses há duas ou três, os britânicos provavelmente há 200 anos, nós não temos questão de cátedra. E isso tem a ver, de facto, com uma sociedade que não gosta e lida mal com o pensamento crítico. É uma sociedade conformista e até a ser, de ponto, conformada e, portanto, lida muito mal com tudo o que seja falar fora daquilo que a sociedade entende que é aceitável. Depois, eu acho que isso redica, tem consequências a vários níveis e isso nota-se na questão da produção de conhecimento, não é? Quer dizer, eu acho que o grande problema de Portugal não é, como algumas pessoas têm apontado, as redes sociais, o nível do debate estar dominado pela espuma, o facto dos jornais ou a comunicação social em geral estar dominada 90% por políticos e que, portanto, há muito pouca discussão de opinião, mas sim muitos comissários políticos a defender o ponto de vista do seu grupo ou da sua instituição. Tudo isso é verdade, mas até certo ponto, enfim, outra vez, relativizando, também pode acontecer em outras sociedades. Onde nós nos distinguimos é a completa ausência de produção de conhecimento. Portanto, nós não temos produção de conhecimento. Portanto, voltando, não há think tanks. Em Portugal, basicamente, não há think tanks. Tanto que não há, que nós chamamos think tanks de coisas que não são think tanks. Porque um think tank é uma produção de conhecimento e nós, de facto, não vemos não há produção de conhecimento. E ao não haver essa produção de conhecimento... E porquê que não há produção de conhecimento? Não há produção de conhecimento porque as duas elites que mais beneficiariam dessa produção de conhecimento não estão interessadas. A primeira, evidentemente, é a elite económica. É evidente que nós temos um poder económico que é muito diferente do poder económico de outras sociedades, porque é um poder económico fundamentalmente dependente do Estado e, portanto, não está interessado em produzir conhecimento que seja ameaça ao próprio Estado. E por estado aqui quer dizer o regime que esteja vigente. Foi um poder económico pendurado no Estado Novo, agora é um poder económico pendurado no Bloco Central. E, portanto, esse poder económico não vai financiar a produção de conhecimento, porque essa produção de conhecimento ela própria abre feridas naquilo que é o bloco central dos interesses. Portanto, o poder económico não tem um interesse na produção de conhecimento, como tem países como o Reino Unido, Estados Unidos, Alemanha e França e outros países. E depois temos a própria elite política. A nossa elite política, nesta altura, dado o nível de degradação também que nós chegámos, já aceita que as políticas que são para ser implementadas são as políticas que nos são impostas pela União Europeia e, portanto, a União Europeia diz como é e nós fazemos. Tudo o resto autóctone, não há produção de qualquer conhecimento. E nós vemos que os governos sucedem-se e é aberrante como nem sequer se consegue começar a discutir reformas. Talvez os mais novos já não se lembrem, mas quer dizer, nos anos 80 até meados dos anos 90, ainda era habitual os governos, quando queriam fazer reformas da saúde, da segurança social, de tudo o resto, de produzir livros brancos, que de facto eram livros de produção de conhecimento. Hoje em dia já não há livros brancos de nada, ninguém produz livros brancos de nada, portanto é um conjunto de medidas avulsas para paliativos de questões concretas... E De curto prazo. De curto e sim prazo. E, portanto, não há produção de conhecimento, todos já percebemos, enfim, entrando um pouco na área que me diz mais respeito academicamente, na área da justiça, que a justiça portuguesa não funciona. Mas ninguém já sabe como sair desta emburlhada. Quer dizer, a justiça não funciona e não vai funcionar. Isso depois cria a outra questão que há pouco falavas, que é, enquanto as elites económicas podem ter uma ideia mais, e eu acho que têm, depois não querem aceder por questões extrativas, de que os equilíbrios não são sustentáveis, as elites políticas ao to enganam-se com a imutabilidade do regime. E, portanto, quando há pouco falávamos, sim, eu acho que na monarquia as elites políticas não perceberam que a monarquia no estado em que estava, inevitavelmente, tinha que ter uma queda. E o processo levou 50 anos. Mas eu acho que sim, as elites políticas ao tão convenceram-se que aquilo era imutável, como no Estado Novo, eu acho que as elites políticas do Estado Novo se convenceram que mesmo com a morte de Salazar, o regime era imutável ad interno, sem perceber que é inevitável que isto vai ter uma crise. As atuais elites políticas, nomeadamente partidárias, estão a cometer o mesmo erro. Elas estão absolutamente convencidas que isto vai ser alternância de PS e PSD até o fim da eternidade e, portanto, estamos como o Fukuyama, a história acabou e a partir de agora é sempre a ESPSD para os próximos 400 ou 500 anos. Quando qualquer pessoa que está de fora percebe que vai ser um processo complicado, por todas as questões que já falamos, mas isto não é imutável. Quer dizer, o sistema partidário, os partidos, o Estado, vai ter que mudar. Agora, a minha opinião é que essa mudança, como é muito lenta, vai criar esta ilusão de que não estamos numa transição e de que as coisas parecem que não estão a mudar. Mas eu acho que se daqui a 50 anos olharmos para trás, vamos ver que as coisas já tinham começado a mudar no princípio do século XXI.
José Maria Pimentel
Sim, e estas coisas, lá está, o lado contingencial da história significa que as coisas podem acontecer
Nuno Garoupa
no longo geral, por exemplo, 50 anos. Sim, sim, absolutamente. Eu acho que as nossas mudanças podem acontecer em 3 anos ou em 50 anos, dependendo de fatores exógenos. Eu tenho a opinião que se amanhã houver uma catástrofe económica na Europa, nós vamos ter mudanças aqui muito mais bruscas do que se de facto continuarmos neste crescimento que permite manter a sensação de que não estamos assim muito mais pobres do que há 10 anos. Então, isto se calhar pode levar 50, 60 anos até essas mudanças, elas próprias serem graduais, quer dizer, não tem que ser mudanças bruscas como foi o 25 de Abril ou o 28 de Maio ou o 5 de Outubro.
José Maria Pimentel
Essa questão da alternância PS-PSD, a verdade, e esse é o outro problema, é que não há razões para crer o contrário, porque isso tem-se mantido, enquanto nos outros países isso foi dissipando, em Portugal tem-se mantido até ver, o que torna o problema difícil
Nuno Garoupa
de resolver. Isso é verdade, mas eu gosto de dar o exemplo do Reino Unido. O Reino Unido teve que fazer a transição a partir de certa altura, quando emergiu, evidentemente, o eleitorado, digamos, operário, popular, que não estava representado nos dois partidos, que eram os conservadores e os liberais. E, portanto, apareceu o Partido Trabalhista. A transição em que o Partido Trabalhista acaba por substituir o Partido Liberal, o que também não era óbvio ao princípio de que isso fosse acontecer, porque poderia ser o Partido Conservador que tinha desaparecido, essa transição vai desde o final do século XIX até 1945. Portanto, são 50 anos de um período de transição e que parte dele caracterizado, exatamente como estamos a passar em Portugal, que é os anos 30, em geringonças de geometria variável porque nenhum partido consegue de facto ser preponderante na sociedade inglesa. E portanto é possível, por isso é que eu acho, nós já estamos nesse processo. Agora, não sei o que vai acontecer daqui a 30 ou 40 anos, mas nós vamos ter um processo de reconfiguração, pela simples razão de que os atuais partidos hegemónicos do sistema partidário não correspondem, nem refletem as divisões da sociedade portuguesa nem da sociedade moderna, porque nós temos hoje muitos outros temas que nos dividem e que temos opiniões divergentes e que não são a esquerda-direita ou saúde privada ou saúde pública e isso inevitavelmente tem que relevar a reconfigurações do sistema partidário. Os ingleses estão a passar pelo mesmo processo, obviamente pela questão europeia do Brexit, porque é evidente que o Partido Trabalhista e o Partido Conservador não refletem neste momento aquilo que devia da sociedade inglesa, mas isso é um processo que eles provavelmente vão fazer em 10, 15 anos. Nós vamos falar mais tempo também pelas nossas contingências e pelas nossas questões, mas é evidente que se nós olharmos, percebemos que, pelo menos, nos meados de 90, as coisas já estão a alterar-se e refletem dinâmicas distintas da nossa sociedade portuguesa. Eu acho que qualquer pessoa hoje com menos de 30 anos ou 35 anos tem muita dificuldade em rever-se de uma maneira alternância do PS e do PST porque não representa de facto aquilo que são as suas inquietudes e as suas visões sobre a sociedade portuguesa. Sim,
José Maria Pimentel
embora até seja, quer dizer, isso é quase um reflexo só, não é? A questão é mais vasta do que isso, não é? É mais vasta do que simplesmente os partidos que estão no poder têm que ver com a própria arquitetura do sistema e com a maneira como o governo... Não, obviamente, agora
Nuno Garoupa
a questão é que talvez há 100 anos, se estivéssemos a ter esta conversa há 100 anos, ia nos parecer mais natural que viesse aí um momento em que, pronto, há uma revolução, há qualquer coisa e a sociedade tem uma descontinuidade, reorganiza-se e emerge um novo regime. Eu acho que isto não nos vai acontecer e, portanto, eu acho que nós vamos ter que fazer essa evolução, digamos, utilizando as palavras do final do Estado de Novo, vamos ter que fazer agora sim a evolução na continuidade e essa evolução vai depender muito de fatores externos a Portugal.
José Maria Pimentel
Se acontecer é mau sinal, ou seja, se isso tiver que acontecer, a prazo seria mau sinal. Olá! Gostam do podcast? Se quiserem contribuir para a continuidade deste projeto e juntarem-se assim à comunidade de mecenas do 45° podem apoiá-lo através do Patreon desde 2€ por mês. Visitem o site em www.patreon.com, escreve-se P-A-T-R-E-O-N, barra com 45° por extenso e vejam os benefícios associados a cada modalidade de contribuição. Desde já obrigado pelo apoio, mas para já voltamos à conversa. Eu queria só voltar a enfatizar aquele ponto que eu estava a fazer há bocadinho. Porque é uma... Lá está, eu tenho dificuldade em ver como é possível essa alteração ocorrer de dentro. Porque uma das... É um bocadinho a questria do ovo à galinha, mas um dos problemas das instituições extrativas é esse mesmo, não é? Que têm dificuldade em se organizar para alterar. E até pode ser irracional não o fazerem, no sentido em que a alteração pode não resultar e a alteração pode não ser forçada, então tem uma certa probabilidade de lhe ser forçada através de uma revolução e, portanto, se calhar é melhor ficar quieto e se calhar o valor esperado de ficar a contar com as rendas é melhor do que o... Mas
Nuno Garoupa
é por isso que nós não... É por isso que, quer dizer, isto é um pouco de futurologia. Nós temos diferentes modelos na Europa, não é? Quer dizer, nós temos um modelo, digamos, italiano, francês e o próprio... A experiência espanhola, em que os partidos aparecem e desaparecem, não é? E, portanto, o que há é reconfigurações permanentes dos sistemas partidários que refletem reconfigurações da sociedade, não é? E, portanto, o que acontece é que a certa altura, isto é como prazo de validade, há um determinado partido que já não tem e desaparece. Mas também temos um outro caso completamente oposto e que pode até ser, paradoxalmente, aquilo que nos vem a acontecer a nós, que é o caso americano. O caso norte-americano é, os mesmos dois partidos, em termos...
José Maria Pimentel
Nominais. Nominais, que
Nuno Garoupa
existem há 150 anos, representam coisas completamente diferentes. Completamente diferentes. Portanto, é evidente que o Partido Republicano hoje não tem nada a ver com o Partido de Abraham Lincoln ou o próprio Partido Republicano anterior à Segunda Guerra. Com o Partido Democrata hoje não tem nada a ver com o Partido solista-esclavagista anterior à guerra e depois o partido do FDR e do próprio Kennedy. Portanto, eu não estou... Eu posso entender que uma das coisas que possa vir a acontecer é o nosso regime democrático continuar a ser dominado pelo PSD e pelo PS, mas que esses partidos dentro de 30 anos não tenham nada a ver com o seu conteúdo atual, ou seja, que o label é o mesmo, as siglas são a mesma, apesar de eu ser um defensor, já escrevi que eu acho que mudanças de siglas é muito saudável e fazia bem, porque também acredito no marketing e acho que os produtos de vez em quando têm que mudar de cor e de embalagem, mas até admito que não seja assim, que seja a mesma embalagem, mas o líquido que está lá dentro é completamente diferente. E isso pode vir a acontecer. Eu até acho que há alguns sinais disso também. Acho que não são sinais muito fortes, mas acho que as alterações que aconteceram, quer no PS com a Jaringonça, quer no próprio questão que está acontecendo dentro do PSD, porque nós podemos dizer que o PSD que era de Passos e o PSD de Rio são coisas bastante diferentes e que só por coincidência é que têm o mesmo nome. E, pronto, é possível que isso venha a acontecer, não sei.
José Maria Pimentel
Isso agora já estamos aqui a fazer futurologia. Mas o caso dos Estados Unidos é interessante para o ponto que eu ia fazer, porque pegando o exemplo da época dos civil rights, quando há ali o Partido Democrata ganha um novo eleitorado e ao mesmo tempo perde aquele eleitorado do Sul, que se opunha determinadamente às alterações que foram feitas. Esse é um exemplo de uma... Houve aquela mudança, ocorreu, ainda por cima, quem protagonizou essa mudança, até era uma personagem improvável, o Leland Johnson, que não era à partida o tipo que ia fazer aquilo, aquilo ocorre porque há uma sociedade civil que lá está diversa, dinâmica e que pressiona nesse sentido e, portanto, o ponto que eu queria fazer é dificilmente, é muito difícil, aliás, se ocorre na nossa vida particular, dificilmente nós alteramos os nossos defeitos se não tivermos alguém a forçar-nos a fazer isso, seja a nossa mulher, seja um amigo nosso, alguém que nos seja próximo. E isso, fazendo aqui o paralelismo tosco, isso também acontece muito ao nível dos países. O que não quer dizer, e era aí que eu queria chegar, o que não quer dizer que não possam ser tomadas medidas para gerar essa dinâmica e essa diversidade. Por exemplo, o caso da China, que é um caso interessante. E eu fiquei a pensar nisso por causa do, justamente, do livro do Assemóvel e do Robinson, e até falava a certa altura com o Ricardo Paz-Mamete sobre isso, da questão das instituições, e ele lançou logo o exemplo da China, que é um exemplo muito comum, dizer, sim senhor, Essa tese é muito bonita, mas na China não funciona, porque a China é uma ditadura, como todos nós sabemos. Mas mesmo na China, depois apenhem um livro recente, bem interessante, chamado Como a China Conseguiu Escapar à Armadilha da Pobreza, de uma autora chamada Yuan Yuan Ang, que será da própria descendência chinesa. E aquilo é muito interessante porque ela mostra como, enquanto para o nosso olho ocidental não se passou ali nada, manteve-se uma ditadura, manteve-se um controle apertado do poder, manteve-se uma burocracia estatal, na prática eles criaram num sistema uma série de válvulas que agora o presente atual está mais ou menos a reverter, de criar justamente essa dinâmica, criar competição entre províncias diferentes, criar... Estes são conhecidos, não é? Aquelas províncias de Sanjano, por exemplo, lá no fundo, províncias, não cidades, onde eles criaram bolsas de inovação, criar capacidades de improvisação concorrente entre os títulos diferentes. E isso, por exemplo, é uma coisa que eu veria-se como muito saudável fazer em Portugal e vejo pouco. Ou seja, Quando se fala em concorrências entre escola, concorrências entre modelos diferentes, entre hospitais diferentes, por exemplo, ou entre tribunais, calhar já é um bocadinho mais difícil fazer isso, mas tudo isso me pareceria, para o FICO, porque cria esta diversidade, cria esta dinâmica, não é?
Nuno Garoupa
Mas é que aqui temos que ter alguns elementos em mente, é que a primeira questão é, nós não podemos deixar de nos guiar por ideias generalistas, portanto, quando se diz a China é uma ditadura, sim, a China evidentemente neste momento é um regime autoritário, mas a questão é que nos últimos 100 anos o grau e a estrutura e a organização dos regimes autoritários chineses têm variantes. E, portanto, pensar que a China dentro daquilo que é um regime autoritário é imutável não é verdade. Isto também se aplica ao Portugal, voltando àquela questão, quer dizer, nós podemos ter de hoje até ao fim da eternidade democracia, o que não quer dizer que temos o mesmo regime democrático, porque há variantes entre o regime democrático. E portanto, é evidente que a China nunca teve um regime democrático, mas o autoritarismo, aliás, até, como estávamos a dizer, hoje há uma certa conjunta de regressões dentro da própria China e eu até diria que hoje a China tem um regime mais autoritário do que tinha há 10 anos. Exatamente. Portanto, as coisas vão e vêm. Agora, a China tem uma grande vantagem sobre nós, que é a dimensão. É que mesmo num regime autoritário, existe um grau de concorrência inevitável dado à dimensão. Quando as pessoas dizem, bem, os chineses não votam para o presidente, os chineses não votam para o congresso chinês. Sim, mas o facto deles terem um país enorme significa que mesmo dentro do partido único há um nível de concorrência enorme que possivelmente em algumas questões até é superior ao nível de concorrência que nós temos entre os partidos que estão na Assembleia da República. Porque é evidentemente que quando vamos ter eleitorados de 30, 40, 50, 60 mil pessoas para eleger aquilo que são os deputados, por exemplo, no Congresso, isso é muito maior do que temos dentro dos partidos políticos portugueses que são eleitorados mínimos. E, portanto, é preciso pôr as questões em contexto. O desafio da China é demonstrar que a teoria do Acemoglu e do Roderick e de muitos outros, de que é possível ter taxas de crescimento em sistemas autoritários até certo nível. E portanto, chegam àquilo que eles chamam de fronteira de possibilidades autoritária. E que para ir além disso vão ter que fazer reformas democráticas. Isso é que a China, vamos ver se isso é verdade ou não é.
José Maria Pimentel
Mas a China já não estará nessa fronteira?
Nuno Garoupa
Pois, a questão é saber se está e se isso é verdade, se essa fronteira existe, no sentido de que para ir além dessa fronteira tem que fazer... Assim, no curtíssimo prazo parece que não, porque eles até estão a fazer regressões nessas reformas. Agora, no caso português, é isso que eu acho, é um problema porque toda a concorrência que queiramos ter entre hospitais, escolas, tribunais, centros de investigação, universidades, no caso português, por causa daquilo que temos estado a falar das instituições, da falta de confiança, etc. Tudo isso tem que ser imposto e logo isso é uma concorrência algo artificial, porque o Estado impõe a concorrência, ela não é gerada a partir da sociedade.
José Maria Pimentel
Mas isso, quer dizer,
Nuno Garoupa
eu percebo e concordo. Isso é muito importante, por exemplo, uma área que me toca evidentemente, e na Agora também, tivemos os resultados dos concursos da FCT, dos Centros de Investigação, e perguntam, mas porquê que nos Estados Unidos não há? Bem, nos Estados Unidos não há porque não há necessidade, porque dada a dimensão, eles estão naturalmente em concorrência. E as coisas surgem. E na Europa, desde as reformas da Thatcher, e aquilo que nós fazemos hoje em avaliações da FCT, enfim, infelizmente para quem não gosta da Thatcher, isto vem da Thatcher, foram coisas que a Thatcher fez no Reino Unido de 1980 e que todos copiámos. Estas concorrências que existem são na verdade artificiais, porque elas são feitas a partir do Estado para tentar forçar concorrência que não existe naturalmente, porque o país é pequeno e, portanto, rapidamente está cartelizado. E isso cria-nos um problema, porque até que ponto é que essa concorrência é sustentável quando os incentivos naturais são contrários a ela? Ou seja, numa sociedade que estamos naturalmente cartelizados, como é que nós vamos conseguir, por mais que o Estado faça um esforço enorme de impor concorrência, como é que essa concorrência sobrevive? É preciso mexer nos incentivos também. É evidente. E aí, evidentemente, que há coisas que podem ser feitas, não estou a dizer que não, mas há que perceber que estamos sempre a enxertar transplantes num corpo que não gosta dessa forma de estar. E nesse sentido, há uma frase, enfim, já muito esquecida, da primeira vez que o o Professor Cavaques Silva, como o primeiro ministro, fez uma visita à China e que eu acho que foi uma das frases e não sendo eu propriamente um fã do cavaquismo, mas que gosto de citar porque acho que ele viu isso muito bem, que ele dizia a China é o país socialista mais capitalista do mundo e Portugal é o país capitalista mais socialista do mundo e de facto isto tem... Em que evidentemente ele está-se a referir à questão económica e depois à questão social. Nós de facto somos um país economicamente capitalista, mas sociologicamente adeptos do coletivismo e da cartelização. Não quero chamar isso de socialismo, mas enquanto a China evidentemente tem os géneros contrários. E eu acho que isto explica muito dos nossos problemas E voltando a como nós começámos, muitos deles que têm a ver com o capital social, são problemas que não, mesmo que haja uma gerenção inteira que queira resolver, não se conseguem resolver de um dia para o outro, porque não é possível legislar e decidir a partir de agora os portugueses passam a ter confiança uns nos outros. Isto são coisas que estão nos nossos genes e que não se alteram. Isto tem a ver com coisas até típicas que se ouve muitas vezes em conversa de café, porque é que os portugueses são tão bem sucedidos lá fora e nós aqui somos um país que isto não se desenvolve. E isto tem a ver com esse problema do capital social. Exatamente, ou seja, não
José Maria Pimentel
é uma coisa intrínseca, é uma coisa que
Nuno Garoupa
tem a ver com a... Com a sociedade onde nós estamos inseridos e nasce da sociedade, nós somos uma sociedade que não confia e, portanto, quando o português está aqui, ele não confia. Quando ele é inserido numa sociedade com incentivos diferentes e forma de estar diferente, ele acaba por se ajustar àquela sociedade.
José Maria Pimentel
É evidente que o ideal seria que isto surgisse organicamente, seria que a sociedade conseguisse fazer o bootstrapping, conseguir puxar-se pelas próprias botas e subir. Agora, não tendo acontecido isso, eu acho que isso seria uma área de estudo com imenso potencial, que é exatamente perceber que pequenas medidas é que podem ser tomadas nesse sentido e nós temos, há medidas mais, digamos, soft e medidas mais hard, não é? Temos medidas, a FCT é um exemplo de uma medida hard, não é? Uma medida em que há de facto uma intervenção direta. Agora, há casos suficientes, embora nenhum deles lá está, seja completamente adaptável, incertável, não é? Mas há casos suficientes de países que fizeram justamente isso. Os países do sudeste asiático fizeram muito isso, com o Estado a intervir, e por isso é que eu não gosto muito da… não é que eu a ache irrelevante, mas acho a redutora da dicotomia Estado-privados, porque são importantes no seu papel. É evidente,
Nuno Garoupa
basta pensar em
José Maria Pimentel
Singapura. Sim, em Singapura, a Coreia, há uma série de países… São países
Nuno Garoupa
que são apresentados como mecas do capitalismo, mas na facto foram impostos pelo Estado.
José Maria Pimentel
Exatamente. Ou seja, foi o Estado que… E a China, neste sentido, ou seja, este exemplo que eu dava da China, é confiar na tese da autora desse livro, mas que me parece fazer algo de sentido, é no fundo criar as estruturas e ao mesmo tempo, eu diria provavelmente também, tentar mexer nos incentivos para que isso aconteça, para haver essa concorrência, para haver essa diversidade. Por exemplo, uma coisa que me faz sempre muita confusão é nós não usarmos uma coisa tão simples como ter, nós temos que testar um modelo, por exemplo, não sabemos se ele funciona ou não, em vez de andar com uma espécie de discussão moral, que é sempre onde fugimos em discussões políticas de alguém está do lado do bem, alguém está do lado do mal, vamos testar isto há alguns. Mas
Nuno Garoupa
isso tem a ver com esse problema. Nós, evidentemente também assim, quanto mais o espaço público não responder àquilo que eu acho que são os problemas fundamentais em termos da estagnação económica, nós mais vamos descambar, pelo menos no curto prazo, no discurso do bem e do mal, porque é evidente que quando não temos uma resposta para os problemas, a única forma é decidir que há o bom e que há o mal e dividir o mundo entre bom e mal. E isso também se agrava na minha opinião e por isso é que eu acho que Às vezes entra aquela discussão, que eu uso muito a expressão das claques, porque é que o país se claquizou no espaço público, porque evidentemente depois olhamos para a participação eleitoral e está em queda, não é? Portanto, é evidente que há uma grande parte do país que se alienou disto tudo, mas no espaço público parece que está claqueizado. Isto também tem a ver com problemas que vêm estudados nos Estados Unidos, que é o problema da identificação, não é? Quer dizer, o ser humano tem que se identificar e o nosso problema é que com a perda da importância da religião, com a perda da importância da história, da compreensão histórica, as pessoas têm necessidade de se identificar com uma tribo, de serem membros de uma tribo. E evidentemente o que sobra é a claquização ou do futebol ou da política. Eu sou parte desta tribo e quero ser parte desta tribo. Porque, mais uma vez, as pessoas como a menina por cima não foram formatadas para não ter pensamento crítico, sentem-se extraordinariamente preocupadas se ficarem sozinhas a dizer coisas que mais ninguém está a dizer. E isto tem-se notado muito no espaço, não é só em Portugal, mas acho que em Portugal nota-se muito que estamos numa fase de claqueização que às vezes já arrassa o irracional. Parece que estamos no futebol, parece que qualquer pessoa, com todo respeito, escolhe o Benfica ou o Sporting ou o Porto ou qualquer dos outros clubes por questões emocionais, porque não há nada racional
José Maria Pimentel
para decidir qual é o clube.
Nuno Garoupa
Isto é uma coisa... Quer dizer, agora o partido não deveria ser uma questão emocional, porque os partidos representam formas de pensar a sociedade, e portanto as pessoas deviam aderir e apoiar ou não apoiar partidos em função da sua forma de pensar a sociedade. Ora, nós já estamos numa fase em que não, é eclequização, eu sou deste partido porque sim.
José Maria Pimentel
Não, é porque está do lado dos bons não é este partido está moralmente do lado dos bons. Pois a identificação vai para aí,
Nuno Garoupa
do lado dos bons não é?
José Maria Pimentel
No futebol, apesar de tudo, ninguém nega que o futebol é puramente emocional. Eu digo que sou do Porto, bem fico do Sporting e eu reconheço bem. Se calhar há pessoas que pensam que estou a dizer isto. Se calhar não é assim tão verdade. Mas acho que uma pessoa normal sabe que aquilo é emocional. E sabe que aquilo não tem... Na política não é
Nuno Garoupa
assim. Pior, eu acho que nós já tentamos ter atores políticos que vêm dizer que a política é emocional. Não, a política, a última coisa que deve ser é emocional. A política deve ser racional. Porque se
José Maria Pimentel
trata... Ela é emocional, ela será sempre emocional, mas nós devemos querer que ela seja o mínimo
Nuno Garoupa
possível. Não, não, o mínimo possível, porque a política é responder à organização da sociedade, o que é que eu quero para a minha sociedade. Isso não pode ser uma questão emocional, de bons e maus, é uma questão de qual é o meu projeto. Com o agravante, que eu acho que isso também se passou em toda a Europa e nos Estados Unidos e é evidente que nos está afetado também, que é a democracia tem por base nós discordarmos das nossas opções, mas aceitar que qualquer um de nós está a defender o que está a defender porque entende que é a melhor opção para o país. Nós entramos numa fase em que é o bem e o mal, portanto o outro lado é mau e não quer o bem do país. E a partir daí, isso evidentemente mina os alicerces da democracia, como estamos a ver nos Estados Unidos, entre os dois partidos. Porque parte do princípio que eu discordo, mas discordo, mas reconheço que o outro está a defender o que está a defender, tem visão errada, mas não é uma visão moralmente inferior, é simplesmente errada.
José Maria Pimentel
Nós entrámos numa fase em que é uma visão moralmente inferior. Ou não é necessariamente uma visão moralmente inferior, até pode ser, até pode vir a comprovar-se. Há um cartoon, agora lembrando-me disto, há um cartoon da New Yorker, que eu ouvi essa piada, que é um pai a falar, acho que é um pai a falar com o filho, a dizer, eu e a tua mãe vamos divorciar porque eu quero o melhor para o país e ela não. Exatamente,
Nuno Garoupa
exatamente. Que é o significado disso. Portanto, entramos nessa fase, quer dizer, e não há de algo possível, quer dizer, não há de algo possível. Agora, o problema em Portugal é que nós, merecer de coisas que já aqui falámos que têm a ver com a falta da produção de conhecimento, com o facto de haver esta afunilação ao centro, de que toda a gente que escreve tem que ser do centro de qualquer coisa, de que até se cria esta imagem, bem sei que mais à direita do que à esquerda, de que a ideologia é má. Quer dizer, ideologia é a minha forma de entender o mundo que me rodeia. Portanto, como é que pode ser, ou aquela célula frase, para citar agora de uma forma negativa o presidente Cavaco, de que, como é que era, a ideologia esbarra na realidade. Não pode, isso é uma frase que conceptualmente é errada, porque a ideologia é a minha forma de interpretar a realidade, como é que ela pode esbarrar na realidade? Quer dizer, eu posso é mudar de ideias, agora a ideologia é ela própria, é a minha forma de interpretar a realidade. Agora nós, e vimos agora este ano com os 45 anos do 25 de Abril, continuamos muito agarrados a esta comparação com 74, quando é evidente que em 45 anos nós fizemos uma imensa evolução, mas é absolutamente natural e ainda bem que assim foi. E como já falámos aqui, o sistema nacional de saúde, a massificação da educação. É evidente que o nosso PIB, apesar de estarmos estagnados há 20 anos, nos 20 anos anteriores duplicou. Há imensos ganhos proporcionados pelo regime democrático. E temos a ser capazes de perceber, e nem vale a pena entrar aqui com a discussão do contrafactual, não é? Quer dizer, se o Estado não tivesse durado mais 20 anos, será que... Não vale a pena porque o contrafactual não existiu. Agora, também temos que perceber que há países da nossa área, da nossa esfera, que estavam económica, socialmente e politicamente bastante piores que nós em 1975, 1976, 1977 e hoje são países que estão com uma capacidade económica superior. Estão a falar de estados bálticos, da Checa e da Eslováquia, portanto da República Checa e da Eslováquia, etc. E em Portugal não há um debate sobre isso. O que é que eles fizeram
José Maria Pimentel
que nós não fizemos? Pois não, pois não, sim,
Nuno Garoupa
sim, justamente, exatamente. E mesmo quando se entra na desculpa, bem, mas a diferença é que as ditaduras comunistas investiram na autodidatização da população e o Estado Novo não fez esse investimento ou não fez um investimento a esse grau, sendo uma discussão possível, o facto é que isso já foi há 50 anos. E mesmo que seja verdade, vamos dizer, mesmo que seja verdade, quer dizer, isso não me satisfaz porque eu não posso mudar o passado, eu não posso voltar 100 anos atrás e dizer epá, esperem lá, não se esqueçam de investigar para daqui a 100 anos. E portanto, se essa é desculpa, é quase como dizer game over.
José Maria Pimentel
E é fraco consolo?
Nuno Garoupa
Não, é fraco consolo porque dizer, eu sou pobre porque sou pobre. Não pode ser, portanto, nós temos que pensar o que aconteceu nestes 50 anos, ou 40 e 50, 50 anos, que permitiu aos Estados Bálticos fazer o avanço que fizeram e nós não fizemos. E, portanto, se é um problema do regime anterior ou se é inclusivamente um problema, como outros autores dizem, da localização geográfica, que o problema é que nós estamos na periferia e os estados bálticos e a Checoslováquia e países esto localizados ao lado da Alemanha e portanto isso permite-lhes... Bem, mas tudo fraco aos consórcios porque a conclusão que nos leva a isso é que então isto é fechar a loja.
José Maria Pimentel
Mas essa é uma peça da discussão muitas vezes, porque há uma noção que quando se começa a discutir isso, o que nós vamos fazer é discutir quem é a culpa. Quem é o culpado de... E entra-se facilmente numa discussão de fações, não é? Em que ninguém quer admitir. Mas isso é o nosso catolicismo, não
Nuno Garoupa
é? Porque temos que sempre ter um culpado. Exatamente. E espiar a culpa depois, e todos sofrerem para espiar a culpa.
José Maria Pimentel
E depois está o assunto resolvido, quando na prática isso não interessava para nada. O que interessa é perceber, independentemente dos Estados Bálticos terem tido uma vantagem, e poderão ter tido, ou dos países do sudeste asiático terem tido uma vantagem, o que interessa perceber é, nós queremos o mesmo, como fazê-lo com as nossas condições iniciais. E esse debate, quer dizer, isso parece um... Também não quero entrar aqui num lamento um bocado de fato, mas parece... Mas esse debate, eu não vejo existir esse debate, não vejo a urgência
Nuno Garoupa
dessa... Não, A sensação que nós temos é que houve imensos progressos objetivos durante, digamos, 25 ou 30 anos e que depois ficámos, naquela expressão também à portuguesa, à sombra da bananeira. Ou seja, fizeram-se esses grandes progressos e depois nos últimos milhões estamos estagnados a viver dos benefícios que... E portanto, não houve a preocupação de, fizemos os progressos, evidentemente, mas se os outros estão a fazer mais, o que é que nos falta? E evidentemente, houve opções políticas erradas, haverá responsabilidade, e aliás é uma coisa que insististe bem, que eu acho que é outro problema da língua portuguesa, da própria língua portuguesa, que é a permanente confusão entre culpa e responsabilidade. Porque uma coisa é responsabilidade, outra coisa é culpa, e de facto há muito tempo que já devíamos ter percebido que não vale a pena andar a atribuir culpas. Outra coisa é que sejam apuradas as responsabilidades, e se discutam essas responsabilidades, mas culpa de expiação e de pedir perdão e de auto de fé porque é preciso queimar quatro pessoas ali no Torredo do Passo para a gente ficar todos cómodos. Voltamos àquela coisa do século XVIII, mentalidade ainda muito rural. Agora, não há de facto um debate de porquê isto... E eu acho que parte desse... Há muitas razões porque é que este debate não é feito, mas uma delas é a própria humildade da classe política, porque para ter este debate nesta altura, há que assumir que de facto alguma coisa não foi feita. E eu acho que isso exige um grau de humildade que a classe política não tem e que portanto prefere disfarçar, como à pouco dizias, dizendo que este ano vamos crescer 1, 8% ou 2% e que portanto esse debate não tem sentido porque já estamos a crescer a 2% ou os 25 mil milhões desapareceram, mas agora já temos uma nova lei de supervisão ou agora já temos não sei o quê, portanto não vale a pena esse debate. Porque esse debate exige alguma humildade, que exige dizer as coisas não correram bem, não vamos apurar responsabilidades nem vamos atribuir culpas, mas vamos pensar porque é que não correu bem e como é que se sai daqui. E isso eu acho que as elites políticas não só não estão a fazer, como eu acho que há um programa que se está a gravar, que já se nota, que é, enquanto muitas outras áreas, e toda a gente fala da geração Erasmus e da quantidade de quadros que saem e vêm e vão em muitas áreas, na área económica, na área cultural, na áreas fundacionais, na área da educação, na área da saúde, os médicos vão e vêm. O problema é que a nossa classe política, até certo ponto, é extraordinariamente paroquial, tem muita, pouca experiência em exposição internacional. E isto porquê? Porque a nossa classe política, na minha opinião, continua fundamentalmente a ser recrutada de duas áreas, que são áreas relativamente fechadas. A advocacia, portanto as profissões jurídicas, que são áreas locais, sem grande exposição internacional, e a comunicação social. Porquê? Por causa da língua. Ninguém vai daqui ser jornalista na BBC ou na... Sim, aqui tivemos um. Ou em Pequim, sim, até temos um. Até que estamos a saber os
José Maria Pimentel
nomes das pessoas que foram. Exatamente.
Nuno Garoupa
E isso significa que as duas, digamos, os dois grupos de grande recrutamento são grupos que estão menos globalizados do que outras áreas e eu acho que isso se começa a notar em termos das elites políticas versus outras elites culturais, económicas, sociais.
José Maria Pimentel
Havia uma micro-solução que me ocorreu, e acho que até pode ser uma coisa um bocadinho politicamente incorreta, porque parece aquela coisa no estrangeiro é que se faz bem, mas que não acho que seja necessariamente isso, acho que até seria útil em quase todos os países. E acho que o Nuna aliás aludia a isso no artigo, que é que nós, por exemplo, abrirmos concurso de administração pública ou de cargos desses a estrangeiros. Por exemplo, a Gulbenkian fez isso com a diretora do museu, por exemplo, que é uma inglesa atualmente. Mas isso era o tipo de uma ultra micro-solução, não é uma panaceia, mas podia ser
Nuno Garoupa
interessante. Sim, eu até defendo isso numa fase transitória, isto é, quando nós temos um problema claro com os reguladores, em que os reguladores mais e mais e mais estão completamente capturados pelo poder político, porque evidentemente os partidos transformaram os reguladores em mais um dos parques de colocação dos seus boys e das suas girls, a única forma de romper com isso é de facto, eu diria, durante 20 anos, vamos contratar reguladores fora de Portugal. E isso eu acho que quebrava, porque muitas das coisas que eu acredito que acontecem neste momento é preciso quebrar, E quebradas um pouco voltando ao Fernando Lopes. Levanta-se uma nova geração, ou seja, mesmo que voltem os mesmos daqui a 20 anos, o facto de as pessoas terem que recuperar espaços perdidos, já introduz dinâmicas sociais. Eu acho que isso tem que ser com micro-medidas, porque é evidente que mesmo que haja um consenso político ou partidário de que vamos só nomear pessoas assim e assado, o facto é que os incentivos são o que são e terminamos como terminamos. E, portanto, é preciso quebrar isso dizendo, Durante, por exemplo, dois mandatos, os presidentes e os reguladores são pessoas que não são portugueses, vamos contratar fora de Portugal. Eu acho que isso tem algum impacto na forma como as coisas acontecem. Agora, também acho que, em relação àquilo que dizias de o estrangeiro, eu acho que nós temos que começar a distinguir um pouco aquilo que é o estrangeiro no sentido fora da União Europeia e dentro da União Europeia. Nós não podemos andar a dizer que somos o país mais europeu e o país mais integrado e depois continuar a tratar Badajoz e Vigo como já é outra coisa e a partir daí é só estrangeiro. Eu acho que temos que começar a estar habituados que temos que tratar o resto da União Europeia como um espaço de continuação geográfica de Portugal e, portanto, é normal que haja muitos portugueses que estejam a trabalhar, a viver nesse espaço geográfico, como é normal que nós, em Portugal, passemos a olhar para pessoas que estão nesses países como potenciais pessoas para contratar pontualmente? Quer dizer, uma das coisas que me faz mais confusão na minha vida pessoal, porque eu já entrei e saí de Portugal várias vezes, é esta ideia sempre que as pessoas quando me perguntam quando voltas? Mas então agora voltaste de vez. Portanto, isto é uma ideia dos anos 60 do imigrante da mala de cartão que vai e volta. Não há ir e voltar dentro da Europa. As pessoas têm que perceber que isto são processos fluidos e que o normal é que as pessoas possam estar aqui e depois à manhã irem para Itália e depois irem para a Alemanha e depois regressam aqui se houver uma melhor oportunidade de trabalho. E isso é uma coisa que eu acho que as empresas já fazem e que as universidades já fazem e que a própria seta cultural já faz, na música, nas artes e que no espaço da política continua a não ser feito, continua a estar extraordinariamente vedado. E a prova é isto, por exemplo, este último caso em Espanha, que eu acho que cá ainda estamos ainda mais longe, da candidatura do Manuel Valls em Barcelona. E claro que houve muita gente em Espanha que entendia como é que o Manuel Valls, que é Primeiro-Ministro francês, é candidato a Mayor, apresenta a Câmara de Barcelona. Quer dizer, nós aqui não nos passa pela cabeça se quer que nos apareça um espanhol ou um italiano... E alguma piada para... Exato, e ser o candidato do PSD ou do PS numa câmara porque é um senhor que já vive lá ou que viveu lá. E isso de facto, enquanto nós não quebrarmos isso, continuamos de facto a ter um espaço político muito fechado. Agora só para eu
José Maria Pimentel
desenvolver um bocadinho mais o ponto que eu estava a fazer há bocado, para que também que esteja a ouvir perceba o que eu quero dizer. O ponto de ter, e acho que a ideia do Nuno também é essa, o ponto de ter um estrangeiro não é o estrangeiro ser melhor, é trazer diversidade.
Nuno Garoupa
Exatamente, o ponto é diversidade. E forçar
José Maria Pimentel
uma descontinuidade no sistema. Exato,
Nuno Garoupa
A questão é ser descontinuidade disruptivo. Não é que ele seja melhor ou pior. A questão é o problema de é preciso ser disruptivo, é preciso descontinuar processos que estão instalados há 40 anos ou há 45 anos que nós precisamos de descontinuar. Continuar. Porque voltamos à mesma questão, é possível que o próprio 25 de Abril, como o 28 de Maio, 5 de Outubro, 1383, nem tenha alterado as elites. Agora, criou disrupção e o problema de criar a disrupção, introduz mudança. E nós precisamos dessas mudanças. E nós precisamos dessas mudanças, mesmo que depois as elites sejam exatamente as mesmas, ou a geração seguinte, não são as mesmas, porque a natureza evidentemente trata de evoluir. Mas que seja a mesma geração seguinte da geração anterior, mesmo que sejam, eventualmente até no nosso caso, que costumam ser os mesmos apelidos. A questão é que houve, haver disrupção introduz alteração e isso é importante. E temos o reverso da medalha, temos um bom exemplo que já merece, vai começar a ser mostrado, que foi, houve muita gente em 2014 que disse que a crise do Banco Espírito Santo era um processo disruptivo porque a falência do DDT alterava completamente o funcionamento das elites politico-partidárias e económicas em Portugal. É evidente que cinco anos depois as coisas estão como estão, portanto é evidente que não houve esse processo disruptivo, independentemente de alguns supersaltos que possam ter havido naquela altura. Portanto, é evidente que nós precisamos mais casos daqueles para ter algum tipo de disrupção que seja
José Maria Pimentel
minimamente razoável. Sim, mas essa até é uma pergunta interessante, ou seja, para conseguir corrigir estes desajustes que nós já falámos e que têm a ver com alguma correlação entre eles, a ausência de capital social, dificuldade em pensar a longo prazo ou em trazer o longo prazo para cima da mesa, a tendência para ver este acabalho de experimento desenvolver muito, que é o que é muito interessante, a questão de ver o mundo como um jogo de soma nula, que não é independente da questão de pensar a longo prazo, ou seja, se eu criar num jogo de soma positiva, eu consigo criar um país no longo prazo que seja melhor para toda a gente, enquanto que num jogo de soma nula, para eu dar mais a uma pessoa, estou a tirar de outras. Esse é o grande problema. Para corrigir estes desajustes há outras medidas, micro ou
Nuno Garoupa
macro? Micro ou macro não. Eu acho é que há questões, voltamos à mesma questão, há questões que têm a ver com a produção de conhecimento, que é uma questão que exige medidas macro, porque a produção de conhecimento pode ser
José Maria Pimentel
revertida.
Nuno Garoupa
Quer dizer, eu também fui daquelas pessoas que achei que quando o presidente Lula criou o Ministério do Planejamento, que aquilo era assim uma coisa que não se percebia para que é que servia, mas de facto, possivelmente nós precisaríamos nesta altura de um ministério do planejamento, ou seja, um ministério que a única coisa que faz é produzir livros brancos e reflexão a longo prazo, portanto, não é para as próximas eleições nem para os próximos dias. E isso, de facto, é algo que tem que ser feito e que tem custos políticos, é evidente, porque vai cair meio mundo em cima a dizermos o que é que estes lados estão a fazer e lá estão os tipos do taxo ali, não sei o quê. Mas quer dizer, tem custos políticos, mas que nós não temos. Agora, há outras questões que são questões importantes e que têm a ver com a própria clarificação das soluções. É evidente que nós, para passarmos para um jogo de soma positiva, tem que haver uma compreensão por parte, digamos, do eleitorado e da população que não há neste momento. E eu acho que nós temos bons exemplos com isso. Toda a gente percebe que nós temos um problema de equilíbrio entre a geração mais velha, que está hoje reformada e que beneficia de políticas de reforma, que não vão ter os mais novos. E é evidente que toda a gente que é mais velho, os avós, estão preocupados com os netos. Mas o que nós já percebemos é que os avós preferem ter reformas e dessas reformas retirar 10% para ajudar os netos, do que ser o Estado a reformar as reformas para ajudar os netos. Porquê? Porque ninguém acredita que na reforma que façam da Segurança Social não acaba o Estado a perder dinheiro, isto é, eu prefiro dar 10€ do meu bolso aos meus netos do que me vir o Estado, porque os 10€ que o Estado diz que vai dar aos meus netos, 5€ ficam pelo caminho, aí entra não sei o quê. Isto é um problema de credibilidade das instituições, Porque não é verdade que os mais velhos, quando se falava, enfim, em tempos de ausência da peste grisalha, isso é uma falsa questão. Porque não é verdade que os mais velhos não estejam preocupados com os mais novos. Estão. Agora, o que os mais velhos já não confiam é que o Estado possa fazer as reformas necessárias para redistribuir dos mais velhos para os mais novos. Eles querem fazer eles a restribuição diretamente. E isto é que eu não sei muito bem se é reversível no curto prazo. Ou seja, se o Estado tem capacidade de readquirir qualquer tipo de credibilidade que possa dizer às pessoas que qualquer reforma que vamos fazer tem prejudicados e beneficiados e esses prejudicados têm que acreditar que de facto vai haver aqui este conjunto de beneficiados. E esse é um problema de desgaste da credibilidade que eu acho que é muito difícil de reverter, mas que dificulta porque é evidente que, por exemplo, a redistribuição intergeracional exige um papel do Estado, porque o mercado, os indivíduos não conseguem fazer isso da melhor forma.
José Maria Pimentel
E isso é um problema que eu acho que nós temos neste momento em cima da mesa. Sim, até porque é um problema que se acumulou, não é? Ou seja, resulta do enviasamento ou de uma destrução que depois reflete numa acumulação de, vamos supor, de rendimentos que estão desajustados, não quer dizer que sejam... Isso tem a ver, por exemplo, com
Nuno Garoupa
a questão que se discutiu hoje da dívida pública. É evidente que qualquer português percebe que dada a acumulação de dívida pública, estamos a prejudicar as próximas gerações. Acho que qualquer português também aceitaria que, olhe, nós vamos ter que pagar mais impostos para reduzir a dívida pública para não prejudicar as próximas gerações. Onde o problema começa é, pois, mas eu pago mais impostos para reduzir a dívida pública, mas desapareceram 25 mil milhões. Portanto, há aqui um problema de credibilidade, porque eu quero ter a certeza que o que estou a pagar é realmente a redução do ONG das próximas gerações e não aqui esta questão. E isso vem a reforçar aquilo que estamos a falar aqui desde o princípio, que é o capital social. Portanto, evidentemente, níveis de desconfiança. Eu desconfio que o que me estão a exigir não é para aquilo que me estão a dizer, mas é para outra coisa qualquer que eu não gosto.
José Maria Pimentel
Sim, E eu ouvi a galinha de novo, não é? Essa é a dificuldade da coisa. E aquilo que falámos há bocadinho, a questão da tendência para haver este tipo de problemas, e isso nota-se muito no debate político, como jogos de soma nula. Isso até é uma boa ponte para nós passarmos para outra coisa que eu também gostava de falar, que é a questão do poder judicial, que tem que ver com a... Eu noto isso muito no debate político, nós já lidimos isso um bocadinho aqui, nesta conversa, que é determinadas medidas que parecem... Quer dizer, não há medidas certas, mas são medidas que parecem justamente criar um jogo de soma positiva a prazo, ou seja, se eu aumentar a eficiência de um hospital, se eu aumentar a eficiência dos tribunais, isso é bom a prazo. E no entanto é muito difícil ter este debate, e a minha dúvida é se este debate tem a ver com, se calhar, essa falta de dinâmica ou falta de capital social que torna difícil o debate decorrer a ponto de ficar claro esta questão ou se tem a ver com a questão das próprias elites, não ser o facto das elites não perceberem, mas de não aceitarem abrir mão de algum poder.
Nuno Garoupa
E não sei se o sistema judicial não é um caso particular disso. O sistema judicial, eu acho que inferma de várias questões. Desde logo, tem questões, digamos, de natureza genética, ou seja, da forma como o sistema está concebido. E, evidentemente, o sistema judicial em Portugal deriva, todo ele, de uma enorme desconfiança dos atores políticos em relação ao poder judicial. E, portanto, ele está construído de forma a limitar e inibir o poder judicial de ter qualquer capacidade de imiscuir-se naquilo que o poder político entende que é a sua área de discrecionalidade. E isso, que tem razões históricas e que remontam também ao século XVIII e ao século XIX, evidentemente tornou-se um problema a partir do momento em que a própria sociedade se tornou exigente para com esse poder político. E eu acho que isso é uma questão que houve ali uma janela de oportunidade de fazer alguma coisa, que foi nos anos 90 e que foi perdida e, portanto, dificilmente agora poderá ser feita. Depois acho que se acrescenta a própria dinâmica social, Ou seja, nós temos um conjunto de instituições que simplesmente, e os tribunais são um exemplo, que vão sempre atrás em vez de antecipar os fenómenos sociais. É evidente que o problema que nós temos hoje com os nossos tribunais, para quem pensa curto e grosso em termos económicos, é um problema de excesso de procura, quer dizer, simplesmente, para aquilo que é a estrutura atual dos nossos tribunais, há excesso de procura. E há excesso de procura por duas razões. Há excesso de procura porque as relações sociais são muito mais complexas hoje do que há 50 anos, É evidente. E depois há excesso de procura também porque o Estado nos pede constantemente intervenções que nos levam a essa procura. Há um exemplo muito concreto, era evidente a partir de certa altura que se nós vamos tornar a nossa máquina fiscal muito mais eficaz, isto para não utilizar a palavra eficiente, mas muito mais eficaz, é evidente que isto vai aumentar o grau de conflitualidade com as finanças. Durante 15 anos ninguém se preparou para isso, nem vou falar aqui em teorias da conspiração de que isso foi de propósito para não sei quê e para não sei quanto, mas o facto é que não preparou. Ora, era perfeitamente antecipável há 15 anos que se nós vamos ter uma máquina fiscal extraordinariamente eficaz, extraordinariamente exigente, que o nível de conflitualidade vai aumentar e precisamos de repensar os tribunais administrativos fiscais. Não se fez nada, por isso hoje temos a crise que temos nos tribunais administrativos fiscais. E, portanto, isso é uma boa demonstração de que as instituições vão atrás dos acontecimentos, acontecimentos nesses, em alguns casos, que são extraordinariamente previsíveis. Mesmo a questão que hoje temos, todos estamos preocupados do combate à corrupção e dos problemas do oferecimento da justiça penal, talvez não de uma forma tão óbvia como a justiça fiscal, mas já eram previsíveis porque grande parte destes problemas existia em Itália e Espanha nos anos 90 e, portanto, era uma questão de tempo até a nossa democracia estar consolidada e ter exatamente os mesmos problemas. Mais uma vez nada foi feito, nada foi antecipado, nada foi desenhado e, portanto, hoje temos um Ministério Público que vai de interrupção em interrupção. Já toda a gente percebeu que estes processos levam anos e anos e anos, coisas inimagináveis que em 2019 estamos a discutir coisas de 2004 e 2005 e 2006. Também estamos todos a antecipar que lá para 2030 estamos a discutir os problemas de 2019 e, portanto, isso tem a ver com a nossa incapacidade de resposta. Agora, tal como há pouco estávamos a dizer, eu acho que há muitos fatores que explicam isso e, evidentemente, já mencionámos alguns, o capital social, as instituições estativas, mas também evidentemente temos que admitir que há um certo nível de pouca exigência por parte do eleitorado. E isso leva-nos a outra questão para a qual eu não tenho grandes respostas ainda, mas é uma questão que até porque é complicada em Portugal debater que é, e que se reflete na participação eleitoral, nós estamos com um grau neste momento de despolitização equivalente a 1974 e, portanto, como é que ao fim de 45 anos uma grande parte da nossa população está totalmente despolitizada, portanto está aliada e isso é algo que deveria preocupar, mas também percebo que para preocupar, mais uma vez, exige alguma humildade porque alguém falhou nestes 45 anos, se ao fim de 45 anos o grau de despolitização é este. Bem, eu sei que o grau de despolitização hoje, abaixo dos 40, não traz as mesmas razões que tinha o grau de despolitização em 1974, que tinha a ver com outras questões de alfabetização, de nível cultural.
José Maria Pimentel
Hoje... Mas isso é fraco consolo, é a mesma coisa, não é? Não, é fraco consolo,
Nuno Garoupa
porque é evidente que as explicações são diferentes. Agora, o facto é que nós temos um nível de despolitização enorme e isso, depois, reflete-se em muitos destes problemas, não
José Maria Pimentel
é? Sim, sim, sim, sim, sim, Até porque depois criaste a catadupa de efeitos de nós que falávamos. Menos participação, menos intervenção, menos diálogo, menos discussão, menos geração de ideias, mas também menos circulação de ideias. E mais
Nuno Garoupa
imigração da juventude, quer dizer, que é isso que é parte do problema que nós estamos... Aliás, Uma das questões que eu acho que isso está a escamotear e não se quer discutir é até que ponto nós temos um país que investe recursos a formar, neste caso capital humano, não capital céu, mas capital humano, que depois emigra. E, portanto, até que ponto nós estamos a financiar o capital humano do resto da Europa? Até
José Maria Pimentel
porque há razões para crer que alguma seleção adversa.
Nuno Garoupa
A adversa do nosso ponto de vista, mas como é fica de quem recebe essas pessoas. Exatamente. Portanto, até que ponto nós não estamos a financiar os outros. E essa questão aqui também é uma questão que não se quer abrir grande debate sobre isso.
José Maria Pimentel
Tem muito que ver com aquela questão da visão de longo prazo que nós falávamos há pouco e o sistema judicial também, quer dizer, eu acho que também se nota isso no sentido em que nós temos até, lá está, culturalmente também, eu falando com amigos que são juristas, sobretudo se forem da área constitucional, percebe-se muito bem isso, há uma preocupação quase filosófica com o que diz a lei e com o que é suposto ser. Mas depois, na prática, há uma espécie de paradoxo em que isso torna, perversamente, o fim que nós atingimos pode ser bastante pior do que aquilo que está escrito. Quer dizer, eu posso ter um sistema em que é garantista em relação ao acusado, em relação à defesa e em relação às partes, em certo sentido, ou seja, garanto o processo o mais justo possível e que elimina ao máximo o risco de haver uma decisão errada. Mas se esse processo demora décadas, eu não vou ento destruir o valor, não é? Claro, mas
Nuno Garoupa
aqui eu acho que há duas questões que se complementam, mas não são exatamente a mesma coisa. Uma questão é a questão, digamos, da discussão do direito, não é? E, evidentemente, que em Portugal nós temos o direito, ele insere-se numa dogmática jurídica, até de natureza continental, e, eventualmente, aqui está mais agudizada que noutros países, e que, essencialmente, rejeita a realidade, ou seja, o direito faz sentido pela coerência intrínseca e interna do direito, não pelas consequências que ele tem. Isso é um debate que, evidentemente, os nossos juristas vão ter, evidente que os nossos juristas estão a correr contra o tempo, porque o mundo é como é, e com a globalização, a dogmática jurídica perdeu valor, e, portanto, os juristas vão ter que aceitar isso. Hoje não aceitam, vamos ver daqui a 50 anos. Isso é uma questão. A outra questão é a questão de fazer escolhas e aí o problema, na questão penal, concretamente, é o problema de tentar evitar, assumir que fizeram escolhas. Porque nós temos, como estava a dizer, nós temos que fazer uma escolha. E assim, ou somos garantistas. E se somos garantistas, garantistas levado ao extremo, significa que não só isto vai levar 20 anos ou 30 anos, como grande parte das pessoas que fazem maldades não são condenadas. E assume-se isto. Pronto, nós para evitar condenar inocentes, o que vamos fazer é que haverá imensa gente que não é inocente mas que não é condenada. Ou temos um sistema menos garantista, que significa que os malandros de facto são condenados, mas infelizmente também vamos condenar muitas vezes gente que é inocente. E esta é uma escolha. E eu acho...
José Maria Pimentel
É uma discussão muito difícil de ter essa.
Nuno Garoupa
Mas o problema é que eu acho que até há argumentos conceituais, filosóficos, ideológicos para optar. Para dizer, eu prefiro o sistema garantista à custa de ser menos eficaz no combate, por exemplo, à corrupção, ou ao contrário, eu quero um sistema menos garantista, mais eficaz no combate à corrupção, mas à custa de sacrificar eventualmente inocentes. E as pessoas optam. Ora, qual é o problema em Portugal? O problema em Portugal é que se quer apresentar isto como não sendo uma escolha. Ou seja, eu consigo fazer as duas coisas. Eu consigo ser garantista e eficaz. Mas isso não existe. Ou eu sou garantista ou eu sou eficaz. E depois até idealmente, se nós fôssemos uma sociedade de pensamento crítico mais aberto haveria um partido que diz que é garantista, o outro partido diz que é eficaz e nós no nosso voto dissemos, olha votamos no garantista, votamos no eficaz. O problema é que se quer apresentar isto como sendo possível as duas coisas, ou seja, eu não tenho que fazer escolhas, Eu consigo ser ao mesmo tempo garantista e eficaz. E depois quando isto não produz resultados, é porque faltam recursos. Claro, se eu tivesse recursos infinitos, eu consigo ser garantista e eficaz ao mesmo tempo, porque tenho recursos infinitos. Mas o problema é que eu não tenho recursos infinitos e no caso português até tenho recursos escassos e muito limitados. E portanto eu tenho que fazer escolhas. E mais uma vez, eu não acho que seja inconcebível, nem acho que esteja errado defender. Não! Nós queremos ter um sistema garantista e portanto, sim senhor, este é o sistema que temos e defender isso eu defendo o sistema garantista. Mas
José Maria Pimentel
é resultado de uma discussão. Sim,
Nuno Garoupa
e que isso resulta em que várias pessoas que eu não gosto e que suspeito que são malandros andam aí à solta, pois sim, mas é o custo que eu estou a pagar porque eu não quero haver gente inocente acusada. Até porque tenho uma herança do Estado Novo, até porque já tive experiências de regimes em que éramos menos garantistas e cometeram-se muitos erros. Agora, o que não pode ser que é ouvir constantemente no espaço público que eu consigo ter as duas
José Maria Pimentel
coisas. E mesmo debaixo disso, mesmo debaixo da macro definição de um sistema garantista e de um sistema eficaz, para usar essa terminologia, há muitas coisas que podem mudar um em outro e não havendo essa discussão significa que não vai haver pensamento crítico sobre nenhuma
Nuno Garoupa
das componentes. Porque é evidente que mesmo dentro daquilo que é um sistema garantista há diferentes níveis de garantia, não é? Quer dizer, eu posso ter um regime no limite que até diz que eu só condeno com prova direta, explícita e em que o arguído admite. A mim nessa altura eu não condeno ninguém. Mas quer dizer, eu posso ter diferentes níveis de garantismo. Posso garantir mais nos aspectos e menos noutros? Claro! Como no sistema eficaz, é evidente que um sistema em que eu digo... O sistema eficaz máximo seria toda e qualquer pessoa que desempenhou cargos públicos é suspeita de corrupção, portanto vai dentro. Quer dizer, A partir daí eu tenho uns culpados, tem uns cento de pessoas lá dentro, mas tem tudo lá dentro. Ou o sistema medieval é altamente eficaz. Exatamente. Agora, entre as duas extremos, é evidente que eu tenho que encontrar, digamos, compromissos. Agora, o que nós temos que assumir é que antes de encontrar esses compromissos, assumir que há dois objetivos diferentes. Um é de garantismo, outro é de eficácia e que eu posso, democraticamente, numa sociedade, ter pessoas que existem que querem-me puxar mais para a eficácia e pessoas que querem-me puxar mais para a garantia. O problema em Portugal neste tema é que se criou uma presunção de que é possível ter as duas coisas e de que a única razão de que nós não estamos a ter as duas coisas é por falta de recursos. Mas recursos que não vão existir.
José Maria Pimentel
Isso nos está a lembrar imenso, aquela analogia do economista conhecido, do Pareto, que depois se tornou popularmente conhecida naquela regra dos 80-20, e que tem uma série de implicações em realidades que vão muito para lá da economia, e este, no Manual de Superficial, é um exemplo quase de livro de escola disso, porque a noção dele, no fundo, é que, aplicado a uma realidade concreta, se eu quiser construir uma casa, para construir uma boa casa eu gasto X de recursos, para construir uma casa perfeita eu vou ter que multiplicar os recursos por um número enorme, porque para cada grau extra, no sentido da perfeição, eu vou ter que pôr cada vez um maior número de recursos. E o nosso sistema judicial parece-me funcionar muito dessa forma, ou seja, nós queremos-no tão garantista que estamos num ponto em que temos que pôr imensos recursos para que ela seja um bocadinho mais... O que está a ir
Nuno Garoupa
mais grave do que essa é que eu acho que há uma recusa em apresentar a discussão nesses moldes, ou seja, há uma recusa intrínseca em dizer que a justiça tem um problema de recursos e que esses recursos não vão existir e, portanto, que eu tenho que tomar decisões tendo em conta os recursos que tenho. E, portanto, é como se eu estivesse a dizer que eu quero construir a casa, quero aperfeiçoar a casa, mas vou ignorar que cada nível de aperfeiçoamento me vai custar uma potência N do nível anterior. Porque quase... Porque não falamos em dinheiro. Porque como somos católicos, não é suposto estar a falar em dinheiro. Mas o verdade é que nós temos esse problema. E não é só na justiça, quer dizer, as próprias questões da saúde e da educação são assim, quando se vêm agora as discussões dos medicamentos, é evidente que um dos grandes problemas da saúde é que quem decide a saúde está a decidir quem vive e quem não vive, como é evidente, porque eu não tenho recursos limitados e ao não ter recursos limitados eu tenho que fazer opções e ao fazer opções inevitavelmente há consequências. Portanto, há pessoas que vivem e há pessoas que infelizmente não vivem. Mas nós apresentamos, queremos sempre apresentar essa discussão como fora desse
José Maria Pimentel
contexto. Como se isto não existisse. Infelizmente
Nuno Garoupa
é assim, os recursos são limitados e portanto toda e qualquer decisão que eu tome é evidente que tem consequências na vida das pessoas e é evidente que há pessoas que beneficiam e pessoas que infelizmente não beneficiam. Agora, onde eu acho que o grande problema é essa falta de transparência, porque nós queremos fingir permanentemente que não há opções a fazer, que tudo é possível,
José Maria Pimentel
tudo é possível. Sim, é uma espécie de miopia em relação à realidade, em sério sentido, não é? Não querer ver uma realidade desconfortável.
Nuno Garoupa
Mas isso também porque eu acho que há um grau da parte da classe política de não querer assumir essa responsabilidade, porque é evidente, é muito difícil uma pessoa vir dizer, eu quando tomo decisões, estas decisões são devidas ao morte em certos grupos da sociedade, e depois há também uma total desresponsabilização do eleitorado, quer dizer, em que todos nós não queremos sentir-nos responsáveis pelo aquilo que acontece, e é por isso que, e tivemos vários exemplos, Pedro Algonquim Grande e tudo mais, com consequências trágicas e catastróficas, e em que evidentemente a maior parte da sociedade fingiu que não tinha nada a ver com o assunto, como se todo o conjunto de políticas que levou a Pedro Algonquim Grande não fosse consequência de voto e de decisões políticas que todos, em momentos diferentes do tempo, apoiámos. Portanto, é evidente que há aqui uma tentativa também das pessoas não se sentirem representadas. O ponto, ao fim de 45 anos, continua a existir na conversa corriqueira nós e eles, como se eles fossem pessoas nomeadas pelo professor Salazar sem qualquer legitimidade democrática e que nós não sabemos porque é que foram aquelas pessoas. Portanto, não há nós e eles, porque as pessoas que lá estão, com todos os defeitos que tenham, foram democraticamente eleitas. Votámos neles. Mas como é que
José Maria Pimentel
é nós e eles? E no entanto nós insistimos nesta ficção do nós e eles. É que é verdade que são elites extrativas e que são eles em certo sentido. É a história do homem da galinha, não é? Sim, mas eles têm legitimidade
Nuno Garoupa
democrática, não é? Nós depois podemos dizer...
José Maria Pimentel
Formalmente têm, mas...
Nuno Garoupa
É evidente que há taxas de abstenção, é
José Maria Pimentel
tudo isso. Eu testo essa conversa, estou a fazer de advogado do diabo, mas é verdade que percebo porque é que ela existe, porque de facto as pessoas sentem-se... Móvel, É
Nuno Garoupa
evidente que nós temos queixas imensas, ou seja, desde logo eu quando voto para a Assembleia da República nem posso ter aquilo que seria mais elementar que é escolher da lista do partido que eu quero votar quais são os que eu quero que sejam eleitos. Portanto, aquilo é apresentado em lista fechada e eu nem sequer...
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim, já falei disso. É evidente que os 230
Nuno Garoupa
deputados que estão na Assembleia da República, apesar de formalmente serem eleitos numa eleição em que estão 10 milhões de pessoas inscritas, na verdade resultaram decisões internas dos partidos, portanto foram escolhidos na verdade por 3.000 a 4.000 pessoas. Por 3.000 a 4.000 pessoas. É evidente. Foram cooptados, não é? Foram cooptados, porque a única coisa que eu posso fazer como eleitor anónimo é dizer que prefiro a lista deste à lista daquilo. Mas eu não posso dizer eu quero este ou aquele. É evidente. Isto já para não entrarmos em discussões sobre sistema eleitoral mais complexo e tudo o resto. É evidente. Agora, também é evidente que eles têm legitimidade democrática, porque eu fui lá votar. Quer dizer, nós ainda não estamos naquela velha proposta do Saramago com 80% de voto em branco. Em que posso dizer pá, há 80% de voto em branco, de facto isto não tem legitimidade democrática. A verdade é que não, há uma legitimidade democrática. E portanto, nós temos alguma responsabilidade naquilo que é o conjunto de políticas que temos. Que essa responsabilidade está mitigada, sem dúvida que está mitigada por muitas coisas. Agora, o nós e eles, como se estivéssemos num Estado novo, em que nós não votamos nem elegemos, então há um eles que alguém nomeou, não é bem assim, não
José Maria Pimentel
é? Sim, não estamos nesse estádio, é verdade. Uma coisa que eu ainda queria falar da discussão que estávamos a ter em relação ao direito garantista versus eficaz. Porque eu acho que há aqui duas conclusões importantes a tirar. Uma, que tu já fizeste e faz sentido, que é a questão de tem que haver um debate e nós temos que ter, temos que admitir para nós próprios e por em cima da mesa o trade-off que existe entre uma coisa e outra. Ou seja, para ser garantista vamos ser menos eficazes e vice-versa. E essa é uma discussão importante e que não é tida. Mas essa, e quanto com toda a importância que ela tem, e a questão do pareto que eu falava pouco, ou seja, quanto mais próximos de um extremo tivermos mais recursos a este que temos que estar a empregar para chegar a esse extremo, essa discussão não deixa de ser um jogo de soma nula. É uma discussão importante, mas é um jogo de soma nula. Parece-me intuitivamente que há muitos subjogos de soma positiva dentro disso, ou seja, dentro de um sistema garantista e dentro de um sistema eficaz há esse sistema, dentro dele tem uma série, quer dizer, desdobra-se, calca-se numa série de subsistemas e de vertentes diferentes. O que quero dizer com isto é, Nós dentro de um sistema garantista podemos ter um sistema melhor e que consiga muito melhor do que o atual, da mesma forma que um país que tenha um sistema mais apendépo ao eficaz, como o do Direito de Adição Anglo-Saxónica, pode melhorar aquele sistema
Nuno Garoupa
corrigindo... Mas é por isso, duas coisas. Primeiro, é preciso não esquecer que a questão do direito mais ou menos garantista, mais ou menos eficaz, continua a fazer sentido hoje porque nós nos últimos 2 ou 3 mil anos não conseguimos arranjar uma tecnologia que determine a culpabilidade ou não culpabilidade de forma objetiva. No dia em que essa tecnologia houver, por exemplo, no dia em que cada um ser humano tem um chip que retém imagens do que andou a fazer, ou se possa abrir o cérebro e ver o que é, a discussão acaba. Ou melhor, ou tipo Minority Report. Exatamente. O nosso problema é um problema filosófico, é que nos últimos 3 mil anos não existe uma tecnologia que determina a culpabilidade de alguém. Um problema de incerteza. Exatamente, e portanto nós temos que lidar com essa incerteza. No dia em que ela acabar, esta discussão também acabou. Até lá a discussão existe. E como dizes, agora a questão é, dentro de cada uma das opções, encontrar o equilíbrio de várias questões. Porque mesmo dentro do direito mais garantido ou menos eficaz, nós estamos a ver uma dimensão do problema, lá há outras dimensões do problema e que têm a ver com a questão que já falámos também da celeridade, se queremos ter as coisas mais demorada ou menos demorada, se queremos ter maior ou menor generosidade, por exemplo, na forma como financiamentos o acesso e a defesa e a acusação. Portanto, há questões que têm a ver. Agora, o que eu acho é que A noção de garantismo tem custos e parece-me que em Portugal se quer sempre escamutear estes custos quando eles devem ser assumidos e até mais uma vez insisto, acho que há boas razões filosóficas e históricas para os assumir. Agora, temos é que os assumir e dizer, olha, isto realmente vai ser assim porque nós temos este sistema e não queremos alterar o sistema. Não é essa a resposta porque, evidentemente, conforme os escândalos mediáticos se vão acumulando, é evidente que há um ímpeto do outro lado, é evidente que há uma parte da população que está a perguntar, então mas como é? E claro, como temos estes ímpetos e estas incapacidades de resolver, é complicado. Agora, temos de ter alguma noção, porque se nós, enquanto sociedade e a classe política, não responder e não tornar esta discussão mais transparente, nós sim aí criamos condições, na minha opinião, e já disse isso algumas vezes, para cabrar numa solução à Húngara ou à Polaca, não por questões de imigração, mas por questões de corrupção. Que a certa altura alguém diz bem, mas então eu venho propor uma solução eficaz à custa de suspender determinado tipo de direitos. E vamos ver depois se um dia, se não, uma maioria dos eleitores que diz que eu por acaso também concordo com isso e voto nisso. É a questão da revolução, falamos nisso. É preciso perceber também os compromissos dentro daquilo que é o nosso ciclo sociável. Nós até somos uma sociedade, há bocado estávamos a brincar, mas até somos uma sociedade que tradicionalmente resolve isto muito bem, fazendo cinco autos de fé ali no terreiro do Paz. Portanto, o que é que eu quero dizer com isto? Eu acho que a pressão social até seria muito menor se já tivéssemos um conjunto de condenações que satisfaz essa pressão social. Portanto, não é preciso grandes revoluções jurídicas. Agora, é preciso perceber as válvulas sociais que isto exige e é evidente que neste momento há um grande grau de desconfiança, que eu acho que vai levar-nos nos próximos 4, 5 anos a uma situação que, claro, a política pode achar que resolve, mas que vai ser complicada, que é termos todos os órgãos de ciberania, neste momento já temos o Presidente da República e os deputados europeus eleitos com taxas de abstenção superiores a 50%, é provável que isto agora aconteça em Outubro e se isso acontecer temos todos aqueles que são representantes diretos e eleitos pelos portugueses com taxas de abstenção superiores de 50%. Se pensam que isso não vai criar problemas de legitimidade, em algum momento, acho que a classe política está muito enganada, porque é evidente que vai aparecer um problema de legitimidade. Como é que é que toda a gente que representa os portugueses, afinal, representa uma minoria desses portugueses? E isso vai criar uma discussão de legitimidade mais tarde ou mais cedo. Provavelmente não enquanto estivemos ligados à máquina, mas quando houver algum solavanque económico, vamos
José Maria Pimentel
ver se essas discussões não vêm para cima da mesa. Sim, sim, é aquilo que falámos no início. Não se sabe quando, mas a praxe resulta nisso. Olha, eu vou resistir à tentação de continuarmos a conversa por muito mais tempo, que já vai longa e pedi-te para sugerires o livro. Eu sou fundamentalmente um fã de biografias e, portanto, acho que
Nuno Garoupa
é um género literário que não existe em Portugal, ou que existe menos, por razões que também já estão mais que explicadas na estiografia. Para acaso não sei quais são as
José Maria Pimentel
razões. É
Nuno Garoupa
porque isto tem a ver com tradição e a falta de arquivos pessoais. Portanto, grande parte dos nossos personagens históricos não tiveram cuidado de fazer arquivos pessoais e depois tem a ver com isso, com uma certa tradição da Estutografia a partir de certa altura de ser Marxista ou Neomarxista ou Neonsocialista e portanto desvalorizar o papel do indivíduo, porque evidentemente a biografia, o estilo biográfico, no fundo, é valorizar o papel
José Maria Pimentel
do indivíduo por
Nuno Garoupa
detrimento das instituições ou dos grupos. E, portanto, eu acho que isso explica porque é que este género literário, ao contrário dos países, teve alguma dificuldade em suceder. Quer dizer, nós continuamos, por exemplo, só há pouco tempo tivemos biografias dos nossos reis. Em relação aos grandes personagens da Primeira República nós continuamos a ter uma enorme falta de biografias, mesmo do Estado Novo. Uma das personagens mais biografadas a ter é o Marquês de Pombal e neste contexto referir-o à biografia que eu acho muito bem escrita do Marquês de Pombal pela Cristina Bessa Luís, que é de facto uma mistura, evidentemente, da literatura dada à autora com uma reflexão sobre as condições humanas e os vícios humanos que o próprio Marquês de Pombal, evidentemente, representa, que é na sua época histórica, que era ao longo, evidentemente, dos últimos 20 anos.
José Maria Pimentel
Sim, ele é uma personagem, quer dizer...
Nuno Garoupa
Ele é uma personagem fundamental e é uma personagem que tem duas coisas importantes. Primeiro, como outros, percebeu que nós tínhamos um atraso em relação à Europa e percebeu que esse atraso se devia, na opinião dele, a, sem usar a linguagem que temos hoje, evidentemente, elites e instituições extrativas. O método que ele usou para resolver esse problema não é um método que hoje podemos usar, porque no fundo todo o processo de Ostávora e tudo o que ele fez à nobreza, e não mais do que entender que isto temos que eliminar as elites extrativas e que fundamentalmente, mais uma vez, se repete o que disse o Fernando Lopes, porque claro, a viradeira e o desterro do Pombal não é mais do que o regresso das elites que o Pombal tinha afastado e, portanto, as coisas se compuseram.
José Maria Pimentel
Menos aquelas que não tinham sido mortas. Agora há um
Nuno Garoupa
aspecto curioso, não é? Quer dizer, o próprio Jaime Reis e os coautores dele encontram que desde o fim do Pombalismo até praticamente às guerras liberais, há uma perda muito consistente de riqueza, de PIP per capita, o que significa que de facto há um processo de empobrecimento longo durante aqueles 40 anos que vão desde o final do Pombal até praticamente às guerras liberais. E reparem, isso também mostra que nós, aquilo que nós já dissemos aqui várias vezes, nós podemos ter processos longos de empobrecimento. As coisas não têm que acabar amanhã.
José Maria Pimentel
Sim, sim, a história é ultra contingente. Estavas a falar da China há bocado, quer dizer, Tiananmen, por exemplo. No fluxo da história da China, é que ele parece um ponto que foi num sentido contrário e não se sabe, daquilo que existia na altura, não sabe o que é que se mantém e se, por exemplo, poderá levar a uma revolução qualquer no curto prazo, nós não sabemos. Mas o exemplo do Marquês de Pombala é interessante até porque ele é uma personagem controversa e... Ou pronto, uma conversa sobre ele, para mim, teria falado sobre uma série de coisas que nós falámos aqui hoje e o facto dele, por um lado, ter diagnosticado, mas por outro lado, ser ele próprio um déspota, não é? Aquela lógica do déspota, claro que sim, mas que era uma pessoa. Mas ele
Nuno Garoupa
próprio, a própria historiografia do Marquês de Pombal acaba por ser interessante, porque o Marquês de Pombal é uma figura que evidentemente sai impopular, desterrado pelas elites, é recuperado no fundo pelos liberais, ele é apresentado como um déspota iluminado, uma pessoa que sabe, ele é recuperado ao longo do século XIX pela esquerda, como sendo um herói da esquerda e depois... E na Primeira República também. Exatamente, depois, a partir do momento em que entramos na alternância da monarquia constitucional, o Marquês de Pombal volta a desaparecer porque é uma figura ignorada, é recuperado na Primeira República. Enfim, podemos descrever porquê exatamente, há quem diga que é as ligações à maçonaria, outro tipo de questões. E depois ele é reconfigurado ao longo do Estado Novo, não é? Porque ao longo do Estado Novo, deixa de ser a referência no sentido dos programas de educação, no sentido de separação do Estado e da Igreja, mas é recuperado como o autoritário que defende um projeto para Portugal. Portanto, o Marquês de Pombal do Estado Novo é um Marquês de Pombal completamente da primeira rama. É o rebranding, não é? Exatamente. E nós ao longo da nossa democracia também fizemos um certo rebranding do Marquês de Pombal. Portanto, há vários Marquêses de Pombal conforme os regimes se vão apropriando da figura do Marquês de Pombal por razões completamente diferentes.
José Maria Pimentel
Sim, por acaso dei muita piada a isso, nunca tinha pensado nisso dessa forma. Olha Nuno, Muito obrigado por teres vindo. Eu é que agradeço. Foi uma excelente conversa. Gostaram deste episódio? Se encontram valor no 45°, existem várias formas de contribuir para a continuidade deste projeto. Podem avaliá-lo na aplicação que utilizam, seja ela o iTunes, Spotify, Stitcher ou outra, e podem também partilhá-lo com amigos e comentá-lo nas vossas páginas ou redes sociais. Se acharem mesmo que merece e puderem fazê-lo, podem ainda tornar-se mecenas deste podcast através do Patreon ou do Paypal. Com esse apoio estão a contribuir para a viabilidade deste projeto, que passa a ser também um bocadinho vosso. Para além disso, obtém em troca vários benefícios, como por exemplo, o acesso ao backstage do podcast e também a possibilidade de sugerir perguntas aos convidados. No fim do dia, já se sabe, são os ouvintes que tornam possível um projeto destes. Ouvintes como Gustavo Pimenta, João Vítor Baltazar, Salvador Cunha, Ana Matheus, Nelson Teodoro, Paulo Ferreira, Duarte Dória, João Castanheira, Tiago Leite, Gonçalo Martins, entre outros mecenas, a quem agradeço e cujos nomes podem encontrar na descrição deste episódio. Até à próxima!