#63 Inês Torres - “Porque é que o Antigo Egipto nos continua a fascinar tanto?”

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José Maria Pimentel
Bem-vindos ao 45°. Neste episódio o tema é o Antigo Egito e a convidada é Inês Torres, egiptóloga e atualmente doutoranda na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. O Antigo Egito até pode parecer um tema um bocado circunscrito para aquilo que há hábito no 45°. Mas é preciso ter em conta que falamos de uma civilização que durou mais de 3.000 anos. E isto é se considerarmos só aquilo que se convencionou como sendo o início desta civilização quando as cidades-estado do Alto e Baixo Egito se uniram para formar um só território. Para além disso, continua a passar todo este tempo a ser um dos períodos que mais fascinam as pessoas, e não é por acaso, porque é um mundo que nos parece simultaneamente próximo e ao mesmo tempo misterioso, entre pirâmides que não se sabe como foram construídas e o estranho hábito de mumificar os mortos. Mas como a Inês realça, as pessoas que viveram naquele tempo são seres humanos iguais a nós, que viveram naquela cultura estranha e que nos parece tão exótica e peculiar. Curiosamente o Egito, ou seja, o Egito dos faróis, terminou já perto do ano zero, ou seja, precisamente quando dava entrada em cena o cristianismo que se tornou a matriz da cultura ocidental até pelo menos ao Renascimento. Esta nossa conversa tocou em tantos pontos que pode ficar confusa e por isso vale a pena deixar aqui uma cronologia da história do Egito em traços grossos. Ao longo destes três milénios, os historiadores identificam três períodos de estabilidade e prosperidade, chamados convenientemente Império Antigo, Intermédio e Novo. A separar estes três períodos, tiveram dois períodos de interregno, marcados, claro, por instabilidade, sendo que, como tudo isto se desenrolou ao longo de três milénios, cada um destes, a que nós chamamos de interregnos, durou de 100 a 200 anos, ou seja, mais do que alguns reinos que lhes seguiram na história do Ocidente. Estes 3.000 anos de civilização egípcia são explicados pelo menos em parte pela sorte que aquele território tinha, pela proteção que a geografia lhe dava e pelo acesso ao nilo, uma fonte de água mais fiável do que acontecia com outras civilizações. Esta prosperidade ao mesmo tempo traduziu-se também em tempo livre, ou seja, libertou o tempo de muitas pessoas que depois acabaram por fazer aquilo que nós hoje, em retrospectiva, admiramos, desde a criação de uma burocracia administrativa ultra-desenvolvida, aos progressos na matemática e na astronomia, passando, claro, pelas proezas arquitetónicas e artísticas. Ao longo da conversa falámos sobre tudo isto e também sobre a escrita, sobre as pirâmides e outras criações, sobre os ritos funerários e sobre a visão optimista dos egípcios em relação à morte. Falámos ainda de outras características peculiares da cultura egípcia e da maneira como esta sociedade estava estruturada, desde as elites, que se conhecem relativamente bem, ao povo, que sabemos muito menos. Concentramos-nos menos em reinos de faróis específicos, com uma exceção que vale a pena, que foi a de Akhenaten, que foi provavelmente o farói mais misterioso e mais controverso deste período. Ao longo desta conversa tentei conjugar estes aspectos mais transversais àquela civilização ao longo do tempo, com a tentativa de perceber como é que a história se foi desenrolando ao longo daqueles 3.000 anos, percebendo como é que foi cada um dos três períodos de prosperidade, mas também os anos ou séculos de interregno. Como o tempo é limitado e tendo em conta que a área de especialização do convidado é o Antigo Império, acabámos por falar menos do período final da civilização egípcia. Deixámos de lado, por exemplo, temas tão importantes como o reinado de Ramsés II ou o fim do império com Cleópatra. E pronto, foi um ótimo episódio, espero que gostem. Inês, muito bem-vindo ao 45°. Obrigada. Vamos lá falar do Egito. Estávamos a falar há bocadinho, vou repetir aquilo que mais ou menos aquilo que já tinha dito, que é, eu acho que a pessoa pensa no Antigo Egito, muitas vezes não pensa ou não tem noção de quanto tempo aquela civilização durou. Estamos a falar de uma civilização que durou mais de 3 mil anos e que não só isso acaba por fazer, tem uma coisa interessante que acaba por fazer, de certa forma faz a ponte entre a invenção da escrita e já lá vamos que é outra coisa que também pode valer a pena falar, ou seja, o começo da civilização egípcia, ou aquilo que se toma como o começo acaba por coincidir com o surgimento da escrita, até porque tu até lá não tinhas muitas formas de validar esse início, e depois vai-te fazer a ponte até a Antiguidade Clássica, até a meio da Antiguidade Clássica, não é? Acaba por terminar, ao menos o consenso, perto já do ano zero. Portanto, um período de 3 mil anos e que ainda por cima tem esta coincidência de fazer a ponte entre, no fundo, o início de todas as civilizações e a Idade Clássica que é depois o que nos serve de matriz. Se calhar uma maneira gira de começar isto é eu perguntar-te de onde é que vem este fascínio que nós temos todos pelo Antigo Egito, que é uma coisa que é mais ou menos comum a toda a gente. Se alguém dava este exemplo, se eu perguntar na rua pela Suméria, a maior parte das pessoas provavelmente não saberá o que era e se souber não sabe dizer mais nada. Se eu perguntar, se eu falar do Antigo Egito, toda a gente sabe falar das pirâmides, das fins, das múmias, de 30 por uma linha, até dos deuses, do livro dos mortos, um monte de coisas. Ou seja, há aqui uma desproporcionalidade que é engraçada, não é?
Inês Torres
Claro, não é verdade. E Eu acho que ainda é mais engraçado se pensarmos que Portugal tem 840 anos de história, não é? Se pensarmos que o nosso país já aconteceu tanta coisa, já temos uma história tão rica e só temos 840 anos, imaginemos então o antigo Egito que tem 3 mil. E eu acho que a antiguidade e a longevidade da civilização acaba por ser uma das coisas que fascina as pessoas. É o facto de ser tão antigo e ter durado durante tanto tempo, que é mesmo... Sim. É a única civilização do mundo que dura durante um período tão grande. A China não conta? A China também, a China também, mas eu julgo que o Egito o que tem de diferente é que a administração e o tipo de governo mantém-se quase sem mudanças nenhuma, Portanto, nesse aspecto acaba por ser mais estável, entre aspas. Claro que há mudanças, claro que as coisas não se mantêm da mesma forma durante 3 mil anos, mas sim, mas de certa forma acaba por ser bastante estável nesse aspecto. Depois, claro, há a questão das pirâmides que levantaste. A verdade é que é um monumento que nós ainda hoje não sabemos como é que foram construídos, não é? Na idade da pedra, numa altura em que não havia os mecanismos que temos hoje e, portanto, isso é parte do fascínio também.
José Maria Pimentel
O que se presta a aquelas teorias de extraterrestres e afins. Exatamente.
Inês Torres
Adoro essas. São muito boas, são teorias muito boas mesmo.
José Maria Pimentel
A pessoa vai ver e... Quer dizer, não faz sentido, até porque tu vês um... Tu tens histórico de pirâmides rudimentares, até às pirâmides mais complexas, não é? Claro,
Inês Torres
claro. Há várias etapas, e uma pessoa consegue ver isto, não? Na arqueologia, apesar de mesmo assim continuar a ser um processo que ainda não compreendemos perfeitamente como é que as coisas, como é que foram construídas. E depois, claro, a escrita também, por ter sido apenas setificada em 1822, também foi um dos grandes mistérios que sempre atrai as pessoas. Aliás, as três coisas que toda a gente me pergunta quando eu falo sobre o Egito são as pirâmides, a escrita e Tutankamón. Sério? São as três coisas principais e eu por acaso fiz a minha tese de mestrado sobre Tutankamon, agora estou a estudar um túmulo que fica ao pé das pirâmides e dou aulas dentro da língua, portanto acabo por tocar um bocadinho nessas coisas todas, por acaso, porque há quem nunca na vida, fazendo gipologia, quem nunca estudou tudo na Kamon, por exemplo. Sim, até porque ele mesmo não
José Maria Pimentel
era especialmente importante. Não. O que é importante é o que vem do... Ou por outro, é importante porque o Tumu estava num estado tão bom que permite interpretar ali, aprender a partir dali uma série de coisas, não é?
Inês Torres
Sim, sim. E também importante se calhar neste negócio que as pessoas têm para o Egito porque quando foi descoberto o túmulo em 1922 foi extremamente popular e houve uma uma vaga de egiptomania, de tentativas de fazer coisas, por exemplo, a joalharia com motivos egípcios, ou até as roupas. Portanto, tudo isso contribuiu para que na Idade Moderna, no século 21, o Egito estivesse muito presente na Europa e na América do Norte.
José Maria Pimentel
Sim, sim. A egitomania começou basicamente com Napoleão, não é? Quando ele vai do Egito, não é? E de repente começam, redescobrem aquela civilização.
Inês Torres
Até um bocadinho antes, até um bocadinho antes, já havia interesse, aliás, desde a Renascença, o Renascimento, que já havia interesse pelo Antigo Egito, porque durante o Renascimento temos um interesse pela cultura clássica e a cultura clássica tinha um interesse no Egito. Aliás o Egito e os
José Maria Pimentel
gregos e os romanos também
Inês Torres
estão muito ligados e foi através daí que a Europa começou a redescobrir o Egito, se bem que nunca esteve perdido, porque fez sempre parte da Bíblia e esteve sempre presente. E se calhar também por isso é que é mais fascinante, não é? Porque a Suméria não estava em tão grande peso, não é tão importante na tradição bíblica como o Egito
José Maria Pimentel
é. Achas que a parte vem daí?
Inês Torres
Acho que tradicionalmente. É possível, é possível, sim. Embora
José Maria Pimentel
o Egito seja um bocado o vilão na Bíblia,
Inês Torres
não é? Pois é, e o primeiro interesse dos primeiros arqueólogos e até colecionadores antes dos arqueólogos que vieram ao Egito foi tentar se perceber mais sobre aquilo que a Bíblia dizia relativamente ao Egito, a tentar descobrir se os escravos judeus de facto tinham sido maltratados ou não tinham, ou como é que as pirâmides foram. Pronto, havia uma data de teorias que estavam a tentar ser provadas, ou pelos primeiros exploradores, que vinham com essa ideia da Bíblia um pouco.
José Maria Pimentel
Mas nunca por acaso até podemos pegar aí, era ter uma pergunta que eu tinha a partir de mais à frente mas até podemos despachar já isso. Porque O eixo do Egito é uma coisa fundamental na Bíblia e para os judeus em particular. Mas nunca se encontrou nada que corroborasse isso ter acontecido, para não? Ou seja, do lado da cultura egípcia, do histórico que eles mantinham, nunca se encontrou nada, para não?
Inês Torres
Não, não. Não há provas nenhumas mesmo. Não há provas escritas nem arqueológicas. E também não há provas escritas nem arqueológicas que corroborem a ideia de que as pirâmides foram feitas por escravos, construídas por escravos judeus, Porque já ouvi isso algumas vezes e a verdade é que as pirâmides foram construídas militares antes de sequer poder ter havido escravos do deus no Egito. Portanto há um pouco essa... É uma civilização tão longa que às vezes as pessoas não têm muito bem a ideia e estávamos a falar sobre isso há bocado, não é? Porque é difícil. Há um
José Maria Pimentel
factoide que eu adoro, para ilustrar isso, que é a questão de as pirâmides estarem mais distantes da Cleópatra do que ela está de nós, temporalmente não, que é incrível! É incrível! É uma coisa... Para ti, obviamente, isso já é natural, mas para quem seja um leigo, eu acho que mesmo sabendo, quando o repito, continua a ser impressionante.
Inês Torres
Mas é mesmo impressionante e isso é uma das coisas que me fascina sobre esta civilização, é que de facto é tão antiga, é tão antiga, mesmo para... E nem precisas de ir à Cleópatra sequer, já no tempo do Tutankamon, as pirâmides já tinham mais de mil anos. Portanto, é absolutamente inacreditável. Quer dizer, Portugal, como nós o conhecemos, como eu estava a dizer há bocado, tem 840, portanto eu nem imagino o que é que seja, não é? Ser essa distância em tempo. E ao mesmo tempo pertencendo à mesma civilização, porque estas pessoas sentiam-se herdeiras das pirâmides, herdeiras. Fazia parte do mesmo contínuo, de certa forma.
José Maria Pimentel
Pois, isso é giro. Eu até gostava de pegar por aí. Esta questão da unidade cultural alm destes três bilhões, que é sempre um... Nós falamos sempre disto como se fosse uma coisa binária, ou existe uma civilização dentro de determinado período, ou então não existe no sentido em que tem quebras, quando obviamente há muito mais chuva nos zonas cinzentas e a China, que nós falávamos há pouco, tem muito esse problema, tu dizes, ah, a China é uma, no fundo é una desde que surgiu ou não? E na verdade acabas por ter, por um lado, tens se calhar um núcleo ou um resíduo de matriz cultural que vem desde que a civilização surgiu mas obviamente que teve tantas alterações até geográficas de poder, com os Hunos e tudo mais, que acabas por... Com os Hunos, não com os Mongóis, que acabas por ter... Que é muito difícil dizer isso. Em relação ao Egito, já não, mas é interessante se calhar perceber isto. Ou seja, se calhar, começando pelo início, o Egito surge de maneira identificada a China, não é? São aquela história das civilizações dos rios, não sei como é que isso se diz em português, mas que surgem ao pé dos rios, surge até relativamente cedo e depois convencionou-se dizer que surgiu, se houver, entre 3100 e antes de Cristo, não é? Sim. Mas isto tem a ver com ter, como é que eu ia dizer, pode ter surgido ainda antes mas isto dever-se ao facto só de nós não termos restos arqueológicos de escrita antes dessa altura ou nós temos razões convincentes para dizer que foi mesmo ali que houve uma união?
Inês Torres
Claro, pois isso é de facto uma pergunta muito relevante porque Quando se diz que o Egito surgiu em 3100 a.C. O que a maior parte das pessoas está a falar é que nessa altura, mais ou menos, nós não temos datas certas, portanto quem diz 3100 se calhar diz 3000, se calhar diz 2900, pois exatamente, não temos bem datas certas, aproximadamente. Portanto, quem disse 3100? 3100 é o princípio já de um Egito unificado. Antes de haver um Egito unificado, que portanto, se calhar tenho que voltar atrás, Havia um Egito que era composto de diferentes grupos sociais, diferentes grupos humanos, não quero chamar de tribos porque isso é já um termo bastante antiquado, mas havia diferentes grupos que viviam no país, à volta do rio, não é? Porque só há uma fonte de água, é um país que está rodeado por dois desertos, só tem um curso de água e portanto acabou por se concentrar ali naquela faixa. E então, a verdade é que não se sabe muito bem como é que de repente estes grupos sociais diferentes se tornaram num grupo unificado, numa civilização, não é? E claro que há imensas teorias, há imensas pessoas que discutem esse assunto. Há quem diga que houve guerra, que foi um grupo mais forte que dominou os outros, há outros que dizem que não, que simplesmente se aperceberam que trabalhando juntos conseguiriam chegar mais longe. Outros simplesmente que falam até em desastres ou transformações ecológicas, que se calhar havia menos prosperidade agrícola ou prosperidade na altura não tanto agrícola, mas um pouco mais uma mistura de agricultura e de... Pecuária? Ah, sei, exatamente. Portanto, há uma data de motivos, a verdade é que não temos, temos alguns vestígios arqueológicos mas não temos na altura, a escrita também surge por volta de 3100. Pois,
José Maria Pimentel
ou seja, coincidem, ou seja, a união, como é que se chama? É o Egito superior e inferior, não é? Do
Inês Torres
alto e baixo Egito.
José Maria Pimentel
O alto e baixo Egito, sim. E a invenção da escrita, Tudo indica que surgiram mais ou menos ao mesmo tempo. Sim,
Inês Torres
de certa... Eu não gosto de dizer que sim, de certa mente, porque como já disse, não sabemos muito bem exatamente em que altura, se calhar foram 100 anos antes ou 100 anos depois, mas sim, é mais ou menos... O que a escrita demonstra, de facto, é que há pelo menos um grupo, uma sociedade, seja ela de que tamanho seja, há uma sociedade que de facto já se juntou e decidiu que há certos símbolos pictográficos que representam certas ideias, que representam se calhar até certos sons e portanto eles decidem que isto é a escrita e se calhar este passarinho assim olhar para não sei para onde, significa isto e aquele número escreve-se assim, com um tracinho e dois com outros tracinhos e portanto isto tem que ser, não pode ser, a escrita demonstra que há uma certa, um certo tipo de organização e de comunicação num grupo social e é um dos maiores fatores também de unificação da elite, Claro, porque temos sempre que pensar que apesar da escrita ser inventada, os primeiros objetos que nós temos com inscrições estão relacionados com produtos, por exemplo, com vinho, com importações, com… portanto, é administrativa. A escrita nasce da administração, da necessidade de administrar e de organizar.
José Maria Pimentel
Ah, sim, o que faz sentido, ou seja, antes de ter um lado mais ritualista começou por ter um lado mais administrativo.
Inês Torres
Mais prático, exatamente. Mas
José Maria Pimentel
eles não tinham dois tipos de escrita? Um para o lado ritualístico e outro para o...
Inês Torres
Sim, de certa forma, quer dizer, digamos, pronto, temos a escrita hieroglífica, que é a escrita, pronto, mais elaborada, que é muito mais pictográfica, que de facto mostra, representa coisas da realidade dos antigos egípcios. Essa é normalmente mais oficial, tem-se um carisma mais oficial, vezes em monumentos, mais relacionada com a pedra do que por exemplo com o papiro, se bem que também há hieroglifos sem papiro, e depois temos a escrita hierática, que é uma escrita mais administrativa, portanto os hieroglifos demoram muito tempo a escrever desenhos. Sim, são desenhos basicamente, não é? São desenhos, exatamente. Portanto, acabam por ter um papel mais monumental, um papel mais oficial. O hierático acaba por se tornar a escrita mais da menstruação porque é mais prático e também aquela que, por exemplo, vês em cartas ou em notas ou o que é que seja, portanto hieroglifo assim tem um aspecto mais oficial, mais monumental, não necessariamente ritual, porque também há ritual, há encantamentos mágicos, por exemplo, em erático. Portanto, não é tanto nesse aspecto, acho que é mais o meio, se bem que, claro, a função dos hieroglifos acaba por ser também mais... Ter um cariz assim mais pesado, mais importante e hierártico assim um pouco menos formal, digamos.
José Maria Pimentel
Mas elas estavam relacionadas também, não é? Ou seja, o hierártico era no fundo uma espécie de simplificação dos hieroglifos.
Inês Torres
Exatamente, portanto, é um... Aliás, quem estuda hierático, a primeira coisa que se vê desde logo e que se aprende é pôr os hieroglifos de um lado, o hierático do outro e a percebermos como é que evoluiu. É simplesmente uma forma mais rápida de escrever. É quase, digamos, é cursivo. São hierógrafos cursivos.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. Já agora um parênteses, porque tu falaste da questão dos papiros. O papiro era uma planta que crescia naquela zona. Eu sempre tive esta dúvida. Eles chegaram até nós, basicamente, porque nós tivemos a enorme sorte daquilo estar num ambiente ultra seco. Caso contrário, não se tinha preservado,
Inês Torres
certo? Exatamente, exatamente. E, aliás, mesmo se pensarmos que são 3 mil anos de história, a maior parte não foi preservada, não é? O papiro era um método, um meio de escrita caro, não é? Não se escrevia em papiro, a desenhar um desenho ou mandar uma nota a um amigo, não é? Aí pegava, sei lá, um pouco de cerâmica, um pedaço de cerâmica partida ou então numa pedra e escrevia.
José Maria Pimentel
Ah é? É muito engraçado.
Inês Torres
Papiro é um meio caro onde aquilo que sobrevive nos papiros acaba por ser, por exemplo, cartas ou até livros mortos, tudo o que seja notas administrativas, sei lá, até dizer, neste dia o sacerdote fez aquilo, aquilo e com o outro e trouxe isto e aquilo, portanto, tudo o que seja assim mais oficial pode estar escrito em papiro, mas não se vê, não é assim tão comum. Se calhar também porque não se preserva tão bem, não é? A verdade é essa. Aí o acidente da preservação significa que nós até podemos ter uma ideia errada daquilo que o papiro, da função do papiro, não é? Sim. Mas que não temos, que sobrevive mais à pedra, que sobrevive mais à cerâmica e, portanto, temos mais dados desse lado do que dos papiros.
José Maria Pimentel
Sim, isso é um bocado angustiador que algo, não é? Porque o que tu não vês pode ter um peso grande e estás a ser ultra enviazada só pelo que vês, não é?
Inês Torres
Claro, aliás, até há uma frase muito importante e famosa no meio arqueológico que é absence of evidence is not evidence of absence. Sim, sim. Uma coisa não significa a outra. Só porque nós não temos esse vestígio arqueológico não significa que não existiu, não significa que não foi importante, que não esteve presente. Aliás, no Egito há aquela ideia que tudo é construído em pedra e não é verdade. Simplesmente o tijol não sobrevive tão bem, a madeira não sobrevive tão bem. Portanto, temos mais pedra do que temos outros materiais, mas a verdade é que não era o material principal. A pedra é um material caro, é um recurso que é difícil de obter e, portanto, está reservado a determinadas obras e a pessoas que podem pagá-las. Mas é interessante
José Maria Pimentel
essa ideia. Sim, esse é um bom exemplo disso. A pessoa olha para... E tens casos de civilizações que quase se perderam exatamente por não usarem pedra. Claro. Aliás, a China, estávamos a falar há bocadinho, tem muitos exemplos. O Japão como usavam muito... O Japão tem até um hábito engraçado de... Nem faço ideia sequer quanto tempo é que isso tem, mas eles têm o hábito de... Imagina, têm monumento qualquer em madeira e eles reconstroem-no periodicamente exatamente igual, no mesmo material, o que leva a que seja muito difícil tu dizer quanto tempo é que aquilo tem. Exatamente. Tem 20 anos ou tem 300, porque é difícil dizer se aquilo foi construído hoje ou foi... Porque, tecnicamente, ele foi construído ontem, mas acaba por estar lá há imenso tempo. Então, mas espera aí, falando então em relação a esse... Falando em relação ao período inicial, ao período das pirâmides. É um período engraçado porque lá está, ele acaba por ser... É um período relativamente inicial, mas onde se conseguem pruezas logo incríveis com uma questão das pirâmides que depois não são repetidas. E esse para mim é um dos mistérios. Ou seja, tu... No fundo há aqui dois mistérios. Há o mistério de quão antigas são as pirâmides, ou seja, tem 4.500 anos, cerca de 2.500 anos de Cristo, tem pai de 4.500 anos. Aliás, até é giro comparar coisas com as outras antigas maravilhas do mundo da idade antiga, porque não só as pirâmides foram as únicas que sobrevivem, como eram de longe as mais antigas. Todas as outras, tendo ou não existido, eram muito mais recentes. Portanto, isso já é incrível, mas depois não deixa de ser curioso que não se tenham repetido, ou seja, depois não volta a haver... Ou estou errado? Interrompeu-se a construção de pirâmides ou não?
Inês Torres
A construção das pirâmides continuou, mas de forma diferente. Se o que está a pensar é nas pirâmides do Planalto de Giza, aquelas as famosas, não é? De facto não se repetiu mais nada como aquilo. São únicas, são as maiores do Egito todo. Mas continuam a haver pirâmides. Aliás, no Império Antigo, durante o Império Antigo, construíram-se à volta de 80 pirâmides. Reis e rainhas e tudo mais. A reforma piramidal também continua a existir no Império Médio, que é o império que se... É a época que se sucede ao Império Antigo, ao primeiro período intermediário. E no Império Médio os Reis também continuam a construir pirâmides, só que não as constroem em pedra, é mais
José Maria Pimentel
em tijolo. E,
Inês Torres
portanto, não sobrevivem tão bem. Não se conhece tanto essas pirâmides, pelo menos fora do meio geológico, porque não são tão espetaculares, estão mais em ruínas, não sobreviveram tão bem, mas a construção das pirâmides continua. E depois no Império
José Maria Pimentel
Novo,
Inês Torres
que é a época que se sucede ao Império Médio e ao Segundo Período Intermediário, então temos pirâmides, mas já não são pirâmides reais, as pirâmides acabam por ser adotadas pelos particulares, por indivíduos, e temos indivíduos que constroem os seus túmulos e têm pirâmides pequeninas, assim mais, pronto, não é assim uma escala menos majestosa, digamos, menos faraónica. Sim, sim. E, portanto, eles continuam. E depois, ainda mais, continuam mais tarde no Sudão, na Antiga Núbia, os reis da Antiga Núbia, continuam a construir pirâmides. Aliás, eles escolhem a pirâmide como símbolo dos seus túmulos, o que nós chamamos da 25 Dinastia Egípcia, que na verdade vem do Sudão. São reis da Núbia. A
José Maria Pimentel
25 foi em que altura? Ah, meu
Inês Torres
Deus, eu sou péssima com datas, mas isto é por volta
José Maria Pimentel
de 700 e tal antes de Cri. Então, mas espera, nós Obviamente temos que falar um bocadinho sobre as pirâmides, embora haja outras coisas interessantes. Primeiro, o que é que nós sabemos do objetivo, no fundo, último, em construir as pirâmides? Ou seja, havia ali claramente uma... Elas tinham a função de tumos, dos reis, dos faraós, e claramente há ali uma... A forma piramidal não é por acaso, há ali uma espécie de ascensão em relação ao céu. Mas o que é que nós sabemos mais para além disso?
Inês Torres
As pirâmides são um símbolo religioso e são um símbolo funerário. Portanto, a ideia que tu acabaste de referir do farol a poder ou do rei poder subir até ao céu é apenas uma das teorias, porque, Voltando atrás, o Império Antigo é uma altura em que a religião solar do Antigo Egito acaba por ganhar muito destaque. É uma religião palaetaísta, como tu sabes, há vários deuses, mas durante o Império Antigo o deus com maior importância funerária e até nível da religião de Estado, acaba por ser o Deus Ra, que é o Deus do Sol. A pirâmide é um símbolo solar e pode representar várias coisas. Pode representar essa ideia de uma escada que, através da qual podemos chegar ao céu, representa também, há quem diga, um raio solar petrificado. Portanto, uma espécie de um raio solar petrificado na Terra, daí essa ligação com o Sol. E também a forma da pirâmide está ligada a um mito egípcio da criação do mundo, que diz que o mundo surgiu desde uma espécie de, não é uma montanha, mas assim mais uma... Pronto, uma espécie de um terreno assim elevado, não é assim uma montanha, mas uma coisa mais pequenita. E esse monte elevado, esse montezinho de terra é o monte primordial e acaba por ser a partir daí que o rodeado de água e é a partir daí que o mundo é criado. E então a pirâmide também pode ter essa ideia desse monte primordial, esse momento da criação, tudo relacionado também com a religião funerária dos antigos egípcios, essa ideia de... A morte está ligada ao renascimento também. Portanto, não é... Nada está isolado, quer dizer, não há nada puramente funerário, puramente da morte, está tudo... Morte e vida são dois lados da mesma moeda. Até porque eles tinham uma visão otimista, no fundo, em relação à morte, não é? Muito otimista. Muito otimista. Pode parecer que não, porque eles de facto...
José Maria Pimentel
Sim, parece um bocado macabro, não é?
Inês Torres
Exatamente. Mas a verdade é que eles gostavam tanto da vida que levavam, pelo menos a elite, porque nós temos que diferenciar os túmulos que, a maior parte dos túmulos que sobrevivem são os túmulos de elite, não sabemos assim tão bem como é que era a religião funerária e quais eram os costumes e até as crenças da população, está menos estudado também porque há menos vestígios arqueológicos. Mas de facto eles adoravam a vida e queriam a ideia da morte, era um sono e era apenas uma fase de transformação que nos levaria para a outra vida. Portanto, nunca, não havia essa ideia de que parávamos de existir. Quer dizer, podia haver. Há a segunda morte, o que os egípcios chamam a segunda morte, que é basicamente é o esquecimento da pessoa, do indivíduo. É engraçado. Exatamente.
José Maria Pimentel
Mas sabe o que é que isso me está a lembrar? Porque não há a ver, está um filme de miúdos, Agora não me estou a lembrar como é que se chama. É para um filme desenho animado. Eu já não vi um filme desenho animado há anos. E falaram-me bem desse e eu fui ver agora. Acho que é o Coco. Sei. Sabes qual é?
Inês Torres
Ah sim, já ouvi falar. Não vi, mas já ouvi falar.
José Maria Pimentel
E é inspirado, o filme é muito chique por acaso, e é inspirado nisso claramente porque eles têm esse conceito. Ou seja, no fundo as pessoas morrem, por favor, uma espécie de vida pós-morte e morrem de vez se se esquecerem delas. Exatamente. Claramente é inspirado nisso.
Inês Torres
Exatamente. O experimento é a morte,
José Maria Pimentel
basicamente.
Inês Torres
Morrer não é morrer bem, é simplesmente uma passagem para a outra vida. Agora, por isso é que no Egito, tudo que seja iconoclasmo, tudo que seja a destruição do nome de uma pessoa, é matá-la mesmo, a sério. E, portanto,
José Maria Pimentel
era a maneira de, desculpem-me interromper, para o faraó era a maneira de se preservar e assegurar que nunca seria esquecido de construir a pirâmide.
Inês Torres
Claro. Sim, sim, sim, de certa forma. Aliás, toda a construção de túmulos no Egito são não só monumentos funerários e religiosos, como são também essa crença que os egípcios têm que há mais para além desta vida e que desde que as pessoas saibam o teu nome e desde que continue também as ofrendas são muito importantes, portanto o espírito para sobreviveres, os egípcios acreditavam que precisava de comer e beber como nós. Portanto, tem que haver oferendas. Agora, as oferendas também podem ser simbólicas, porque o poder da escrita no antigo Egito é realidade, basicamente. Se tu tens algo escrito e se lês essa coisa, essa coisa transforma-se em realidade. E a forma mais interessante até de se ver isso é que muitas vezes em espaços sagrados, como seja por exemplo a câmara funerária, os egípcios escrevem hieroglifos, mas por exemplo se é um hieroglifo, se o símbolo é uma cobra, eles vão cortar a cobra a meio, de forma a que a cobra não ataque a múmia da pessoa. Portanto, é sério, se for um pássaro, cortam-lhe as asas, por exemplo, ou até a cabeça, de forma a que não se transforma em realidade e não vá atacar a pessoa. Portanto, a palavra e a escrita são muito potentes, são símbolos muito importantes. Sim,
José Maria Pimentel
e estava no livro dos mortos também, não é? Que era o... No fundo aquilo era uma espécie de guia para fazer essa transição da maneira certa, não é?
Inês Torres
Exatamente, para sobreviver no além, exatamente.
José Maria Pimentel
E daí tinha aquela questão de pesar o coração, não era?
Inês Torres
Claro, exatamente. A pesagem do coração. O que é muito interessante também porque para irmos para... Digamos, não é qualquer um que pode ir para o além, não é? Apesar de que o coração simplesmente significa que o defunto tem que se apresentar perante os deuses e tem que provar que foi boa pessoa. Agora, boa pessoa na ideia dos egípcios, não é? Eles achavam que era uma pessoa correta, uma pessoa justa, uma pessoa educada e, portanto, um dos capítulos mais importantes do Livro dos Mortos é o chamado a confissão negativa, em que o defunto diz eu não roubei, eu não matei, eu não tirei a comida a uma criança, eu não tirei a roupa a... Portanto, diz que não fez as coisas que os egípcios consideram más e então depois da confissão negativa o coração é pesado contra a pena de ma'at. E ma'at é uma palavra que os egípcios têm que não é normalmente traduzida porque tem tanta coisa associada. É difícil arranjar uma palavra. Ma'at significa equilíbrio, significa justiça, significa paz, significa bondade, significa uma data de coisas que acreditavam que era o suporte, a coisa mais importante deste mundo e que o faraó, o rei, era obrigado a manter Maat, a ordem, a estabilidade, a justiça e, portanto, a pena de Maat, que é uma deusa, acabava por ser pesada contra o coração. Se o coração fosse mais pesado do que a pena, a pena de justiça, a pena da verdade, a pena de má arte, então o coração era comido por um monstro que estava ali à espera para ver o resultado e nesse caso o defunto não entrava no paraíso. Agora, claro que todas as pessoas que construíam túmulos acreditavam, ou pelo menos achamos nós, não é? Que o monstro não ia comer o coração delas.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. Sabe que eu apanhei uma coisa gira, já não sei quem dizia isto, mas era naquele programa da BBC que eu te falava há pouco, do In Our Time, mas era um egiptólogo e até acho que era um egiptólogo daquela lista de livros que tu me enviaste. Ele dizia uma coisa engraçada que era, ele ou ela, por acaso, não, acho que era uma egiptóloga que dizia que os livros dos mortos que nos chegaram e que no fundo acompanhavam as pessoas no túmulo, lá está, para lhes servirem de instruções, muitos deles estavam escritos com erros e com... E aquilo era, não sei como aquilo seria feito, mas era uma espécie de manufatura, uma espécie de fábrica de produção em massa, o que é que se pode chamar em massa para aquele tempo, em que no fundo eles deixavam o espaço para colocar o nome da pessoa. E muitas vezes o nome não estava lá porque eles esqueciam de pôr e a pessoa não chegava a verificar. Pá, que incrível, não é? Tu pensares que... Quer dizer, como é que eu ia dizer? Detetares, passados estes milénios, um erro tão prosáquico como esse, não é? A pessoa esqueceu de verificar o livro.
Inês Torres
Isso também acontece, isso por acaso acontece em períodos mais tardios e também depende, não é? Porque se uma pessoa tiver, assim, muito dinheiro, claro que vai ter um livro todo XPTO e tal, e tem um papiro de qualidade e uns desenhos muito bonitos e não sei o quê. Mas isso também acontece em sarcófagos, por exemplo. Há sarcófagos em que têm as inscrições com a fórmula da ofrenda, que é assim uma fórmula tradicional que está em quase todo lado, que era essencial para a sobrevivência do espírito no outro mundo e, portanto, havia... Então a fórmula estava escrita e depois no final tinha um espaço para o nome da pessoa e em muitos casos, isso era escrito assim à volta do sarcófago, em muitos casos de um lado tem o nome mas depois no outro esqueceram-se ou então tem assim o nome é muito grande e eles não têm mais espaço e então escrevem assim tudo meio a cair para o lado assim, mas foi um bocado discutido.
José Maria Pimentel
Isso tem muito de piada.
Inês Torres
É ótimo, São estas coisas que eu gosto muito, porque às vezes é muito fácil as pessoas esquecerem que estamos a falar de seres humanos. Exato, exato. Pessoas, apesar de serem muito antigas. E este assim, tipo...
José Maria Pimentel
Esse atabalhoamento, não é? Vai assim, Vai assim mesmo.
Inês Torres
É o único e é mesmo humano, não é?
José Maria Pimentel
E no fundo acaba por transportar muito mais para esse tempo do que uma coisa perfeita que Lá está, está meio desumanizada, não é? Exatamente. Se a Capela Sestina tivesse uma imperfeição, se calhar até tem, eu não sei, não é? Era muito mais fácil nós pormos na cabeça do Miguel Angelo, não é? Porque assim parece um trabalho quase perfeito, não é? Quase não humano, é
Inês Torres
isso? Não humano, exato. E tem
José Maria Pimentel
muita piada, por acaso. E este fascínio que eles tinham pela morte também foi outra coisa que eu apanhei, que achei graça. Este fascínio que eles tinham pela morte, que lá está, não era um fascínio macabro no sentido de rutista, mas um fascínio otimista, é atribuir para algumas pessoas ao facto de, no fundo, há sorte que os egípcios tinham com o Nilo, porque o Nilo, pelo menos durante grande parte do tempo, tinha épocas relativamente previsíveis, eles até tinham três estações, o que é bastante diferente do que acontecia, por exemplo, na Mesopotâmia ou do que acontecia na China em que os rios eram muito mais irregulares. Claro. E portanto, há quem atribua esse otimismo deles à sorte que eles tinham com a natureza. Claro. No fundo eles achavam que os deuses eram bons. Achas que é por aí?
Inês Torres
Acho que sim, acho que parcialmente pelo menos. É sempre um bocado difícil dizer, ah, este é o único motivo, não é? Porque, quer dizer, como em todas as civilizações, como em todas as culturas, até hoje em dia nunca há apenas um motivo para uma coisa, para uma atitude ou para uma crença. Mas sim, certamente é parte disso, porque o Nilo era extremamente regular. Claro que havia inundações que eram melhores do que outras, porque se a inundação fosse fraca, e isso depende das chuvas na Etiópia e no Equador, que vão alimentar os lagos que depois acabam por encher e que dão início a essa inundação, há cheias, há inundações melhores do que outras e uma inundação fraca com pouca água significa fome.
José Maria Pimentel
E muitos aqueles tiveram que ver com isso, não é?
Inês Torres
Exatamente, mas era regular à mesma, portanto em meados de julho e meados de outubro a cheia aparecia.
José Maria Pimentel
A rularidade nunca se perdia.
Inês Torres
A rularidade, exatamente. Agora, a força da inundação é que poderia ser diferente. Isso, de facto, traz uma estabilidade muito grande. E em períodos de inundação boa, em que se produzia muito, e aí é que também entra um bocado essa fantástica burocracia de administração egípcia, Porque tudo que era extra, tudo que não era necessário para consumo imediato, era guardado em celeiros, que eram mantidos pelo Estado e pelos templos, pelos templos em nome do Estado, acabavam por poder garantir que em anos de inundação fraca, seja porque fossem muito, demasiado ou porque não havia água suficiente, eles estavam, não passavam fome, porque havia cereal guardado e mantido precisamente para essas alturas. Portanto, é, sim, acho que de facto essa, havia, especialmente comparando com a Mesopotâmia, havia muito mais estabilidade agrícola e menos fomes, menos períodos de...
José Maria Pimentel
Esquecer, sim, sim. Exatamente. Mas, por exemplo, eu não sei quão fácil é responder a isto, mas se nós fizermos aqui uma espécie de sociologia à distância, não falando necessariamente desse aspecto mais específico da mitologia especificamente do Egito, mas em termos de cultura, da maneira de ser, do tipo de visão que as pessoas tinham em relação ao mundo e a interação entre elas, havia de facto uma diferença palpável entre o Egito, por exemplo, e os povos da Mesopotâmia, que estavam ali separados pelo deserto, mas no fundo estavam próximos. A
Inês Torres
nível religioso? Não,
José Maria Pimentel
eu digo, esta é uma pergunta um bocadinho difícil, não é por isso que eu digo que é um bocado de sociologia à distância, mas é da maneira de ser, no fundo, do espírito coletivo, da mesma forma que tu dizes que um português, e isso é uma coisa que neste momento deve ser relativamente clara para ti, que um português e um americano, embora os Estados Unidos sejam um país enorme, têm coisas muito diferentes na maneira de ser, na maneira de se comportarem, eu não sei quão possível é estabelecer isso em relação, por exemplo, ao Egito e à Suméria, ou a Areva, não é? Obviamente que a Mesopotâmia é muito mais instável, tem muito mais cidade-estado e não sei o quê.
Inês Torres
É sempre difícil de comparar, mas eu acho que as maiores diferenças passam pelo facto da Mesopotâmia não ser uma cultura, mas ser constituída de muitas pequenas culturas, mas maiores do que outras. Pois também é o facto de não haver tanto a ideia de Estado, quer dizer, depois há impérios que se formam, mas é mais a ideia da cidade-Estado. Mas é diferente, exato. E são meios também muito mais urbanos do que aquilo que vês no Egito. O Egito, pela sua
José Maria Pimentel
geografia, pela
Inês Torres
sua geografia e pela facilidade com que podiam obter produtos agrícolas também, acaba por ser mais pronto, menos isolado porque está ali, quer dizer, está isolado do resto, está isolado do resto do mundo, está avaliado por dois desertos, depois temos o Mediterrâneo, depois temos mais a separação entre a Núbia e o Egito é feita também através de meios naturais, porque há uma espécie, umas águas rápidas.
José Maria Pimentel
Aquelas d'água, não é? Sim, exatamente. Exatamente, umas
Inês Torres
águas rápidas que eles chamam a primeira catarata, mas não é bem uma catarata, é sim mais umas águas rápidas com pedras e granite e não sei o quê. E, portanto, acabam por estar, de certa forma, isolados, mas ao mesmo tempo, como têm o Nilo, estão muito próximos de tudo. É só pegar no barco e de repente já estás facilmente, navegas pelo Nilo. E portanto acaba por ter mais, conseguir estar mais unido do que aquilo que vejo na Mesopotâmia. Na Mesopotâmia tens tantas coisas a acontecer, tantas pequenas cidades-estados que funcionam completamente diferente da cidade-estado ao lado, da vizinha. Há também mais guerras entre uns povos e outros e o Egito nesse aspecto acaba por ser menos afetado por invasões ou por diferenças sociais dessa forma.
José Maria Pimentel
Isso é engraçado porque geograficamente, no fundo pode-se dizer que um grande contribuidor para a união do Egito, não só para a união existir, mas para essa união se prolongar durante um longo tempo, é por um lado o facto de estar isolado de outras terras ocupadas por humanos na vizinhança, Ela está pelos dois desertos e por esses rápidos a sul e pelo Mediterrâneo a norte, mas também o facto de o nilo funcionar como uma espécie de agregador, não é? Era uma espécie de autostrada.
Inês Torres
Exatamente, exatamente. Aliás, a maior parte do transporte no Egito não é feito através da roda, é através da navegação. Aliás, a roda nem sequer é... Uma carroça não é um elemento que se vê no Egito, são os barcos e depois tudo que seja feito a pé são os burros. Os burros são utilizados como meio de transporte também. Mas é, é uma autoestrada mesmo e é muito fácil de mover à Danilo também, apesar de ter alguns problemas, não é? E ter crocodilos e hipopótamos na altura, agora já não, mas era perigoso de certa forma, mas mesmo assim é um meio de comunicação e de ligação absolutamente fantástico.
José Maria Pimentel
Nós temos, ainda em relação a esta questão da cultura, nós temos relatos de estrangeiros, se é que esta palavra se pode utilizar para a altura, que tenham entrado em contato. Eu sei que temos os relatos do Heródoto, pelo menos, mas isso já foi... O Heródoto é que há 500 anos de Cristo, já é relativamente perto do final. Exato. E ele falava das pirâmides, pelo menos falava das pirâmides. Temos outros relatos que nos permitam ter uma visão externa daquilo que era o Egito, de terceiros, não é, no fundo, para além do...
Inês Torres
Temos, quer dizer, portanto, o Egito também foi invadido pelos assírios a determinada altura e, portanto, e antes disso, o Egito, na altura do Império Novo, especialmente, na altura, costuma chamar-se a altura imperial do Egito porque o Egito tinha influência na área da Siro-Palestina e tudo mais, o Egito esteve em contacto com várias civilizações e mantinha um contacto diplomático até, não era só guerras, não era só conflitos. Antes pelo contrário, a diplomacia nessa altura é... Há muitas... O que eles chamam as diplomatic letters, encontradas até algumas na cidade da Marna, durante o período do famoso Achenaten e antes dele também. Também
José Maria Pimentel
porque eles abandonaram aquilo, não é?
Inês Torres
Abandonaram, e portanto sobreviveram a estas coisas. Mas há textos, há cartas que são enviadas entre as várias potências até, e estão escritas não é em egípcio, não é em hieroglífico, mas é em cuneiforme, por exemplo. E, portanto, de facto, há contactos e há outras civilizações que descrevem elas próprias sobre o Egito, mas pronto, é sempre do ponto de vista delas, não é? Quer dizer, temos que... É bom saber o que é que os outros achavam do Egito, mas o que é que o Egito achava mais e próprio também é importante e é interessante ver de facto esse combinar as duas. Por exemplo, uma das características, aparentemente uma das coisas que o Egito era conhecido na Ásia Menor, era o facto de ter imenso ouro, ter acesso a muito ouro. Portanto, Sabemos isso porque uma das cartas que foi enviada a um faraó falava sobre o facto dele não ter enviado ouro suficiente como prenda, porque havia essa troca de prendas diplomáticas e ele dizia assim, mas tu tens tanto ouro e só envias isto. Um bocado chato.
José Maria Pimentel
Exato. Um bocado foinha mesmo. Exato.
Inês Torres
Estava à espera de mais, mas pronto.
José Maria Pimentel
Essa era enviada a quem? Ou seja, estamos a falar...
Inês Torres
Eu acho, não tenho certeza, acho que foi ou foi ao Achenaten ou foi ao pai dele, que é o Amenhotep III, mas não tenho a certeza, não é o meu período de especialidade, o meu período de especialidade é o Império Antigo, à altura das pirâmides, mas sim, mas foi mais ou menos na altura do Achenaten, à volta de 1300 a.C.
José Maria Pimentel
Sim, foi só o pai 1200 anos depois das pirâmides. Exatamente,
Inês Torres
exatamente. Por isso é que eu não sou especialista.
José Maria Pimentel
Não, estava a perguntar por causa disso. Olá, Gostam do podcast? Se quiserem contribuir para a continuidade deste projeto e juntarem-se assim à comunidade de mecenas do 45°, podem apoiá-lo através do Patreon desde 2€ por mês. Visitem o site em www.patreon.com, escreve-se P-A-T-R-E-O-N, barra 45° por extenso e vejam os benefícios associados a cada modalidade de contribuição. Desde já obrigado pelo apoio, mas para já voltamos à conversa. Como já percebeste eu Estou aqui a tentar fazer uma ginástica difícil entre tentar seguir um bocadinho uma ordem cronológica e ao mesmo tempo ir cobrindo as coisas que são mais ou menos independentes da ordem cronológica, que é um bocado difícil de fazer, lá está, numa civilização que dura 3 mil anos. Mas voltando às pirâmides, só para encerrar esse capítulo, a pergunta óbvia é o que é que nós sabemos de como é que elas foram feitas? Sobretudo as pirâmides de Isé, não é? Portanto, sobretudo a Grande Pirâmide, não é? Mais do que... Porque há as outras pirâmides, não sei se em português se põe a dizer que há pirâmides de socalcos, não é? Que são aquelas...
Inês Torres
De graus, Sim, sim. De graus. Exatamente. Sabemos muito pouco, a verdade é essa. Há muitas teorias, há muitas teorias, aliás eu até aconselho o livro do Mark Lehner, The Complete Pyramid, que é um bom livro para, fala, toca em vários assuntos e fala sobre pirâmides desde o Império Antigo até ao final da civilização egípcia. Acho que a teoria mais aceita neste momento é que a pirâmide foi construída através de um sistema de rampas que iria à volta da pirâmide. Eram rampas feitas de uma combinação de terra batida com, não sei, assim, bem, não temos bem a certeza.
José Maria Pimentel
E eles iam arrastando ou puxando, provavelmente, as pedras.
Inês Torres
Exatamente. Portanto, as rampas eram feitas à volta, envolvendo a pirâmide, é a teoria agora mais aceita, mas não temos a certeza. E portanto eles empurrariam as pedras através dessas grandes rampas, que tinham que ter uma dimensão bastante larga. Recentemente houve um arquiteto francês, já não me recordo o nome dele, mas um arquiteto francês que sugeriu que as rampas até fossem internas, que houvesse um sistema de rampa interno, portanto que a pirâmide não foi construída de fora para dentro. Mas de dentro para fora. Sim, de dentro para fora, exatamente. Através do sistema de rampas interno e depois... Não,
José Maria Pimentel
de fora para dentro, para fundo. Sim,
Inês Torres
de fora para dentro. Primeira
José Maria Pimentel
fachada e depois foi construído um miolo.
Inês Torres
Exatamente. Portanto, é outra teoria, mas acho que neste momento as rampas é o mais aceito. Isto porque de facto há alguns vestígios na zona do cemitério ocidental, em Giza, alguns vestígios que parecem indicar a presença de uma espécie de rampa que foi entretanto, obviamente, teve que ser destruída. Sim, e a
José Maria Pimentel
terra batida também desapareceria, provavelmente, com o passar do tempo.
Inês Torres
Sim. Bom, lá está, mas não sei até que ponto é que a terra batida conseguiria suportar o peso.
José Maria Pimentel
Pois, é sério.
Inês Torres
Há muitas perguntas e, de facto, é das coisas mais vergonhosas, talvez, que os egiptólogos não conseguem ainda responder a essa pergunta. Quer dizer, vergonhoso, mas, de certa forma, continua a manter esse fascínio, não é? Porque se tivéssemos a resposta apta, perdíamos o interesse.
José Maria Pimentel
Claro, sim, sim, sim. E o facto é incrível. A Grande Pirâmide foi, para aí, durante 4 mil anos, a construção humana mais alta.
Inês Torres
Mais alta, sim, sim. Que é
José Maria Pimentel
inacreditável. Mas é essa a tese das rampas, porque tem essa limitação da terra batida que conseguiu sustentar o peso daqueles pedregulhos, mas por acaso faz algum sentido. Até porque se no fundo, com uma espiral suficientemente larga, tu conseguias ter uma inclinação muito baixa.
Inês Torres
Exatamente. A questão da inclinação também é importante. E do volume também. Será que havia espaço à volta para fazer aquilo tudo? Mas a inclinação é importante porque se for uma inclinação muito elevada, Quer dizer, não se consegue transportar aquelas pedras. Pois
José Maria Pimentel
não adianta de muito, não é?
Inês Torres
Exatamente, exatamente. Que pesam toneladas, um daqueles blocos pesam toneladas, não é? Várias pessoas teriam que mover aquilo.
José Maria Pimentel
Eles cortavam, estou a interromper-me nos técnicos, mas Como é que eles cortavam as pedras? Sabe-se isso? Porque elas são ultra-regulares, não é?
Inês Torres
São, são. São mesmo um sistema absolutamente preciso. Nós não temos muitos tratados matemáticos, portanto, não sabemos muito bem como é que eles conseguiam ser tão precisos. Mas, de facto, a pedra era cortada com pedra. Nós temos que imaginar que não havia aço, não havia ferro, quer dizer, era pedra com pedra e conseguiam cortar aquilo de forma, ou talhar a pedra de forma a que fosse absolutamente proporcional, porque basta ter um bloco que não é proporcional aos outros e acabou, a estrutura não aguenta. Mas, de facto, é...
José Maria Pimentel
Eu não sei, esta pergunta é um bocadinho difícil, se calhar para ti, porque estou aqui a cruzar isto com exemplos que são externos, mas não fazia sentido não falarmos nisto, que as pirâmides são ao mesmo tempo misteriosas, misteriosas no sentido que eles pretendiam com aquilo e fascinantes porque têm sido feitas tão cedo, mas ao mesmo tempo que o são, são também ultra-ubíquas no sentido em que existem em muitas outras culturas. As culturas da Mesoamérica, já não sei se eram os incas ou os aztecas, ou os maias, não sei porquê, tinham pirâmides também, na própria China também existiam pirâmides. Ou seja, a pergunta é, cruzando essas fontes diferentes, isso traz algum insight para a egiptologia, no sentido de perceber o que é que eles pretendiam com aquilo? É
Inês Torres
uma boa pergunta. Eu acho que não há muita gente que tenha feito essa ligação, assim, a nível, quer dizer, a nível científico, a nível
José Maria Pimentel
de estudo dentro da
Inês Torres
egiptologia. Há muita gente que faz essa ligação, a maior parte da resposta que um egiptólogo vai dar é assim, ah, isso não tem nada a ver. Pois há pessoas, há pessoas que te dizem, não egiptólogos, mas há leiros que já sugeriram, já ouvi sugerir, que foram os egípcios que se meteram num barquinho e foram até à Meso-América e explicaram como é que se construiu uma pirâmide. Agora, pessoalmente, não há assim nada trabalhado sobre isso, sobre essa questão. Pessoalmente, eu simplesmente acho que é daquelas coisas que é transversal à humanidade. Há certas coisas que os humanos fazem da mesma
José Maria Pimentel
forma. Pois, exatamente, sim, sim.
Inês Torres
E a pirâmide é uma dessas coisas. Por que motivo a pirâmide e não um quadrado ou um reto? Não faço ideia.
José Maria Pimentel
É estranho, não é? Parece ter que ver com qualquer coisa do nosso inconsciente coletivo, que é um bocadinho difícil de perceber, não é?
Inês Torres
Claro, é verdade, mas de facto é transversal. Há muitas culturas humanas essa forma piramidal e de facto não há assim uma resposta porque é pirâmide, porque não outra forma, porque não um circo, porque não... Mas, de facto, é verdade, é muito interessante.
José Maria Pimentel
Então, espera aí, vamos... Vou fazer agora um zoom out da história, porque nós estamos a falar do período antigo. Há uma coisa que me parece, isso provavelmente é uma conclusão muito superficial, mas era giro ter a tua visão em relação a isto, porque olhando assim muito superficialmente para a história do Egito, aquilo que me ressalta são, no fundo, dois apógeos. Ou seja, parece haver ali dois períodos de apógeos. Parece haver este período de cerca de 2500 anos de Cristo, que no fundo é o apógeo do Reino Antigo, que coincide com a construção dos pirâmides, que são quatro ou cinco, ou mais se calhar, reis que as constroem e se conhecem nestas maiores. Portanto, isto terá coincidido com um período de prosperidade material, não é por acaso que eles no fundo têm os recursos e até o tempo livre, em certo sentido, para construir as pirâmides. E depois parece que volta a surgir esse apógeo mais tarde, passados quase mil anos, na altura do Akenatmo, que já falámos, do Amenhotep III. O meu sotaque egípcio não é muito bom.
Inês Torres
Não, está ótimo.
José Maria Pimentel
Que era outro período muitíssimo próspero, aí não se refletiu tanto em pirâmides, mas mais em objetos de arte e coisas do género, mas olhando assim grosseiramente, Isto é o que me ressalta, isto faz sentido?
Inês Torres
Quer dizer, primeiro depende daquilo que nós consideramos um apogeu, certo? Porque o Império Médio, que acabaste por
José Maria Pimentel
pensar aqui, é
Inês Torres
um período clássico da literatura egípcia. Ou daquilo que nós hoje em dia chamamos de literatura, porque também essa é outra conversa, não é? O que é que é literatura? Podemos chamar os textos egípcios de literatura. Mas, tudo o que seja...
José Maria Pimentel
E o que é que é literatura egípcia, já agora? Para o livro dos mortos? Boa questão. O
Inês Torres
livro dos mortos não é bem aquilo que nós consideramos literatura.
José Maria Pimentel
Então nem é.
Inês Torres
É mais um texto plenário, não é? Literatura é o que nós... A literatura egípcia consiste de um conjunto de textos fictícios, que têm a função quase de entreter, de certa forma, mas também que passam uma mensagem. Nós temos, por exemplo, um conto de Sinué, que é o mais famoso, que foi escrito, aliás, uma parte destes é escrito na altura do Império Médio, é um bocado difícil de precisar, mas na altura do Império Médio, temos um conto de Sinué, que é um conto de um...
José Maria Pimentel
Sinué é o autor? Não, nós não
Inês Torres
sabemos quem são os autores da literatura egípcia, isto é outro problema, porque os egípcios não pensam dessa forma, nem na arte, nem na literatura, nem na arquitetura, não temos o nome das pessoas que fizeram essas coisas.
José Maria Pimentel
Sabemos alguns arquitetos, não é? Ou se calhar são papitos, não é? Se calhar não temos a certeza.
Inês Torres
Sabemos que certas pessoas estiveram envolvidas, mas assim, por exemplo, Imhotep, que foi o arquiteto da pirâmide de Graus, da primeira pirâmide que foi construída, mas assim, em regra geral, essas são as exceções mesmo, porque em regra geral não sabemos quem são os autores. Mas o Sinué é a personagem principal deste texto, é um texto que é passado na altura do princípio do Império Médio, em que o rei Amenemhat I é assassinado e o Sinué ouve uma conspiração qualquer, ou pelo menos é o que parece que acontece na altura, ele ouve parte da conspiração e com medo de que o novo rei, Senóserat I, o castiga ou puna de certa forma, foge, foge para a área da Siró-Palestina. E portanto a história toda tem a ver com ele no estrangeiro, a viver fora mas ao mesmo tempo saudoso, pensar no Egito, que tem vários ínotes ao rei Plumeio, a certa altura o rei o faraó percebe-se, o cenózobe de primeira percebe-se que o sinué está nesta tribo da cirópolis chistina e quer que ele volte para casa, escreve-lhe uma carta a dizer volte o perdoto. Portanto, são textos que nós hoje consideraríamos literários, mas que nós não temos bem, é sempre difícil aplicar terminologia moderna a uma civilização antiga, mas que nós hoje consideramos literais, não é? E, portanto, há contos deste género que, a maior parte deles, são datados desta altura do Império Médio, que é considerado o período clássico da escrita e da literatura egípcia. Portanto, nessa perspectiva, se calhar até podemos falar também de outro apogeu, um apogeu que não é arquitetónico, que não é artístico, quer dizer, literatura pode ser
José Maria Pimentel
arte, não é? Claro, exato, sim, sim, sim, estou a perceber. Sim, mas não deixa de ser interessante até desse ponto de vista, não é? No fundo os três períodos áureos acabam por ter repercussões em meios de expressão criativa, pelo máximo termo, meios genéricos diferentes, não é?
Inês Torres
Sim, se bem que não podemos, quer dizer, também há estátuas absolutamente fascinantes no Império Antigo, não é? Não é só arquitetura, também temos pinturas absolutamente fantásticas, relevo, quer dizer, acaba por ser tudo, dividir as coisas assim acaba por ser um bocado artificial, não é? Porque temos que olhar para estes períodos como um todo e eles são, de facto, apeligêros, mas com ênfases um pouco diferentes, se calhar, e também, se calhar, por causa, lá está, dos acidentes de preservação. Nós não, quer dizer, não, há coisas que se calhar ficaram pelo caminho e nós não sabemos, não temos.
José Maria Pimentel
Sim, a história da ausência da evidência. Exatamente. De novo,
Inês Torres
não é? Exatamente. Sempre.
José Maria Pimentel
Exato, pois, lá está a mágoa do arqueólogo. Mas, portanto, sendo justos, vamos falar nos três, para os dois que no fundo correspondem ao cânone dos três períodos. O que é que ditou os períodos intermédios entre esses períodos de estabilidade? Teve que ver com, lá está, o nilo sendo menos generoso, teve que ver com invasões estrangeiras, teve que ver com a instabilidade política interna, o que é que ditava aos baixos? Os altos é relativamente fácil, não é? Teria que ver com as coisas correrem bem, não é? Mas quando elas correram mal, correram mal porquê?
Inês Torres
Essa é uma ótima pergunta. Acho que primeiro é importante realçar que estas construções, estas classificações, Império Antigo, Império Novo, Primeiro Período Intermediário, isto é tudo moderno. Portanto, para os egípcios não havia, eles não pensavam desta forma,
José Maria Pimentel
não foram eles que
Inês Torres
criaram estas classificações, portanto, de certa forma, isto é tudo um pouco artificial, não é? Porque não, isto foi, é uma forma moderna de classificar o Egito de forma a poder estudá-lo melhor e de forma mais ordenada. Aquilo que os egiptólogos decidiram foi que tudo o que se chama império é um período de centralização de poder, em que o poder real, o Estado, está bastante forte e um período de, geralmente falando, de prosperidade e tudo o que seja um período intermediário é um período sem poder central, poder descentralizado, e o que não significa que não haja prosperidade, mas simplesmente não há um governo, não há um estado e normalmente é caracterizado por várias áreas geográficas que são independentes.
José Maria Pimentel
Ou seja, portanto, nós aqui, tu estás a usar a palavra Estado, que na verdade é um bocadinho anacronismo, porque nós estamos a falar de uma altura que não era bem gostada. Mas durante esses períodos de intermédios, no fundo, o alcance do faraó deixava de se estender ao território todo? No fundo, era como se houvesse uma
Inês Torres
cisão do território? Exatamente. Portanto, claro, cada período intermediário é diferente, não é?
José Maria Pimentel
Sim, pois, imagino,
Inês Torres
claro. Por exemplo, no final de... No segundo período intermediário é uma altura em que... Entre o Império Médio e o Império Novo, é uma altura caracterizada por dois poderes centrais que estão em luta um contra o outro. No Norte temos os chamados Ixos, que são considerados estrangeiros, mas contudo tem havido nova investigação que revelou que, bem já não é tão nova assim quanto isso, mas de qualquer das formas que estes Ixos que eram considerados estrangeiros invasores que vinham da zona da Sira Palestina, que na verdade já tinham integrado a administração egípcia há séculos atrás, portanto não eram, apesar de serem, terem nomes estrangeiros, não eram invasores e não eram estrangeiros dessa forma, não é, Já faziam parte da administração. E no Sul tínhamos um governo que achava que era o herdeiro do faraonato, se é que podemos chamá-lo assim, que era, consistia de uma data de, eram egípcios e portanto estas duas forças, norte e sul, acabam por ter vários episódios de guerra e tudo mais até que finalmente os egípcios do sul conseguem vencer os íxos do Norte e começa o Império Novo, que é um império centralizado. Portanto, cada período intermediário é um bocado diferente, mas a ideia é que quando não há centralização do poder, quando não temos um rei a reinar durante pelo Egito todo, então chamamos primeiro período intermediário.
José Maria Pimentel
Pois é interessante, mas no fundo mesmo nesses períodos de desunião em que o poder deixava de estar centralizado, não podemos considerar ou tendemos a não considerar que houve uma interrupção no Egito porque eles continuavam a considerar-se egípcios, ou seja, continuava a haver condições suficientes para nós não falarmos de uma interrupção civilizacional, não é? Claro,
Inês Torres
exatamente. E, aliás, até pessoalmente, eu acho estes períodos mais interessantes porque nos períodos de centralização vê-se muito, quer dizer, o poder real acaba por controlar muito as áreas da arquitetura, as áreas da arte, da estatuária e portanto as coisas são um bocado mais uniformes. Durante os períodos intermediários vê-se assim um pouco mais de criatividade regional. Acaba por ser
José Maria Pimentel
mais interessante. Variabilidade, sim.
Inês Torres
Exatamente. Por exemplo, o primeiro período intermediário é muito interessante porque assim que o Império Antigo acaba, que não foi assim de repente, acabou, não é? Mas gradualmente, vê-se as regiões que produzem peças interessantíssimas. Há quem as chame feias, não é aquela, não são tão requintadas com aquilo que sai do Palácio Real, não é? Mas são de uma criatividade fantástica, a nível da língua, a nível da arte, da pintura, imensas inovações artísticas que se vê, que se calhar até já existiam nessas regiões, mas tentavam-se ir um pouco mais à norma.
José Maria Pimentel
Sim, isso é engraçado porque no fundo ao tu deixar de ter, ao tornares mais fraca à mão do poder centralizado acabas por também permitir que chegue aos dias de hoje, se calhar muito mais da variabilidade que se calhar já existia mas que estava escondida por baixo de uma espécie de manta niveladora, que nivelava tudo de acordo com o canone central. Pois é, isso é giro. Então já agora, peraí, há um evento que é muito falado e que não diz respeito só ao Egito, diz respeito no fundo a toda aquela zona entre o Europa Oriental e o Sudeste Asiático e o... Como é que se diz? E o Oriente Próximo que é a questão do... Eu não sei como é que se diz em português mas o colapso da idade de bronze tardia, Não sei se é assim que se diz. No fundo é uma coisa que ocorre em 1200 a.C. E portanto ocorre até já depois do pico do Reino Novo, não é?
Inês Torres
Do Império Novo.
José Maria Pimentel
Ou seja, pronto, whatever, seja como for. Eu só achava que era uma pergunta gira porque há uma altura, isto ainda era tecnicamente a Idade do Bronze, que é uma separação que eu nunca achei muito feliz, ou pelo menos sempre achei pouco entusiasmante, esta coisa da Idade do Bronze e da Idade do Ferro, mas em que tu tens ali o colapso de uma série de civilizações ali próximas, na zona da Grécia, na zona da Mesopotâmia e mesmo o Egito é muito afetado, embora se mantenha, e pelo que eu percebo não se sabe muito bem o que é que causou aquilo, e se no Egito há os relatos daquilo que eles chamavam de seapeople, não é? As pessoas do...
Inês Torres
Povos do Mar, exatamente. Povos do
José Maria Pimentel
Mar, né? O que é que nós sabemos em relação a isso?
Inês Torres
Eu não tenho bem a certeza qual é a opinião atual dos investigadores que abordam esse assunto, mas de facto há, pelo menos, vestígios e também fontes escritas no Egito na altura, que foi na altura de Ramesses III.
José Maria Pimentel
Pois, exatamente é isso.
Inês Torres
E até um bocado antes dele, antes de Ramesses III, já tinha havido contactos com as despobem do mar. Mas de facto parece que houve alguma alteração, algum problema que fez com que uma data de gente, milhares de pessoas se movimentasse e fosse, não é bem atacar, quer dizer, ainda é discutido quem são os povos do mar, Não sabemos. Claro, exato. Mas há, pelo menos dentro da egipologia, duas teorias principais. Uma é que de facto estes povos do mar eram um exército que veio atacar o Egito e outra, que se calhar é aquela com que eu concordo mais, apesar de não ter grande conhecimento sobre esta área, que diz que de facto isto eram movimentos populacionais, crianças, mulheres, não era bem um exército, eram mesmo populações que simplesmente se movimentaram e acabaram por chocar com o Egito, que foi de repente, tinha esta gente toda e não sabia muito bem onde é que havia de as colocar e houve, definitivamente houve conflito armado porque temos Ramsés III fala sobre isso e até gravou, talhou nas paredes de um templo dele em Medinet Abul no sul do Egito, há informação sobre os povos do mar e sobre as guerras contra os povos do mar que eventualmente foram expulsos do Egito. Não sabemos mais o que é que se passou. Mas é de facto, é interessante, eu confesso que não sei muito bem qual é a teoria atual que explica o motivo pelo qual estes povos se puseram em movimento. Mas de facto há indicações que isso de facto foi uma invasão quase, digamos assim, pelo menos da perspectiva egípcia, quase que foram invadidos por esta gente.
José Maria Pimentel
E acaba por ser, isso acaba por ocorrer até já depois do período mais áureo do Império Novo, não é?
Inês Torres
Sim, sim, sim. Há quem diga até que Ramsés III foi o último faraó de importância e de relevo no Império Norte.
José Maria Pimentel
E em grande medida por causa disso, não é? Porque isso acaba por provocar um declínio.
Inês Torres
Exatamente. Aliás, a última teoria que eu ouvi falar sobre sobre esta questão dos pobres que se movimentam e que... Foi a teoria de que houve um vulcão na Islândia, na Islândia, bem, não tenho certeza, mas no norte, que entrou em erupção e foi um vulcão, uma erupção tão potente que acabou por se arrastar pela Europa toda e chegar até ao Mediterrâneo e que o ar, o próprio ar, estava poluído e, portanto, as pessoas
José Maria Pimentel
começaram a afastar-se. Exatamente.
Inês Torres
Que afetou também a agricultura, afetou uma série de coisas. Não tenho bem a certeza, não é, até que ponto é que isto é uma teoria ainda aceita, mas... Mas
José Maria Pimentel
eu acho que é essa dúvida, assim, que no fundo parece um bocado ridículo, não é, mas entre ter sido, ter tido causas naturais ou ter tido causas políticas, não é, se quisermos, ou seja, simplesmente da confluência de uma série de ocorrências que levou a que houvesse ali instabilidade naquela zona e que tivessem empurrado esses povos do mar, fossem eles quem fossem, para lá e para o pé, não é? Pois. Então, mas quando é por ela estamos a falar do Império Novo. Tu estavas a dizer que esta não é bem a tua área de especialização, não é?
Inês Torres
Não, eu sou Império Antigo, 100%.
José Maria Pimentel
Eu tinha alguma curiosidade de falar no Akhenaten. Sentes-te confortável em falar do Akhenaten? Vamos falar,
Inês Torres
vamos falar sobre o Akhenaten. É
José Maria Pimentel
que eu acho que é mais ou menos assim, é uma figura um bocado incontornável, porque é uma figura um bocadinho... Quer dizer, o Akhenaten e o Ramsés II, talvez sejam os dois os dois mais importantes deste período. O Akhenaten, começando por ele, surge neste período de grande prosperidade, não é? Sim. O pai dele, ou seja, o reino do pai dele tem até saído do pico, não é?
Inês Torres
Sim, há quem diga isso, que foi o reino mais próspero da história do Egito.
José Maria Pimentel
E ele depois é uma personagem, um gainho estranho, não é? Porque ele faz uma cisão completa em termos da religião, não é? E é... Isto é tudo muito superficial, mas aquilo que, num primeiro contacto, pelo menos a mim, salta à vista é que, e acho que é isso que cria grande parte do fascínio, é que há ali um lado muito moderno. Primeiro, aquilo é uma espécie de monotaísmo, embora o Freud falava daquilo, até um amigo meu estava a chamar a atenção para isso, falava da religião que ele tentou instituir como uma espécie de primeiro monotaismo, embora acho que isso caiu um bocadinho em desuso, porque as pontes não são tão óbvias assim, mas tem esse lado e depois tem um lado de, quer dizer, muito próximo com muitas coisas que aconteceram na Europa, até mais próximo da Idade Moderna, de centralização de poder, de alteração, ele até alterou a questão da arte, da maneira que era representado na arte, apareciam cenas do cotidiano, depois a mulher dele, que também vou pronunciar o nome mal, a Nefertiti, que tem aquele busto incrível, que parece um... Aquilo é estranhíssimo, porque parece uma coisa que foi... Eu até acho... Eu até recomendo aos ouvintes verem, se não conhecerem, pesquisarem no Google, que vejam se apanha-se logo. Pá, e aquilo parece uma coisa feita ontem, é incrível!
Inês Torres
Pois é, pois é. Não é? É lindo, e isso é uma das atrações nesse busto, é a intemporalidade da beleza da Nefertiti. É inacreditável. Pelo menos ali, não é? Exatamente, pelo menos ali, porque há outras representações dela que não têm nada a ver com esse gosto. Pois. Nada a ver mesmo. Sim, o Akhenaten é uma figura muito, muito interessante mesmo. A razão pela qual os egiptólogos agora não gostam de falar em monoteísmo é porque, por aquilo, sobretudo há uns anos para trás, que tem havido muitas descobertas em Amarna, especialmente descobertas que não estão focadas só na elite, mas que têm a ver também com a religião doméstica, aquilo que nós chamamos de religião privada ou doméstica, é feita em casa, é feita nos... Nem se calhar em nicho, na própria casa da pessoa, portanto uma religião mais privada que não tem a ver com a religião de elite ou do Estado, entre aspas, não é? E parece que pelos vistos, apesar de Aken Atten tentar eliminar os outros deuses, que é aquilo que parece não é na propaganda oficial, a verdade é que mesmo em Amarna, a cidade que ele construiu de raiz para adorar o seu próprio, o seu Deus único, que ele chama mesmo o Deus único, o Aten, mesmo na própria Amarna, nas casas, ainda se encontram amuletos de outros deuses, encontram-se statuetas de outros deuses, portanto até que ponto é que de facto foi um monotonismo? Será que ele tentou mesmo banir tudo o que seja outros deuses ou simplesmente tentou focar toda a gente nu? Porque a verdade é que esta ideia de chamar a um deus único não é nova. Na religião egípcia há sempre essa dualidade, que é o único e o múltiplo. Portanto, cada Deus é único e é múltiplo. Tem uma e várias formas. Para nós parece uma contradição, mas os egípcios cansam muito com esta ideia da dualidade das coisas. Há sempre... Vai tudo em pares. Portanto, há o único e há o múltiplo. Há o homem e há a mulher. Há o deserto e há o rio. Portanto...
José Maria Pimentel
Mas aqui o que é que tu queres dizer com o múltiplo? Era um deus desdobrava-se em várias personalidades? No fundo era isso?
Inês Torres
É um pouco simbólico, não é? Porque, primeiro porque em sistemas palitaístas nunca há, não há assim uma única forma para um único Deus, quer dizer, os Deuses têm várias funções, têm várias caras, têm várias formas de serem representados, têm até várias, podes ter deuses a fazer coisas muito diferentes, até mesmo no texto religioso, portanto eles não são fixos, não é… não há assim uma definição, ah este Deus só pode fazer isto, só faz aquilo e não sei o que. Portanto, acabo-me a ser mais flexível. E essa ideia de ser múltiplo, ao mesmo tempo ser uma unidade, mas dentro da unidade há uma multiplicidade de perspetivas e de variações e formas e tudo mais. E portanto, essa ideia de um Deus ser único não é nova na religião egípcia. O que o Akhenaten faz, de facto, é... Ele ataca certos Deuses. Ataca, por exemplo, o deus Amon, que era o deus principal do Estado na altura. Ataca outros deuses como Osíris também. E, portanto, a religião muda um pouco. A religião do Estado, não é? Entre aspas. Sim. Não tanto a religião, como acabei de dizer, a religião privada parece manter-se mais ou menos da mesma forma, mas a religião real, não é? Da elite, acaba por se modificar um bocado, é muito mais virada para o sol, para o elemento solar. O Aten é um disco solar que tem raios que acabam... O final dos raios são mãos e muitas vezes as mãos estão a segurar um símbolo que é o Ankh, que é o símbolo da vida. Portanto, é essa a ideia de que o sol dá vida, a luz solar dá vida. E uma das coisas mais interessantes também do Akin Aten é que ele supostamente escreveu, quer dizer, não sabemos... Uma inscrição diz que ele é que é o autor, mas só... Não sabemos até que ponto é que foi ele que escreveu isto, mas ele escreveu dois hinos ao deus Aten, que basicamente são quase a proposta religiosa dele, que são extremamente interessantes. O deus único, o deus solar como o Criador único, quando não há sol, nas trevas ninguém vive, não há vida, portanto, para fazer mesmo essa ligação entre criação, vida, sol, luz, trevas, morte e de forma muito poética.
José Maria Pimentel
Sim, era uma espécie de canção, no fundo seria uma espécie de canção àquele de hoje, de hino. Mas nós temos, por exemplo, alguma noção, se aquilo lhe estará vindo de alguma visão? Porque normalmente é como esse tipo de coisas acontecem, não é?
Inês Torres
Claro. Há quem diga que sim, mas nós não temos provas nenhumas. Não
José Maria Pimentel
há nada que remeta para isso. Não,
Inês Torres
há quem diga, já li teorias a dizer que ele era esquizofrénico e pronto, uma tarta de coisas que não se consegue provar. Primeiro até porque nunca se encontrou a múmia dele, mas também não se consegue provar a esquizofrenia só através
José Maria Pimentel
de
Inês Torres
ossos e escoletas e não sei o quê. Mas de qualquer das formas, o que é interessante é que a maior parte das pessoas achavam que tinha sido ele, a pessoa, a criar esta nova religião e a cortar com a religião tradicional. Mas a verdade é que o pai dele já, o pai e a mãe, no reinado anterior, já estavam devagarinho a criar mais ênfase no Aten, no deus Aten, e também a mudar um bocadinho a arte, que começa ligeiramente a parecer-se mais com o género da arte que depois vês no tempo da Akhenaten, que é assim muito exagerada. Tem umas figuras um pouco andrógenas, quer dizer, não é bem homem, não é bem mulher. Ele tem umas ancas um pouco alargadas e uma cara alongada. Portanto, já se começa a ver um bocadinho traços da mudança na arte e na religião no reinado anterior. Portanto, é capaz, isto é capaz de ter sido algo, de certa forma, em família. Não fosse ele apenas o messias.
José Maria Pimentel
Isso é giro, ou seja, ele não fez uma rotura necessariamente, não é?
Inês Torres
Exatamente. Quer dizer, de facto ele fez uma rotura, porque ele, aliás, uma rotura muito física, porque a capital na altura era Tebas e ele decidiu sair da capital e mudar a corte para um local no meio do deserto, um local virgem, onde não tinha habitacidade nenhuma, fundou uma cidade nova, que nós chamamos Amarna, mas no egípcio é Akhetaten, Akhetaten significa o horizonte do Aten, que é o deus dele, e não só fez uma cidade do zero para o seu Deus, como o escreveu, mandou-o erigir várias estelas à volta da cidade a marcar o perímetro e escreveu nessas várias estelas fronteiriças um motivo pelo qual ele resolveu escolher esta cidade e que foi o Deus átomo que lhe deu um sinal que este sítio era o mais indicado,
José Maria Pimentel
que era um sítio único, que não
Inês Torres
tinha sido utilizado para mais nenhum deles, não é?
José Maria Pimentel
Estava limpo, não estava impoluto. Exatamente.
Inês Torres
Portanto, de facto, ele faz essa rotura, que o pai dele não fez. Mas
José Maria Pimentel
esse é outro lado, esse apelo moderno dele também tem que ver com isso. Por um lado, esse lado meio de rei absolutista, de reunir todo o poder em volta dele e depois mudar a Corte, porque ele foi com a Corte, para uma cidade nova, para Sul Luís XIV ir para Versalhes. E depois a história de criar a cidade no meio do nada, que parece uma coisa quase dos países modernos. Há um monte de países que fizeram isso, como o Brasil, de criar uma cidade, por outros motivos, mas uma cidade em terreno virgem. E isso é uma coisa que tem muita piada e depois acaba por morrer ali, Porque depois quem vem a seguir a ele reverte completamente as alterações que ele fez.
Inês Torres
Exatamente. Aliás, o famoso Stupendhamen, que há quem diga que era filho dele, mas pronto, lá está, estas coisas, é sempre... tantas teorias, meu Deus. Este período é um período fascinante. Há muita informação, mas ao mesmo tempo não há informação suficiente. Portanto, acaba por ser muito discutido, há muitas teorias e acaba por ser difícil de trabalhar também neste período, porque já há tanta gente que pensou em tantas teorias que acaba por ser complicado. Mas o Tutankhamun, supostamente filho de Akhenaten, ele na verdade, o nome dele era Tutank-Aton. Portanto, Tut é palavra para imagem, Anc vida, Aton é o deus, Amon era o deus anterior que seria o deus do Egito, do Estado na altura, antes do Aten. E portanto ele tinha o nome Tutank Aten, que significa a imagem viva de Aten e mudou depois do Aten morrer. Quando ele subiu ao trono mudou o nome para Tutank Amon. Portanto mesmo uma forma muito óbvia de mostrar que voltou à religião tradicional. Portanto o Aten acabou, adeus, já está arrumadíssimo, mas ele até mandou escrever, uma, erigiu uma Estela que estava no Templo de Karnak. Acho que sim. E Irjuma Estela, que é chamada Estela da Restauração, em que ele explica que os templos estavam todos fechados e que o culto dos judeus tinha sido abandonado e que foi ele que restaurou o culto tradicional. E, portanto, é uma forma muito, muito clara porque o templo de Karnak era o mais importante, dedicado ao deus Amon, era o mais importante do país, portanto, é uma forma política muito clara de mostrar que, quase a dizer, a minha lealdade está aqui escrita na pedra. Portanto, voltou à religião tradicional.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. É uma forma conspicua de fazer isso, que aliás faz sentido, normalmente as coisas religiosas são feitas dessa forma, até para o gesto valer. Eu ia perguntar-te alguma coisa a propósito disso. O que isso parece sugerir, e há uma coisa que nós ainda não falámos, é que haveria da parte das restantes elites, não sei se nobreza é um termo que se pode aplicar neste caso, provavelmente uma insatisfação com essa mudança, ou seja, dificilmente terá sido o próprio Tutankhamen, até porque ele era muito jovem, não é? Eu acho que não é o quê? Não há mais dez anos,
Inês Torres
não é? É.
José Maria Pimentel
Portanto, dificilmente terá sido ele, ou seja, haveria por parte dessa nobreza uma insatisfação com essa alteração?
Inês Torres
Sem dúvida. Sim. Especialmente... A melhor é a elite, porque estamos a falar também, elite inclui
José Maria Pimentel
os membros da administração,
Inês Torres
membros da corte e também sacerdotes, porque os templos nesta altura tinham um poder econômico e social que era gigantesco. Basicamente o Estado nessa altura funcionava muito através dos templos, que eram centros económicos e portanto
José Maria Pimentel
muito poderosos. Mas recolheu impostos, por exemplo, era?
Inês Torres
Não tanto de recolher impostos, também os templos tinham... Portanto, basicamente o rei era o dono disto tudo. Pois o rei dava terras ao templo. O templo podia arrendar as terras a quem quisesse, pois eles pagavam um x ao templo por estar a utilizar a terra do templo. E pois não é só isso, é que Esta é uma altura que eu já disse um pouco assim imperialista, é o nome, apesar de eu odiar este termo moderno, de imperialismo, que não é bem a mesma coisa, mas é uma altura em que há muito espólio, muitos materiais, muita riqueza, que vem destas expedições, destas guerras que os reis dão aos templos, nomeadamente ao templo de Karnak, porque era o templo principal, estava na capital em Tebas, e também por ser o templo do deus Amon, que era o deus principal na altura. Portanto, eram entidades de facto muito, muito importantes e, portanto, quando este templo, este sacerdócio de Amon ficou, de repente, sem nada, bem, não ficou sem nada, mas de repente o rei decide, ok, agora Amon muito giro e tal, mas eu quero um novo deus, Atan, portanto, e eu sou o sacerdote único, já agora, portanto, pá, vou construir templos, este deus, Karnak, Não, mudo de cidade e de repente a riqueza deixa de ir para este sacerdócio de Amon e começa a ser investida neste novo sacerdócio de Aten.
José Maria Pimentel
Ah, que era um sacerdócio à parte, não eram pessoas diferentes.
Inês Torres
Exatamente, eram pessoas diferentes, se bem que o rei era o sacerdote principal, portanto os outros eram apenas meiros ajudantes.
José Maria Pimentel
Sim, isso parece o Luís XIV, parece uma... Também já tinha visto essa comparação e de facto é parecido. Ah não, desculpa, eu estava a dizer, não era o Luís XIV que eu queria dizer, era o Henrico VIII, disse Luís XIV mas enganou.
Inês Torres
Ah, sim, com a igreja de Inglaterra.
José Maria Pimentel
Exatamente, sim, sim, parece o Henrico VIII pelo fundo fazer uma decisão, criar uma igreja nova e dizer quem está à frente da igreja sou eu.
Inês Torres
Sou eu, exatamente, e faço o que quero. Só tem que tecnicamente o rei sempre esteve à frente de todos os sacerdócios, não é? Ele era o sacerdote por excelência, mas, como é óbvio, delegava o poder a outros. Só que o Akhenaten decidiu que não, ele queria ser mais ativo e decidiu mudar a ênfase no deus Amon e passou a pôr no deus Aton. Obviamente que houve muita gente que ficou chateada e os sacerdotes de Amon, especialmente os de Karnak, tinham muito, muito poder. Eram gente que tinha muito poder econômico, muita influência e, portanto, tem a sensação de que não ficaram satisfeitos. Claro que pode ter havido também, a população não gostou de ver os outros deuses atacados, se calhar houve outros membros da élite que não acharam piada nenhuma, que queriam continuar a adorar aos íris e já não podiam, ou queriam continuar a adorar outros deuses e já não podiam, e portanto acho que tudo isso junto acabou por levar ao facto de o jovem Tutankhamen voltar a ser influenciado.
José Maria Pimentel
Sim, a mudar de curso. Nós estávamos a falar, tu falaste no fundo dos sacerdotes, uma espécie de clero, não é? Falaste de uma espécie de classe administrativa, não é? Bureocrática. E havia também uma espécie de nobreza, não é? No fundo de... Eu não sei se é o... Quando eu digo aqui, Nubresa é uma classe com terras para lá dos sacerdotes e ligadas porventura também à guerra, por exemplo. E se existia ou é um anacronismo aqui?
Inês Torres
Sim e não, porque a verdade é que não há um exército fixo até o Império Novo. Portanto, essa ideia de existir exército não existe até o Império Novo. Não existe um exército oficional, digamos. Porque
José Maria Pimentel
não era necessário?
Inês Torres
Porque o Egito só começou, tecnicamente, a expandir-se nessa altura, na altura do Império Novo. Ok. Portanto, antes disso, simplesmente, quando era necessário reunir um exército para uma expedição qualquer, ou à Núbia, ou tipo qualquer, então reunia-se uma data de pessoas, mas não era preciso haver nada profissional.
José Maria Pimentel
Sim, pois é engraçado isso, por acaso é outra diferença curiosa em relação à matriz com que a pessoa começa a pensar nisso, não é? E depois para além disto, tinhas o povo, em relação ao qual nós provavelmente sabemos pouco, não é?
Inês Torres
Claro, Sabemos muito pouco, infelizmente, e isso é um dos maiores problemas que há muita gente que está a tentar mudar isto. A ênfase, tentar parar de colocar a ênfase na elite e voltar a pô-la, não é voltar, pela primeira vez pô-la nas pessoas, nos camponeses, nas pessoas comuns mesmo, aqueles que não tinham direito a grandes túmulos, aqueles que não tinham direito a... Que não sabiam escrever, portanto não podiam, não podiam deixar vestígios escritos e eu acho que isso é de facto essencial e é uma falha grande no nosso conhecimento que está a ser agora comatada pela primeira vez desde os princípios da egiptologia.
José Maria Pimentel
Até porque entre outras coisas nós não sabemos, ou é difícil dizer, digo eu, até que ponto é que havia uma unicidade na maneira como as pessoas pensavam? Ou seja, não temos uma ideia de como as elites pensavam, mas podia dar-se o caso até do povo ter práticas muito diferentes a vários níveis, não é?
Inês Torres
Claro. Não, essa é uma questão das mais importantes. Quando nós falamos sobre o Egito, falamos sobre a elite, na maioria dos casos, e isso é um dos maiores problemas da disciplina, um problema que, como eu já disse há bocado, as pessoas estão a mudar as mentalidades, estão a tentar passar do monumental para o doméstico, por exemplo,
José Maria Pimentel
porque se sabe muito
Inês Torres
pouco sobre a forma como se vivia, os camponeiros normales, como se vivia no Egito e, de certa forma, é porque estas coisas não sobrevivem, porque as cidades ocupadas na antiguidade continuaram a ser ocupadas até aos dias de hoje ou estão ocupadas com campos, agrícolas ou até com cemitérios às vezes, portanto não é possível escavar nessas áreas. Depois, como eu já disse também, porque estas pessoas não sabiam ler nem escrever. Portanto, não nos deixaram nada escrito em que nós pudemos dizer, ok, pronto, era isto que eles pensavam, era assim que eles faziam. De certa forma, mesmo assim, ainda é possível saber alguma coisa sobre eles. Parece que, pelo menos, por exemplo, as cavações e a mar, né? Os túmulos que eram basicamente aquilo era uma cova no chão e a pessoa era colocada lá, assim, com alguma joalharia, alguma cerâmica, depois assim enrolada, nem era completamente mumificada, era mais enrolada em linho e também em esteiras e, portanto, vê-se que de facto, para a elite é necessário ter uma data de inscrições, uma data de textos, uma data de imagens, uma data de espaldo e funerário para eles é essencial para a sobrevivência no além. Parece que a ideia do além era diferente para a população camponesa, para aqueles que não tinham acesso a esta riqueza, se calhar porque não tinham acesso a ela, mas pode ser que de facto as suas crenças fossem um pouco diferentes. Não temos mais certeza, é um tópico muito interessante que eu espero nos próximos anos que possamos saber um pouco mais sobre isto.
José Maria Pimentel
Nós no fundo não sabemos se eles tinham, se era simplesmente um problema deles não terem recursos mais escassos e portanto terem que se... Desenvencilhar com aquilo que... Desenvencilhar, era a palavra que eu estava a procurar. Desenvencilhar com aquilo que tinham, não é? Portanto, olha, não dá para modificar voo assim, não é? Claro, exatamente. Ou não dá para levar comida e recursos para a nova vida e portanto tenho que ir assim, mas pelo menos vou. Ou se a visão deles em relação à pós-morte, ela própria é uma visão diferente.
Inês Torres
Exatamente.
José Maria Pimentel
Pois, isso tem muita piada. Olha, vamos caminhar para o fim, infelizmente, porque havia imensas coisas de que falar, quer dizer, não falámos de tantas, mas sobretudo acabamos por terminar aqui mais ou menos neste período do Tutankamon, não falámos do Ramesses II, não falámos depois do tudo que veio a seguir e do final com a Cleópatra, que era giro também, mas o preço para recorrer a essa extensão toda acho que agora a conversa será menos interessante porque... Claro,
Inês Torres
é muita coisa.
José Maria Pimentel
Sim, e vai-se a menos nenhuma hipótese de estar a discutir estas que discutimos com algum cuidado. Antes de avançar para a final, para a recomendação do livro, achava interessante perguntar-te em relação a alguma coisa que tu aludiste no início, que é o trabalho de investigação que estás a fazer agora em relação a um túmulo e que me parece, de resto, ter muito que ver com isso que nós acabamos de discutir, não é?
Inês Torres
Exato. Estava eu a que dizer que os egiptólogos têm uma tendência a concentrar-se na elite e eu própria estou a concentrar-me na elite, portanto. Mas é, a minha tese de autoreamento comecei a escrever este ano e é focada num túmulo que está localizado no Planalto de Guisa. O tipo de túmulo nós chamamos mastaba. Mastaba é uma palavra em árabe que significa banco e alude apenas à forma do túmulo que é uma estrutura retangular que tem assim umas paredes lisas, ligeiramente verticais. Mas
José Maria Pimentel
são pirâmides inacabadas, não é? Como é que se diz nas estrelas?
Inês Torres
Claro que são verticais. Mas é o túmulo que se vê com maior proponderância no plano autoguisa para a elite.
José Maria Pimentel
E ele é contemporâneo das pirâmides?
Inês Torres
Não, e isso é que é interessante porque, apesar de eu estar a estudar um túmulo de elite, este túmulo nunca foi estudado. Foi escavado, parte dele foi transportada para Boston, para o Museu de Belas Artes, mas nunca foi estudado, foi esquecido simplesmente. A escavação ocorreu em 1912, já passaram mais de 100 anos e finalmente alguém voltou a ter interesse neste sumo. Pouco se sabe sobre esta pessoa. Ele viveu por volta de 2300 a.C. Já as pirâmides todas tinham sido construídas lá no Planalto, já tinham as pirâmides todas sido construídas. Uma altura em que nós chamamos a 5 dinastia, em que é uma altura em que já não estão a construir pirâmides em Giza. Estão-se a construir pirâmides...
José Maria Pimentel
Foi na 4, não
Inês Torres
é? Exatamente. As pirâmides em Giza foram construídas na 4 dinastia. Portanto... Ou
José Maria Pimentel
seja, é estranho ele estar ali, não é?
Inês Torres
Exato. Não é o único. Há muita gente que, da 5 e 6 dinastias, muita gente é elite, que decide fazer o seu túmulo ali. E aquilo que mais me interessa, portanto, o Giza foi muito estudado, principalmente no que diz respeito às pirâmides e aos túmulos de elite da 4 dinastia, que eram contemporâneos com as pirâmides. O pessoal da Quinta e da Sexta foi mais ou menos assim... Postulado. Exato. Porquê? Porque os túmulos também já não eram tão ricos e aí volta mais uma vez esse objetivo da escavação, exatamente, no princípio do século XX. Como os túmulos já não eram tão grandes, já não eram tão bonitos, já não eram de gente tão importante, foram assim vistos, mas nunca foram muito trabalhados, muito estudados. De uma forma geral, claro que há exceções. A minha ideia agora então é voltar este túmulo e tentar contextualizá-lo, tentar perceber primeiro quem é este oficial, qual era a função dele, o que é que ele fazia, quem é a família dele, porquê é que ele decidiu construir o seu túmulo ali em Giza e de certa forma também tentar compreender um bocadinho mais daquilo que se passa no Pão Alto de Guisa, na 5 Dinastia. Quem é que continua a querer ficar lá para a eternidade, não é? Porque temos que pensar dessa forma, eles constroem tudo para sempre. Portanto, quem é que escolhe esse lugar? Porquê que eles escolhem esse lugar? Mais, o que é que sabemos das pessoas que escolheram esse lugar? Portanto, uma data de perguntas relacionadas com a cultura funerária, mas também com, não só com a morte, mas com a vida. O que é que levou estas pessoas a crerem? E
José Maria Pimentel
se o escolheram porque não podiam escolher ou não tinham lugar nos sítios de nova preferência dos reis ou porque achavam os próprios que aquele sítio era melhor. E já agora o túmulo em que estado é que estava? Tinha múmia? A múmia já tinha sido roubada?
Inês Torres
Tinha vários esqueletos. Não tinha múmia, mas todas as câmaras funerárias, tinha várias câmaras funerárias, tinha sete. Todas elas já tinham sido roubadas na antiguidade, portanto já tudo que estava lá já estava muito destruído e tem vários esqueletos. Portanto, teria que fazer uma análise dos esqueletos que foram lá encontrados para tentar perceber se é homem, se é mulher, quantos anos é que tinha e tudo mais. Porque quem morreu às vezes e d? Qual é o problema? É que isto foi escavado. Portanto, o túmulo foi escavado em 1912, 1913, mas não se lembraram de escavar as câmaras funerárias até 1935. Nessa altura, quando retiram as coisas da Câmara Funerária, os pólios, os esqueletos, tudo o que lá encontraram, resolveram, pediram uma pessoa, qualquer um professor de anatomia da Universidade do Cairo, para analisar os esqueletos. Então enviaram os esqueletos, esse senhor, e eles apareceram. Não sei onde é que estão. As maravilhas da arqueologia egípcia. Não sei onde é que estão os esqueletos. Não faço ideia. E, portanto, só tenho fotos e que nem sequer são muito boas, não é? Portanto, há sempre um pouco... Há questões que eu não vou poder responder, infelizmente, mas espero... Mas, de certa forma, também são interessantes, porque mostra como as práticas se modificaram. Quer dizer, ninguém hoje pensaria em deixar uma escavação a meio e voltar 20 e tal anos depois e dizer, ah, espera lá, esquecemos de escavar a câmara funerária, deixa-me voltar aqui. Quer dizer, não foi o propósito, não é? Porque às vezes há arqueólogos que decidem, ok, vou parar aqui, a minha já descobriu o que queria descobrir e agora vou deixar para o futuro, para os próximos virem cá para
José Maria Pimentel
estudar este sítio. Já tenho com o que me entreter.
Inês Torres
Exatamente. Mas não foi o caso. E há sítios
José Maria Pimentel
onde... Atualmente onde as escavações são limitadas, não é? Pelo governo.
Inês Torres
Em todo lado. É preciso pedir permissão ao serviço das Antiguidades, ao conselho. E é cada vez mais difícil. Está cada vez mais difícil, cada vez mais complicado, mas desde tudo, nem é só escavação. Se eu quiser fazer prospecção, tenho que pedir autorização, se eu quiser tirar uma foto, tenho que pedir autorização. Quer dizer, de certa forma, posso ir lá tirar uma foto, ninguém me vê, mas depois quero publicar o material e aparecem-nos à porta a dizer então, amiga, deram um... Como é óbvio. E acho que isso é um pouco, não é, tem a ver também com o passado do Egito, que foi ocupado durante muito tempo por potências europeias, portanto... Acho um
José Maria Pimentel
bocadinho fratários em relação a ter pessoas a
Inês Torres
invadir o espaço, não é?
José Maria Pimentel
Exatamente. Isso até é uma boa ponte para eu tentar empacotar esta conversa toda, se calhar num único insight que de certa forma nos leva para o início. E de uma coisa que nós estávamos a falar em off do episódio da semana passada do Tiago Hansen sobre história e história do direito, havia uma coisa de que nós falámos no início da conversa, que era a história é interessante sobretudo para tu perceberes o presente, no fundo interpretares o presente à luz da história e perceberes como é que o futuro pode ser, como é que esse presente pode ser alterado para um futuro melhor, há falta de uma formulação mais feliz do que esta. Este é um exercício muito mais difícil de fazer que o Antigo Egito. Claro!
Inês Torres
É muito mais antigo!
José Maria Pimentel
Exatamente. O que é que para o presente, o que é que para a interpretação do presente nos é útil olhando para o Egito Antigo, ou tem sido útil a ti, não é?
Inês Torres
Uma das coisas que mais me fascina é ver que de facto há coisas transversais à humanidade, no passado e no presente. Claro que, atenção, não quero ser simplista, Não quero dizer que os egípcios e nós somos iguais e temos os mesmos valores, nem sequer estou a falar em valores, mas de facto há certos comportamentos humanos que simplesmente se mantêm e eu acho isso fascinante. De certa forma até reconfortante, não é? Exato. Não somos os únicos que pensamos assim ou que... E eu acho que é enriquecedor de facto poder estudar uma civilização tão antiga e aperceber-me que de facto a verdade é que continuamos essencialmente com questões semelhantes e também com reações semelhantes à vida, se bem que tendo outros instrumentos, outras perspectivas, outras... Vivemos num outro tempo completamente diferente, não é? Mas eu também acho que há outro lado também no Egito que para mim é importante, que é essa ideia, tem a ver com essa ideia da humanidade e que nos dias de hoje, num mundo que está tão dividido, eu acho que essa ideia de património cultural mundial é muito importante. E especialmente com o Egito, que toda a gente gosta, Toda a gente gosta de ouvir falar sobre o Egito. Até
José Maria Pimentel
porque está ali mais ou menos no meio de tudo, não é? Ou seja, está próximo de todos.
Inês Torres
Exatamente. Portanto, eu acho que partilhar, tentar perceber mais e saber mais sobre uma civilização, um, muito antiga, dois, completamente diferente da nossa, num espaço, num tempo que não tem nada a ver connosco, é uma forma também de criar uma certa empatia para com outras culturas, para com outras regiões, é uma forma talvez de pensarmos mais a nível mundial, nós como humanos no mundo, nós como humanidade, e não tanto como, ah, isto é o que é nosso, e fizeram isto.
José Maria Pimentel
Sim, é o todo absurdo, foi o que eu quero dizer, sim. Sim, até porque viajar no tempo, viajar no tempo neste sentido é um bocado como viajar no espaço, tem muitas coisas parecidas, ou seja, o choque cultural de viajar para um país diferente não é... Tem muitas semelhanças com o choque cultural de viajar para um tempo diferente através da história. Boa, então é uma boa maneira de terminar. E agora passa-te a palavra para recomendares os livros. Os
Inês Torres
meus livros? Está bem, pronto, eu vou recomendar um em português. Se não forem 20,
José Maria Pimentel
agradece.
Inês Torres
Um em português, outro em inglês. Queria remindar, o em português é do professor Luís Manoel Araújo, que foi o meu professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, quando eu fiz lá o meu curso de Arqueologia, e ele escreveu um livro em 2015, relativamente recente, Para o meio académico, que se chama O Egito Faraónico, uma civilização com 3 mil anos. E eu gosto do livro porque dá uma ideia muito geral daquilo que foi o Egito e está organizada em temas, que é algo que eu gosto porque há livros de histórias, de história que são organizados cronogicamente, às vezes pode ser um bocado demasiado datas e não sei o quê, portanto este livro está organizado tematicamente, que eu acho ótimo, portanto temos um tema religião, temos a história, temos a geografia, quase como estivemos a falar aqui,
José Maria Pimentel
certa forma, portanto
Inês Torres
acho que é um bom livro em português.
José Maria Pimentel
O que de resto remete também para a questão da coesão ao longo do tempo, no fundo. Exatamente. Assim, uma das coisas que caracteriza o Egito, com todas as inconsistências que tem a dizer isto, é ver essa coesão cultural. Então, é melhor tu analisares o aspecto da realidade em vez de cronologicamente. Exatamente,
Inês Torres
por temas para percebermos o que é que une esta civilização tão antiga. Concordo plenamente, por isso é que acho que este livro é uma boa introdução. O problema do livro, e por isso é que eu quero recomendar outro, em inglês, é que está, como estávamos a falar, centrado muito nas elites e na cultura real e, portanto, não fala... Sim, e não
José Maria Pimentel
esconda o que vem, no fundo, está no próprio título.
Inês Torres
Exatamente, exatamente. Portanto, queria recomendar outro que fala sobre cidades e sobre pessoas não tanto camponeses, digamos, pessoas que trabalham no campo, mas assim, aqueles que não tinham acesso àquilo que a elite tinha. Este é do professor Stephen Snape e chama-se The Complete Cities of Ancient Egypt e é um livro excelente, não só porque reúne um catálogo que mostra as várias cidades do Antigo Egito, mas também porque fala sobre esses temas de ir à escola, o crime, o que é que as pessoas comiam, o que é que elas faziam, como é que se divertiam, portanto acaba por ser um bom livro. Também fala em palácios reais, não é? Mas acaba por dar outra perspectiva que o primeiro livro não daria. E, portanto, acho que em combinação acabam
José Maria Pimentel
a chegar. Não, isso é uma ótima combinação, por acaso estou a perceber onde queres chegar, porque este segundo tem muita piada, ou parece ter muita piada, não é? No fundo dá-te uma visão da organização geográfica, da demografia, provavelmente, do dia a dia das pessoas. Boa, excelente, excelente. Inês, foi interessantíssima a conversa. Muito obrigado por teres vindo.
Inês Torres
Obrigada a ele pelo convite, adorei.
José Maria Pimentel
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