#62 Thiago Hansen - A História do Direito: dos primórdios da Roma Antiga aos desafios do...
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José Maria Pimentel
Bem-vindos ao 45°. Este episódio tem uma história especial. É um belo
exemplo de como as redes sociais podem gerar parcerias improváveis entre pessoas
de países diferentes. Mas antes deixem-me apresentar o convidado. É ele, Tiago
Hansen, que é autor do podcast brasileiro Salvo o Melhor Juízo e
professor de História e Teoria do Direito na Universidade Federal do Paraná.
Conheci o Tiago há uns tempos, através do Twitter, quando ele teve
a simpatia de partilhar o 45° com os seus ouvintes. Para mim
começou por ser uma surpresa descobrir que há quem me ouça do
outro lado do Atlântico e tive uma segunda surpresa quando descobri que
ele próprio é podcaster e autor de um podcast bem conhecido. O
SMJ, como é mais conhecido, é um podcast supostamente sobre direito mas
que acaba por abordar uma série de temas diferentes, da história à
política e com muito do próprio direito, obviamente. Vale bem a pena
ouvir. São conversas do mais interessante que há e com um bom
humor que só me faz ter inveja. Entretanto, resolvi convidar o Tiago
para vir ao 45° e descobri que ele viria a Portugal num
futuro próximo. Mensagem para cá, mensagem para lá, terminámos a gravar esta
ótima conversa de quase duas horas. Os temas de que falámos foram,
como se adivinha, mais que muitos. Só para terem uma ideia, começámos
a conversa a falar do direito na Roma Antiga e acabámos, ou
quase, a falar sobre o estado atual do sistema judicial no Brasil.
Mas o mais fácil é fazer, como habitual, o índice desta conversa.
Começámos por discutir a evolução do direito ao longo da história, desde
Roma, lá está, passando pela Europa medieval até à formação do Estado
moderno. Isto levou-nos a discutir temas como o verdadeiro alcance do absolutismo
ou a diferença entre o sistema jurídico na tradição da Europa continental
e a chamada Common Law de tradição inglesa. E assim, quase sem
dar conta, saímos do passado para abordar o presente, mais especificamente o
presente do sistema judicial brasileiro. Foi muito elucidativo ouvir o alerta do
Tiago, que é atenção ele próprio jurista, em relação aos perigos do
excesso de protagonismo do poder judicial, sobretudo tendo em conta que gravamos
a conversa dias antes de saírem as notícias recentes, que dão conta
de que o juiz Sérgio Moro, figura central na acusação a Lula
da Silva e hoje Ministro da Justiça, terá, entre outras ações muito
discutíveis, a ser em verdade, colaborado com o procurador do Ministério Público,
à acusação no processo que ele julgava, algo que é obviamente proibido
por lei. Isto são notícias dos últimos dias, atenção. A atualidade, portanto,
no episódio que era suposto, lembro, ser sobre História do Direito. Feito
este detour ao presente, regressamos ao tema História e Teoria do Direito
para falar da relação entre direito e justiça. Isto pode parecer-nos um
não tema, mas a verdade é que há uma longa história de
discussão filosófica sobre a relação entre estes dois conceitos. O debate clássico
é entre duas visões antagónicas, a do chamado direito natural e a
do positivismo jurídico. E a verdade é que várias vezes estas visões
contrastantes vieram à baila durante o episódio. Explicando rapidamente, os proponentes do
direito natural reclamam que existem leis universais naturais, que o Estado, e
todos nós, tem o dever de respeitar. O que não é tão
fácil responder, claro, é à pergunta o que é natural? Para alguns
é a palavra de Deus, sobretudo no passado, para outros são os
direitos básicos de todos os seres humanos. O problema é que alguém
tem que definir esses direitos básicos e, portanto, esta posição adianta de
pouco, se não tivermos em conta os agentes. Já a posição contrária
à do direito positivista está perfeitamente confortável com o facto de ser
a maioria da população a definir o que é lei e, em
última análise, o Estado ou o Governo desse país. Mas o problema
desta visão é claro que, em teoria, se pode perfeitamente tolerar uma
ditadura da maioria ou, pior, um Estado autoritário. Enquanto não jurista, tenho
que dizer que este me parece um debate um pouco exotérico, demasiado
abstrato e, sobretudo, pouco útil na prática, uma vez que a realidade
está inevitavelmente afastada de qualquer um destes dois modelos e depende sobretudo
de instituições de qualidade e de julgamento humano. Mas avaliem por vocês
próprios. Terminamos esta conversa a falar sobre podcasts, sobre Portugal e o
Brasil e o potencial deste meio para precisamente aproximar pessoas dos dois
países, como nós os dois. Espero que gostem. Tiago, bem-vindo ao podcast.
Muito obrigado. O meu primeiro convidado transatlântico. Olha aí, gostei de ver.
Ou pelo menos em pessoa. Ora bem, então eu vou atacar e
já vamos ver onde é que isto nos leva. Por acaso eu
apanhei uma frase de tua gira, da primeira vez que eu fiz
o trabalho de casa. Oxi, fiquei
José Maria Pimentel
Apanhei uma frase porque identifiquei-me com ela, que era, tu dizes algo
do género, a função da história não é entender o passado pelo
passado, ou não é estudar o passado pelo passado, é estudá-lo para
perceber o presente em contraste com o passado. Sim. E eu identifico-me
muito com essa visão, ou seja, acho que obviamente que há um
lado da história de um fim em si mesmo, tu vais... Romances
históricos, por exemplo, mostram que há um interesse pela história como um
fim em si mesmo, porque é interessante a pessoa perceber como é
que foram outros tempos, mas é sobretudo para perceber o presente. E
a história do direito, que era um campo com que eu obviamente
não estava muito familiarizado, é giro nesse aspecto porque permite estudar as
instituições do direito agora à luz daquilo que foram antes e não
é nada óbvio, pronto, não é nada evidente para um leigo como
é que essas como é que as instituições foram antigamente. Exato. Que
tem muita piada. Dona, se calhar uma pergunta gira para começarmos é,
quando a pessoa fala direito, ou seja, usar a palavra direito, há
algo que seja transversal ao direito ao longo da história? Também.
Thiago Hansen
Acho que eu queria primeiro voltar ao comentário que você fez sobre...
Aliás, já está aí o brasileiro, né? Você fez sobre a questão
da história, né? Veja, essa é uma questão que me aparece muito,
sobretudo porque eu sou professor universitário nos primeiros anos, nos primeiros ciclos.
Então são os caloiros, e acabaram de sair do ensino básico, ainda
estão um pouco tentando entender a função daquelas disciplinas, sobretudo no direito
em que, nos primeiros ciclos, as disciplinas são muito teóricas. Então fica-se
naquela vontade de e agora, quando é que eu vou aprender a
parte prática? Quando é que eu vou aprender direito fiscal para ficar
rico? Entre outras questões. E aí eu sempre faço os meus alunos
me perguntarem uma pergunta que muitas vezes pode soar desrespeitosa para aqueles
professores mais formais, que é a pergunta para que serve a história,
para que serve isso que você está ensinando, para que serve teoria
do direito, que é a disciplina que eu ministro também. E acho
que essa é uma pergunta muito importante ser feita, sobretudo porque se
nós pensarmos qual é a função dessa pergunta, ou pra que serve
alguma coisa, o verbo servir vem do latim seru, que é a
palavra latina pra escravo. Então é no mínimo curioso quando você fala,
na verdade, para que serve a história, você está perguntando a história
escrava de quê? Qual é a função que ela tem que cumprir
em um plano maior, que normalmente é vinculado a uma lógica ou
econômica, ou política imediata, e assim por diante. E aí eu falo
com a maior tranquilidade e leveza de coração para que a filosofia,
a história e a teoria do direito não servem a nada. Não
que não serve para nada, mas não serve a nada, porque eu
acho que a grande função dessas áreas do conhecimento é fazer aquilo
que você comentava. É dar um passo atrás ou um passo acima
na loucura do cotidiano que nos faz repetir atos às vezes pouco
pensados para que nós consigamos enfim avaliar o que nós estamos fazendo
e no caso da história por exemplo olhar para o passado para
no contraste com aquelas sociedades tão diferentes e estranhas para nós, nós
vermos quem nós somos e quais são os nossos exageros, quais são
os nossos pontos que nós mais nos apertamos e comunicamos e também
uma possibilidade de criar novos futuros. Então a história, para mim, é
uma área de conhecimento que versa muito mais sobre possibilidades de futuro
e interpretação do presente através do passado do que um culto ao
passado em si. Poderia ser um romantismo ou algo do tipo. Agora
com relação ao direito, veja bem. Essa é uma discussão bastante complicada,
porque você vai encontrar opiniões de filósofos do direito, sobretudo aqueles que
são mais vinculados a um movimento muito clássico chamado de justnaturalismo, ou
direito natural, que vai tentar entender que o direito na verdade é
uma continuidade estável em toda a humanidade e normalmente isso se expressa
numa frase latina muito famosa para os estudantes de direito logo no
começo do curso, que é ubi societas ibi us, se há sociedade,
há direito. Eu não acho que é bem por aí, eu discordo
bastante desse ponto de vista. Eu acho que o direito é um
produto cultural, político, ocidental, muito preciso, que surgiu de fato em Roma
e que inclusive surgiu com motivações muito mais baixas do que nós
imaginamos, que seja uma nobreza de um povo intelectualmente superior ou algo
do tipo.
Na verdade, eu não vejo bem por isso. E por isso que
eu acredito que, na verdade, o direito não é algo que sempre
existiu, não é um valor universal, não é algo que é estável
em toda a história mundial. E digo mais, eu acho que esse
é o ponto mais interessante. Pode ser que o direito deixe de
existir também, que é algo que é pouco refletido.
Thiago Hansen
direito que você está falando? Exatamente, qual é o seu direito? Essa
é a pergunta mais interessante. Veja bem, o direito, então, pode ser
apreendido de muitas formas diferentes. Quando você fala, por exemplo, a frase,
eu estudo direito, o direito aqui é um substantivo que se refere
a uma área de conhecimento específica. Quando você fala que está no
direito português que não se pode fazer A ou B, você não
está se referindo agora à área científica, mas você está se referindo
ao ordenamento jurídico, ao conjunto de normas que reagem à sociedade portuguesa.
Quando você fala, por exemplo, que você está a entrar em um
prédio público e o segurança impede a sua entrada, você fala, não,
mas é o meu direito entrar nesse prédio, porque eu sou cidadão,
pago meus impostos. Nesse caso, você não está se referindo nem necessariamente
à ciência do direito, nem necessariamente às leis específicas que possam estar,
mas você está se referindo a um poder, a uma garantia cidadã
que você exerce. Então o direito tem de fato várias abordagens. A
questão é saber o que se fala quando se fala em direito.
O direito, quando eu falo que surge em Roma, ele surge em
Roma por quê? Porque foram os romanos que de fato conseguiram, ainda
com muita dificuldade e com uma história muito complexa que se desenrola
em torno de 1500 anos, não se trata de uma sociedade simplista
ou que pode ser reduzida a uma fórmula geral, mas eles conseguiram
criar uma técnica de resolução de conflitos que detinha uma tentativa ou
uma proposta de autonomia frente à política, à economia e à religião.
E isso só os romanos fizeram. Os gregos remetiam às suas técnicas
de resolução de conflitos à política, claramente. Se você pegar outros povos,
remetia-se à religiosidade, a características divinas e assim por diante. Os romanos,
sobretudo a partir do que é chamado período clássico, que vai do
século II a.C. Ao segundo d.C., eles vão se esforçar para construir
uma área do saber muito diferente e autônoma frente a essas outras
áreas. Então quando se fala que o direito pode deixar de existir,
é nesse sentido. Pode ser que em algum momento nós vamos começar
a resolver os nossos conflitos, não mais nos remetendo a um cultivo
de um argumento racional específico que busca encontrar equilíbrio, segurança e previsibilidade,
e possamos, enfim, cair no colo de uma perspectiva hiper religiosa ou
um olhar muito contingente da política ou uma certa aspas ditadura da
economia. Então o direito nesse sentido ele tem uma pretensão de autonomia.
O que não se quer dizer, também é bom que se deixe
claro isso, é que o direito é completamente autônomo a essas áreas
do saber. Não, o direito sofre inflexões da economia, da política, da
religião, da filosofia, e o direito influencia essas áreas também. Se você
vai fazer negócios, vai fazer um investimento em um país, você tem
que conhecer minimamente as regras do jogo daquele país, ou seja, o
direito já está influenciando aí também essa estrutura. Então, acho que é
mais ou menos nesse caminho. Então, o direito, quando digo isso, é
porque eu acredito que os juristas, talvez cá em Portugal isso seja
muito claro também, eles gostam muito de hipervalorizar a sua própria área,
como se fosse... O jurista gosta do sacerdócio, eles usam roupas bonitas,
o fato, a gravata, ou então aquelas becas, né? E assim, pra
justamente poder se afastar e meio que conter um saber próprio que
é reservado
Thiago Hansen
de uma autoridade. O Pascal, o Blaise Pascal, tem uma frase magnífica
nos textos dele, que ele fala assim, falando sobre os médicos e
os juristas. Ele fala assim, tanto os médicos quanto os juristas precisam
se esconder nos seus palácios de grandes colunas, usar as suas roupas
frondosas, o seu capelo, a sua borla e assim por diante, porque
se eles tivessem verdadeiramente um saber, eles não precisariam de nada disso.
Mas é esse teatro que faz com que venha essa autoridade da
boca daquele sujeito. E aqui em Portugal mesmo, existia um livro no
século XVII, se não me engano, que chamava O Bom Jurista, ou
algo mais ou menos nesse sentido, em que se discutia muito, por
exemplo, quais eram as características físicas de um bom jurista. O bom
jurista tinha que ter dedos proporcionais, não poderia ter um nariz muito
alongado, eu jamais seria um bom jurista naquela época. As orelhas tinham
que ser pequenas, a cabeça bem redondinha. Havia, inclusive, essa discussão porque
acreditava-se que o direito tinha que ser transmitido por alguém que correspondesse
a uma certa harmonia da ordem natural das coisas. Porque também se
tinha essa compreensão, sobretudo nos séculos 17, havia muito disso, uma certa
compreensão de que o direito era um processo de interpretação do funcionamento
da natureza,
que ao fim e
ao cabo era uma dádiva de Deus e que correspondia à forma
mais correta de se direcionar no sentido da salvação.
José Maria Pimentel
Isso que tu falas, esse lado da autoridade, é engraçado porque já
pensei nisso várias vezes em relação ao direito, direito aqui no sentido
do lado, ou seja, incluindo advogados, juízes, as próprias instituições que, historicamente
e mesmo hoje em dia, claramente fazem uso de maneiras de remeter
para a autoridade, seja através da maneira como se veste, seja pela
questão, por exemplo, de haver quem interpreta as leis, seja haver quem
interpreta essas leis no sentido natural, seja mesmo hoje em dia haver
quem interpreta, quem tem que fazer a hermenêutica das leis escritas e
isso é muito parecido com a religião e eu pergunto-me, aliás, historicamente
e mesmo se calhar hoje em dia, se isso também não era
um mecanismo para... Se o direito também não surgiu, como de resto
tudo indica que a religião surgiu, para unir grupos quando os grupos
se tornam muito grandes. Ou seja, tu numa tribo de caçadores-recoletores, a
religião que tu vês, por exemplo, nessas tribos é muito diferente da
religião, qualquer religião de grandes aglomerados. O tipo de Deus é muito
diferente. Por exemplo, está menos preocupado com restrições de comportamento ou com
boas ações. É muito mais um um Deus que prega partidas, por
exemplo, e faz coisas desse género. Porque o Deus, este Deus moralista,
justifica-se quando tu começas a ter grupos muitíssimo maiores e precisas ter
uma união naqueles grupos que já ultrapassam aquele número de 250, portanto
as pessoas já não se conhecem. Imagina-te, sei lá, algures na Europa,
não é? Ou, por exemplo, em Portugal, não é? Tu viajavas para
o Norte de Portugal e tinhas que ter qualquer coisa em comum
para confiar na outra pessoa, porque não a conhecias de vista, e
a religião cumpre um bocado esse papel. Claro, dá identidade. Exatamente. E
o direito, talvez até mais historicamente do que agora, pergunto-me se também
não cumpriria um bocadinho esse papel.
Thiago Hansen
Muito. Veja bem, Roma, se nós pegarmos o auge da cidade de
Roma, no século I d.C., chegou a ter 1, 5 milhão de
habitantes. Isso é fascinante, né? Você para pensar que aquela cidade, há
quase 2 mil anos atrás, ou um pouquinho mais de 2 mil
anos atrás, tinha 1, 5 milhão de habitantes, e que ela só
foi superada em termos populacionais por Londres no século XIX, ou seja,
ela passou na frente por 1.900 anos.
Sim, é incrível.
É incrível. E ao mesmo tempo se trata de uma sociedade que
não tinha uma religião moralista, como você disse. Sim, exatamente. Essas religiões
moralistas que você se refere são as chamadas religiões abrahâmicas, em que
basicamente Deus vem à Terra e revela aos homens o caminho correto,
o caminho errado e fala, vá para o correto que você terá
a vida eterna, pós-mortem,
Thiago Hansen
Nem um pouco, Porque veja, o surgimento do direito em Roma, aqui
há um detalhe importante. Os romanos não tinham uma palavra para direito
e isso é chocante. Eles inventaram um negócio, mas eles não tinham
uma palavra para isso. A palavra que eles usavam, que vai depois,
posteriormente, dar origem a direito, é a palavra ius. Há um debate
filológico para saber de onde veio essa palavra, e hoje mais ou
menos se tem uma compreensão de que ele veio provavelmente do antigo
farce do império persa da palavra IAUS que significava ritual. Então o
direito surge em Roma como um ritual. Como é que funcionava, José?
Imagine assim, o direito, o ius, surge naquela religiosidade naturalista romana em
que basicamente você fazia apostas a todo momento com os deuses. Então,
por exemplo, se você era um agricultor e queria ter garantia, segurança
e previsibilidade, que são dois valores importantes para o direito depois, de
que a sua colheita será frutífera, então você ia lá e sacrificava
um animal para o seu Deus da fertilidade, ou fazia uma festa,
ou fazia uma imagem, coisa e tal, para agradar os deuses e
garantir assim que você teria uma previsibilidade das suas ações para o
ano seguinte. Quando você realizava esse tipo de ritual entre seres humanos
e deuses, os romanos chamavam isso de FAS. Agora, em algumas situações,
você precisa também criar segurança e previsibilidade entre seres humanos. Então, imaginem,
por exemplo, dois generais ou dois paterfamílias romanos, que naquela altura basicamente
eram generais, que detinham escravos, que formavam milícias e assim por diante.
E você tinha um outro general vizinho e vocês disputavam a margem
de um rio, por exemplo. Em algumas situações, a guerra simplesmente não
compensa, porque às vezes os exércitos estão muito parecidos em termos de
tamanho e a tendência é que aquilo vire uma carnificina, enfraqueça os
dois lados e um terceiro vem e domine a todos. Então como
é que você dá um jeito nesse tipo de situação? Você chegava
pra esse outro general, você sendo um deles, se reunia junto com
um sacerdote. Esse sacerdote específico, que era um religioso, que tinha o
cargo de pontífice. Aí, é curioso porque as similaridades, se vê que
a Igreja Católica roubou muita coisa
Thiago Hansen
Esse sujeito, esse sacerdote, Ele tinha a capacidade dita de conhecer as
vontades e aquilo que é bom para os deuses. Então ele fazia
uma leitura da natureza, pra nós um tanto quanto bizarra. Leia-se. Sabe
quando nós vemos revoadas de passarinhos, muitos passarinhos andando juntos, que formam
aquelas formas esquisitas que aparecem às vezes nos vídeos do Facebook, eles
acreditavam que aquilo eram como canetas que estavam desenhando no céu. Então
acreditavam que aquilo eram palavras que se formavam e que somente os
sacerdotes interpretavam. Ou então eles pegavam carvão e colocavam esse carvão na
água, e aí viam como ele se locomovia, como se mexia e
tiravam alguma informação dali. Ou então faziam um procedimento ainda mais estranho,
que é abrir um animal vivo, a barriga dele, deixar os órgãos
caírem no chão e viam como os órgãos se comportavam e acreditavam
em extrair alguma informação dali. E aí esses sacerdotes chegavam depois de
fazer esses procedimentos e falavam, olha, veja bem, pra vocês dois ficarem
em paz, vocês dois generais, vocês têm que fazer essas seguintes tarefas.
Com o passar do tempo, começa-se a reparar que algumas tarefas funcionavam
e outras não funcionavam. Às vezes o sacerdote falava que iam ter
que agradar os deuses, fazer imagens, construir templos, e a rivalidade se
mantinha. Mas em compensação, algumas tarefas, como por exemplo, o teu filho
primogênito tem que casar com a filha primogênita dele e vice-versa, gerava
uma pacificação imediata, porque cada família tinha um refém a seu favor.
Basicamente isso. Esse tipo de fórmula absolutamente pragmática, e Vejam só, isso
é fundamental, com nenhuma vinculação com a justiça, nenhuma vinculação com a
justiça, porque você podia fazer um yus, um ritual para a pacificação
entre generais, cujo objetivo final era matar pessoas, ou ser absolutamente injusto,
sob o nosso ponto de vista. Esse tipo de ritual então começou
a se autonomizar, digamos assim, e alguns sacerdotes com o passar do
tempo, posso contar essa história com mais detalhes mais à frente, começam
a reparar que algumas desses rituais não é que eles funcionavam bem
porque os deuses assim queriam, mas eles funcionavam bem porque eles eram
racionais, porque fazia sentido, porque havia uma estrutura oculta ali por trás
que garantia e criava como que um tabuleiro com regras em que
você sabia onde você podia se locomover, quais peças você podia mexer
e, sobretudo, quais peças o seu opositor poderia mexer também. Então, quando
você cria essa estabilidade mínima, essa previsibilidade, você tende a arrefecer as
relações tensas de uma sociedade. Isso que os romanos fizeram. Os gregos,
em compensação, juntavam as pessoas numa praça pública e faziam debates homéricos.
E aqueles que venciam o debate, às vezes não tanto pela sua
qualidade racional, mas pela sua retórica, sua capacidade de tocar o sentimento
alheio, eram considerados os justos, os vitoriosos. Os romanos já começam a
separar essa questão. Então o ius surge em Roma mais ou menos
nesse sentido. Ele tinha um formato de aposta, um formato desvinculado da
justiça, portanto, muito mais próximo do jogo, da religiosidade. Até a
questão do ritual.
Do ritual, exatamente. E isso se manifesta muito curiosamente. Por exemplo, se
nós por acaso nos encontrarmos na rua outro dia desses aí e
eu apenas acenar para você, ô José, tá bem? Tá bem? Vamos
tomar um café qualquer dia? Vamos, vamos. E continuarmos os nossos caminhos,
esse vamos tomar um café qualquer dia que eu falei, fica subentendido
entre nós dois que é se der Deus, se não der, faz
mal. Foi só uma forma educada inclusive se referir. Agora se eu
te encontro na mesma situação, aperto as suas mãos, olhos nos seus
olhos e falo assim, ô José, Precisamos tomar um café em qualquer
dia desses. O simples formato ritualístico, a mensagem é a mesma, mas
o simples formato ritualístico cria uma sensação de obrigação em ti que
se você furar, parece que há um problema. Essa sensação de falta,
essa sensação de obrigação oculta é que os romanos começaram a tentar
entender o que era isso. E que isso não era necessariamente religioso,
isso não necessariamente provinha dos deuses, nem da política, nem da economia,
mas estava muito mais próximo da honra, muito mais próximo da sociabilidade
e da estabilidade social e por isso eventualmente poderia ter características divinas,
mas era uma espécie de religião civil.
José Maria Pimentel
Sim, exatamente. E esse é o grande ponto. Isso é muito interessante
até por causa desse lado do ritual, tem para lógico a religião
e o ser humano vive muito disso e isso permite, por exemplo,
tu ritualizares uma coisa permite dar-lhe um estatuto, ao mesmo tempo dar-lhe
um estatuto maior, dares-lhe mais peso e torna-lo previsível.
Por
exemplo, eu acho também um tema interessante, uma questão interessante do direito
é que o direito também vive muito da previsibilidade. Mesmo hoje em
dia, ou seja, tu dizes, a pena de prisão por assalto é
justa? Eu não sei se é, se calhar devia ser mais, se
calhar devia ser menos, mas o facto de ser previsível permite que
tu hajas sabendo qual vai ser a consequência. Exato. E que toda
a gente haja sabendo qual vai ser a consequência, que no fundo
era o que acontecia nesse caso. Exato. E havia aí quase, esse
é um exemplo giro, porque havia quase uma espécie de... Havia quase
uma seleção natural daquilo que funcionava melhor. E
José Maria Pimentel
E a outra coisa gira que é, Tu saberes não é necessariamente
relevante para a eficácia do direito. Lá está, se ele é justo
ou não. É relevante, obviamente, para a justeza do direito, mas não
para a eficácia, porque, por exemplo, nesse caso, e havia uma seleção
daquilo que parecia resultar melhor, as pessoas confiavam porque aparentemente era uma
espécie de comunicação dos deuses e ele não funcionava com tanta eficácia
como, ou não funcionaria necessariamente com a mesma eficácia do que o
direito atual em que tu confias basicamente em quem fez a lei.
Sim. Tu enquanto sociedade confias em quem produziu aquela lei. E tens
uma visão diferente, não é? Não achas que aquela lei veio de
Deus, mas fosses crente, por exemplo, no que diz respeito a outro
tipo de leis, outro tipo de conduta, já acharás que veio de
Deus. E nessa altura, aquilo que eles acreditavam não era real, mas
o facto de todos partilharem aquela crença fazia com que aquilo funcionasse,
fosse
Thiago Hansen
eficaz. Os romanos falavam que eles que inauguraram a medida o debate
sobre o porquê que nós respeitamos o direito. Essa é uma pergunta
se você fizer hoje para qualquer estudante de direito no primeiro ano,
a maioria maciça vai responder que se respeita o direito porque tem
medo do resultado de não se respeitá-lo. Ou seja, há um medo
da pena. Isso os romanos também reconheciam, que em algumas situações se
respeitava o direito com receio, mas não só por isso. A esse
domínio específico do direito estar aproximado da ideia de violência, ou seja,
o direito é a violência autorizada pelo Estado ou pela força política.
Em alemão isso fica muito claro que se usa a expressão Gewalt,
que ao mesmo tempo significa violência e poder autorizado pelo Estado. Ao
lado disso, que os romanos chamavam de potestas, existia uma outra dimensão
do direito que eles chamavam de autorectas, que é a mesma sensação
do por que você respeita o seu pai. Eu ia dar esse
exemplo, que engraçado. Eventualmente você é muito mais forte que o seu
pai, eventualmente é mais rico, mais poderoso, mas o seu pai pode
ser um senhor doente numa cadeira de rodas e ele fala, agora
você sente nesse sofá porque você vai escutar e você, como se
diz no Brasil, coloca o rabinho entre as
Thiago Hansen
e escuta ali. Por quê? Da onde vem essa força? Essa força
que os romanos chamavam de autorectas, que vem do prestígio, que vem
da honra. E isso é muito forte naquele contexto, porque, por exemplo,
se você tivesse um problema jurídico em Roma, você escolhia o juiz.
Isso é algo impensável hoje. Mas se eu tinha um problema contigo,
Por exemplo, nós íamos primeiro até um pretor, esse pretor reduzia a
termo o nosso conflito, colocava ele dentro de uma fórmula jurídica genérica,
e depois a gente levava essa fórmula para um iudex. Esse juiz
era escolhido em comum acordo entre nós, como sujeito em que nós
reconhecemos a honra e que nós ficaríamos envergonhados de desrespeitar a decisão
que ele desse, mesmo que fosse contra nós. Ou seja, a lógica
romana era muito mais próxima da arbitragem, da mediação, do que da
criação de um direito que se impõe através da soberania ou que
se impõe daquilo que o Max Weber chama de monopólio da violência
legítima.
Thiago Hansen
Até porque, eu sei que isso é meio polêmico o que eu
vou falar, mas Sob um ponto de vista da história do direito,
é muito difícil se falar em Estado Romano. É claro, você tem
ali uma burocracia, você possui ali uma organização qualquer, mas é muito
longe do que nós entendemos hoje como Estado Moderno. Como uma pessoa
jurídica abstrata, uma ficção que detém a soberania e o seu poder
provém de uma certa, aspas, vontade popular que não é palpável e
assim por diante. Isso não existia em Roma, né?
José Maria Pimentel
Eu acho que aliás uma das coisas de... Eu já te ouvi
dizer isso nos podcasts e acho que é uma coisa que pode
passar ao lado das pessoas, ou é fácil nós ignorarmos, porque, por
um lado, o Estado hoje em dia é um Estado mais democrático,
ou seja, que garanta uma série de liberdades que não garantia no
passado, se quiseres. Mas, por outro lado, enquanto Estado, ou seja, enquanto
corpo, é muito maior do que alguma vez foi. Ou seja, o
Estado em qualquer sociedade contemporânea tem um peso e tem um alcance
que jamais teve mesmo nos reinos mais absolutistas e menos nos reinos
mais tirânicos, por exemplo. Até por uma questão operacional, não é? O
Estado Romano teria muitas dificuldades em chegar a todas as províncias, em
ter um direito centralizado porque não conseguia controlar toda a distância.
Thiago Hansen
Um grande historiador espanhol, vizinho, Caetano José Fontana, bem conhecido, tem uma
frase curiosa que diz que o poder do Luís XIV, o rei
Sol, acabava na porta da sua sala. Porque dali em diante, a
posição do rei, o exemplo maior do absolutismo europeu, exigia ou dependia
de uma sequência de funcionários, de acordos, de possibilidades para que aquela
ordem fosse cumprida na ponta. Hoje, com a formação do Estado moderno,
mais complexo que nós temos a partir da Revolução Francesa, o Estado
liberal em alguma medida, a ideia é outra. Agora não se tem
mais essa dimensão porque se tenta, na verdade, burocratizar bastante e minimizar
a necessidade das relações sociais para cumprimento das decisões. Não que não
aconteça também. É
José Maria Pimentel
que em certo sentido é um paradoxo, ou seja, o Estado é
mais, por um lado é mais, quer dizer, garante mais liberdades, ou
é menos opressor, se tu quiseres, ou pelo menos no papel é
menos opressor, mas por outro lado tem um alcance e um poder
de fogo incomparavelmente maior do que tinha no tempo de Luís XIV,
por exemplo. Tu hoje tens uma série de liberdades que não havia
antigamente, mas se o Estado quiser multar ou verificar se tu fazes
qualquer coisa para perceber se tens que ser multado ou não, tem
uma capacidade de ver se tu, sei lá, fazes um fogo no
teu jardim, que é ilegal. Antigamente era impossível, era virtualmente impossível fazê-lo
à distância. Hoje em dia o Estado, se quiser, sabe isso. E,
portanto, consegue, tem um poder de fogo muito maior para te... Poder
de fogo aqui, por analogia, tem uma capacidade muito maior de te
de te controlar, se o quiser fazer,
Thiago Hansen
muito mais do que acontecia antigamente. É curioso isso, porque, na verdade,
o que a gente consegue identificar é um processo de transição daquilo
que se denomina como pluralismo jurídico, que é algo que vai existir
aqui em Portugal, formalmente falando, até Pombal, quando surge a Lei da
Boa Razão, a reforma dos estatutos da Universidade de Coimbra, e na
França, pelo menos até a Revolução Francesa, em que você tem uma
sociedade, ou melhor dizendo, você tem um direito que provém de muitas
fontes diferentes. Hoje, quando nós pensamos em direito, imediatamente nos vem à
cabeça a lei, a figura da lei. Ou seja, esse imperativo breve,
normalmente não, sempre produzido pelo Estado, via parlamento, ou no caso de
uma ditadura, via executivo, não interessa a origem específica dele, se é
democrático ou não, mas essa compreensão de que é um texto breve,
normalmente em forma imperativa, que aplica faça isso, não faça isso, é
permitido isso, é proibido aquilo. Essa figura específica, lei, como nós entendemos
hoje, é uma invenção do final do século 18 e início do
século 19. Se você pegar as ordenações, por exemplo, daqui de Portugal,
as afonsinas, manuelinas ou filipinas, se você ler aquele documento como se
fosse uma lei, você perde o sentido do documento. Porque, na verdade,
o que era aquilo era uma compilação de costumes que já há
muito tempo vinham sendo cultivados na sociedade ibérica e que em alguma
medida simplesmente foram positivados, escritos, para que fiquem mais claros e evitem
possíveis contornos ou desvios. Mas isso não significava também que as ordenações
eram aplicadas. Exato. Porque não eram. Na prática, não eram. Se você
pegar o livro V das ordenações aqui de Portugal, era conhecido na
Europa da época como o livro terrível, porque se você lê aquele
livro quinto, que é a parte criminal das ordenações, qualquer coisa era
pena de morte. Mexericos era resolvido com chibatada em praça pública. Se
você cortasse as árvores à beira do Tégio, você podia ser degredado.
Ou seja, era um livro absolutamente violento, de um ponto de vista
humanista. Mas ele não era cumprido. Por que ele não era cumprido?
Porque aquela era apenas uma das fontes do direito. Você tinha que
saber sopesar aquilo com também critérios teológicos de justiça, você tinha que
saber sopesar aquilo também com algumas discussões com relação ao corporativismo da
época, ou seja, quem é o sujeito que está praticando aquele fato?
É um membro do clero? É um comerciante? É um camponês? É
um membro da nobreza? Porque pra cada um desses indivíduos lhe cabia
uma específica resposta o que vai acontecer é que com o processo
de modernização, sobretudo em Portugal a partir do Pombal e na França
com a revolução e assim em diante, você vai ter uma espécie
de achatamento e destruição dessa sociedade corporativista de estamentos e a criação
de uma sociedade civil em que, teoricamente, deve-se aplicar uma única lei
a todas as pessoas. E que essa única lei, que de agora
deve ser vista como a fonte imediata, específica, superior e hierarquicamente perante
todas as outras, o costume, a doutrina, a teologia, a moral e
assim por diante, essa única lei possui uma origem mítica. Que origem
mítica é essa? Ou é o caso da vontade popular, no caso
das democracias modernas, ou é a ideia de razão de Estado, no
caso das não necessariamente democracias, como era o caso português aqui na
passagem do 18 para o 19. Então você tem esse novo quadro
que alguns autores, inclusive, olha que curioso, vão chamar esse período de
absolutismo jurídico, que é o momento em que o Estado puxa para
si a competência de ser o único legitimado a falar o que
José Maria Pimentel
tu tiveste primeiro que dar um poder ao Estado que ele nunca
tinha tido antes. Deste um poder muito maior ao Estado inicialmente e
centralizaste esse poder, para depois o poder, lá está, liberalizar, distribuir e,
em alguns casos, como é que eu dizer, dar o poder de
escolha ao povo que não acontecia até ali. Mas, ao mesmo tempo,
eu acho que isso para um contemporâneo é difícil de perceber, não
é? Que o Estado medieval, que nos parece muitas vezes tão opressor,
tinha um peso muito mais pequeno, quer dizer, e o próprio rei
tinha um peso... Mas uma coisa em relação à qual eu fiquei
curioso sobre isso é se, se nesta transição de um modelo para
o outro, se perdeu alguma coisa de boa, ou seja, perdeu-se alguma
coisa de bom na transição de um modelo para o outro, na
transição de um modelo antigo em que tu tinhas um pluralismo jurídico
e até um pluralismo político, em certo sentido. Ou seja, tinhas o
rei, tinhas os nobres, tinhas... Obviamente que isso depois... As corporações. O
absolutismo acabou por dar mais poder ao rei e retirá-lo aos nobres,
mas continuavas a ter a igreja, por exemplo, continuavas a ter as
cidades, os municípios, nos sitios onde havia municípios. Em certo sentido era
mais plural.
Muito mais plural.
Ou seja, não era... Como é que eu ia dizer? Do ponto
de vista dos direitos individuais, era acho incomparável com o que existe
hoje em dia, porque como tu estavas a aludir à bocadinho a
isso, as pessoas eram... Tu eras a tua função e eras o
grupo a que pertencias, não eras o indivíduo, não eras o Tiago,
nem eu era o Zé Marias, eras ou o nobre ou o
comerciante ou uma coisa qualquer do género. E portanto, do ponto de
vista dos direitos individuais, eles eram quase ignorados. Mas, por outro lado,
havia uma espécie de concorrência jurídica, de concorrência de influências e de
poder que hoje em dia se perdeu porque o modelo é diferente,
o modelo é centralizador. Por exemplo, não é por acaso que foi
no século XX que existiram coisas como as ditaduras comunistas ou fascistas
e o nazismo, não é? Foi porque tu tinhas esse Estado que
podia centralizar.
Thiago Hansen
Não, acho a pergunta excelente. Primeiro, com relação ao absolutismo, isso é
um debate muito sério na historiografia. Mais recentemente, uma boa parte da
historiografia discorda sequer da ideia de absolutismo. Porque, na verdade, O discurso
sobre o absolutismo foi muito mais criado por liberais ex post facto
para justificar o que se estava a fazer do que de fato
uma realidade empírica. O Dom João V, que é um grande exemplo
de absolutista português, não sabia quais terras ele tinha em Portugal. Eu
conversava com o professor Antônio Espanha, certa vez, e ele falava que
a própria cartografia portuguesa, quais eram os domínios, etc. O rei, o
sujeito que era o mais poderoso desse regime, não conhecia. Não sabia
o que tinha, não sabia quais eram suas rendas exatamente, não havia
uma organização administrativa moderna, como se imagina com accountability e assim por
diante. Então, a coisa era muito mais horizontal do que vertical. A
vivência era muito mais baseada em tudo nesse sentido. As coisas eram
medidas em dias de viagem, as coisas eram medidas empunhadas, era muito
pouco abstrato, era muito mais vinculada à realidade concreta, vivente, do que
nas projeções que a modernidade vai construir quase como um arcabouço teórico
que acaba voando acima das nossas cabeças e nos identificando e nos
significando. A identidade dos homens medievais e das mulheres medievais, como você
bem disse, era concedida por alguns fatores. Primeiro, onde você nasceu, de
quem você nasceu e quando você nasceu. Tudo isso contava. Então, eu
gosto de fazer uma história, contar uma anedota, que é o seguinte,
se fosse possível voltar no tempo, você encontrasse um sujeito arando um
campo, à beira, sei lá, ao pé de Lisboa ou de Coimbra,
no século XIII, e você parasse ele e perguntasse, e aí, quem
é você? Hoje, se alguém para você na rua e pergunta quem
é você, nos vem automaticamente uma resposta, que é o nosso nome.
Porque o nome, afim de contas, é aquilo que nos dá identidade,
é aquilo que nos isola perante todo o resto e nos cria
uma subjetividade. Se você perguntasse a esse camponesa essa mesma pergunta, você
ia se assustar com a resposta, porque ele ia falar, eu sou
um camponesa. Aí você ia ser indignado e falar, não, não, não,
mas eu quero saber quem é você. Ele fala, ué, eu sou
um camponesa cristão. E você ia insistir, mas quem é você? Eu
sou um camponesa cristão de Lisboa. Até o momento que você perder
a paciência e perguntar qual era o nome desse tipo, ele fala,
mas por que você quer saber meu nome? O nome é só
um barulho que a minha família usa para me chamar quando o
almoço está pronto. Não é uma coisa que significa. A identidade era
concedida, então, muito mais, repito, pela posição em que você nascia, pelo
local em que você nasceu e pelo tempo em que você nascia.
Isso é explícito nos nomes dos medievais. Tomás de Aquino. Aquino é
de onde veio, não é o sobrenome. Tantos outros sabem disso melhor
do que eu. Essa construção dessa sociabilidade corporativa, estamental, hierárquica, criava um
direito plural na medida em que você tinha, em um mesmo território,
várias ordens jurídicas concorrentes. E a situação ficava um pouco caótica quando
você tinha indivíduos que concorriam em várias dessas ordens e cometiam delitos
ou situações jurídicas complexas. Então você poderia ter, eventualmente, um membro do
clero, que também era da nobreza, e que estava na universidade. Esse
sujeito é julgado por quem se ele comete um crime? Qual que
era a resposta? Não havia resposta. E esse é o grande segredo.
Pra nós hoje isso é um choque. A gente tende a ver
esse direito pré-moderno como uma bagunça, como um casuísmo, como um jogo
muito político em que o mais forte sempre prevalece ao mais fraco.
Mas o que acontece é muito mais simples que isso. No direito
pré-moderno não havia regra geral, porque não havia ainda uma estrutura abstrata
Thiago Hansen
em última análise? Em última análise era o rei. A função do
rei medieval nunca foi a de um administrador, nunca foi de um
sujeito que abre estradas, organiza as coisas. A função de um rei
é majoritariamente a de um juiz. De um sujeito que fica, inclusive,
muitas vezes circulando pelo país pedindo dinheiro, porque está quebrado, com a
banca quebrada, e concedendo favores. E o que era essa concessão de
favores? Ou era dar títulos, ou cargos, ou domínios, e sobretudo, resolvendo
conflitos entre nobres. E aí você tem uma situação dessa que é
muito descentralizada porque, se você está numa quinta ou numa aldeia qualquer
do interior de Portugal, quem vai te julgar é o nobre local,
ou o ancião local em alguns casos. E não havia exatamente estruturado
um procedimento de recurso ao rei. Depois isso vai começar a aparecer,
que aí você começa a ver de fato a estruturação do Estado,
ou seja, a criação de hierarquias jurisdicionais. Mas era muito comum que
se você fosse julgado por alguém que era súdito, ou vassalo de
um rei, isso não significava que o rei tinha autoridade de intervir
naquele julgamento. Porque não tinha. Então isso mostra um pouco essa lógica
plural. Aí você me pergunta do presente. O que nós perdemos com
isso? Bom, é muito complicado porque alguns autores, inclusive, apontam que os
dilemas que nós estamos passando na ento dita, eu não gosto muito
desse termo, né? Então dita pós-modernidade, são dilemas que em alguma medida
rimam com os dilemas medievais. Uma descentralização do sujeito, os medievais não
conheciam a ideia de sujeito, A ideia de que a identidade... A
diferença é que nós temos identidades fluídas, eles tinham identidades mais fixas,
mas a lógica, em alguma medida, é esse processo de descentralização que
nos gera um pouco de caos, um pouco de receio, porque nós
ainda estamos formatados por uma lógica moderna de criar uma arquitetura de
longa duração dos processos políticos e jurídicos e assim por diante. Mas
é possível se dizer que algumas coisas medievais eram positivas. É claro
que isso é um julgamento moral, mas ainda dentro desse julgamento moral
poderia se dizer o seguinte, os medievais estavam muito mais preocupados com
o caso concreto. Então a resposta dada por um juiz a um
caso concreto não seguia necessariamente o que os tribunais estão falando que
é pra seguir, porque tem que ser assim, porque a gente quer
diminuir o número de processos, porque já tem muita coisa e a
gente quer diminuir o trabalho. No caso do Brasil, isso é muito
evidente. Então se cria o que é chamado de jurisprudência defensiva. Então
é um monte de decisões que falam, se um recurso subir ao
tribunal desse jeito, nem lê. Os juízes medievais tinham muito mais um
olhar para o caso concreto e uma ideia de que cada caso
é um caso mesmo. As similaridades às vezes mais enganam do que
aproximam. Então o direito era artesanal em alguma medida, era feito um
a um. Então não havia regras gerais, não havia estruturas gerais, então
isso acabava gerando problemas, é evidente, porque você poderia ter situações semelhantes
julgadas de formas muito diversas, mas ao mesmo tempo isso acabava resgatando
o que alguns chamam de, é um termo meio clichê ou meio
blasé melhor, a nobreza do jurista. Leia-se. A ideia de que o
ato de decidir é um ato de produção, é racional, que tem
que avaliar o caso concreto. É uma arte. Exatamente. É importante. A
primeira definição de direito que nós temos na história, pelo menos aquela
mais célebre e mais estável, foi dada por Celso no século I
d.C. Ele fala que o Ius es ars boned equi que seria
então Ius como direito, mais ou
Thiago Hansen
Eco é algo como equidade, e que vai demorar 200 anos para
saber o que é, quando o Upiano vai escrever lá que eco
é sum quick tribuere, que é basicamente um Ctrl-C, Ctrl-V do Aristóteles
na ética nicômica, que é a ideia de dar a cada um
o que lhe é devido. E o que essa definição nos esconde
e que é muito irrelevante? Primeiro, A ideia de que o direito
é uma arte. E o que significa dizer que o direito é
uma arte? Hoje isso pode soar meio romântico, pode soar como algo
muito chique, mas não é nada disso. Arte, mas no sentido de
artesania. Leia-se, aquilo que você só aprende fazendo. Assim como a culinária,
assim como tocar música, contar piada e tantas outras artes que você
precisa exercer. Então, o primeiro que o direito era prático, eminentemente prático.
Mas prático do quê? Do bom e do eco. O bom, aqui
para os romanos, não tem nada a ver com moral. Esse é
outro ponto importante. Eles não estão falando ainda da ideia da bondade
cristã, que depois os padrecos cristãos lá no século XI e XII
vão fazer essa confusão e vai gerar um monte de problema. Mas
naquele contexto específico da virada do milênio, da era comum, para o
período anterior a Cristo, nessa passagem, bom é muito mais próximo da
ideia de boa razão. Leia-se.
Thiago Hansen
inteligente? Inteligente, exato. Bom e eco, ou seja, que consegue, e esse
é o ponto fundamental, no caso concreto, porque equidade não é algo
teórico, teórico é a igualdade, que é sempre formal, a equidade é
aquilo que exige o caso concreto, é para que nesse caso concreto
você identifique a solução que garanta a maior previsibilidade e segurança para
decisões futuras. Então nisso a gente constrói uma equação muito mais complexa
do que aparenta ser no primeiro momento a definição de direito, como
uma arte, ou seja, uma prática de encontrar no caso concreto os
bons argumentos que garantem que
José Maria Pimentel
cada um receba aquilo que lhe cabe. Então, espera aí, mas isso
é um excelente ponto. Eu depois nem queria falar da questão da
justiça que ainda não abordámos diretamente, mas que não está aí. Podemos
pô-la de parte agora. Porque no fundo pode-se dizer que o direito
atual, sobretudo o direito atual que existe em Portugal e suponho que
exista também no Brasil, está no extremo oposto do direito que se
praticava, que era em Roma, que era na Idade Média, embora não
fosse o mesmo, no sentido de que esses eram muito mais praticados
caso a caso e tu agora tentas, sobretudo, ter uma fórmula geral
que depois se aplica a todos os casos. Uma engenharia social. Exatamente.
E nessa fórmula geral, eu não sei se é sequer o melhor
termo, será, por mais bem feita que seja, e por mais inteligente
que seja quem a faz, ou o grupo de pessoas que a
compõe, será sempre imperfeita em alguns casos concretos, ou seja, nunca se
aplicará igualmente bem em todos os casos concretos. Em Portugal, Essa é
claramente uma das limitações da nossa tradição jurídica, que como tem que
estar escrito na lei, depois nem sempre se aplica aos casos concretos,
ou muitas vezes os casos concretos não estão previstos. Aquilo que eu
me lembro, diretamente quando estamos a ter esta conversa, é da tradição
britânica, da common law, que me parece tentar fazer um bocadinho a
quadratura desse círculo, ou que me parece tentar ter o melhor dos
dois mundos em certo sentido, porque a common law daquilo que me
parece, mas tu sabes isso muito melhor do que eu, foi um
bocadinho não deixar cair completamente essa tradição casuística, essa tradição caso a
caso. Então tu tens a questão da jurisprudência, das decisões que foram
tomadas anteriormente e que podem ser referenciadas para um caso que seja
parecido na atualidade e a partir daí ir criando, no fundo é
um corpo jurídico que se vai criando aos poucos, ao invés de
ser criado de raiz e de uma vez.
Thiago Hansen
uma boa pergunta, não sei se está muito na mola. É um
pouco essa ideia de se tentar importar alguns institutos do common law
para gerar mais previsibilidade, sobretudo a ideia de precedentes. Mas se você
olhar para a história do common law, ele passou por exatamente as
mesmas situações que o civil law. Ou seja, ele também em alguns
momentos se hiper-abstrativizou. Os precedentes se cristalizaram também e deixaram de ser
essa massa de modelar que você se refere. Então eles também passaram
por essas situações em vários momentos da história. Então o common law,
na verdade, hoje atua muito mais como uma cartada para você justamente
buscar algo diferente do que como uma racionalidade própria. É engraçado porque,
da mesma forma que nós tendemos a olhar o common law como
uma forma de oxigenar o direito do civil law nosso, os britânicos,
os americanos olham para nós e falam, opa, vamos pegar essa ideia
aqui que eu acho que é interessante, essa nova forma de interpretar.
Então, o que acontece, muitos, alguns dizem, é que estão se aproximando
um pouco esses
dois
sistemas. Os dois têm problemas, os dois têm limitações. É possível... Mas
há uma diferença fundamental, que eu acho que é interessante se destacar.
Pelo menos uma tentativa. O civil law buscou com muita clareza, ou
tentou com muita clareza, se afirmar como uma ciência autônoma. Ou seja,
ser um saber específico, com método, com teoria, com abordagem, e que
poderia, eventualmente, produzir um resultado certo. O common law, nesse sentido, está
mais próximo da crítica literária. Sim, sim. É algo que é muito
mais construído pelas narrativas e na tentativa de... O Ronald Dworkin, um
grande pensador americano falecido recentemente, vai dizer justamente que uma das artes
do jurista é construir o que ele chama do romance em cadeia,
ou seja, as decisões da corte constitucional, por exemplo, ela tem que
ser como um novo capítulo de um romance que já está escrito
e que tem que continuar havendo motivação para esse novo capítulo, ou
seja, tem que haver uma continuidade. Ou se for haver uma ruptura,
um overruling, como se diz, tem que haver uma afirmação muito clara
do porquê desse overruling. Porque senão você gera uma falta de integridade
na estrutura das decisões jurídicas. Então eles apoiam, digamos assim, a segurança
e a previsibilidade no conjunto das decisões. O civil law, a partir
do século XVIII para o século XIX, apoia a segurança e a
previsibilidade na clareza dos diplomas legislativos. Então, enquanto o civil law vai
treinar muito a ciência da legislação, como se dizia, que hoje nem
existe mais, mas é basicamente como escrever leis com um mínimo de
antinomias, ou seja, ambigüidades e assim por diante, e assim conseguir produzir
textos normativos em que o juiz, esse é o grande sonho do
civil law, em que o juiz basicamente não tem que interpretar, Ele
só vai lá e aplique. O common law já vai para uma
outra ideia. Ele já vai para uma ideia de que o que
tem que ficar claro cada vez mais são os precedentes. Ou seja,
os precedentes tem que ter... You have to grasp the precedent, como
dizem os falantes. Tem que pegar exatamente a alma daquilo lá. O
precedente não é um caso. O precedente, na verdade, é uma raciodecidente,
como se diz. Ou seja, uma razão do decidir, o porquê do
decidir. E esse porquê do decidir você consegue eventualmente aplicar em casos
semelhantes. Só que essa eventualidade tem que ser explicada pelo uso controlado
da retórica e da lógica. Então aí está a arte dos juristas.
O que é interessante porque há uma divisão muito clara. Se você
perguntar aqui em Portugal, Vou perguntar para você mesmo, fale o nome
para mim de três grandes juristas portugueses, que pode ser os normais,
os primeiros que vem à cabeça. Em
Thiago Hansen
E se você fosse no início do século XIX, na França, e
perguntasse se falha o nome de três grandes juristas, ele falaria o
nome de três deputados. Porque são os legisladores que são os exemplos
maiores de juristas.
Ou os
autores das leis, o Portali, por exemplo, que é o autor do
Code Civile Francais. Ou seja, isso vai mostrando um pouquinho essas diferenças
de abordagens. E também aqui é um outro aspecto importante, que é
o direito do common law. Ele vai ter uma influência muito menor
do direito romano. Haverá uma influência, não é sem influência, mas haverá,
só que é uma influência muito mais secundária. E o common law
é muito mais próximo da arte da negociação, tanto que as faculdades
de direito até hoje, as Law School, são como escolas técnicas, na
verdade, em que você aprende a negociar, você aprende a resolver problemas
concretos. Você não fica discutindo teoria do direito. Aliás, o Hans Kelsen,
que é talvez o maior jurista do século XX, quando ele se
refugiou nos Estados Unidos, sendo perseguido pelos nazistas, ele ficou decepcionado porque
ele não conseguia dar aula de teoria. Ele era austríaco, né? Ele
era austríaco, foi autor da Constituição Austríaca, O cara que criou a
ideia de corte constitucional teve que se refugiar. É uma história magnífica,
mas fica para uma outra situação, para um outro momento. Quando ele
vai para os Estados Unidos, ele fica decepcionado porque ele repara que
ninguém está a fim de estudar a teoria do direito. Porque para
eles, teoria do direito é como negociação, é como venda. O direito
é como a arte de um vendedor. É pura retórica. É a
capacidade de você conseguir convencer. Mas ela está nesse sentido, é muito
mais próxima
Thiago Hansen
Não necessariamente, porque havia um outro processo no caso do direito medieval
continental, da tradição do civil law, que era o seguinte. A partir
do século XI, se redescobre em Florença uma cópia do Corpus Iuris
Tivillis, que é um documento do fim do Império Romano, feito no
Império Romano do Oriente, ou seja, quase não é direito romano, essa
é a verdade. E esse documento começa a ser relido e tratado
com uma lógica epistêmica parecida com a da teologia. É quando surge
a chamada dogmática jurídica. O que é isso? Lia-se aquele documento com
o seguinte pressuposto. O documento está certo e se eu não entendi
é porque eu que sou burro e não consegui entender. Ou seja,
eu preciso me esforçar mais porque é a mesma forma como se
lê a Bíblia. Exatamente. Se há uma contradição, é porque o meu
espírito é incapaz de revelar essa contradição. Aquilo era a verdade. Aquilo
era a verdade revelada. Os medievais chamavam o Corpus Juris Divili de
racioescripta. Ou seja, se fosse possível você transportar a racionalidade perfeita que
habita a nossa alma para um papel, você teria o resultado do
Corpus Juris Divili. Então eles usavam o que se chama de interpretatio,
que não é bem interpretação, mas eles tinham que trabalhar nessas duas
dinâmicas. O corpus iuristibilius era uma espécie de manual de instruções da
justiça terrena, e o caso concreto tinha que, em alguma medida, ser
iluminado pelo corpus iuristibilius. Então a parte da retórica tinha um componente
fundamental, mas não caía na mesma lógica da negociação, como era o
caso dos britânicos, dos ingleses, que vão surgir as Inns of Court,
em que você literalmente aprendia direito como se fosse numa escola técnica.
José Maria Pimentel
porque vão se influenciando mutuamente. Exatamente. Mas não deixa de ser engraçado
isso, não deixa de ser interessante porque, por exemplo, aquilo que falavas
há bocadinho da Common Law, tem muito mais essa tradição de debate
e retórica e da história quase da arte, isto da parte dos
advogados, mas em relação aos juízes, por exemplo, lá está isto, isto
reflete naquela pergunta que estavas a fazer há bocadinho, os juízes tinham,
têm um peso muito maior nos tribunais ingleses ou americanos do que
têm em tribunais portugueses e suponho que brasileiros também, onde eles lá
estão no limite, estão apenas a interpretar a lei. Claro que na
prática a lei nunca é 100% clara e portanto tem alguma agência,
mas no limite eles estão a interpretar a lei, enquanto em tribunais
americanos, por exemplo, o juiz, e a pessoa até vê isso nos
filmes, o juiz é quem está, embora depois muitas vezes tenhas o
júri, que também tem ali um papel, mas está... A interpretar o
precedente. Está a interpretar o precedente, e isso está completamente em aberto.
Sim. Como é que é no Brasil, já agora? Veja, agora é
muito parecido com o sistema português,
Thiago Hansen
tanto nas instituições judiciais. Sim, na questão judicial é um pouco menos
a influência dos Estados Unidos, talvez com algumas exceções ali na Constituição
de 1891, que é a nossa primeira Constituição republicana, e uma coisa
ou outra ali, criação das justiças estaduais, que é algo que vocês
não têm aqui. Até porque Portugal é um país unitário. Sim, sim.
O Brasil, enfim, é um continente, é uma federação de estados. Mas
o que se tem hoje, com esse aspecto que você comentava, é
desde pelo... O que aconteceu foi basicamente o seguinte, e eu peço
desculpa aos ouvintes juristas por brutalmente reduzir um debate muito complexo. Mas
é que, passada a Segunda Guerra Mundial, começou a surgir, sobretudo por
parte de neojus naturalistas católicos aqui na Europa, sobretudo em França, mas
também na Alemanha.
Thiago Hansen
tivesse agência para não aplicar leis injustas? Você já fez uma pergunta
que muitas das pessoas que criticam o positivismo jurídico não conseguem fazer,
porque, na verdade, isso é uma caricatura do positivismo jurídico. Basicamente, a
ideia que se criou foi uma caricatura de que positivismo jurídico é
um apelo à literalidade da lei, uma aplicação mecânica, ou então, eventualmente,
se faz uma caricatura vinculando o positivismo à ideia do Buche de
la Loire, o juiz apenas como boca e refletida da lei, sendo
que o positivismo, na verdade, é uma forma de abordagem do direito
que enxerga o direito como produto das sociedades humanas e não como
algo vindo anteriormente. Positivismo vem de posto, ou seja, o direito é
criado, é inventado, é uma invenção humana. Logo, é contingente, é político,
é problemático, tem defeitos, tem virtudes e assim por diante. E não
parece nada, quer dizer, vendo a coisa de fora, não parece
Thiago Hansen
no caso da Alemanha nazista, por exemplo, e você vai ter a
figura do Führerprinzip, ou seja, a ideia de que a vontade do
líder se manifesta como direito, criou-se esse argumento de que os juízes
não tinham como resistir aos terrores do autoritarismo do século XX. Isso
fez com que, a partir dos anos 1950, começasse uma reavaliação do
positivismo jurídico e a reinserção de conteúdos morais e valorativos no processo
de decisão. Esse argumento é um argumento problemático porque, primeiro, os juízes,
os juristas alemães, massissamente apoiaram o nazismo. Inclusive os juristas que nós
lemos até hoje estavam enfiados até o pescoço no regime, participantes importantes
do regime nazista. E a grande estratégia do direito durante o período
nacionalsocialismo não era a obediência estrita à lei, não era a criação
de uma lei como fruto do Estado, logo eu tenho que obedecer
o estado porque o estado é tudo, não existem valor fora do
estado, que era o argumento que se fazia. Não, a grande estrutura,
a estratégia dos juristas nazistas era criar mecanismos interpretativos que criassem brechas
para que você fugisse das regras e caminhasse em direção a princípios,
ou seja, o código civil permitia certas garantias aos judeus com relação
a compra e venda, porque permite a todos. Então aí se começa
a construir uma ideia de bilateralidade da relação jurídica, em que se
constrói todo um argumento chamada boa-fé objetiva, em que o negócio comercial
entre um alemão e um judeu nos anos 40, no início dos
anos 40, é um negócio prejudicial à Alemanha, porque o alemão está
fazendo negócio com o povo que é o fim ao cabo, que
é terminar com o povo alemão. E aí se anula um negócio
jurídico. Isso é uma estratégia, um procedimento para você desrespeitar a literalidade
da lei, que é a previsão de que os negócios, o pacto
assunto servando, os negócios devem ser cumpridos como foram acordados. Vários casos
aconteceram assim na Alemanha para você ento contornar garantias individuais a minorias
através da arte da interpretação judicial. Mas de alguma medida isso colou
essa ideia do Gustav Haber, que a culpa era porque os juízes
eram muito obedientes, só batiam continência, então eles só obedeciam a lei,
então aí isso acabou criando o campo para o surgimento do autoritarismo.
E isso vai então produzir, nos anos 50, nos anos 60, uma
série de teorias chamadas pós-positivistas, em que vai começar a pensar a
ideia de interpretação judicial para além do texto, mas também para o
contexto, para o sistema, mas sobretudo técnicas em que você consiga incluir
valores dentro do pensamento jurídico. Isso em alguma medida oxigena e pode
até humanizar o processo de decisão, mas, como se diz no Brasil,
pau que bate em Chico, bate em Francisco. Ou seja, se isso
serve em alguma medida para proteger minorias, esse é um ponto importante.
A gente teve uma decisão polêmica no Supremo Tribunal Federal Brasileiro recentemente,
que criou-se... Alguns dizem que não é que se criou, mas muita
gente diz que sim. Criou-se um novo tipo penal, um novo crime,
pela via judicial, e não pela via legislativa, que equiparou-se a homofobia
ao crime de racismo. Então um ato homofóbico no Brasil hoje é
tratado como racismo. Mas
Thiago Hansen
O que se vê muito hoje no Brasil é o seguinte, o
poder judiciário cada vez mais atua como um ator político relevante, absolutamente
relevante. Vocês aqui devem acompanhar o caso da Lava Jato no Brasil.
O
timing de algumas decisões é um timing político. E aqui não se
quer dizer que é a favor ou contra a Lava Jato é
uma observação factual, né? Soltar certas... Publicar certas delações premiadas com conteúdos
que atrapalham um candidato uma semana antes das eleições, isso é um
timing político, não é um ato republicano, né? Então o poder judiciário,
em virtude dessas novas tendências de oxigenar por via dos valores, da
moral, de novas técnicas de interpretação,
Thiago Hansen
porque se acreditava quando se desenvolve essa... Uma garantia é que eu
concordo a sua racionalidade, a vitalicidade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de
subsídios. Ou seja, um juiz não pode ter o seu salário diminuído,
ele não pode perder o seu cargo a não ser por falta
grave, crime, e ele não pode ser movido, ele não pode sair
de onde está trabalhando. Você não pode dizer, aquele é o juiz
daquele caso, então vou tirar e botar outro que é meu chapa.
Isso não pode acontecer. E isso faz muito sentido, é racional, é
um valor civilizatório e assim por diante. Mas por quê? Porque quando
esse valor civilizatório foi estabelecido, se tinha uma clara compreensão de que
o poder judiciário não era político, ele era um poder técnico. E
aí, como você mesmo afirmou, era uma forma de isolar o poder
judiciário da influência política. O que acontece é que o poder judiciário
também é um ator político. Vou dar um exemplo prático aqui. Quando
começou as discussões sobre o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff,
o Supremo Tribunal Federal, vendo o impasse que estava acontecendo, miraculosamente resolveu
colocar em pauta para julgamento um processo de 1993, cujo tema era,
é possível estabelecer o parlamentarismo no Brasil? Por que isso? Por que
você tira da caixa um processo que está juntando tra�a de 1993
num momento... Essa eu não fazia ideia, porque... Tensos, e são vários.
Na verdade, o que acontece na prática é que a Corte Constitucional
brasileira tem um cardápio de processos que estão lá parados, nos gabinetes,
esperando para serem julgados e que são colocados em pauta seguindo um
timing político. Então, se o poder executivo começa a atacar o judiciário
ou alguma coisa assim, ele vai lá e misteriosamente julga uma decisão
que aumenta os custos com o funcionalismo público do poder executivo e
quebra as finanças. E assim vai fazendo. A gente está passando por
um momento em que, ao fim e ao cabo, parece que a
tripartição de poderes vai ter que ser repensada. Porque o poder judiciário,
pelo menos no Brasil, e talvez aqui ainda não aconteceu, mas tem
de acontecer, porque parece um fenômeno bastante generalizado, ele está se tornando
cada vez mais politizado porque ele tentou e tenta e se esforça
e não é necessariamente ruim isso, mas às vezes gera resultados ruins,
introduzir valores morais ou valores extrajurídicos
José Maria Pimentel
no processo de interpretação de questões jurídicas? Se eles são extrajurídicos, já
parece que pode ser um ponto de debate, não é? Ou seja,
não serão para toda a gente extrajurídicos, Mas isso é difícil de
ajuizar porque não vejo bem qual seria a alternativa, ou seja, a
lógica do poder que os tribunais têm é ter um sistema com
repartição de poderes em que eles funcionam como contrapesos uns para os
outros. E para o poder judicial funcionar como um contrapeso eficaz, ele
tem que estar protegido. Tem que ter limitações, mas também tem que
estar protegido na medida em que, lá está, não pode ser atacado
pelo poder político. Nós vemos em alguns casos, estávamos a falar há
bocado da Ending of da Polónia, por exemplo, uma das coisas que
eles fizeram na Polónia em Savoeiro foi o governo foi exatamente mexer
nos juízos do Supremo, acho que não dou a enganada, que era
uma coisa que era proibida pela Constituição aparentemente, mas eles fizeram e
ninguém impediu, né?
José Maria Pimentel
Sim, houve várias no âmbito da austeridade, não tinha que ver com
medidas que o governo tomava e o Tribunal Constitucional intervinha dizendo, isto
é inconstitucional, lá está, eles não estavam a avaliar, não estavam a
fazer uma avaliação bottom-up, do nada, daquela medida, estavam a fazer uma
avaliação daquela medida no contexto da Constituição. Exato. Se ela era ou
não era anticonstitucional. E na altura, o governo obviamente não achou piada
nenhuma, e até pode ter sido um impedimento em relação a medidas
que era importante ter tomado, e ter criado outras injustiças por efeito
colateral, porque não estavam, outros valores, se calhar, não estão tão bem
refletidos na Constituição, mas eu acho importante, num país que existe esse
contrapoder. Ou seja, é importante que o governo não possa fazer aquilo
que quer e tu tenhas um contrapoder no país. Claro que depois
o risco é que esse contrapoder deixe de ser apenas um contrapoder,
mas torne um poder em si mesmo, um poder da linha da
frente. Exato. E a questão
Thiago Hansen
é como a gente faz essa diferença. E aí me parece assim,
a função de uma corte concional do Poder Judiciário nesse sentido é
a de... O próprio Antônio Spanha ensina bem nesse sentido. É de
ser um tribunal de veto. Ou seja, se vem uma decisão, uma
lei, uma postura do poder executivo inconstitucional, o tribunal vai lá, declara
sua inconstitucionalidade e reenvia para o parlamento para que seja rediscutido. O
problema é quando ele fala, não, isso é inconstitucional e eu vou
falar o que é o constitucional. Então tem que ser deste jeito.
E aí, esse é o ponto que eu quero voltar. Em alguns
casos, politicamente, aquilo pode ser agradabilíssimo pra você, né? Porque isso serve
pra, por exemplo, uma decisão inexequível que tem no Supremo Tribunal Federal
Brasileiro. Ele declarou, uma decisão famosa, que declarou o estado de coisas
inconstitucionais das prisões brasileiras. Ou seja, basicamente falou que todos os presos
vivem um regime inconstitucional no Brasil, porque é um regime desumano. A
população carcerária brasileira é a terceira do mundo. Bem, vocês já devem
ter assistido Tropa de Elite e coisas e tal,
e sabem
do que eu estou falando. Tá, mas o que se faz então
com isso? É um habeas corpus coletivo para toda a população carcerária
sair do sistema? O que significa isso? Qual é a prática? Ah,
então tem que criar um fundo, esse fundo tem que ser, então,
aplicado exclusivamente para o sistema prisional, para aumento de vagas e assim
por diante. Ok, parece algo racional, você cria uma estrutura de política
pública que obriga o Estado a gastar com aquilo.
Thiago Hansen
Deve ser algo parecido, que é quando o promotor de justiça entra
com uma ação em nome da sociedade para alegar um
problema. Então,
falta vagas, por exemplo, no ensino básico de uma cidade pequena. Ele
entra com uma ação judicial, essa ação civil pública, falando que é
obrigatório a abertura de vagas, porque existe na Constituição a previsão constitucional
do direito à educação universal no Brasil, do ensino básico ao ensino
superior, e aí o juiz eventualmente aceita, defere uma liminar e determina
o congelamento das finanças do poder executivo e a obrigação de que
determinadas finanças sejam gastas para a abertura daquelas novas escolas. Eu sou
contra abrir novas escolas? Claro que não. Eu sou um sujeito centro-esquerda?
Para mim tinha que ter mais escolas de melhor qualidade, professores recebendo
mais. Sou professor, mas repito, pau que bate em Chico, bate em
Francisco. Porque daqui a pouco isso pode servir para outras coisas também.
E esse é o principal receio. E Como é que nós temos,
afim e ao cabo, um controle político do poder judiciário? Como é
que se reenquadra ele dentro desse contexto em que nós vivemos?
Thiago Hansen
Qual é que é o que é que impulsiona esse tipo de
atitude, se quiseres? Eu acho que não há uma razão geral. Você
tem casos de promotores que querem virar políticos, Existem alguns casos, inclusive
alguns que acabaram sendo presos ou estão foragidos da justiça por corrupção,
que eram procuradores da república ou promotores de justiça, assim por diante.
Então você tem também essa figura. Mas eu não quero ser leviano
também e falar que... Porque eu acho que não é necessariamente isso.
A Constituição lhes garante a legitimidade para ajuizar ações civis públicas em
nome da população brasileira. Então existe essa previsão legal. A motivação que
você vai usar pode ser uma motivação baixa, pode ser uma motivação
nobre, você pode estar realmente convicto daquilo. E tem uma outra coisa
que me parece muito evidente no Brasil nos últimos 20 anos, talvez
30 anos, desde a promulgação da Constituição de 88, que é a
nossa atual Constituição, e sobretudo com o amadurecimento a partir da prática,
que é o surgimento de... Surgimento não, mas um aumento gradual da
desconfiança com relação à classe política, e ao mesmo tempo um aumento
gradual da confiança nessas figuras que combatem o crime, promotores de justiça,
etc., sobretudo em virtude do fato de que eles ascendem a esses
cargos através do mérito de aprovação de um concurso público muito complicado,
muito difícil e muito concorrido. Então isso lhes concede um caráter meritocrático.
Não gosto dessa palavra, mas lhes concede um pouco desse caráter que
também não é algo novo no Brasil. Já existiu em outros momentos
da história, que é a chamada ascensão das classes técnicas. É quando...
Fogrucracia estatal, no
fundo. Exato. Quando se começa a construir aquele discurso de que político
é sempre roubalheira, político é sempre bandidagem, é sempre um puxando para
o lado do outro, tentando roubar para o seu canto, e ninguém
pensa o Brasil, ninguém pensa o país, ninguém pensa o Estado, ninguém
pensa os problemas do povo, coitadinho. E aí você tem essas figuras
que não estão vinculadas a nenhum partido, num primeiro ponto, em tese
não têm interesses políticos partidários na política formal parlamentar ou do executivo,
e aí se apresentam como representantes de um liberalismo judiciarista, como se
diz no Brasil, que é o uso da Constituição como a prática
de pautas políticas. Porque, assim como a Constituição portuguesa, que eu conheço
um pouco, ela tem uma série de normas, como diz o próprio
Canotilho, programáticas. São normas que não são execuíveis imediatamente. Direito à educação
é algo que você tem que transformar em outra coisa. Isso é
pauta política, Só que está revestido numa normatividade constitucional. Só que essa
norma constitucional não é como uma norma do código civil que fala
que se você não me pagar no dia correto eu posso cobrar
juros e perdas e danos ou lá o que for. Essa é
uma norma cujo termo, o conteúdo, é muito indeterminado. E para você
densificar esse conteúdo exige um processo interpretativo muito grande que se fundamenta
em última instância em uma certa teoria do direito O problema é
que essa teoria do direito é muitas vezes digerida de forma muito
pouco refletida ou ela é baseada em importações rasas e inconsequentes em
muitos aspectos. Então é curioso, e é sobretudo curioso pelo fato de
eu ser um professor de direito. Mas eu acho que hoje, mais
do que nunca, é fundamental que o direito seja cada vez mais
medíocre. Se amenize, vire algo menor, com menos relevância, porque a função
dele é menor.
Thiago Hansen
E é fundamental que seja menor, porque eu não quero um mundo
em que o direito regule tudo. Eu não quero um mundo em
que haja normatividade para tudo. Por exemplo, Eu lembro uns anos atrás,
e eu acho isso bizarro, mas surgiu. Uns anos atrás, na cidade
de Brasília, foi aprovada uma lei distrital que determinava que era proibido
fumar cigarros em carros em que estivessem grávidas. Ora, qualquer pessoa com
bom senso consegue entender que não se deve fumar ao lado de
uma grávida em um carro fechado. Você precisa de uma lei pra
fazê-lo? Será que os casos são tão explícitos assim? Será que são
tantos os casos? Não me parece. Por que se faz, então, esse
tipo de normatização? E a gente aplaude, porque o conteúdo é bonito,
ninguém é contra esse conteúdo. Mas isso na verdade é cada vez
mais nós cedendo um espaço da nossa soberania, cada vez mais nós
cedendo um espaço da soberania individual, das nossas liberdades, das nossas garantias,
para uma técnica que nós não controlamos. Esse caso do Brasil é
muito curioso, eu não estava tão por dentro
José Maria Pimentel
disso, é engraçado ouvir-te falar sobre isso. Quer dizer, eu não sendo
jurista também não sei se tenho completa capacidade de julgar aquilo que...
Julgar aqui é um verbo um bocado ambíguo, não é? De avaliar
a situação em Portugal, por exemplo, comparativa nesse aspecto, não é? Mas
é interessante essa judicialização do sistema e não é muito fácil também
não é muito fácil ver a saída disso, não é? Porque a
verdade é que, como tu dizias, o poder político está muito desprestigiado,
não é? Portanto, também não é muito fácil encontrar o ponto por
onde corrigir, se quiser, a situação. É o que explica, por
Thiago Hansen
Processo de 80 e poucos e o de Pietro de 90 e
poucos. Por que um erro de tradução? Porque no Brasil, pelo menos
na imprensa brasileira, tanto Giovanni Falcone quanto Antônio de Pietro eram apresentados
como o juiz Giovanni Falcone e o juiz Antônio de Pietro. E
eles nunca foram juízes. Eram o quê, procurador? O que acontece é
que na Itália, eu não sei, talvez aqui em Portugal seja algo
parecido, eu não sei, você ascende a carreira judiciária como magistrado. E
magistrado, hoje, para nós, é imediatamente, pelo menos no Brasil, vinculado com
a figura do juiz. Mas magistrado não é um juiz. Magistrado, no
seu sentido romano, latino, é simplesmente autoridade. Autoridade pública. E na Itália
você tinha o magistrado judicante, que é o juiz, e o magistrato,
com T, del pubblico ministero, que era o que eles eram. Eles
eram equivalentes a procuradores da república. Exatamente. Acusadores, investigadores, e que depois
eram submetidos às provas a um juiz. Que era julgado, sim. E
esse julgado. O juiz da Mãos Limpas, ninguém fala dele. E ainda
bem, em certo sentido, né? Ainda bem. E o juiz da Lava
Jato fala-se muito. É muito estranho isso. No mínimo estranho, porque O
comedimento, o silêncio, a ausência de entrevistas e a aparição pública é
uma boa característica de um juiz. Ser juiz não é fácil.
José Maria Pimentel
Sim, exatamente e aliás é isso o que justifica a ver as
proteções que nós falávamos à pouca é exatamente as pessoas também elas
próprias terem que abdicar para serem juízas por exemplo né ou seja
porque E por isso é que justifica os cargos para a vida,
como falávamos há poucas, e a proteção do salário, por exemplo, e
uma série de coisas, porque alguém para ser juiz também está a
abdicar, também está a abdicar de uma série de escolhas que podia
tomar. Enfim, há um tema que nós começámos a aflorar no início.
E já se perdeu. Não, não, está claramente subjacente à conversa toda,
mas era, mas para voltar à história, eu achava interessante explorar um
bocadinho mais, que é a questão da justiça versus o aquilo que
existia, se calhar até à Revolução Francesa. Ou seja, tu aludiste já
aqui várias vezes na conversa de que... Agora estou a voltar um
bocado ao início, para me fechar para como começamos. Tu aludiste várias
vezes ao facto de, por exemplo, na Roma Antiga, o direito de
não ter uma função de ser justo, mas sim, sobretudo, uma função
de mediador e de resolução de conflitos. E na Idade Média, no
fundo, acabava por existir muito do mesmo. Para mim, como leigo, eu
percebo um bocadinho o que tu queres dizer, embora me pareça intuitivamente
que nem sempre é fácil destrinçar situações em que se aplica justiça
de outro tipo de situações, ou seja, mesmo o direito de mediação,
de resolução de conflitos, está imbuído de noções de justiça necessariamente, ou
seja, se eu... Ou, por exemplo, na Roma Antiga, se tu me
roubasse uma galinha, ou vai, para ser mais simpático, se eu te
roubasse uma galinha, a mediação deste conflito seria sempre através de uma
coisa mútua, ou seja, nunca seria através de uma compensação, por exemplo,
porque havendo uma compensação há implícito uma noção de justiça. Sim, poderia
haver uma compensação. Mas aí que tá, eu acho que
Thiago Hansen
você falou, há implícito uma noção de justiça. A grande questão que
você tem que se colocar é, a justiça que inventou o direito
ou o direito que inventou a justiça? Aqui fica o repórter a
um texto magnífico, que é a segunda dissertação da genealogia da moral
do Nietzsche, em que ele basicamente vai inverter, claro, daquele jeito que
ele sempre faz, polêmico, sarrista e assim por diante, mas ele basicamente
vai dizer o seguinte que conceitos como culpa, conceitos como justiça e
a própria moral elas são filhas do direito e não criadoras do
direito. Ele vai comparar por exemplo a ideia entre o forte e
o fraco, que ele trabalha também, com a relação entre devedor e
credor. É a relação entre devedor e credor, essa falta do pagamento
de uma obrigação originária, Disney, que funda a ideia de justiça e
que permite, então, que um cobre o outro. Essa é uma abordagem.
Então, existe um eterno debate, ao fim e ao cabo, qual é
o papel da justiça no direito. E aí, cada época vai dar
a sua resposta e é possível dizer que cada escola do pensamento
também vai dar a sua resposta. Os romanos, depois que eles se
helenizam e vão lá, invadem a Grécia e resolvem ter aulas particulares
com os gregos, eles vão trazer um pouco a ideia de justiça
para o campo do direito. Vamos falar da ideia do ius naturali,
começa a aparecer um pouco dessas ideias. E com o cristianismo, em
especial, a justiça começa a embrenhar no direito, mas muito dentro da
forma específica da teologia, a partir de um texto de autoridade que
era um pouco misterioso e que estava subjacente ali um valor de
justiça e assim por diante. Então a justiça começa, digamos que, a
entrar no direito devagarzinho e vai se ocupando desse espaço, mas originariamente
o direito, repito, não tinha relação alguma com a justiça. E o
que a modernidade vai, em alguma medida, fazer, sobretudo na figura do
período do jusracionalismo, que vão produzir grandes e grandes pensadores ocidentais. Falando
de Kant, por exemplo, gente desse tamanho. É uma tentativa de derivar
o direito da natureza humana que é apreendida a partir da razão.
Ou seja, quando a gente fala, por exemplo, em direitos humanos, que
é uma estrutura de pensamento que vai surgir justamente no século XVIII,
durante o justracionalismo. Quando se fala em direitos humanos, está se falando,
na verdade, em direito a ser humano. E aí a pergunta que
se subjaza é, quais são os elementos mínimos que garantem que um
ser humano seja um ser
Thiago Hansen
seja, liberdade, ser tratado igual, vida, vivo e propriedade. Ou seja, a
de que ele pode minimamente exercer a sua criatividade em um bem,
em algo, para poder ter plenamente suas capacidades racionais manifestadas. E aí,
nesse contexto, você vai ter essa justiça entrando muito forte na ideia
da subjetividade moderna. E aí a justiça ganha um espaço muito grande
e acaba ocupando um espaço valorativo no direito. Com a Revolução Francesa,
sobretudo no início do século XX, as pessoas começam a ficar céticas
com relação
a...