#62 Thiago Hansen - A História do Direito: dos primórdios da Roma Antiga aos desafios do...

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José Maria Pimentel
Bem-vindos ao 45°. Este episódio tem uma história especial. É um belo exemplo de como as redes sociais podem gerar parcerias improváveis entre pessoas de países diferentes. Mas antes deixem-me apresentar o convidado. É ele, Tiago Hansen, que é autor do podcast brasileiro Salvo o Melhor Juízo e professor de História e Teoria do Direito na Universidade Federal do Paraná. Conheci o Tiago há uns tempos, através do Twitter, quando ele teve a simpatia de partilhar o 45° com os seus ouvintes. Para mim começou por ser uma surpresa descobrir que há quem me ouça do outro lado do Atlântico e tive uma segunda surpresa quando descobri que ele próprio é podcaster e autor de um podcast bem conhecido. O SMJ, como é mais conhecido, é um podcast supostamente sobre direito mas que acaba por abordar uma série de temas diferentes, da história à política e com muito do próprio direito, obviamente. Vale bem a pena ouvir. São conversas do mais interessante que há e com um bom humor que só me faz ter inveja. Entretanto, resolvi convidar o Tiago para vir ao 45° e descobri que ele viria a Portugal num futuro próximo. Mensagem para cá, mensagem para lá, terminámos a gravar esta ótima conversa de quase duas horas. Os temas de que falámos foram, como se adivinha, mais que muitos. Só para terem uma ideia, começámos a conversa a falar do direito na Roma Antiga e acabámos, ou quase, a falar sobre o estado atual do sistema judicial no Brasil. Mas o mais fácil é fazer, como habitual, o índice desta conversa. Começámos por discutir a evolução do direito ao longo da história, desde Roma, lá está, passando pela Europa medieval até à formação do Estado moderno. Isto levou-nos a discutir temas como o verdadeiro alcance do absolutismo ou a diferença entre o sistema jurídico na tradição da Europa continental e a chamada Common Law de tradição inglesa. E assim, quase sem dar conta, saímos do passado para abordar o presente, mais especificamente o presente do sistema judicial brasileiro. Foi muito elucidativo ouvir o alerta do Tiago, que é atenção ele próprio jurista, em relação aos perigos do excesso de protagonismo do poder judicial, sobretudo tendo em conta que gravamos a conversa dias antes de saírem as notícias recentes, que dão conta de que o juiz Sérgio Moro, figura central na acusação a Lula da Silva e hoje Ministro da Justiça, terá, entre outras ações muito discutíveis, a ser em verdade, colaborado com o procurador do Ministério Público, à acusação no processo que ele julgava, algo que é obviamente proibido por lei. Isto são notícias dos últimos dias, atenção. A atualidade, portanto, no episódio que era suposto, lembro, ser sobre História do Direito. Feito este detour ao presente, regressamos ao tema História e Teoria do Direito para falar da relação entre direito e justiça. Isto pode parecer-nos um não tema, mas a verdade é que há uma longa história de discussão filosófica sobre a relação entre estes dois conceitos. O debate clássico é entre duas visões antagónicas, a do chamado direito natural e a do positivismo jurídico. E a verdade é que várias vezes estas visões contrastantes vieram à baila durante o episódio. Explicando rapidamente, os proponentes do direito natural reclamam que existem leis universais naturais, que o Estado, e todos nós, tem o dever de respeitar. O que não é tão fácil responder, claro, é à pergunta o que é natural? Para alguns é a palavra de Deus, sobretudo no passado, para outros são os direitos básicos de todos os seres humanos. O problema é que alguém tem que definir esses direitos básicos e, portanto, esta posição adianta de pouco, se não tivermos em conta os agentes. Já a posição contrária à do direito positivista está perfeitamente confortável com o facto de ser a maioria da população a definir o que é lei e, em última análise, o Estado ou o Governo desse país. Mas o problema desta visão é claro que, em teoria, se pode perfeitamente tolerar uma ditadura da maioria ou, pior, um Estado autoritário. Enquanto não jurista, tenho que dizer que este me parece um debate um pouco exotérico, demasiado abstrato e, sobretudo, pouco útil na prática, uma vez que a realidade está inevitavelmente afastada de qualquer um destes dois modelos e depende sobretudo de instituições de qualidade e de julgamento humano. Mas avaliem por vocês próprios. Terminamos esta conversa a falar sobre podcasts, sobre Portugal e o Brasil e o potencial deste meio para precisamente aproximar pessoas dos dois países, como nós os dois. Espero que gostem. Tiago, bem-vindo ao podcast. Muito obrigado. O meu primeiro convidado transatlântico. Olha aí, gostei de ver. Ou pelo menos em pessoa. Ora bem, então eu vou atacar e já vamos ver onde é que isto nos leva. Por acaso eu apanhei uma frase de tua gira, da primeira vez que eu fiz o trabalho de casa. Oxi, fiquei
Thiago Hansen
até envergonhado agora.
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Apanhei uma frase porque identifiquei-me com ela, que era, tu dizes algo do género, a função da história não é entender o passado pelo passado, ou não é estudar o passado pelo passado, é estudá-lo para perceber o presente em contraste com o passado. Sim. E eu identifico-me muito com essa visão, ou seja, acho que obviamente que há um lado da história de um fim em si mesmo, tu vais... Romances históricos, por exemplo, mostram que há um interesse pela história como um fim em si mesmo, porque é interessante a pessoa perceber como é que foram outros tempos, mas é sobretudo para perceber o presente. E a história do direito, que era um campo com que eu obviamente não estava muito familiarizado, é giro nesse aspecto porque permite estudar as instituições do direito agora à luz daquilo que foram antes e não é nada óbvio, pronto, não é nada evidente para um leigo como é que essas como é que as instituições foram antigamente. Exato. Que tem muita piada. Dona, se calhar uma pergunta gira para começarmos é, quando a pessoa fala direito, ou seja, usar a palavra direito, há algo que seja transversal ao direito ao longo da história? Também.
Thiago Hansen
Acho que eu queria primeiro voltar ao comentário que você fez sobre... Aliás, já está aí o brasileiro, né? Você fez sobre a questão da história, né? Veja, essa é uma questão que me aparece muito, sobretudo porque eu sou professor universitário nos primeiros anos, nos primeiros ciclos. Então são os caloiros, e acabaram de sair do ensino básico, ainda estão um pouco tentando entender a função daquelas disciplinas, sobretudo no direito em que, nos primeiros ciclos, as disciplinas são muito teóricas. Então fica-se naquela vontade de e agora, quando é que eu vou aprender a parte prática? Quando é que eu vou aprender direito fiscal para ficar rico? Entre outras questões. E aí eu sempre faço os meus alunos me perguntarem uma pergunta que muitas vezes pode soar desrespeitosa para aqueles professores mais formais, que é a pergunta para que serve a história, para que serve isso que você está ensinando, para que serve teoria do direito, que é a disciplina que eu ministro também. E acho que essa é uma pergunta muito importante ser feita, sobretudo porque se nós pensarmos qual é a função dessa pergunta, ou pra que serve alguma coisa, o verbo servir vem do latim seru, que é a palavra latina pra escravo. Então é no mínimo curioso quando você fala, na verdade, para que serve a história, você está perguntando a história escrava de quê? Qual é a função que ela tem que cumprir em um plano maior, que normalmente é vinculado a uma lógica ou econômica, ou política imediata, e assim por diante. E aí eu falo com a maior tranquilidade e leveza de coração para que a filosofia, a história e a teoria do direito não servem a nada. Não que não serve para nada, mas não serve a nada, porque eu acho que a grande função dessas áreas do conhecimento é fazer aquilo que você comentava. É dar um passo atrás ou um passo acima na loucura do cotidiano que nos faz repetir atos às vezes pouco pensados para que nós consigamos enfim avaliar o que nós estamos fazendo e no caso da história por exemplo olhar para o passado para no contraste com aquelas sociedades tão diferentes e estranhas para nós, nós vermos quem nós somos e quais são os nossos exageros, quais são os nossos pontos que nós mais nos apertamos e comunicamos e também uma possibilidade de criar novos futuros. Então a história, para mim, é uma área de conhecimento que versa muito mais sobre possibilidades de futuro e interpretação do presente através do passado do que um culto ao passado em si. Poderia ser um romantismo ou algo do tipo. Agora com relação ao direito, veja bem. Essa é uma discussão bastante complicada, porque você vai encontrar opiniões de filósofos do direito, sobretudo aqueles que são mais vinculados a um movimento muito clássico chamado de justnaturalismo, ou direito natural, que vai tentar entender que o direito na verdade é uma continuidade estável em toda a humanidade e normalmente isso se expressa numa frase latina muito famosa para os estudantes de direito logo no começo do curso, que é ubi societas ibi us, se há sociedade, há direito. Eu não acho que é bem por aí, eu discordo bastante desse ponto de vista. Eu acho que o direito é um produto cultural, político, ocidental, muito preciso, que surgiu de fato em Roma e que inclusive surgiu com motivações muito mais baixas do que nós imaginamos, que seja uma nobreza de um povo intelectualmente superior ou algo do tipo. Na verdade, eu não vejo bem por isso. E por isso que eu acredito que, na verdade, o direito não é algo que sempre existiu, não é um valor universal, não é algo que é estável em toda a história mundial. E digo mais, eu acho que esse é o ponto mais interessante. Pode ser que o direito deixe de existir também, que é algo que é pouco refletido.
José Maria Pimentel
Mas o que é que seria deixar de existir? Seria deixar de ter instituições jurídicas ou deixar de ter instituições judiciais ou deixar de... Ou seja, Quando dizem deixar de existir o direito, o direito é o quê? O que é o
Thiago Hansen
direito que você está falando? Exatamente, qual é o seu direito? Essa é a pergunta mais interessante. Veja bem, o direito, então, pode ser apreendido de muitas formas diferentes. Quando você fala, por exemplo, a frase, eu estudo direito, o direito aqui é um substantivo que se refere a uma área de conhecimento específica. Quando você fala que está no direito português que não se pode fazer A ou B, você não está se referindo agora à área científica, mas você está se referindo ao ordenamento jurídico, ao conjunto de normas que reagem à sociedade portuguesa. Quando você fala, por exemplo, que você está a entrar em um prédio público e o segurança impede a sua entrada, você fala, não, mas é o meu direito entrar nesse prédio, porque eu sou cidadão, pago meus impostos. Nesse caso, você não está se referindo nem necessariamente à ciência do direito, nem necessariamente às leis específicas que possam estar, mas você está se referindo a um poder, a uma garantia cidadã que você exerce. Então o direito tem de fato várias abordagens. A questão é saber o que se fala quando se fala em direito. O direito, quando eu falo que surge em Roma, ele surge em Roma por quê? Porque foram os romanos que de fato conseguiram, ainda com muita dificuldade e com uma história muito complexa que se desenrola em torno de 1500 anos, não se trata de uma sociedade simplista ou que pode ser reduzida a uma fórmula geral, mas eles conseguiram criar uma técnica de resolução de conflitos que detinha uma tentativa ou uma proposta de autonomia frente à política, à economia e à religião. E isso só os romanos fizeram. Os gregos remetiam às suas técnicas de resolução de conflitos à política, claramente. Se você pegar outros povos, remetia-se à religiosidade, a características divinas e assim por diante. Os romanos, sobretudo a partir do que é chamado período clássico, que vai do século II a.C. Ao segundo d.C., eles vão se esforçar para construir uma área do saber muito diferente e autônoma frente a essas outras áreas. Então quando se fala que o direito pode deixar de existir, é nesse sentido. Pode ser que em algum momento nós vamos começar a resolver os nossos conflitos, não mais nos remetendo a um cultivo de um argumento racional específico que busca encontrar equilíbrio, segurança e previsibilidade, e possamos, enfim, cair no colo de uma perspectiva hiper religiosa ou um olhar muito contingente da política ou uma certa aspas ditadura da economia. Então o direito nesse sentido ele tem uma pretensão de autonomia. O que não se quer dizer, também é bom que se deixe claro isso, é que o direito é completamente autônomo a essas áreas do saber. Não, o direito sofre inflexões da economia, da política, da religião, da filosofia, e o direito influencia essas áreas também. Se você vai fazer negócios, vai fazer um investimento em um país, você tem que conhecer minimamente as regras do jogo daquele país, ou seja, o direito já está influenciando aí também essa estrutura. Então, acho que é mais ou menos nesse caminho. Então, o direito, quando digo isso, é porque eu acredito que os juristas, talvez cá em Portugal isso seja muito claro também, eles gostam muito de hipervalorizar a sua própria área, como se fosse... O jurista gosta do sacerdócio, eles usam roupas bonitas, o fato, a gravata, ou então aquelas becas, né? E assim, pra justamente poder se afastar e meio que conter um saber próprio que é reservado
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a um círculo secreto
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de uma autoridade. O Pascal, o Blaise Pascal, tem uma frase magnífica nos textos dele, que ele fala assim, falando sobre os médicos e os juristas. Ele fala assim, tanto os médicos quanto os juristas precisam se esconder nos seus palácios de grandes colunas, usar as suas roupas frondosas, o seu capelo, a sua borla e assim por diante, porque se eles tivessem verdadeiramente um saber, eles não precisariam de nada disso. Mas é esse teatro que faz com que venha essa autoridade da boca daquele sujeito. E aqui em Portugal mesmo, existia um livro no século XVII, se não me engano, que chamava O Bom Jurista, ou algo mais ou menos nesse sentido, em que se discutia muito, por exemplo, quais eram as características físicas de um bom jurista. O bom jurista tinha que ter dedos proporcionais, não poderia ter um nariz muito alongado, eu jamais seria um bom jurista naquela época. As orelhas tinham que ser pequenas, a cabeça bem redondinha. Havia, inclusive, essa discussão porque acreditava-se que o direito tinha que ser transmitido por alguém que correspondesse a uma certa harmonia da ordem natural das coisas. Porque também se tinha essa compreensão, sobretudo nos séculos 17, havia muito disso, uma certa compreensão de que o direito era um processo de interpretação do funcionamento da natureza, que ao fim e ao cabo era uma dádiva de Deus e que correspondia à forma mais correta de se direcionar no sentido da salvação.
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Isso que tu falas, esse lado da autoridade, é engraçado porque já pensei nisso várias vezes em relação ao direito, direito aqui no sentido do lado, ou seja, incluindo advogados, juízes, as próprias instituições que, historicamente e mesmo hoje em dia, claramente fazem uso de maneiras de remeter para a autoridade, seja através da maneira como se veste, seja pela questão, por exemplo, de haver quem interpreta as leis, seja haver quem interpreta essas leis no sentido natural, seja mesmo hoje em dia haver quem interpreta, quem tem que fazer a hermenêutica das leis escritas e isso é muito parecido com a religião e eu pergunto-me, aliás, historicamente e mesmo se calhar hoje em dia, se isso também não era um mecanismo para... Se o direito também não surgiu, como de resto tudo indica que a religião surgiu, para unir grupos quando os grupos se tornam muito grandes. Ou seja, tu numa tribo de caçadores-recoletores, a religião que tu vês, por exemplo, nessas tribos é muito diferente da religião, qualquer religião de grandes aglomerados. O tipo de Deus é muito diferente. Por exemplo, está menos preocupado com restrições de comportamento ou com boas ações. É muito mais um um Deus que prega partidas, por exemplo, e faz coisas desse género. Porque o Deus, este Deus moralista, justifica-se quando tu começas a ter grupos muitíssimo maiores e precisas ter uma união naqueles grupos que já ultrapassam aquele número de 250, portanto as pessoas já não se conhecem. Imagina-te, sei lá, algures na Europa, não é? Ou, por exemplo, em Portugal, não é? Tu viajavas para o Norte de Portugal e tinhas que ter qualquer coisa em comum para confiar na outra pessoa, porque não a conhecias de vista, e a religião cumpre um bocado esse papel. Claro, dá identidade. Exatamente. E o direito, talvez até mais historicamente do que agora, pergunto-me se também não cumpriria um bocadinho esse papel.
Thiago Hansen
Muito. Veja bem, Roma, se nós pegarmos o auge da cidade de Roma, no século I d.C., chegou a ter 1, 5 milhão de habitantes. Isso é fascinante, né? Você para pensar que aquela cidade, há quase 2 mil anos atrás, ou um pouquinho mais de 2 mil anos atrás, tinha 1, 5 milhão de habitantes, e que ela só foi superada em termos populacionais por Londres no século XIX, ou seja, ela passou na frente por 1.900 anos. Sim, é incrível. É incrível. E ao mesmo tempo se trata de uma sociedade que não tinha uma religião moralista, como você disse. Sim, exatamente. Essas religiões moralistas que você se refere são as chamadas religiões abrahâmicas, em que basicamente Deus vem à Terra e revela aos homens o caminho correto, o caminho errado e fala, vá para o correto que você terá a vida eterna, pós-mortem,
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evite o caminho errado. Mas agora, desculpa só interromper-te, não é exclusivo das abrâmicas, ou seja, mesmo no extremo oriente o budismo também é uma religião, tem características muito diferentes, mas também é uma religião moralista e mesmo o confucionismo, que não é bem uma religião, também tem essas características. Mas é verdade que em Roma e na Grécia não era bem assim?
Thiago Hansen
Nem um pouco, Porque veja, o surgimento do direito em Roma, aqui há um detalhe importante. Os romanos não tinham uma palavra para direito e isso é chocante. Eles inventaram um negócio, mas eles não tinham uma palavra para isso. A palavra que eles usavam, que vai depois, posteriormente, dar origem a direito, é a palavra ius. Há um debate filológico para saber de onde veio essa palavra, e hoje mais ou menos se tem uma compreensão de que ele veio provavelmente do antigo farce do império persa da palavra IAUS que significava ritual. Então o direito surge em Roma como um ritual. Como é que funcionava, José? Imagine assim, o direito, o ius, surge naquela religiosidade naturalista romana em que basicamente você fazia apostas a todo momento com os deuses. Então, por exemplo, se você era um agricultor e queria ter garantia, segurança e previsibilidade, que são dois valores importantes para o direito depois, de que a sua colheita será frutífera, então você ia lá e sacrificava um animal para o seu Deus da fertilidade, ou fazia uma festa, ou fazia uma imagem, coisa e tal, para agradar os deuses e garantir assim que você teria uma previsibilidade das suas ações para o ano seguinte. Quando você realizava esse tipo de ritual entre seres humanos e deuses, os romanos chamavam isso de FAS. Agora, em algumas situações, você precisa também criar segurança e previsibilidade entre seres humanos. Então, imaginem, por exemplo, dois generais ou dois paterfamílias romanos, que naquela altura basicamente eram generais, que detinham escravos, que formavam milícias e assim por diante. E você tinha um outro general vizinho e vocês disputavam a margem de um rio, por exemplo. Em algumas situações, a guerra simplesmente não compensa, porque às vezes os exércitos estão muito parecidos em termos de tamanho e a tendência é que aquilo vire uma carnificina, enfraqueça os dois lados e um terceiro vem e domine a todos. Então como é que você dá um jeito nesse tipo de situação? Você chegava pra esse outro general, você sendo um deles, se reunia junto com um sacerdote. Esse sacerdote específico, que era um religioso, que tinha o cargo de pontífice. Aí, é curioso porque as similaridades, se vê que a Igreja Católica roubou muita coisa
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dos romanos.
Thiago Hansen
Você se reunia com um pontífice, que é um artífice de pontes, ou seja, um sujeito que cria uma ponte entre uma pessoa e outra, ou seja, cria uma relação jurídica, uma obrigação
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entre duas pessoas. É um mediador.
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Esse sujeito, esse sacerdote, Ele tinha a capacidade dita de conhecer as vontades e aquilo que é bom para os deuses. Então ele fazia uma leitura da natureza, pra nós um tanto quanto bizarra. Leia-se. Sabe quando nós vemos revoadas de passarinhos, muitos passarinhos andando juntos, que formam aquelas formas esquisitas que aparecem às vezes nos vídeos do Facebook, eles acreditavam que aquilo eram como canetas que estavam desenhando no céu. Então acreditavam que aquilo eram palavras que se formavam e que somente os sacerdotes interpretavam. Ou então eles pegavam carvão e colocavam esse carvão na água, e aí viam como ele se locomovia, como se mexia e tiravam alguma informação dali. Ou então faziam um procedimento ainda mais estranho, que é abrir um animal vivo, a barriga dele, deixar os órgãos caírem no chão e viam como os órgãos se comportavam e acreditavam em extrair alguma informação dali. E aí esses sacerdotes chegavam depois de fazer esses procedimentos e falavam, olha, veja bem, pra vocês dois ficarem em paz, vocês dois generais, vocês têm que fazer essas seguintes tarefas. Com o passar do tempo, começa-se a reparar que algumas tarefas funcionavam e outras não funcionavam. Às vezes o sacerdote falava que iam ter que agradar os deuses, fazer imagens, construir templos, e a rivalidade se mantinha. Mas em compensação, algumas tarefas, como por exemplo, o teu filho primogênito tem que casar com a filha primogênita dele e vice-versa, gerava uma pacificação imediata, porque cada família tinha um refém a seu favor. Basicamente isso. Esse tipo de fórmula absolutamente pragmática, e Vejam só, isso é fundamental, com nenhuma vinculação com a justiça, nenhuma vinculação com a justiça, porque você podia fazer um yus, um ritual para a pacificação entre generais, cujo objetivo final era matar pessoas, ou ser absolutamente injusto, sob o nosso ponto de vista. Esse tipo de ritual então começou a se autonomizar, digamos assim, e alguns sacerdotes com o passar do tempo, posso contar essa história com mais detalhes mais à frente, começam a reparar que algumas desses rituais não é que eles funcionavam bem porque os deuses assim queriam, mas eles funcionavam bem porque eles eram racionais, porque fazia sentido, porque havia uma estrutura oculta ali por trás que garantia e criava como que um tabuleiro com regras em que você sabia onde você podia se locomover, quais peças você podia mexer e, sobretudo, quais peças o seu opositor poderia mexer também. Então, quando você cria essa estabilidade mínima, essa previsibilidade, você tende a arrefecer as relações tensas de uma sociedade. Isso que os romanos fizeram. Os gregos, em compensação, juntavam as pessoas numa praça pública e faziam debates homéricos. E aqueles que venciam o debate, às vezes não tanto pela sua qualidade racional, mas pela sua retórica, sua capacidade de tocar o sentimento alheio, eram considerados os justos, os vitoriosos. Os romanos já começam a separar essa questão. Então o ius surge em Roma mais ou menos nesse sentido. Ele tinha um formato de aposta, um formato desvinculado da justiça, portanto, muito mais próximo do jogo, da religiosidade. Até a questão do ritual. Do ritual, exatamente. E isso se manifesta muito curiosamente. Por exemplo, se nós por acaso nos encontrarmos na rua outro dia desses aí e eu apenas acenar para você, ô José, tá bem? Tá bem? Vamos tomar um café qualquer dia? Vamos, vamos. E continuarmos os nossos caminhos, esse vamos tomar um café qualquer dia que eu falei, fica subentendido entre nós dois que é se der Deus, se não der, faz mal. Foi só uma forma educada inclusive se referir. Agora se eu te encontro na mesma situação, aperto as suas mãos, olhos nos seus olhos e falo assim, ô José, Precisamos tomar um café em qualquer dia desses. O simples formato ritualístico, a mensagem é a mesma, mas o simples formato ritualístico cria uma sensação de obrigação em ti que se você furar, parece que há um problema. Essa sensação de falta, essa sensação de obrigação oculta é que os romanos começaram a tentar entender o que era isso. E que isso não era necessariamente religioso, isso não necessariamente provinha dos deuses, nem da política, nem da economia, mas estava muito mais próximo da honra, muito mais próximo da sociabilidade e da estabilidade social e por isso eventualmente poderia ter características divinas, mas era uma espécie de religião civil.
José Maria Pimentel
Sim, exatamente. E esse é o grande ponto. Isso é muito interessante até por causa desse lado do ritual, tem para lógico a religião e o ser humano vive muito disso e isso permite, por exemplo, tu ritualizares uma coisa permite dar-lhe um estatuto, ao mesmo tempo dar-lhe um estatuto maior, dares-lhe mais peso e torna-lo previsível. Por exemplo, eu acho também um tema interessante, uma questão interessante do direito é que o direito também vive muito da previsibilidade. Mesmo hoje em dia, ou seja, tu dizes, a pena de prisão por assalto é justa? Eu não sei se é, se calhar devia ser mais, se calhar devia ser menos, mas o facto de ser previsível permite que tu hajas sabendo qual vai ser a consequência. Exato. E que toda a gente haja sabendo qual vai ser a consequência, que no fundo era o que acontecia nesse caso. Exato. E havia aí quase, esse é um exemplo giro, porque havia quase uma espécie de... Havia quase uma seleção natural daquilo que funcionava melhor. E
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é fundamental entender também que nesse caso o direito está vinculado com a história, porque a previsibilidade se dava com referência ao que já tinha acontecido no passado, então era fundamental que os juristas romanos, por exemplo, conhecessem o que foi o passado para entender aonde se errou e onde se acertou, separar o joio do trigo e aí ir construindo uma ideia de previsibilidade para o futuro cuja referência é o passado.
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E a outra coisa gira que é, Tu saberes não é necessariamente relevante para a eficácia do direito. Lá está, se ele é justo ou não. É relevante, obviamente, para a justeza do direito, mas não para a eficácia, porque, por exemplo, nesse caso, e havia uma seleção daquilo que parecia resultar melhor, as pessoas confiavam porque aparentemente era uma espécie de comunicação dos deuses e ele não funcionava com tanta eficácia como, ou não funcionaria necessariamente com a mesma eficácia do que o direito atual em que tu confias basicamente em quem fez a lei. Sim. Tu enquanto sociedade confias em quem produziu aquela lei. E tens uma visão diferente, não é? Não achas que aquela lei veio de Deus, mas fosses crente, por exemplo, no que diz respeito a outro tipo de leis, outro tipo de conduta, já acharás que veio de Deus. E nessa altura, aquilo que eles acreditavam não era real, mas o facto de todos partilharem aquela crença fazia com que aquilo funcionasse, fosse
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eficaz. Os romanos falavam que eles que inauguraram a medida o debate sobre o porquê que nós respeitamos o direito. Essa é uma pergunta se você fizer hoje para qualquer estudante de direito no primeiro ano, a maioria maciça vai responder que se respeita o direito porque tem medo do resultado de não se respeitá-lo. Ou seja, há um medo da pena. Isso os romanos também reconheciam, que em algumas situações se respeitava o direito com receio, mas não só por isso. A esse domínio específico do direito estar aproximado da ideia de violência, ou seja, o direito é a violência autorizada pelo Estado ou pela força política. Em alemão isso fica muito claro que se usa a expressão Gewalt, que ao mesmo tempo significa violência e poder autorizado pelo Estado. Ao lado disso, que os romanos chamavam de potestas, existia uma outra dimensão do direito que eles chamavam de autorectas, que é a mesma sensação do por que você respeita o seu pai. Eu ia dar esse exemplo, que engraçado. Eventualmente você é muito mais forte que o seu pai, eventualmente é mais rico, mais poderoso, mas o seu pai pode ser um senhor doente numa cadeira de rodas e ele fala, agora você sente nesse sofá porque você vai escutar e você, como se diz no Brasil, coloca o rabinho entre as
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pernas, senta quietinho
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e escuta ali. Por quê? Da onde vem essa força? Essa força que os romanos chamavam de autorectas, que vem do prestígio, que vem da honra. E isso é muito forte naquele contexto, porque, por exemplo, se você tivesse um problema jurídico em Roma, você escolhia o juiz. Isso é algo impensável hoje. Mas se eu tinha um problema contigo, Por exemplo, nós íamos primeiro até um pretor, esse pretor reduzia a termo o nosso conflito, colocava ele dentro de uma fórmula jurídica genérica, e depois a gente levava essa fórmula para um iudex. Esse juiz era escolhido em comum acordo entre nós, como sujeito em que nós reconhecemos a honra e que nós ficaríamos envergonhados de desrespeitar a decisão que ele desse, mesmo que fosse contra nós. Ou seja, a lógica romana era muito mais próxima da arbitragem, da mediação, do que da criação de um direito que se impõe através da soberania ou que se impõe daquilo que o Max Weber chama de monopólio da violência legítima.
José Maria Pimentel
Até porque não era centralizado.
Thiago Hansen
Até porque, eu sei que isso é meio polêmico o que eu vou falar, mas Sob um ponto de vista da história do direito, é muito difícil se falar em Estado Romano. É claro, você tem ali uma burocracia, você possui ali uma organização qualquer, mas é muito longe do que nós entendemos hoje como Estado Moderno. Como uma pessoa jurídica abstrata, uma ficção que detém a soberania e o seu poder provém de uma certa, aspas, vontade popular que não é palpável e assim por diante. Isso não existia em Roma, né?
José Maria Pimentel
Eu acho que aliás uma das coisas de... Eu já te ouvi dizer isso nos podcasts e acho que é uma coisa que pode passar ao lado das pessoas, ou é fácil nós ignorarmos, porque, por um lado, o Estado hoje em dia é um Estado mais democrático, ou seja, que garanta uma série de liberdades que não garantia no passado, se quiseres. Mas, por outro lado, enquanto Estado, ou seja, enquanto corpo, é muito maior do que alguma vez foi. Ou seja, o Estado em qualquer sociedade contemporânea tem um peso e tem um alcance que jamais teve mesmo nos reinos mais absolutistas e menos nos reinos mais tirânicos, por exemplo. Até por uma questão operacional, não é? O Estado Romano teria muitas dificuldades em chegar a todas as províncias, em ter um direito centralizado porque não conseguia controlar toda a distância.
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Um grande historiador espanhol, vizinho, Caetano José Fontana, bem conhecido, tem uma frase curiosa que diz que o poder do Luís XIV, o rei Sol, acabava na porta da sua sala. Porque dali em diante, a posição do rei, o exemplo maior do absolutismo europeu, exigia ou dependia de uma sequência de funcionários, de acordos, de possibilidades para que aquela ordem fosse cumprida na ponta. Hoje, com a formação do Estado moderno, mais complexo que nós temos a partir da Revolução Francesa, o Estado liberal em alguma medida, a ideia é outra. Agora não se tem mais essa dimensão porque se tenta, na verdade, burocratizar bastante e minimizar a necessidade das relações sociais para cumprimento das decisões. Não que não aconteça também. É
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que em certo sentido é um paradoxo, ou seja, o Estado é mais, por um lado é mais, quer dizer, garante mais liberdades, ou é menos opressor, se tu quiseres, ou pelo menos no papel é menos opressor, mas por outro lado tem um alcance e um poder de fogo incomparavelmente maior do que tinha no tempo de Luís XIV, por exemplo. Tu hoje tens uma série de liberdades que não havia antigamente, mas se o Estado quiser multar ou verificar se tu fazes qualquer coisa para perceber se tens que ser multado ou não, tem uma capacidade de ver se tu, sei lá, fazes um fogo no teu jardim, que é ilegal. Antigamente era impossível, era virtualmente impossível fazê-lo à distância. Hoje em dia o Estado, se quiser, sabe isso. E, portanto, consegue, tem um poder de fogo muito maior para te... Poder de fogo aqui, por analogia, tem uma capacidade muito maior de te de te controlar, se o quiser fazer,
Thiago Hansen
muito mais do que acontecia antigamente. É curioso isso, porque, na verdade, o que a gente consegue identificar é um processo de transição daquilo que se denomina como pluralismo jurídico, que é algo que vai existir aqui em Portugal, formalmente falando, até Pombal, quando surge a Lei da Boa Razão, a reforma dos estatutos da Universidade de Coimbra, e na França, pelo menos até a Revolução Francesa, em que você tem uma sociedade, ou melhor dizendo, você tem um direito que provém de muitas fontes diferentes. Hoje, quando nós pensamos em direito, imediatamente nos vem à cabeça a lei, a figura da lei. Ou seja, esse imperativo breve, normalmente não, sempre produzido pelo Estado, via parlamento, ou no caso de uma ditadura, via executivo, não interessa a origem específica dele, se é democrático ou não, mas essa compreensão de que é um texto breve, normalmente em forma imperativa, que aplica faça isso, não faça isso, é permitido isso, é proibido aquilo. Essa figura específica, lei, como nós entendemos hoje, é uma invenção do final do século 18 e início do século 19. Se você pegar as ordenações, por exemplo, daqui de Portugal, as afonsinas, manuelinas ou filipinas, se você ler aquele documento como se fosse uma lei, você perde o sentido do documento. Porque, na verdade, o que era aquilo era uma compilação de costumes que já há muito tempo vinham sendo cultivados na sociedade ibérica e que em alguma medida simplesmente foram positivados, escritos, para que fiquem mais claros e evitem possíveis contornos ou desvios. Mas isso não significava também que as ordenações eram aplicadas. Exato. Porque não eram. Na prática, não eram. Se você pegar o livro V das ordenações aqui de Portugal, era conhecido na Europa da época como o livro terrível, porque se você lê aquele livro quinto, que é a parte criminal das ordenações, qualquer coisa era pena de morte. Mexericos era resolvido com chibatada em praça pública. Se você cortasse as árvores à beira do Tégio, você podia ser degredado. Ou seja, era um livro absolutamente violento, de um ponto de vista humanista. Mas ele não era cumprido. Por que ele não era cumprido? Porque aquela era apenas uma das fontes do direito. Você tinha que saber sopesar aquilo com também critérios teológicos de justiça, você tinha que saber sopesar aquilo também com algumas discussões com relação ao corporativismo da época, ou seja, quem é o sujeito que está praticando aquele fato? É um membro do clero? É um comerciante? É um camponês? É um membro da nobreza? Porque pra cada um desses indivíduos lhe cabia uma específica resposta o que vai acontecer é que com o processo de modernização, sobretudo em Portugal a partir do Pombal e na França com a revolução e assim em diante, você vai ter uma espécie de achatamento e destruição dessa sociedade corporativista de estamentos e a criação de uma sociedade civil em que, teoricamente, deve-se aplicar uma única lei a todas as pessoas. E que essa única lei, que de agora deve ser vista como a fonte imediata, específica, superior e hierarquicamente perante todas as outras, o costume, a doutrina, a teologia, a moral e assim por diante, essa única lei possui uma origem mítica. Que origem mítica é essa? Ou é o caso da vontade popular, no caso das democracias modernas, ou é a ideia de razão de Estado, no caso das não necessariamente democracias, como era o caso português aqui na passagem do 18 para o 19. Então você tem esse novo quadro que alguns autores, inclusive, olha que curioso, vão chamar esse período de absolutismo jurídico, que é o momento em que o Estado puxa para si a competência de ser o único legitimado a falar o que
José Maria Pimentel
é o direito. Isso é ultra interessante e houve uma coisa que... Há uma coisa que me ocorreu em relação a isso, que é um bocadinho... Se calhar é um bocadinho politicamente incorreto, mas eu acho que é capaz de ser verdade. Historicamente, que é... Se tu vires esse caminho que foi traçado, parece que foi preciso primeiro obter esse poder absoluto, esse absolutismo jurídico, ou seja, centralizar para depois criar sociedades pluralistas e democráticas. Exato. Que é um bocadinho, parece um contrassenso. O liberalismo
Thiago Hansen
nasce estatista. Sim. E isso é um ponto fundamental. Hoje se crê, se fez essa crença de que o liberalismo é contra o Estado. E não, ele surge para inventar o Estado. Porque antes você não tem exatamente um Estado, porque você tem várias ordens concorrentes. E aí você não tem exatamente como saber de onde vai vir a pancada. Então o liberalismo cria o Estado para poder isolar uma variável e falar é dali que vem todo o poder e ao mesmo tempo ele cria o inimigo. E aí você vai ter todo o século XIX e o século XX um processo de limitação desse Estado. Mas esse é um ponto fundamental. É uma invenção do pensamento liberal a articulação de um estado e com essa articulação do estado a concepção de que toda decisão que provém desse estado deve estar legitimada em última instância ou na vontade popular ou na razão de Estado a depender do regime de governo. É engraçado porque
José Maria Pimentel
tu tiveste primeiro que dar um poder ao Estado que ele nunca tinha tido antes. Deste um poder muito maior ao Estado inicialmente e centralizaste esse poder, para depois o poder, lá está, liberalizar, distribuir e, em alguns casos, como é que eu dizer, dar o poder de escolha ao povo que não acontecia até ali. Mas, ao mesmo tempo, eu acho que isso para um contemporâneo é difícil de perceber, não é? Que o Estado medieval, que nos parece muitas vezes tão opressor, tinha um peso muito mais pequeno, quer dizer, e o próprio rei tinha um peso... Mas uma coisa em relação à qual eu fiquei curioso sobre isso é se, se nesta transição de um modelo para o outro, se perdeu alguma coisa de boa, ou seja, perdeu-se alguma coisa de bom na transição de um modelo para o outro, na transição de um modelo antigo em que tu tinhas um pluralismo jurídico e até um pluralismo político, em certo sentido. Ou seja, tinhas o rei, tinhas os nobres, tinhas... Obviamente que isso depois... As corporações. O absolutismo acabou por dar mais poder ao rei e retirá-lo aos nobres, mas continuavas a ter a igreja, por exemplo, continuavas a ter as cidades, os municípios, nos sitios onde havia municípios. Em certo sentido era mais plural. Muito mais plural. Ou seja, não era... Como é que eu ia dizer? Do ponto de vista dos direitos individuais, era acho incomparável com o que existe hoje em dia, porque como tu estavas a aludir à bocadinho a isso, as pessoas eram... Tu eras a tua função e eras o grupo a que pertencias, não eras o indivíduo, não eras o Tiago, nem eu era o Zé Marias, eras ou o nobre ou o comerciante ou uma coisa qualquer do género. E portanto, do ponto de vista dos direitos individuais, eles eram quase ignorados. Mas, por outro lado, havia uma espécie de concorrência jurídica, de concorrência de influências e de poder que hoje em dia se perdeu porque o modelo é diferente, o modelo é centralizador. Por exemplo, não é por acaso que foi no século XX que existiram coisas como as ditaduras comunistas ou fascistas e o nazismo, não é? Foi porque tu tinhas esse Estado que podia centralizar.
Thiago Hansen
Eventualmente as pessoas pensam num rei absolutista como uma espécie de ditador do século XX, só que viveu no século XVII. E não, ele tinha muito menos poder, inclusive. Bom, você abriu várias frentes, eu vou tentar juntar
José Maria Pimentel
elas em algumas.
Thiago Hansen
Não, acho a pergunta excelente. Primeiro, com relação ao absolutismo, isso é um debate muito sério na historiografia. Mais recentemente, uma boa parte da historiografia discorda sequer da ideia de absolutismo. Porque, na verdade, O discurso sobre o absolutismo foi muito mais criado por liberais ex post facto para justificar o que se estava a fazer do que de fato uma realidade empírica. O Dom João V, que é um grande exemplo de absolutista português, não sabia quais terras ele tinha em Portugal. Eu conversava com o professor Antônio Espanha, certa vez, e ele falava que a própria cartografia portuguesa, quais eram os domínios, etc. O rei, o sujeito que era o mais poderoso desse regime, não conhecia. Não sabia o que tinha, não sabia quais eram suas rendas exatamente, não havia uma organização administrativa moderna, como se imagina com accountability e assim por diante. Então, a coisa era muito mais horizontal do que vertical. A vivência era muito mais baseada em tudo nesse sentido. As coisas eram medidas em dias de viagem, as coisas eram medidas empunhadas, era muito pouco abstrato, era muito mais vinculada à realidade concreta, vivente, do que nas projeções que a modernidade vai construir quase como um arcabouço teórico que acaba voando acima das nossas cabeças e nos identificando e nos significando. A identidade dos homens medievais e das mulheres medievais, como você bem disse, era concedida por alguns fatores. Primeiro, onde você nasceu, de quem você nasceu e quando você nasceu. Tudo isso contava. Então, eu gosto de fazer uma história, contar uma anedota, que é o seguinte, se fosse possível voltar no tempo, você encontrasse um sujeito arando um campo, à beira, sei lá, ao pé de Lisboa ou de Coimbra, no século XIII, e você parasse ele e perguntasse, e aí, quem é você? Hoje, se alguém para você na rua e pergunta quem é você, nos vem automaticamente uma resposta, que é o nosso nome. Porque o nome, afim de contas, é aquilo que nos dá identidade, é aquilo que nos isola perante todo o resto e nos cria uma subjetividade. Se você perguntasse a esse camponesa essa mesma pergunta, você ia se assustar com a resposta, porque ele ia falar, eu sou um camponesa. Aí você ia ser indignado e falar, não, não, não, mas eu quero saber quem é você. Ele fala, ué, eu sou um camponesa cristão. E você ia insistir, mas quem é você? Eu sou um camponesa cristão de Lisboa. Até o momento que você perder a paciência e perguntar qual era o nome desse tipo, ele fala, mas por que você quer saber meu nome? O nome é só um barulho que a minha família usa para me chamar quando o almoço está pronto. Não é uma coisa que significa. A identidade era concedida, então, muito mais, repito, pela posição em que você nascia, pelo local em que você nasceu e pelo tempo em que você nascia. Isso é explícito nos nomes dos medievais. Tomás de Aquino. Aquino é de onde veio, não é o sobrenome. Tantos outros sabem disso melhor do que eu. Essa construção dessa sociabilidade corporativa, estamental, hierárquica, criava um direito plural na medida em que você tinha, em um mesmo território, várias ordens jurídicas concorrentes. E a situação ficava um pouco caótica quando você tinha indivíduos que concorriam em várias dessas ordens e cometiam delitos ou situações jurídicas complexas. Então você poderia ter, eventualmente, um membro do clero, que também era da nobreza, e que estava na universidade. Esse sujeito é julgado por quem se ele comete um crime? Qual que era a resposta? Não havia resposta. E esse é o grande segredo. Pra nós hoje isso é um choque. A gente tende a ver esse direito pré-moderno como uma bagunça, como um casuísmo, como um jogo muito político em que o mais forte sempre prevalece ao mais fraco. Mas o que acontece é muito mais simples que isso. No direito pré-moderno não havia regra geral, porque não havia ainda uma estrutura abstrata
José Maria Pimentel
do pensamento jurídico. Então quem é que seria? Era o rei
Thiago Hansen
em última análise? Em última análise era o rei. A função do rei medieval nunca foi a de um administrador, nunca foi de um sujeito que abre estradas, organiza as coisas. A função de um rei é majoritariamente a de um juiz. De um sujeito que fica, inclusive, muitas vezes circulando pelo país pedindo dinheiro, porque está quebrado, com a banca quebrada, e concedendo favores. E o que era essa concessão de favores? Ou era dar títulos, ou cargos, ou domínios, e sobretudo, resolvendo conflitos entre nobres. E aí você tem uma situação dessa que é muito descentralizada porque, se você está numa quinta ou numa aldeia qualquer do interior de Portugal, quem vai te julgar é o nobre local, ou o ancião local em alguns casos. E não havia exatamente estruturado um procedimento de recurso ao rei. Depois isso vai começar a aparecer, que aí você começa a ver de fato a estruturação do Estado, ou seja, a criação de hierarquias jurisdicionais. Mas era muito comum que se você fosse julgado por alguém que era súdito, ou vassalo de um rei, isso não significava que o rei tinha autoridade de intervir naquele julgamento. Porque não tinha. Então isso mostra um pouco essa lógica plural. Aí você me pergunta do presente. O que nós perdemos com isso? Bom, é muito complicado porque alguns autores, inclusive, apontam que os dilemas que nós estamos passando na ento dita, eu não gosto muito desse termo, né? Então dita pós-modernidade, são dilemas que em alguma medida rimam com os dilemas medievais. Uma descentralização do sujeito, os medievais não conheciam a ideia de sujeito, A ideia de que a identidade... A diferença é que nós temos identidades fluídas, eles tinham identidades mais fixas, mas a lógica, em alguma medida, é esse processo de descentralização que nos gera um pouco de caos, um pouco de receio, porque nós ainda estamos formatados por uma lógica moderna de criar uma arquitetura de longa duração dos processos políticos e jurídicos e assim por diante. Mas é possível se dizer que algumas coisas medievais eram positivas. É claro que isso é um julgamento moral, mas ainda dentro desse julgamento moral poderia se dizer o seguinte, os medievais estavam muito mais preocupados com o caso concreto. Então a resposta dada por um juiz a um caso concreto não seguia necessariamente o que os tribunais estão falando que é pra seguir, porque tem que ser assim, porque a gente quer diminuir o número de processos, porque já tem muita coisa e a gente quer diminuir o trabalho. No caso do Brasil, isso é muito evidente. Então se cria o que é chamado de jurisprudência defensiva. Então é um monte de decisões que falam, se um recurso subir ao tribunal desse jeito, nem lê. Os juízes medievais tinham muito mais um olhar para o caso concreto e uma ideia de que cada caso é um caso mesmo. As similaridades às vezes mais enganam do que aproximam. Então o direito era artesanal em alguma medida, era feito um a um. Então não havia regras gerais, não havia estruturas gerais, então isso acabava gerando problemas, é evidente, porque você poderia ter situações semelhantes julgadas de formas muito diversas, mas ao mesmo tempo isso acabava resgatando o que alguns chamam de, é um termo meio clichê ou meio blasé melhor, a nobreza do jurista. Leia-se. A ideia de que o ato de decidir é um ato de produção, é racional, que tem que avaliar o caso concreto. É uma arte. Exatamente. É importante. A primeira definição de direito que nós temos na história, pelo menos aquela mais célebre e mais estável, foi dada por Celso no século I d.C. Ele fala que o Ius es ars boned equi que seria então Ius como direito, mais ou
José Maria Pimentel
menos.
Thiago Hansen
É a arte do bom e do eco, que não é exatamente justo. Em alguns lugares você encontra a tradução do justo, e não é. Não está lá isso. Os romanos, inclusive, tinham a palavra para justo
José Maria Pimentel
e eles não usam. Então é o quê?
Thiago Hansen
Eco é algo como equidade, e que vai demorar 200 anos para saber o que é, quando o Upiano vai escrever lá que eco é sum quick tribuere, que é basicamente um Ctrl-C, Ctrl-V do Aristóteles na ética nicômica, que é a ideia de dar a cada um o que lhe é devido. E o que essa definição nos esconde e que é muito irrelevante? Primeiro, A ideia de que o direito é uma arte. E o que significa dizer que o direito é uma arte? Hoje isso pode soar meio romântico, pode soar como algo muito chique, mas não é nada disso. Arte, mas no sentido de artesania. Leia-se, aquilo que você só aprende fazendo. Assim como a culinária, assim como tocar música, contar piada e tantas outras artes que você precisa exercer. Então, o primeiro que o direito era prático, eminentemente prático. Mas prático do quê? Do bom e do eco. O bom, aqui para os romanos, não tem nada a ver com moral. Esse é outro ponto importante. Eles não estão falando ainda da ideia da bondade cristã, que depois os padrecos cristãos lá no século XI e XII vão fazer essa confusão e vai gerar um monte de problema. Mas naquele contexto específico da virada do milênio, da era comum, para o período anterior a Cristo, nessa passagem, bom é muito mais próximo da ideia de boa razão. Leia-se.
José Maria Pimentel
Ah, senso comum. Quando
Thiago Hansen
você faz um argumento, eu falo, pô, bom argumento esse, hein. Esse bom que eu estou falando não é no sentido moral. Ele pode ser um bom argumento para matar um monte de gente, mas ele é bom no sentido de que ele é estruturado, racional, previsível.
José Maria Pimentel
Então ele pode ser
Thiago Hansen
inteligente? Inteligente, exato. Bom e eco, ou seja, que consegue, e esse é o ponto fundamental, no caso concreto, porque equidade não é algo teórico, teórico é a igualdade, que é sempre formal, a equidade é aquilo que exige o caso concreto, é para que nesse caso concreto você identifique a solução que garanta a maior previsibilidade e segurança para decisões futuras. Então nisso a gente constrói uma equação muito mais complexa do que aparenta ser no primeiro momento a definição de direito, como uma arte, ou seja, uma prática de encontrar no caso concreto os bons argumentos que garantem que
José Maria Pimentel
cada um receba aquilo que lhe cabe. Então, espera aí, mas isso é um excelente ponto. Eu depois nem queria falar da questão da justiça que ainda não abordámos diretamente, mas que não está aí. Podemos pô-la de parte agora. Porque no fundo pode-se dizer que o direito atual, sobretudo o direito atual que existe em Portugal e suponho que exista também no Brasil, está no extremo oposto do direito que se praticava, que era em Roma, que era na Idade Média, embora não fosse o mesmo, no sentido de que esses eram muito mais praticados caso a caso e tu agora tentas, sobretudo, ter uma fórmula geral que depois se aplica a todos os casos. Uma engenharia social. Exatamente. E nessa fórmula geral, eu não sei se é sequer o melhor termo, será, por mais bem feita que seja, e por mais inteligente que seja quem a faz, ou o grupo de pessoas que a compõe, será sempre imperfeita em alguns casos concretos, ou seja, nunca se aplicará igualmente bem em todos os casos concretos. Em Portugal, Essa é claramente uma das limitações da nossa tradição jurídica, que como tem que estar escrito na lei, depois nem sempre se aplica aos casos concretos, ou muitas vezes os casos concretos não estão previstos. Aquilo que eu me lembro, diretamente quando estamos a ter esta conversa, é da tradição britânica, da common law, que me parece tentar fazer um bocadinho a quadratura desse círculo, ou que me parece tentar ter o melhor dos dois mundos em certo sentido, porque a common law daquilo que me parece, mas tu sabes isso muito melhor do que eu, foi um bocadinho não deixar cair completamente essa tradição casuística, essa tradição caso a caso. Então tu tens a questão da jurisprudência, das decisões que foram tomadas anteriormente e que podem ser referenciadas para um caso que seja parecido na atualidade e a partir daí ir criando, no fundo é um corpo jurídico que se vai criando aos poucos, ao invés de ser criado de raiz e de uma vez.
Thiago Hansen
O common law, ele está muito na moda, não sei se está aqui em Portugal, mas no Brasil
José Maria Pimentel
está. Não sei se em Portugal está, não sei, Quer dizer, é
Thiago Hansen
uma boa pergunta, não sei se está muito na mola. É um pouco essa ideia de se tentar importar alguns institutos do common law para gerar mais previsibilidade, sobretudo a ideia de precedentes. Mas se você olhar para a história do common law, ele passou por exatamente as mesmas situações que o civil law. Ou seja, ele também em alguns momentos se hiper-abstrativizou. Os precedentes se cristalizaram também e deixaram de ser essa massa de modelar que você se refere. Então eles também passaram por essas situações em vários momentos da história. Então o common law, na verdade, hoje atua muito mais como uma cartada para você justamente buscar algo diferente do que como uma racionalidade própria. É engraçado porque, da mesma forma que nós tendemos a olhar o common law como uma forma de oxigenar o direito do civil law nosso, os britânicos, os americanos olham para nós e falam, opa, vamos pegar essa ideia aqui que eu acho que é interessante, essa nova forma de interpretar. Então, o que acontece, muitos, alguns dizem, é que estão se aproximando um pouco esses dois sistemas. Os dois têm problemas, os dois têm limitações. É possível... Mas há uma diferença fundamental, que eu acho que é interessante se destacar. Pelo menos uma tentativa. O civil law buscou com muita clareza, ou tentou com muita clareza, se afirmar como uma ciência autônoma. Ou seja, ser um saber específico, com método, com teoria, com abordagem, e que poderia, eventualmente, produzir um resultado certo. O common law, nesse sentido, está mais próximo da crítica literária. Sim, sim. É algo que é muito mais construído pelas narrativas e na tentativa de... O Ronald Dworkin, um grande pensador americano falecido recentemente, vai dizer justamente que uma das artes do jurista é construir o que ele chama do romance em cadeia, ou seja, as decisões da corte constitucional, por exemplo, ela tem que ser como um novo capítulo de um romance que já está escrito e que tem que continuar havendo motivação para esse novo capítulo, ou seja, tem que haver uma continuidade. Ou se for haver uma ruptura, um overruling, como se diz, tem que haver uma afirmação muito clara do porquê desse overruling. Porque senão você gera uma falta de integridade na estrutura das decisões jurídicas. Então eles apoiam, digamos assim, a segurança e a previsibilidade no conjunto das decisões. O civil law, a partir do século XVIII para o século XIX, apoia a segurança e a previsibilidade na clareza dos diplomas legislativos. Então, enquanto o civil law vai treinar muito a ciência da legislação, como se dizia, que hoje nem existe mais, mas é basicamente como escrever leis com um mínimo de antinomias, ou seja, ambigüidades e assim por diante, e assim conseguir produzir textos normativos em que o juiz, esse é o grande sonho do civil law, em que o juiz basicamente não tem que interpretar, Ele só vai lá e aplique. O common law já vai para uma outra ideia. Ele já vai para uma ideia de que o que tem que ficar claro cada vez mais são os precedentes. Ou seja, os precedentes tem que ter... You have to grasp the precedent, como dizem os falantes. Tem que pegar exatamente a alma daquilo lá. O precedente não é um caso. O precedente, na verdade, é uma raciodecidente, como se diz. Ou seja, uma razão do decidir, o porquê do decidir. E esse porquê do decidir você consegue eventualmente aplicar em casos semelhantes. Só que essa eventualidade tem que ser explicada pelo uso controlado da retórica e da lógica. Então aí está a arte dos juristas. O que é interessante porque há uma divisão muito clara. Se você perguntar aqui em Portugal, Vou perguntar para você mesmo, fale o nome para mim de três grandes juristas portugueses, que pode ser os normais, os primeiros que vem à cabeça. Em
José Maria Pimentel
Portugal as pessoas saberão mais dos constitucionalistas, que são o Vittal Moreira, o Carlos Cantilho, o Jorge Miranda. Pronto, O que há em comum entre esses três? São constitucionalistas, são pessoas universitárias. Pronto.
Thiago Hansen
Ou seja, são cientistas dos direitos, doutrinadores. Se você perguntar para um norte-americano estadunidense ou para um britânico, fale o nome de três grandes juristas... São juízes. Ele vai falar três nomes de juízes. Então isso mostra muito a diferença.
José Maria Pimentel
Sim, sim, eu também agiro isso.
Thiago Hansen
E se você fosse no início do século XIX, na França, e perguntasse se falha o nome de três grandes juristas, ele falaria o nome de três deputados. Porque são os legisladores que são os exemplos maiores de juristas. Ou os autores das leis, o Portali, por exemplo, que é o autor do Code Civile Francais. Ou seja, isso vai mostrando um pouquinho essas diferenças de abordagens. E também aqui é um outro aspecto importante, que é o direito do common law. Ele vai ter uma influência muito menor do direito romano. Haverá uma influência, não é sem influência, mas haverá, só que é uma influência muito mais secundária. E o common law é muito mais próximo da arte da negociação, tanto que as faculdades de direito até hoje, as Law School, são como escolas técnicas, na verdade, em que você aprende a negociar, você aprende a resolver problemas concretos. Você não fica discutindo teoria do direito. Aliás, o Hans Kelsen, que é talvez o maior jurista do século XX, quando ele se refugiou nos Estados Unidos, sendo perseguido pelos nazistas, ele ficou decepcionado porque ele não conseguia dar aula de teoria. Ele era austríaco, né? Ele era austríaco, foi autor da Constituição Austríaca, O cara que criou a ideia de corte constitucional teve que se refugiar. É uma história magnífica, mas fica para uma outra situação, para um outro momento. Quando ele vai para os Estados Unidos, ele fica decepcionado porque ele repara que ninguém está a fim de estudar a teoria do direito. Porque para eles, teoria do direito é como negociação, é como venda. O direito é como a arte de um vendedor. É pura retórica. É a capacidade de você conseguir convencer. Mas ela está nesse sentido, é muito mais próxima
José Maria Pimentel
do direito medieval, né?
Thiago Hansen
Não necessariamente, porque havia um outro processo no caso do direito medieval continental, da tradição do civil law, que era o seguinte. A partir do século XI, se redescobre em Florença uma cópia do Corpus Iuris Tivillis, que é um documento do fim do Império Romano, feito no Império Romano do Oriente, ou seja, quase não é direito romano, essa é a verdade. E esse documento começa a ser relido e tratado com uma lógica epistêmica parecida com a da teologia. É quando surge a chamada dogmática jurídica. O que é isso? Lia-se aquele documento com o seguinte pressuposto. O documento está certo e se eu não entendi é porque eu que sou burro e não consegui entender. Ou seja, eu preciso me esforçar mais porque é a mesma forma como se lê a Bíblia. Exatamente. Se há uma contradição, é porque o meu espírito é incapaz de revelar essa contradição. Aquilo era a verdade. Aquilo era a verdade revelada. Os medievais chamavam o Corpus Juris Divili de racioescripta. Ou seja, se fosse possível você transportar a racionalidade perfeita que habita a nossa alma para um papel, você teria o resultado do Corpus Juris Divili. Então eles usavam o que se chama de interpretatio, que não é bem interpretação, mas eles tinham que trabalhar nessas duas dinâmicas. O corpus iuristibilius era uma espécie de manual de instruções da justiça terrena, e o caso concreto tinha que, em alguma medida, ser iluminado pelo corpus iuristibilius. Então a parte da retórica tinha um componente fundamental, mas não caía na mesma lógica da negociação, como era o caso dos britânicos, dos ingleses, que vão surgir as Inns of Court, em que você literalmente aprendia direito como se fosse numa escola técnica.
José Maria Pimentel
Ou seja, no fundo, essa rotura, que não é necessariamente uma rotura, mas esses caminhos diferentes já vinham
Thiago Hansen
muito antes. Sim, sim. E em alguns momentos se aproximam e se separam, é uma história descontínua. Sim. Sim,
José Maria Pimentel
porque vão se influenciando mutuamente. Exatamente. Mas não deixa de ser engraçado isso, não deixa de ser interessante porque, por exemplo, aquilo que falavas há bocadinho da Common Law, tem muito mais essa tradição de debate e retórica e da história quase da arte, isto da parte dos advogados, mas em relação aos juízes, por exemplo, lá está isto, isto reflete naquela pergunta que estavas a fazer há bocadinho, os juízes tinham, têm um peso muito maior nos tribunais ingleses ou americanos do que têm em tribunais portugueses e suponho que brasileiros também, onde eles lá estão no limite, estão apenas a interpretar a lei. Claro que na prática a lei nunca é 100% clara e portanto tem alguma agência, mas no limite eles estão a interpretar a lei, enquanto em tribunais americanos, por exemplo, o juiz, e a pessoa até vê isso nos filmes, o juiz é quem está, embora depois muitas vezes tenhas o júri, que também tem ali um papel, mas está... A interpretar o precedente. Está a interpretar o precedente, e isso está completamente em aberto. Sim. Como é que é no Brasil, já agora? Veja, agora é muito parecido com o sistema português,
Thiago Hansen
em alguns aspectos.
José Maria Pimentel
Eu digo isto porque tenho a ideia que tem, pelo menos em outras instituições políticas, vê-se isso, mais influência dos Estados Unidos, por exemplo, mas se calhar não
Thiago Hansen
tanto nas instituições judiciais. Sim, na questão judicial é um pouco menos a influência dos Estados Unidos, talvez com algumas exceções ali na Constituição de 1891, que é a nossa primeira Constituição republicana, e uma coisa ou outra ali, criação das justiças estaduais, que é algo que vocês não têm aqui. Até porque Portugal é um país unitário. Sim, sim. O Brasil, enfim, é um continente, é uma federação de estados. Mas o que se tem hoje, com esse aspecto que você comentava, é desde pelo... O que aconteceu foi basicamente o seguinte, e eu peço desculpa aos ouvintes juristas por brutalmente reduzir um debate muito complexo. Mas é que, passada a Segunda Guerra Mundial, começou a surgir, sobretudo por parte de neojus naturalistas católicos aqui na Europa, sobretudo em França, mas também na Alemanha.
José Maria Pimentel
Explica só o que é que isso quer dizer para os não juristas que estão a ouvir e para mim
Thiago Hansen
próprio em certo sentido. Ou seja, pessoas que começam a acreditar que o direito é algo que pré-existe as sociedades humanas, ou seja, é uma dádiva de Deus.
José Maria Pimentel
Ou seja, na versão católica, significa que vem de Deus e, portanto,
Thiago Hansen
estará na Bíblia. Não só na Bíblia, mas na teologia, na patrística como
José Maria Pimentel
um todo. Sim, sendo católicos também nos outros escritos da Igreja. E um
Thiago Hansen
pouco daquele erro lógico, aquela falácia da navalha de Rilme, que todo jusnaturalista faz, que é retirar um dever de um ser. Ou seja, se na natureza é assim, logo é justo. Sim,
José Maria Pimentel
falácia naturalista.
Thiago Hansen
Então, alguns grupos de neojusnaturalistas católicos franceses, aqui em Portugal também, na França, no Brasil, começam a colocar a culpa dos totalitarismos do século XX nas costas do positivismo jurídico. Por quê? Basicamente se construiu um argumento, esse argumento teve o seu ápice na figura de um alemão chamado Gustav Hadbruck e esse sujeito vai falar O seguinte, olha, pelo fato dos juristas alemães terem sido muito treinados no ambiente do positivismo jurídico, isso acabou-se criar uma ideia de que a função do juiz é única e exclusivamente aplicar uma lei pronta e assim não haveriam ferramentas e mecanismos para que os juízes resistissem a decisões injustas. Isso ganha muito a moda. Mas o que é
José Maria Pimentel
que isso, desculpa interromper-te, mas em que é que isso está relacionado com o positivismo jurídico? Ou por outra, em que medida que o positivismo jurídico levava que o juiz não
Thiago Hansen
tivesse agência para não aplicar leis injustas? Você já fez uma pergunta que muitas das pessoas que criticam o positivismo jurídico não conseguem fazer, porque, na verdade, isso é uma caricatura do positivismo jurídico. Basicamente, a ideia que se criou foi uma caricatura de que positivismo jurídico é um apelo à literalidade da lei, uma aplicação mecânica, ou então, eventualmente, se faz uma caricatura vinculando o positivismo à ideia do Buche de la Loire, o juiz apenas como boca e refletida da lei, sendo que o positivismo, na verdade, é uma forma de abordagem do direito que enxerga o direito como produto das sociedades humanas e não como algo vindo anteriormente. Positivismo vem de posto, ou seja, o direito é criado, é inventado, é uma invenção humana. Logo, é contingente, é político, é problemático, tem defeitos, tem virtudes e assim por diante. E não parece nada, quer dizer, vendo a coisa de fora, não parece
José Maria Pimentel
uma... Isso não parece defender uma atitude... É crítica, pelo contrário, parece defender uma atitude crítica, né? Exato, Mas dentro de uma estrutura de tripartição dos poderes,
Thiago Hansen
o argumento que se constitui é que o judiciário cabia exclusivamente à aplicação da
José Maria Pimentel
lei. Ah, ok. Estou a perceber. Sim, sim, sim. E como você não tinha parlamento,
Thiago Hansen
no caso da Alemanha nazista, por exemplo, e você vai ter a figura do Führerprinzip, ou seja, a ideia de que a vontade do líder se manifesta como direito, criou-se esse argumento de que os juízes não tinham como resistir aos terrores do autoritarismo do século XX. Isso fez com que, a partir dos anos 1950, começasse uma reavaliação do positivismo jurídico e a reinserção de conteúdos morais e valorativos no processo de decisão. Esse argumento é um argumento problemático porque, primeiro, os juízes, os juristas alemães, massissamente apoiaram o nazismo. Inclusive os juristas que nós lemos até hoje estavam enfiados até o pescoço no regime, participantes importantes do regime nazista. E a grande estratégia do direito durante o período nacionalsocialismo não era a obediência estrita à lei, não era a criação de uma lei como fruto do Estado, logo eu tenho que obedecer o estado porque o estado é tudo, não existem valor fora do estado, que era o argumento que se fazia. Não, a grande estrutura, a estratégia dos juristas nazistas era criar mecanismos interpretativos que criassem brechas para que você fugisse das regras e caminhasse em direção a princípios, ou seja, o código civil permitia certas garantias aos judeus com relação a compra e venda, porque permite a todos. Então aí se começa a construir uma ideia de bilateralidade da relação jurídica, em que se constrói todo um argumento chamada boa-fé objetiva, em que o negócio comercial entre um alemão e um judeu nos anos 40, no início dos anos 40, é um negócio prejudicial à Alemanha, porque o alemão está fazendo negócio com o povo que é o fim ao cabo, que é terminar com o povo alemão. E aí se anula um negócio jurídico. Isso é uma estratégia, um procedimento para você desrespeitar a literalidade da lei, que é a previsão de que os negócios, o pacto assunto servando, os negócios devem ser cumpridos como foram acordados. Vários casos aconteceram assim na Alemanha para você ento contornar garantias individuais a minorias através da arte da interpretação judicial. Mas de alguma medida isso colou essa ideia do Gustav Haber, que a culpa era porque os juízes eram muito obedientes, só batiam continência, então eles só obedeciam a lei, então aí isso acabou criando o campo para o surgimento do autoritarismo. E isso vai então produzir, nos anos 50, nos anos 60, uma série de teorias chamadas pós-positivistas, em que vai começar a pensar a ideia de interpretação judicial para além do texto, mas também para o contexto, para o sistema, mas sobretudo técnicas em que você consiga incluir valores dentro do pensamento jurídico. Isso em alguma medida oxigena e pode até humanizar o processo de decisão, mas, como se diz no Brasil, pau que bate em Chico, bate em Francisco. Ou seja, se isso serve em alguma medida para proteger minorias, esse é um ponto importante. A gente teve uma decisão polêmica no Supremo Tribunal Federal Brasileiro recentemente, que criou-se... Alguns dizem que não é que se criou, mas muita gente diz que sim. Criou-se um novo tipo penal, um novo crime, pela via judicial, e não pela via legislativa, que equiparou-se a homofobia ao crime de racismo. Então um ato homofóbico no Brasil hoje é tratado como racismo. Mas
José Maria Pimentel
isso parece um bocadinho como o Anuló, não é? Parece um bocadinho a lógica do precedente, mas é... Você vai ampliando, né? É parecido
Thiago Hansen
e portanto... A questão que fica, José, é a seguinte qual que é a legitimidade democrática do poder judiciário? Fazer isso. Quantos votos aqueles juízes tiveram? Qual é o controle democrático daquelas decisões? Eu não lembro como é aqui em Portugal, mas no Brasil os ministros da corte constitucional são vitalícios. O que é corte constitucional? É
José Maria Pimentel
o que? O tribunal constitucional? Isso, tribunal
Thiago Hansen
constitucional. Que lá no Brasil chama-se Supremo Tribunal Federal. São vitalícios, então os sujeitos ficam lá para sempre. Eles são indicados, passam por uma sabatina e ficam lá pra sempre. E em alguns aspectos eles podem tomar decisões muito poderosas. E são apenas 11 pessoas que não passaram pelo crivo democrático, não foram eleitos pelo povo e pela via da interpretação judicial conseguem manipular o tabuleiro jurídico em alguns momentos.
José Maria Pimentel
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Thiago Hansen
O que se vê muito hoje no Brasil é o seguinte, o poder judiciário cada vez mais atua como um ator político relevante, absolutamente relevante. Vocês aqui devem acompanhar o caso da Lava Jato no Brasil. O timing de algumas decisões é um timing político. E aqui não se quer dizer que é a favor ou contra a Lava Jato é uma observação factual, né? Soltar certas... Publicar certas delações premiadas com conteúdos que atrapalham um candidato uma semana antes das eleições, isso é um timing político, não é um ato republicano, né? Então o poder judiciário, em virtude dessas novas tendências de oxigenar por via dos valores, da moral, de novas técnicas de interpretação,
José Maria Pimentel
acaba gerando um déficit democrático. O poder judicial, no fundo, deixar de ser só um contra-poder, porque essa questão dos cargos vitalícios, isso tem um objetivo, que é o poder judicial não estar refém do poder político. Exatamente. E poder tomar decisões contra o poder político ou que desagradem ao poder político. Mas depois pode passar para outro extremo, né? Não,
Thiago Hansen
porque se acreditava quando se desenvolve essa... Uma garantia é que eu concordo a sua racionalidade, a vitalicidade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de subsídios. Ou seja, um juiz não pode ter o seu salário diminuído, ele não pode perder o seu cargo a não ser por falta grave, crime, e ele não pode ser movido, ele não pode sair de onde está trabalhando. Você não pode dizer, aquele é o juiz daquele caso, então vou tirar e botar outro que é meu chapa. Isso não pode acontecer. E isso faz muito sentido, é racional, é um valor civilizatório e assim por diante. Mas por quê? Porque quando esse valor civilizatório foi estabelecido, se tinha uma clara compreensão de que o poder judiciário não era político, ele era um poder técnico. E aí, como você mesmo afirmou, era uma forma de isolar o poder judiciário da influência política. O que acontece é que o poder judiciário também é um ator político. Vou dar um exemplo prático aqui. Quando começou as discussões sobre o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o Supremo Tribunal Federal, vendo o impasse que estava acontecendo, miraculosamente resolveu colocar em pauta para julgamento um processo de 1993, cujo tema era, é possível estabelecer o parlamentarismo no Brasil? Por que isso? Por que você tira da caixa um processo que está juntando tra�a de 1993 num momento... Essa eu não fazia ideia, porque... Tensos, e são vários. Na verdade, o que acontece na prática é que a Corte Constitucional brasileira tem um cardápio de processos que estão lá parados, nos gabinetes, esperando para serem julgados e que são colocados em pauta seguindo um timing político. Então, se o poder executivo começa a atacar o judiciário ou alguma coisa assim, ele vai lá e misteriosamente julga uma decisão que aumenta os custos com o funcionalismo público do poder executivo e quebra as finanças. E assim vai fazendo. A gente está passando por um momento em que, ao fim e ao cabo, parece que a tripartição de poderes vai ter que ser repensada. Porque o poder judiciário, pelo menos no Brasil, e talvez aqui ainda não aconteceu, mas tem de acontecer, porque parece um fenômeno bastante generalizado, ele está se tornando cada vez mais politizado porque ele tentou e tenta e se esforça e não é necessariamente ruim isso, mas às vezes gera resultados ruins, introduzir valores morais ou valores extrajurídicos
José Maria Pimentel
no processo de interpretação de questões jurídicas? Se eles são extrajurídicos, já parece que pode ser um ponto de debate, não é? Ou seja, não serão para toda a gente extrajurídicos, Mas isso é difícil de ajuizar porque não vejo bem qual seria a alternativa, ou seja, a lógica do poder que os tribunais têm é ter um sistema com repartição de poderes em que eles funcionam como contrapesos uns para os outros. E para o poder judicial funcionar como um contrapeso eficaz, ele tem que estar protegido. Tem que ter limitações, mas também tem que estar protegido na medida em que, lá está, não pode ser atacado pelo poder político. Nós vemos em alguns casos, estávamos a falar há bocado da Ending of da Polónia, por exemplo, uma das coisas que eles fizeram na Polónia em Savoeiro foi o governo foi exatamente mexer nos juízos do Supremo, acho que não dou a enganada, que era uma coisa que era proibida pela Constituição aparentemente, mas eles fizeram e ninguém impediu, né?
Thiago Hansen
E o expediente já aconteceu no Brasil, O governo, o poder executivo não tinha maioria na corte constitucional. Foi lá pro... Era ditadura, então não tinha que aprovar nada. Baixou um ato institucional, como se dizia, aumentando as vagas
José Maria Pimentel
de ministros,
Thiago Hansen
indicou todos. E depois que estava vencida a maioria, eles foram lá, caçou outros três e voltou para as vagas originais. Sério? É,
José Maria Pimentel
é assim, descarado. Eu tô a rir porque é bizarro.
Thiago Hansen
É descarado. Apensional número dois da história brasileira fez exatamente isso. Então, assim, essa é uma estratégia e que já mostra que mesmo naquela época, que a gente está falando dos anos 60 no caso do Brasil, o poder judiciário estava iniciando nos primeiros passos a sua potencialidade de se
José Maria Pimentel
ver como um ator político. O poder judiciário é sempre incomodativo, ou seja, imagina, aqui em Portugal, aqui há uns anos durante a crise, tivesse se calhar o período em décadas em que o Tribunal Constitucional foi mais visível. E eu até discordei de algumas decisões que o Constitucional tomou, mas acho bom que exista aquela instituição. Sim. Enquanto contra poder. Deve
Thiago Hansen
estar-se referindo sobretudo àquela famosa decisão do Tribunal Constitucional com relação à austeridade.
José Maria Pimentel
Sim, houve várias no âmbito da austeridade, não tinha que ver com medidas que o governo tomava e o Tribunal Constitucional intervinha dizendo, isto é inconstitucional, lá está, eles não estavam a avaliar, não estavam a fazer uma avaliação bottom-up, do nada, daquela medida, estavam a fazer uma avaliação daquela medida no contexto da Constituição. Exato. Se ela era ou não era anticonstitucional. E na altura, o governo obviamente não achou piada nenhuma, e até pode ter sido um impedimento em relação a medidas que era importante ter tomado, e ter criado outras injustiças por efeito colateral, porque não estavam, outros valores, se calhar, não estão tão bem refletidos na Constituição, mas eu acho importante, num país que existe esse contrapoder. Ou seja, é importante que o governo não possa fazer aquilo que quer e tu tenhas um contrapoder no país. Claro que depois o risco é que esse contrapoder deixe de ser apenas um contrapoder, mas torne um poder em si mesmo, um poder da linha da frente. Exato. E a questão
Thiago Hansen
é como a gente faz essa diferença. E aí me parece assim, a função de uma corte concional do Poder Judiciário nesse sentido é a de... O próprio Antônio Spanha ensina bem nesse sentido. É de ser um tribunal de veto. Ou seja, se vem uma decisão, uma lei, uma postura do poder executivo inconstitucional, o tribunal vai lá, declara sua inconstitucionalidade e reenvia para o parlamento para que seja rediscutido. O problema é quando ele fala, não, isso é inconstitucional e eu vou falar o que é o constitucional. Então tem que ser deste jeito. E aí, esse é o ponto que eu quero voltar. Em alguns casos, politicamente, aquilo pode ser agradabilíssimo pra você, né? Porque isso serve pra, por exemplo, uma decisão inexequível que tem no Supremo Tribunal Federal Brasileiro. Ele declarou, uma decisão famosa, que declarou o estado de coisas inconstitucionais das prisões brasileiras. Ou seja, basicamente falou que todos os presos vivem um regime inconstitucional no Brasil, porque é um regime desumano. A população carcerária brasileira é a terceira do mundo. Bem, vocês já devem ter assistido Tropa de Elite e coisas e tal, e sabem do que eu estou falando. Tá, mas o que se faz então com isso? É um habeas corpus coletivo para toda a população carcerária sair do sistema? O que significa isso? Qual é a prática? Ah, então tem que criar um fundo, esse fundo tem que ser, então, aplicado exclusivamente para o sistema prisional, para aumento de vagas e assim por diante. Ok, parece algo racional, você cria uma estrutura de política pública que obriga o Estado a gastar com aquilo.
José Maria Pimentel
Mas isso é uma decisão política, lá
Thiago Hansen
está, não é? Aí que chegamos. A gente tem casos, por exemplo, em cidades pequenas do Brasil, em que o Ministério Público basicamente é um segundo prefeito.
José Maria Pimentel
Por quê? Curioso. Ele vai lá e entra com uma chamada ação civil pública, não sei se vocês têm essa figura aqui. Pelo menos conheço o nome não, mas imagino que um jurista soubesse dizer o que é que equivale.
Thiago Hansen
Deve ser algo parecido, que é quando o promotor de justiça entra com uma ação em nome da sociedade para alegar um problema. Então, falta vagas, por exemplo, no ensino básico de uma cidade pequena. Ele entra com uma ação judicial, essa ação civil pública, falando que é obrigatório a abertura de vagas, porque existe na Constituição a previsão constitucional do direito à educação universal no Brasil, do ensino básico ao ensino superior, e aí o juiz eventualmente aceita, defere uma liminar e determina o congelamento das finanças do poder executivo e a obrigação de que determinadas finanças sejam gastas para a abertura daquelas novas escolas. Eu sou contra abrir novas escolas? Claro que não. Eu sou um sujeito centro-esquerda? Para mim tinha que ter mais escolas de melhor qualidade, professores recebendo mais. Sou professor, mas repito, pau que bate em Chico, bate em Francisco. Porque daqui a pouco isso pode servir para outras coisas também. E esse é o principal receio. E Como é que nós temos, afim e ao cabo, um controle político do poder judiciário? Como é que se reenquadra ele dentro desse contexto em que nós vivemos?
José Maria Pimentel
Mas o que é que leva o poder judiciário a tomar esse tipo de posições? Ou seja, por exemplo, esses, os representantes do Ministério Público, já não sei qual foi a palavra que usaste, os promotores de justiça, o que é que os leva a fazer isso? Ou seja, eles têm esperança de vir a concorrer a um cargo político? Pelo contrário, eles estão à espera de se manter naquelas funções e querem ganhar algum peso político localmente? Qual é o driver daquilo?
Thiago Hansen
Qual é que é o que é que impulsiona esse tipo de atitude, se quiseres? Eu acho que não há uma razão geral. Você tem casos de promotores que querem virar políticos, Existem alguns casos, inclusive alguns que acabaram sendo presos ou estão foragidos da justiça por corrupção, que eram procuradores da república ou promotores de justiça, assim por diante. Então você tem também essa figura. Mas eu não quero ser leviano também e falar que... Porque eu acho que não é necessariamente isso. A Constituição lhes garante a legitimidade para ajuizar ações civis públicas em nome da população brasileira. Então existe essa previsão legal. A motivação que você vai usar pode ser uma motivação baixa, pode ser uma motivação nobre, você pode estar realmente convicto daquilo. E tem uma outra coisa que me parece muito evidente no Brasil nos últimos 20 anos, talvez 30 anos, desde a promulgação da Constituição de 88, que é a nossa atual Constituição, e sobretudo com o amadurecimento a partir da prática, que é o surgimento de... Surgimento não, mas um aumento gradual da desconfiança com relação à classe política, e ao mesmo tempo um aumento gradual da confiança nessas figuras que combatem o crime, promotores de justiça, etc., sobretudo em virtude do fato de que eles ascendem a esses cargos através do mérito de aprovação de um concurso público muito complicado, muito difícil e muito concorrido. Então isso lhes concede um caráter meritocrático. Não gosto dessa palavra, mas lhes concede um pouco desse caráter que também não é algo novo no Brasil. Já existiu em outros momentos da história, que é a chamada ascensão das classes técnicas. É quando... Fogrucracia estatal, no fundo. Exato. Quando se começa a construir aquele discurso de que político é sempre roubalheira, político é sempre bandidagem, é sempre um puxando para o lado do outro, tentando roubar para o seu canto, e ninguém pensa o Brasil, ninguém pensa o país, ninguém pensa o Estado, ninguém pensa os problemas do povo, coitadinho. E aí você tem essas figuras que não estão vinculadas a nenhum partido, num primeiro ponto, em tese não têm interesses políticos partidários na política formal parlamentar ou do executivo, e aí se apresentam como representantes de um liberalismo judiciarista, como se diz no Brasil, que é o uso da Constituição como a prática de pautas políticas. Porque, assim como a Constituição portuguesa, que eu conheço um pouco, ela tem uma série de normas, como diz o próprio Canotilho, programáticas. São normas que não são execuíveis imediatamente. Direito à educação é algo que você tem que transformar em outra coisa. Isso é pauta política, Só que está revestido numa normatividade constitucional. Só que essa norma constitucional não é como uma norma do código civil que fala que se você não me pagar no dia correto eu posso cobrar juros e perdas e danos ou lá o que for. Essa é uma norma cujo termo, o conteúdo, é muito indeterminado. E para você densificar esse conteúdo exige um processo interpretativo muito grande que se fundamenta em última instância em uma certa teoria do direito O problema é que essa teoria do direito é muitas vezes digerida de forma muito pouco refletida ou ela é baseada em importações rasas e inconsequentes em muitos aspectos. Então é curioso, e é sobretudo curioso pelo fato de eu ser um professor de direito. Mas eu acho que hoje, mais do que nunca, é fundamental que o direito seja cada vez mais medíocre. Se amenize, vire algo menor, com menos relevância, porque a função dele é menor.
José Maria Pimentel
Sim, mas circunscrito.
Thiago Hansen
E é fundamental que seja menor, porque eu não quero um mundo em que o direito regule tudo. Eu não quero um mundo em que haja normatividade para tudo. Por exemplo, Eu lembro uns anos atrás, e eu acho isso bizarro, mas surgiu. Uns anos atrás, na cidade de Brasília, foi aprovada uma lei distrital que determinava que era proibido fumar cigarros em carros em que estivessem grávidas. Ora, qualquer pessoa com bom senso consegue entender que não se deve fumar ao lado de uma grávida em um carro fechado. Você precisa de uma lei pra fazê-lo? Será que os casos são tão explícitos assim? Será que são tantos os casos? Não me parece. Por que se faz, então, esse tipo de normatização? E a gente aplaude, porque o conteúdo é bonito, ninguém é contra esse conteúdo. Mas isso na verdade é cada vez mais nós cedendo um espaço da nossa soberania, cada vez mais nós cedendo um espaço da soberania individual, das nossas liberdades, das nossas garantias, para uma técnica que nós não controlamos. Esse caso do Brasil é muito curioso, eu não estava tão por dentro
José Maria Pimentel
disso, é engraçado ouvir-te falar sobre isso. Quer dizer, eu não sendo jurista também não sei se tenho completa capacidade de julgar aquilo que... Julgar aqui é um verbo um bocado ambíguo, não é? De avaliar a situação em Portugal, por exemplo, comparativa nesse aspecto, não é? Mas é interessante essa judicialização do sistema e não é muito fácil também não é muito fácil ver a saída disso, não é? Porque a verdade é que, como tu dizias, o poder político está muito desprestigiado, não é? Portanto, também não é muito fácil encontrar o ponto por onde corrigir, se quiser, a situação. É o que explica, por
Thiago Hansen
exemplo, a ascensão heróica do Sérgio Moro no Brasil.
José Maria Pimentel
Sim, eu estava me lembrando dele, exatamente. O
Thiago Hansen
sujeito foi meu colega de trabalho, eu trabalhei com ele quatro anos. E ascendeu politicamente de uma forma muito rápida e curiosamente fundamentado em um erro de tradução. Como assim? É uma história curiosa. Basicamente se criou no Brasil o mito de que o Sérgio Moro era o equivalente ao Falcone na Itália, Giovanni Falcone. Sim, nos anos 90, no início do ano de 90. Ou que é o caso do Maxi Processo, da máfia da Sicília e de Nápoles. Ah, não, então pera, desculpa. Ou o Antônio de Pietro, que é o caso das mãos limpas.
José Maria Pimentel
Ah, eu estava pensando nisso, exatamente. Que é o caso de 92-93. Então, o Maxi
Thiago Hansen
Processo de 80 e poucos e o de Pietro de 90 e poucos. Por que um erro de tradução? Porque no Brasil, pelo menos na imprensa brasileira, tanto Giovanni Falcone quanto Antônio de Pietro eram apresentados como o juiz Giovanni Falcone e o juiz Antônio de Pietro. E eles nunca foram juízes. Eram o quê, procurador? O que acontece é que na Itália, eu não sei, talvez aqui em Portugal seja algo parecido, eu não sei, você ascende a carreira judiciária como magistrado. E magistrado, hoje, para nós, é imediatamente, pelo menos no Brasil, vinculado com a figura do juiz. Mas magistrado não é um juiz. Magistrado, no seu sentido romano, latino, é simplesmente autoridade. Autoridade pública. E na Itália você tinha o magistrado judicante, que é o juiz, e o magistrato, com T, del pubblico ministero, que era o que eles eram. Eles eram equivalentes a procuradores da república. Exatamente. Acusadores, investigadores, e que depois eram submetidos às provas a um juiz. Que era julgado, sim. E esse julgado. O juiz da Mãos Limpas, ninguém fala dele. E ainda bem, em certo sentido, né? Ainda bem. E o juiz da Lava Jato fala-se muito. É muito estranho isso. No mínimo estranho, porque O comedimento, o silêncio, a ausência de entrevistas e a aparição pública é uma boa característica de um juiz. Ser juiz não é fácil.
José Maria Pimentel
Aliás, exatamente. Ser juiz é abrir mão de muita coisa. É
Thiago Hansen
abrir mão de tomar uma cervejinha na sexta à tarde na frente de todo mundo porque eventualmente se você mora numa aldeia pequena vão pontar ao juiz lá enchendo a cara né? Ou seja, é uma coisa complicada.
José Maria Pimentel
Sim, exatamente e aliás é isso o que justifica a ver as proteções que nós falávamos à pouca é exatamente as pessoas também elas próprias terem que abdicar para serem juízas por exemplo né ou seja porque E por isso é que justifica os cargos para a vida, como falávamos há poucas, e a proteção do salário, por exemplo, e uma série de coisas, porque alguém para ser juiz também está a abdicar, também está a abdicar de uma série de escolhas que podia tomar. Enfim, há um tema que nós começámos a aflorar no início. E já se perdeu. Não, não, está claramente subjacente à conversa toda, mas era, mas para voltar à história, eu achava interessante explorar um bocadinho mais, que é a questão da justiça versus o aquilo que existia, se calhar até à Revolução Francesa. Ou seja, tu aludiste já aqui várias vezes na conversa de que... Agora estou a voltar um bocado ao início, para me fechar para como começamos. Tu aludiste várias vezes ao facto de, por exemplo, na Roma Antiga, o direito de não ter uma função de ser justo, mas sim, sobretudo, uma função de mediador e de resolução de conflitos. E na Idade Média, no fundo, acabava por existir muito do mesmo. Para mim, como leigo, eu percebo um bocadinho o que tu queres dizer, embora me pareça intuitivamente que nem sempre é fácil destrinçar situações em que se aplica justiça de outro tipo de situações, ou seja, mesmo o direito de mediação, de resolução de conflitos, está imbuído de noções de justiça necessariamente, ou seja, se eu... Ou, por exemplo, na Roma Antiga, se tu me roubasse uma galinha, ou vai, para ser mais simpático, se eu te roubasse uma galinha, a mediação deste conflito seria sempre através de uma coisa mútua, ou seja, nunca seria através de uma compensação, por exemplo, porque havendo uma compensação há implícito uma noção de justiça. Sim, poderia haver uma compensação. Mas aí que tá, eu acho que
Thiago Hansen
você falou, há implícito uma noção de justiça. A grande questão que você tem que se colocar é, a justiça que inventou o direito ou o direito que inventou a justiça? Aqui fica o repórter a um texto magnífico, que é a segunda dissertação da genealogia da moral do Nietzsche, em que ele basicamente vai inverter, claro, daquele jeito que ele sempre faz, polêmico, sarrista e assim por diante, mas ele basicamente vai dizer o seguinte que conceitos como culpa, conceitos como justiça e a própria moral elas são filhas do direito e não criadoras do direito. Ele vai comparar por exemplo a ideia entre o forte e o fraco, que ele trabalha também, com a relação entre devedor e credor. É a relação entre devedor e credor, essa falta do pagamento de uma obrigação originária, Disney, que funda a ideia de justiça e que permite, então, que um cobre o outro. Essa é uma abordagem. Então, existe um eterno debate, ao fim e ao cabo, qual é o papel da justiça no direito. E aí, cada época vai dar a sua resposta e é possível dizer que cada escola do pensamento também vai dar a sua resposta. Os romanos, depois que eles se helenizam e vão lá, invadem a Grécia e resolvem ter aulas particulares com os gregos, eles vão trazer um pouco a ideia de justiça para o campo do direito. Vamos falar da ideia do ius naturali, começa a aparecer um pouco dessas ideias. E com o cristianismo, em especial, a justiça começa a embrenhar no direito, mas muito dentro da forma específica da teologia, a partir de um texto de autoridade que era um pouco misterioso e que estava subjacente ali um valor de justiça e assim por diante. Então a justiça começa, digamos que, a entrar no direito devagarzinho e vai se ocupando desse espaço, mas originariamente o direito, repito, não tinha relação alguma com a justiça. E o que a modernidade vai, em alguma medida, fazer, sobretudo na figura do período do jusracionalismo, que vão produzir grandes e grandes pensadores ocidentais. Falando de Kant, por exemplo, gente desse tamanho. É uma tentativa de derivar o direito da natureza humana que é apreendida a partir da razão. Ou seja, quando a gente fala, por exemplo, em direitos humanos, que é uma estrutura de pensamento que vai surgir justamente no século XVIII, durante o justracionalismo. Quando se fala em direitos humanos, está se falando, na verdade, em direito a ser humano. E aí a pergunta que se subjaza é, quais são os elementos mínimos que garantem que um ser humano seja um ser
José Maria Pimentel
humano completo? Ou
Thiago Hansen
seja, liberdade, ser tratado igual, vida, vivo e propriedade. Ou seja, a de que ele pode minimamente exercer a sua criatividade em um bem, em algo, para poder ter plenamente suas capacidades racionais manifestadas. E aí, nesse contexto, você vai ter essa justiça entrando muito forte na ideia da subjetividade moderna. E aí a justiça ganha um espaço muito grande e acaba ocupando um espaço valorativo no direito. Com a Revolução Francesa, sobretudo no início do século XX, as pessoas começam a ficar céticas com relação a...