#60 Gustavo Cardoso - O futuro do jornalismo

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José Maria Pimentel
Bem-vindos. Neste episódio o convidado é Gustavo Cardoso, professor catedrático e investigador de média e sociedade no Isctec. E o tema é um dos mais importantes dos nossos tempos, os desafios atuais e o futuro do jornalismo. Foi uma excelente conversa e para mim também uma ótima maneira para explorar melhor este tema, até porque participei recentemente num cloque no CCB precisamente sobre o futuro do jornalismo. E porquê é que o tema é tão importante? Porque o jornalismo é essencial à democracia e porque os jornais e outros média sofreram nos últimos anos quase uma tempestade perfeita. A internet veio tornar uma série de informação disponível de forma gratuita, ao mesmo tempo que tirou aos jornais grande parte das receitas de publicidade que tinham até ali e que agora, como todos sabemos, estão nas mãos de gigantes como a Google e o Facebook. Ao mesmo tempo, do nosso lado, ou seja, do lado dos utilizadores ou leitores, diminuiu a predisposição para pagar e também mudou a própria maneira como olhamos para a informação jornalística. Temos hoje mais, e talvez melhor jornalismo, mas é também cada vez mais difícil separar o trigo do joio. E ao mesmo tempo como estas mudanças vieram por em causa o próprio modelo de negócio dos jornais, isso por seu lado penaliza também o próprio produto que esses jornais fazem, o que acaba por afetar o papel dos jornais enquanto o chamado quarto poder da democracia. Conversámos também sobre outros aspectos deste tema, como as fake news e propaganda, o papel dos privados e o papel do Estado e a tensão entre eles, a necessidade de reinventar o jornalismo e de experimentar e de fazer inovações e falamos também de algumas especificidades do mercado português dos jornais, como por exemplo a particularidade, que a mim me parece um mau sinal, de quase todos os jornais portugueses terem um posicionamento político supostamente ao centro ou muito perto do centro. Termino com um teaser. Vale a pena ouvir a sugestão do convidado, fora da caixa, para resolver o problema da insustentabilidade financeira dos jornais. Só digo isto. Tem muitos riscos, mas também tem uma potencialidade grande. Então, bem-vindo ao podcast. Bom dia. Vamos lá falar do futuro dos média. Eu acho que é… eu nem sei exatamente para onde começar, na verdade, há tantas coisas, mas se calhar um ponto interessante. Já me dirás se concordas com o que eu vou dizer, parece-me que existe um… que se criou um mito, implicitamente, não necessariamente explicitamente, mas que ao falar-se de coisas como fake news e clickbait e o problema dos jornais em gerar rendibilidade, gera de certa forma a crença de que o jornalismo está pior ou que o conteúdo jornalístico está pior, o que não parece que seja propriamente verdade. Desde logo, em termos relativos até se pode argumentar que sim, mas em termos absolutos de todo não. Ou seja, nós hoje em dia temos acesso a muitíssima mais informação do que tínhamos antes, qualquer um de nós, e isso tem efeitos diretos desde logo enormes, e tem efeitos indiretos socialmente, eles próprios também muito grandes, porque sim, cada um de nós pode transmitir essa bagagem com que vai entrando em contacto a outras pessoas e gerar uma série de efeitos de terceira ordem que socialmente são, no fundo, aquilo para que o jornalismo serve, comparativamente ao que acontecia antes, que a pessoa comprava um único jornal.
Gustavo Cardoso
Eu penso que em primeiro lugar nós temos que olhar para o tempo em que vivemos. Historicamente, Nós tínhamos uma concepção, por exemplo, do que era uma pessoa estar informada. Durante o século XX, uma pessoa estar informada passava quase sempre pela ideia de que a pessoa estava atenta às notícias, àquilo que ia acontecendo. De alguma maneira, essa concepção de estar informado alterou-se nas nossas sociedades e no início do século XXI, nesta década e meia, quase duas décadas de vida no século XXI, é muito provável que alguém a quem seja perguntado o que é estar informado responda a coisas como, por exemplo, ter internet, ter a possibilidade de encontrar aquilo que preciso, de encontrar sobre o que me interessa, sobre aquilo que está a acontecer. O sobre aquilo que está a acontecer tem a ver com notícias, mas aquilo que me interessa pode não ter a ver obrigatoriamente com notícias. Eu acho que há uma transformação na nossa perceção do que é estar informado e que isso tem a ver com as mudanças tecnológicas, mas tem a ver também com algo mais e esse algo mais não é apenas a questão da prática do jornalismo, é a forma como nós olhamos para o mundo, em termos de sociedades desenvolvidas no século XXI. E, portanto, o jornalismo sempre conviveu com a existência, por exemplo, agora só para falar de outra tecnologia, de livros. Os livros eram quase como se fossem o campo para saber mais, para ter um saber especializado sobre alguma coisa e as notícias eram para estar informado. Com a internet e a despersonalização de informação e com muito mais gente a produzir, com uma outra dimensão que tem a ver com a rapidez também do acesso e da produção, de alguma maneira esse mundo entre os dos livros e dos jornais, entre os livros versus a televisão e o cinema e a rádio, fundiu-se. E a partir daí, eu creio que estavam criadas as condições para que culturalmente nós tivéssemos mudado a nossa percepção sobre a importância do jornalismo. Não é por acaso que hoje em dia as pessoas e o próprio jornalismo têm que vir explicar porque é que é importante que haja jornalismo. E a partir do momento em que nós temos que fazer uma explicação é porque algo está a mudar. Isto não quer dizer que o jornalismo no futuro não venha a ser tão importante como foi no passado e como é no presente. O que se passa é que nós passamos a ter que perceber porque é que é importante. É um pouco como as alterações climáticas, se quisermos. Nós vivemos, temos o planeta onde estamos, mas não pensávamos, até há pouco tempo, que alguma coisa pudesse correr mal ou que a nossa ação contribuísse para que as coisas ficassem piores. Com o jornalismo é um pouco a mesma coisa. De repente o jornalismo deixou de ser como o ar que nós respiramos e passou a ser algo que nós podemos ter ou não interesse em acompanhar, em lidar com. E depois também se transformou isto tudo, estamos a falar aqui de vários patamares, mas há também uma coisa em que o jornalismo também foi apanhado no meio e que tem muito a ver com o que estávamos a conversar há pouco, que é a própria construção frásica, ideológica, do que são notícias falsas. Supostamente as notícias nunca foram falsas, havia propaganda e notícias. Até haver um presidente ou candidato, Donald Trump, que introduziu esse spin, essa lógica de discussão na agenda política porque lhe interessava, porque tinha uma imprensa a fazer o seu papel tradicional. E a partir daí fomos apanhados todos nessa armadilha também.
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Mas foi ele quem introduziu? Tinha a ideia que ele tinha apropriado do termo.
Gustavo Cardoso
Ele introduziu naquilo que é a cultura mediática do nosso cotidiano. E ao fazê-lo, e ao ter sido acompanhado pelos próprios mídia e pelo jornalismo que deu voz a essa concepção, a essa arma política, acabou por ainda criar uma maior dinâmica de, não tanto de desconfiança, mas de perguntar porque é que é efetivamente importante que haja jornalismo. Eu sei, se me perguntarem, amigos, porque é que é importante que haja jornalismo. Bem, se nós quisermos viver em sociedades democráticas é fundamental que haja jornalismo. É fundamental que haja, não só na dimensão política, mas na económica, social e cultural, jornalismo. Ou seja, responder à pergunta porquê o jornalismo é importante tem a ver com o facto de, se nós quisermos viver em sociedades democráticas, necessitamos de jornalismo. Com todas as questões que se colocam sempre, de saber e das críticas, de dizer não, não é imparcial, não, não é objetivo, não está a atacar só para um lado, não está a ser equilibrado. Tudo isso faz parte da discussão sobre o jornalismo e também faz parte daquela mistura que nós à altura encontramos e em particular no caso português, quando estamos a falar sobre jornalismo e falamos, por exemplo, sobre televisão e misturamos tudo. Misturamos aquilo que é jornalismo efetivamente do que é, por exemplo, comentário. E aí é óbvio que em algumas situações e em alguns contextos há comentário que é mais posicionado para um lado de um determinado conjunto de partidos, para o outro, portanto uns estão mais bem representados, outros menos e isso tudo cria na nossa percepção, muitas vezes nós mostramos tudo. Jornalismo é estas coisas todas e não é. Mas isso depois é, precisamente por isso é que também o Donald Trump depois utiliza a questão das notícias falsas, etc. Mas é interessante também se calhar nós pensarmos uma outra coisa, é que a nossa desconfiança, entre aspas, face ao jornalismo ou a introdução dessa questão da desconfiança, tem muito a ver com uma espécie de interregno, ou seja, o interregno normalmente costuma ser definido quando o velho ainda não morreu e o novo ainda não nasceu. Nós estamos a viver uma espécie de interregno desde, em termos, já vou explicar o que é que eu quero dizer com isto, desde a queda do Morro de Berlim, ou seja, desde o final dos anos 80, princípios dos anos 90, até quase este início do século XX, século XXI, portanto, houve uma espécie de ideia de que muita coisa tinha mudado. E nós esquecemos, por exemplo, que a propaganda sempre conviveu lado a lado com o jornalismo. Hoje em dia, quando fazemos, quando estamos preocupados sobre os populismos, sobre a questão das notícias falsas, etc. Estamos apenas a reviver, ou, em algum caso, nas gerações mais novas a viver pela primeira vez, uma prática que sempre acompanhou o funcionamento de sociedades democráticas e não democráticas. Que é a existência de propaganda. Ou seja, crer que as pessoas pensem de uma determinada maneira, levá-las a ter uma determinada dúvida sobre algo e isso fazia parte do arsenal das democracias e dos regimes totalitários durante a Guerra Fria, já não para falar mais do princípio do início do século XX. Portanto, o que nós não estávamos habituados, precisamente por termos vivido esse período de paragem, era a ideia de que as nossas sociedades viviam ativamente embrulhadas, entre aspas, em práticas de propaganda. Até
José Maria Pimentel
porque essas coisas, eu costumo dizer, é uma coisa que quase sempre dizer a propósito de tudo, que determinada coisa não é discreta, é contínua. E aqui é um bocadinho isso, ou seja, não se trata de haver um mundo sem fake news ou sem propaganda e outro mundo com propaganda, o que existe é sempre uma dose de propaganda variável entre uma realidade e outra e mesmo nos países democráticos existia propaganda. Aliás, salvo erro, o inventor da propaganda era um tipo que até estava ativo, sobretudo nos Estados Unidos, se não estou em erro. A
Gustavo Cardoso
propaganda foi uma arma utilizada pelas democracias para combater regimes socialitários também. Exatamente, sobretudo durante a guerra. E durante a Guerra Fria e durante a Segunda Guerra Mundial e, portanto, e nós tivemos lá na nossa guerra colonial também, chamávamos-lhe a ação psicológica e outras coisas, portanto, ela existe sempre.
José Maria Pimentel
Então, mas espera, é que apesar de tudo há aqui duas coisas diferentes, acho eu. Uma coisa é a propaganda, a propaganda no fundo é determinada gente, seja ele o Estado, ou determinado governo, seja ele um privado com um peso econômico suficiente para o fazer, que tenta influenciar a opinião pública.
Gustavo Cardoso
Ou pelo menos criar dúvida.
José Maria Pimentel
Exatamente, ou pelo menos criar dúvida. Mas existe também Outra coisa que não sendo propaganda pode estar ali borderline na questão das fake news, que é os jornais ou outro meio que começa a publicar notícias tendenciosas não por ter uma espécie de agenda propagandística por trás, mas por, ou por desleixo, ou porque sabe que é aquilo que aquele determinado nicho do público quer ouvir. Quer dizer, nós tivemos muito... No Reino Unido já existe há muitos anos, aliás, acho até uma questão interessante comparar os tabloides britânicos, que existem há décadas, com aquilo que agora começa a acontecer, que aquilo agora se vê muito em sites online e difundido através das redes sociais, que são notícias simplistas, notícias tendenciosas, com alguma manipulação dos factos, mas não necessariamente nessa lógica propagandística, numa lógica facciosa, se
Gustavo Cardoso
quisermos. Se nós quisermos pensar a utilização de notícias para propaganda, a notícia é apenas um instrumento da propaganda. A propaganda é algo mais vasto. A notícia é apenas um instrumento. Nós agora estamos a falar muito desta questão porque tem havido, há discussão sobre a questão do conluio russo ou não, mas o que é verdade é que, e isso está demonstrado, que as entidades ligadas direta ou indiretamente ao Estado russo, durante o período das eleições norte-americanas, tiveram atuação online e no terreno, criando notícias falsas, com o objetivo, obviamente, de propaganda, porque é uma arma que é barata. E para além disso, historicamente, a União Soviética era muito boa na prática de propaganda e portanto é barato, não é tão necessário investir noutro tipo de armas, funciona bem, cumpre os seus efeitos, cria dúvida e, portanto, dá vantagem para um dos lados. Portanto, nós tivemos este recrudescer da questão da propaganda e da atenção às notícias por causa disso. Mas tens razão, porque, naquilo que estás a dizer, porque isto também acontece, porque foram criadas as condições para que nós tivéssemos um determinado tipo de práticas jornalísticas que têm a ver, por um lado, com as transformações tecnológicas, mas por outro, com a própria evolução, de alguma forma, sincopada das próprias notícias. O que é que eu quero dizer com isto? Bem, por exemplo, nós sempre tivemos a imprensa cor-de-rosa, ou definida como as questões em torno de um determinado núcleo de pessoas na sociedade. Reis, princesas, homens de negócios poderosos, playboys. Depois substituímos, fizemos, ou seja, tínhamos o cinema também, há atores e atrizes, depois passámos para os desportistas, depois criámos celebridades nos próprios programas de realidade, ou assim denominados, e isso que era normalmente parte dos jornais, por exemplo, mais na questão dos jornais, de algumas páginas de dentro, foi ocupando cada vez mais espaço até ganhar preponderância. E, portanto, isso criou uma prática, isso é o que estamos a falar dos tabloides, tem muito a ver com isso, embora com alguns casos bastante desviantes, porque não nos podemos esquecer que a dada altura, num dos casos, num dos títulos do Rupert Murdoch, a dada altura houve escutas ilegais e tudo mais alguma coisa. Portanto, basicamente introduzindo, vale tudo para contar uma história e faça vender jornais. Mas, uma questão é complexa que gostamos de tratar, porque se ela fosse simples já muitas outras pessoas teriam uma piada e explicar tudo. É porque aconteceram uma série de coisas ao mesmo tempo. As empresas de comunicação social, por exemplo, nos anos 90, também se tornaram em grande medida parte da lógica comercial e empresarial tradicional de mercado, ou seja, foram para a bolsa e passaram a ter, porque foram tentar arranjar dinheiro, colocando ações em bolsa, estando sendo transacionadas e a partir de dada altura o que nós tivemos foi a obrigatoriedade de produzir também excedentes, ou seja, lucros para serem distribuídos, ter uma boa situação financeira. Nós não nos podemos esquecer, por exemplo, no caso português, que nas vésperas da Revolução, o nosso sistema mediático em Portugal, portanto, a Revolução do 25 de Abril, estava falido e a banca também não estava em boa situação. Portanto, os jornais, só para falarmos daqueles que estão há mais tempo presentes, não a televisão nem a rádio, sempre tiveram dificuldades em gerar excedentes.
José Maria Pimentel
Na verdade, eu acho estranho que não tenham. O contrário é que é estranho. Já lá vamos.
Gustavo Cardoso
A questão é que as empresas, e isso tem muito a ver com a nossa… as empresas podem dar lucro, é um facto. Um jornal é normalmente uma empresa, uma rádio também, uma televisão também. A questão é saber qual o nível de lucro que deve estar associado e o que é que se tem que fazer para obter um determinado nível de lucro. Se nós temos que remunerar acionistas e se temos que atingir um nível bastante elevado de lucro, pode, em algumas situações, ser complicado para assegurar a própria viabilidade. E, portanto, é preciso não desligar a dimensão económica também da dimensão dos problemas, porque a partir de dada altura, se é preciso efetivamente continuar a estar no mercado e a ter presença, então tem que se fazer algo para que as pessoas venham até nós e depois experimenta-se e por vezes fica-se preso à própria experimentação e com isso acabamos por introduzir práticas que estão exatamente na fronteira entre aquilo que seria considerado aceitável ou não aceitável. Por vezes até introduzindo aquela justificação da ideia de que não as pessoas percebem que isto é só para lhes chamar a atenção. Mas nós mantemos no quadro central aquilo que é a prática jornalística como ela é definida.
José Maria Pimentel
Sim, mas agora fizeste um aponto para uma coisa… Deste um pretexto para fazer aponto para uma coisa interessante, porque o jornalismo no sentido de lato é aquilo que a economia chama um bem público. E é um bem público muito particular, que é interessante, ou seja, é um bem público que basicamente significa que, só para explicar para quem não está a ouvir, é como a luz da rua, por exemplo, é uma coisa que ilumina a minha casa e a casa do meu vizinho, ao mesmo tempo, ou seja, se eu pagar por ela, o meu vizinho usufrui na mesma e eu utiliza-la e nada diminui a capacidade do meu vizinho de utilizar aquela luz. E o jornalismo, e portanto significa que coisas como a luz ou a defesa nacional, não sei o quê, têm que ser, normalmente são serviços prestados pelo Estado Porque é a única forma de eu fazer num nível adequado socialmente, porque se não o mercado... Eu não ia pagar luz suficiente para todos nós usufruirmos e íamos acabar provavelmente com a rua sem luz. O jornalismo é muito isto, com uma série de nuances, mas é muito isto no sentido em que, tanto pelo efeito indireto, hoje em dia com a internet muito mais parece-me que é pelo efeito indireto das notícias, o facto de eu poder ler notícias sem pagar nada por elas, mas também, ou historicamente é sobretudo pelo efeito indireto, tu lês uma notícia, lês um artigo sobre qualquer coisa, comendas o artigo comigo, eu estou a ter acesso àquele artigo sem ter sem ter pago por ele, no fundo é esse efeito social indireto e significa que haja uma descolagem natural entre o valor social e o valor económico daquela notícia. O valor social é muito maior do que o valor económico que é só o jornal que tu pagaste, para usar este exemplo. E o valor social são as várias pessoas a quem tu contaste e as várias pessoas a quem essas várias pessoas contaram, quer dizer, uma série de... E depois o próprio efeito de accountability, à falta de a melhor expressão, sobre os agentes políticos, por exemplo. E é quase, se a pessoa olhar para trás, é quase um mistério como é que a coisa, em certas alturas, resultou. Como é que, a certas alturas, foi possível encontrar modelos que garantissem alguma sustentabilidade económica, sabendo nós que havia estas estranidades positivas todas que não podiam ser capturadas pelo… Ou seja, que havia este valor social que era criado pelo conteúdo jornalístico, mas que não era possível ser capturado pelo jornais.
Gustavo Cardoso
No fim de contas, se nós olharmos para a relação entre a dimensão económica e a prática do jornalismo, houve um equilíbrio em dado contexto, nomeadamente na dimensão da publicidade, quando não havia outro meio de chegar às pessoas que não fosse, chegar a um número alargado de pessoas que não fosse através de uma rádio, de uma televisão ou de um jornal. E, portanto, a publicidade está, a regra é, a publicidade está onde estavam ou onde estão as pessoas. Sim, a publicidade
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foi a maneira de pôr a peça que faltava nessa... Foi
Gustavo Cardoso
a forma de criar uma lógica de monetização que, historicamente, foi crescendo nas nossas sociedades, nas sociedades de massa do século XX. Foi possível casar essa dimensão económica, ou seja, eu quero vender os meus produtos, quero chegar às pessoas, onde é que estão as pessoas para me ouvir, para saber que eu tenho os meus produtos? Elas estavam na televisão, na rádio e nos jornais, entre aspas, porque era o que liam, o que ouviam e o que viam. A partir de um momento em que essa lógica desse espaço se quebra e entra a internet, e entra uma outra lógica econômica, de lógica de rede, e já não apenas de difusão e de distribuição, como nós vimos nos jornais e na rádio e na televisão, então as pessoas passaram a estar em outros sítios. E a questão, é uma questão que os economistas há muito tempo conhecem, é a do efeito de rede. Quando nós temos uma rede, a lógica tradicional das práticas, do nosso próprio comportamento, é que haja um vencedor, ou seja, a ideia de que the winner takes it all, ou de outra posta, de outra forma, também dito, mas aquele a chegar primeiro e a ter sucesso conquista tudo, que é a mesma coisa dizer que tendem a existir muito mais monopólios numa economia de rede do que numa economia sem ser de rede. E, portanto, nós também vivemos estes de 95 quase até agora, que já são duas décadas e mais alguma coisa, num mundo onde se achou que não era necessário regular nada e que tudo fazia sentido porque era um mundo novo. E isto marcou muito, foi uma lógica cultural que vem da dimensão mais económica, mas marcou muito a própria prática política e a prática da regulação. E, hoje em dia, a gente pergunta onde é que estão as pessoas? Bem, as pessoas estão normalmente em coisas que são, coisas entre aspas, que são monopólios à escala global. Estão no YouTube, estão no Facebook, estão a consultar as suas pesquisas no Google e quem diz isto depois diz outras empresas e que algumas delas são todas da posse da propriedade das outras. E, portanto, nós criámos um universo muito diferente, em que o universo que estava separado, por exemplo, pela questão da língua, em que havia os jornais em português e os jornais americanos e uns e outros não eram lidos, para um mundo onde as plataformas e o conteúdo que lá está adentro e a monetização tem a ver ou só pode ser efetivamente gerida e trabalhada com a anuência dessas plataformas. E, portanto, a questão é para dizer, as pessoas mudaram, deixaram de estar em alguns sítios e passaram para outros. Mas isto não é a história toda, porque a história toda, se nós quisermos contá-la, temos que olhar também para as particularidades do que é o mundo falado em português, em particular de Portugal. Não quer dizer que não aconteça a mesma coisa noutros países que falam português no Brasil, Angola, Moçambique, Quiné, Timor, etc. Mas nós temos algumas características que têm de ser bem pensadas e uma delas, para se quisermos fazer uma análise correta, E uma delas é que claramente existem jornais a mais, talvez não existam televisões a mais, talvez existam também algumas rádios a mais, ou então nós temos que reinventar, se não existirem a mais, então a única forma de poder dizer que uma coisa é diferente é se conseguimos reinventar a maneira de gerar lucro e receitas para este universo.
José Maria Pimentel
Mas, pera, desculpa interromper. Quando dizes que existem a mais, existem a mais do ponto de vista do valor social ou do valor económico? Do
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valor económico. Porque do valor social tudo pode existir, todos nós, nós estamos aqui a falar, estamos a fazer aqui um podcast, eu posso fazer vídeos no isquiteto. Mas a questão é, eu não vou conseguir gerar receitas a partir daí que sustentem os projetos por si próprios. Isso depois já é uma outra discussão sobre... Mas passo por passo, olhando para a realidade que nós temos hoje, se alguém perguntar, ok, então, mas há problemas na imprensa escrita. Há. Porquê? Porque a publicidade saiu do local e foi para o global, ou seja, a publicidade passou a estar muito mais presente na internet e a ser gerida, eficiencialmente, pelo Google e pelo Facebook e deixou de entrar, portanto, nas contas dos jornais, nomeadamente os jornais nacionais, porque os jornais locais, se tiverem estratégias bem pensadas para lidar, ou seja, se investirem a sua parte comercial e tiverem capacidade e engenho de fazer coisas de maneira diferente e de se reinventar nessa relação de proximidade, podem vir a ter um futuro mais ou menos equilibrado. Agora, os jornais nacionais, por exemplo, têm outro tipo de problema, porque as receitas tradicionais eram da venda em bancas, das assinaturas e da publicidade. E se nós olharmos para aquilo que é um jornal hoje em dia e aquilo que era um jornal há 20 anos atrás, nós vamos notar alguma coisa. E podemos fazer isto, não tem... É quase um exercício arqueológico, mas vale a pena ser feito. Podemos perguntar assim, antigamente os jornais tinham anúncios de carros. Onde é que estão os anúncios de carros? Na internet. Os jornais antigamente tinham anúncios de alugueres de casas. Onde é que estão os anúncios de alugueres de casas? Estão na internet. A gente até podia começar a dizer marcas. Pronto, ou seja, há de 20 anos atrás, Airbnb provavelmente seria num jornal. Hoje em dia é numa plataforma, está disponível. Emprego, a mesma coisa. Antigamente era nos jornais, hoje em dia está na internet. E podíamos continuar por
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aí. E aqueles únicos de serviços sexuais que apareciam. Também deve ter saído. Agora estou a pensar nisso. O
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sexo também acaba por estar em outras plataformas. Não é exatamente a mesma coisa, até porque o Tinder não é uma plataforma de venda, ou pelo menos não é diretamente uma
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plataforma de venda. Não, eu ainda estava a pensar nisso, mas nunca mais apanhei isso.
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Mas estão em outros sítios também. Agora, há uma coisa, se nós pensarmos, o que é que ficou nos jornais? Bem, por agora ficaram as notícias, alguma publicidade e a necrologia. Basicamente, os jornais... A
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necrologia é uma grande força dos jornais locais, não é? Continua a ser.
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Locais, mas mesmo nos nacionais. Nós vamos ver, e se quiséssemos introduzir outras coisas, e as farmácias e os cinemas sim, também estão, mas as pessoas normalmente pesquisam na internet. Aliás, isso verifica-se quando se vai ver, semana passada, isto está, vamos colocar aqui uma questão temporal, portanto, na conversa, mas quem nos ouvir depois fará essa separação, fogos em março, as pessoas estavam a pesquisar na internet sobre os fogos, onde é que estavam a acontecer, portanto, as pessoas telefonam, ou telefonavam mais antigamente, mas hoje em dia pesquisam na internet. Portanto, nós fomos retirando uma série de conteúdos que eram acessórios, mas que estavam juntos com as notícias aos jornais. E as pessoas também foram desaparecendo, pelo menos dos jornais em papel. Na questão da internet, é óbvio que toda a cultura de gratuidade e da ideia que a informação quer ser livre, a informação quer ser livre, não as notícias querem ser livres, para voltar ao princípio da conversa. Tudo isso criou uma lógica de não pagamento. Agora, vamos introduzir aqui, não vamos só dar mais notícias. Como é que isto se resolve? Bem, talvez se resolvesse da mesma maneira que outras coisas se resolvem, ou seja, perguntando em primeiro lugar onde é que as pessoas e o que é que as pessoas continuam a pagar e a pagar em termos de faturas. Pago em eletricidade, água, telecomunicações. Bem, então vamos fazer o seguinte raciocínio. Quantos grupos grandes de telecomunicações é que existem em Portugal? Pronto, podemos dizer nós, Altice, Vodafone, depois também podíamos contar... Com três grandes e mais um. Ok, mas pronto, Mas três grandes. Então vamos pensar assim, bem, se, isto por exagero, porque eu tenho dúvidas que as pessoas aceitassem isto que eu vou dizer, pelo menos para este valor, se nós cobrássemos um euro a mais na fatura da nós, da Altice e da Vodafone, por uma assinatura mensal do jornal, que eu acho que tinha que ser menos, isso, se nós introduzíssemos o valor do que é o número de pessoas que utiliza o internet em Portugal que anda à roda dentre os seis, vamos ser conservadores, seis milhões e meio de pessoas, sete milhões de pessoas, isso queria dizer por mês o valor da conta que acabámos de fazer, ou seja, 6 milhões de euros se todos dessem 1 euro. 6 milhões de euros é uma verba que é totalmente impossível sequer de imaginar hoje em dia no quadro de uma redação ou de alguém que esteja a gerir um jornal. Qual é que é o problema? O problema é que se isso acontecesse, se as pessoas aderissem, fosse 6 milhões ou 3 milhões por mês de valor, não havia lugar para todos os jornais que estão. Porque numa economia de rede aquilo que iria acabar por acontecer é que o primeiro a entrar ocupava o espaço dos restantes e, portanto, teoricamente existiria lugar em Portugal para três jornais, um ligado a cada uma das empresas de telecomunicações, o que traduziria depois numa outra discussão que é a concentração E depois iríamos bater novamente à porta das discussões sobre o poder e ter muito poder, pouco poder
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e a comunicação e o poder. Então, mas espera
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lá. A tua ideia era ter uma ligação direta entre cada uma das operadoras de um
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jornal ou todas elas contribuírem para um bolo? Elas... Aquilo que aconteceria, provavelmente, teria que ser feito... Os jornais e as rádios e as televisões sempre funcionaram numa ligação identitária com quem os consome. E, portanto, muitas vezes isso tem a ver, e sempre teve a ver, é preciso dizer, com o facto de eu sentir que as ideias e as notícias que são publicadas naquele jornal, e eu superei ideias e notícias, porque as ideias são dos documentários, as notícias são as dos jornalistas, têm algo a ver com a minha visão do mundo. Em sociedades democráticas isso quer dizer, obviamente, que tem a ver com as pessoas com as quais eu me identifico politicamente e, por vezes, pode ter ou não a ver com partidos. Claro, mas
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eu dizia isto porque podia haver uma alocação de… Bom, mas já lá vamos. Sim, ok. Já lá vamos a isso.
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José Maria Pimentel
Falando do... Acho que é importante para quem nos está a ouvir falar do problema isto é, daquilo que mudou e que causou isto. Há desde logo o principal fator desruptor de tudo isto, tem a ver com a internet, que acaba por ter uma série de efeitos paralelos e interligados entre si. Por um lado, aquilo que falavas há pouco, nós termos acesso imediato à distância de um clique a todo tipo de notícias e tendencialmente de forma gratuita, ou seja, do ponto de vista da oferta a deslogue esse efeito. Há também um efeito que eu acho, em última análise, bom, embora tenha dores de crescimento, se quisermos, ou seja, tenha, pelo menos inicialmente, alguns efeitos negativos, que é a questão de, num mercado onde existiam barreiras à entrada, de repente essas barreiras praticamente desapareceram, para não dizer que desapareceram completamente. Ou seja, hoje em dia não há praticamente nada que me impeça de fazer um site online
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com o aspecto... A única coisa é saber se podes viver desse site.
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Exatamente, já lá vamos. Estou a falar da oferta social, se quiser, em termos de valor social, não da questão económica, já lá vamos. Mas do ponto de vista daquilo a que nós temos acesso, a verdade é que, e há muita gente que o faz sem necessariamente receber nada por isso, as pessoas escrevem em blogos ou que lançam um... E há até jornais, o Huffington Post, por exemplo, surgiu de um blog, portanto, desde logo há uma série de ramificações por aí, sites que dão uma espécie de notícias que as pessoas tomam como notícias, não é? Portanto, a fronteira entre jornais ou meios de comunicação social e blogs e outras coisas mais soft, dilui-se completamente e de repente a pessoa passa a ter acesso a uma série de coisas que para nós conta como fonte de informação e muitas vezes é o. Para não falar da wikipédia, por exemplo, que é um caso óbvio. Depois, por cima disto, surge a questão, até um bocadinho mais tarde do que este efeito inicial, embora eu tenha ajudado a impulsionar, surge a questão das redes sociais, que tu aludias há pouco. E as redes sociais têm, elas próprias, uma série de efeitos. Desde logo, elimina o papel tradicional dos jornais enquanto estrutura de mediação. Os jornais, no fundo, mediavam, digeriam a informação por nós, no que isso tem de bom e no que isso tem de mau. Não tem um efeito mau, na minha opinião, de um certo, se calhar, contrariar um certo pensamento crítico, não é? E a pessoa criticamente acreditava no que estava no jornal, mas tem obviamente um efeito bom de diluir e interpretar, contextualizar e permitir-nos ter ali uma espécie de autoridade segura em que nós conviamos. Isso, mais ou menos, desaparece e é substituído por aquilo que tu... Tu, aliás, falas de uma coisa... Falas da ressignificação, não é? Que é um termo que eu não conhecia e que tem um bocadinho que ver com isto, não é? Que são, no fundo, pessoas... Alguém que partilha uma coisa numa rede social e que lhe dá a sua própria interpretação, não é?
Gustavo Cardoso
Nós viemos de um mundo em que nós tínhamos uma série de especialistas a quem entregávamos e em quem confiávamos na sua capacidade de selecionar e validar informação. Nós estamos a falar dos jornalistas, por um lado, mas estamos a falar dos professores também. E estamos a falar de uma série de outras profissões que tiveram que se adaptar ao diálogo com pessoas que se informam também sobre os mesmos assuntos. Não vamos falar disso aqui, mas a própria profissão médica se transformou com a chegada da internet. Porque as pessoas passaram a ir às consultas médicas a perguntar... Eu estive a fazer esta listagem de sintomas, será que tenho isto? Preciso saber se tenho ou não tenho. Portanto, é completamente diferente. Eu não sei o que é que se passa comigo, mas sinto isto. Portanto, são, isso muda. Mas na medicina, porque é um elemento central da vida humana, que é precisamente a vida, a questão foi resolvida pela autoridade. Dizer assim, ok, tudo bem, você pode pensar o que quiser sobre aquilo que tem, mas tem que acreditar em mim porque sou eu que o vou tratar. Portanto, se não quiser, escolhe outra pessoa. E, portanto, é muito diferente. Com a questão da informação, e os professores têm esse problema, porque a questão dos professores, fala-se muito, por exemplo, de como manter a atenção, como ser capaz de ser professor numa época que mudou, que já não é igual à anterior, como todas as épocas são sempre diferentes. Mas, a autoridade do professor saber o assunto não está tão colocada em causa quanto a do jornalista. Mas estamos a chegar lá, porque toda esta discussão atualmente sobre dimensões da ciência serem colocadas em causa, desde a vacinação até as teorias sobre a terra plana, todas as coisas que parecem nos fazem sorrir, mas que na realidade estão presentes nas nossas sociedades, são manifestações também dessa transformação cultural. Mas isso se dava pano para mangas para outro podcast e para outra conversa. Sobre a questão do jornalismo e da mudança do nosso crédito do jornalismo para ser capaz de lidar com o cotidiano e dizer-nos o que é verdadeiro e o que é não verdadeiro, tem a ver, isto diria eu, a explicação tem muito a ver com aquilo que sempre esteve presente na relação com o jornalismo. O jornalismo sempre se pautou por declarar e demonstrar que era objetivo e imparcial, mas ao mesmo tempo sempre foi uma ferramenta cobiçada por quem exerce o poder, seja ele político ou económico, para obter a vitória em qualquer coisa, que seja uma eleição, seja numa visão, seja num negócio, seja do que for, seja uma ideia. E, portanto, sempre houve esta tensão aqui E as pessoas sempre perceberam isso e por isso é que nós estávamos a falar há bocado desta ideia de escolher aqueles dos quais nós nos sentimos mais próximos. Tirando os jornais associados aos partidos políticos ou o caso da Itália, onde antes das mãos limpas e do desaparecimento do sistema político, normalmente os canais públicos tinham uma associação. Um era comunista, outro era da democracia cristã e outro era socialista. Mas isso é mais normal para o campo dos jornais.
José Maria Pimentel
Cascaram todos o Berlusconi. Exato.
Gustavo Cardoso
Mas as pessoas sempre acharam, sempre procuraram aquilo que sentiam mais próximo. E, portanto, a partir de dada altura…
José Maria Pimentel
Então, mas espera, desculpa interromper-me, mas isso não é… Deixem-me fazer uma provocação e isso não é uma contradição com a questão da objetividade? É que o mais próximo é ser subjugado. É uma contradição,
Gustavo Cardoso
é um jogo de sedução entre a comunicação social e as pessoas. Porque, quando as coisas funcionam de uma forma equilibrada, o que é que acontecia? Ter-se-ia mais comentadores, quando eu digo forma equilibrada, estou a falar entre a objetividade e o facto de oferecer uma pertença identitária política às pessoas.
José Maria Pimentel
Exatamente, porque há uma tensão entre essas duas coisas.
Gustavo Cardoso
Sempre. E esse equilíbrio, quando bem gerido, tinha muito a ver com a opinião refletir mais posições identitárias de uma determinada corrente política e o jornalismo manter-se na maior parte dos casos, porque também existem questões. Mas depois ainda vamos aqui falar de uma coisa a mais, se vier efetivamente, se for interessante. E o jornalismo se manter essencialmente balizado pelas dimensões da objetividade e da imparcialidade na análise e de cruzar as fontes e de ser capaz de fazer contraditório todas essas coisas que são básicas para… porque o jornalismo a partir do momento em que perde a percepção de que é isso, deixa de ser valorizado também pelas pessoas. Isto é um pouco estranho, mas basicamente é assim, eu posso ser de direita ou de esquerda e até achar que aquele jornal ou aquela cadeia de televisão ou aquela rádio é mais próxima de mim, mas se de repente se tornar, se perder a objetividade, se perder essa imparcialidade, de repente, de verdade, de repente, na prática, for mesmo mais próximo de mim, então eu deixo de acreditar na capacidade daquilo ser uma coisa séria. E, portanto, este equilíbrio é um pouco... Os teóricos da informação chamam uma coisa, sticky knowledge, por exemplo. A tradução seria conhecimento peguejoso, que não funciona muito bem em português, mas tem a ver com aquelas coisas que não se pode pôr num manual porque, por exemplo, andar de bicicleta. Se a gente dá as instruções de andar de bicicleta a alguém, aquilo que acontece é que a pessoa provavelmente vai cair da bicicleta. Há certas coisas que só fazendo é que se consegue efetivamente aprender. E a prática jornalística, este equilíbrio difícil de ser feito, é algo que não está nos manuais e que não se ensina. Mas é isso que faz o sucesso também da relação entre o jornalismo e o seu público. Agora, há um problema no meio disto tudo, e o problema no meio disto tudo são, por exemplo, as perceções que os atores políticos, por vezes, têm da relação com o jornalismo, que é ver numa determinada prática do jornalismo algo contra si. E isso normalmente dá os maiores disparates possíveis imaginários. Historicamente, nós tivemos em Portugal, nós já tivemos jornalistas que foram políticos e já tivemos políticos que depois, esquecendo-se de referir isso, atacavam esses jornalistas como tendo um viés, em vez de dizer, não, olha aquela pessoa que também já esteve num parlamento onde eu também já estive. Ou seja, há aqui uma dificuldade muito grande dos atores políticos em lidarem com os jornalistas e assumirem que o jornalismo é sempre à partida imparcial e é objetivo. Agora, coisa diferente é a apropriação por outros atores políticos daquilo que os jornalistas dizem. E se nós olharmos, por exemplo, para polémicas recentes, se nós quisermos pensar sobre aquilo que tem sido a discussão das nomeações de familiares. Isto é um pouco estranho porque, na realidade, há dois tipos de lógica, só para contextualizar o problema. Nós temos concursos e nomeações. Nomeações são políticas, portanto, eu posso nomear quem me apetecer, porque não tenho que fazer obedecer isso a algo que tenha a ver com, por exemplo, um concurso, quando eu me apresento para uma candidatura de uma carreira de professor, etc., em que tenho que mostrar provas de uma série de coisas. Mas depois existe a perceção pública sobre isso, isso já é uma outra questão. Mas, curiosamente, aquilo que aconteceu nos últimos tempos sobre a questão das nomeações é que a dada altura os políticos, por exemplo, do Partido Socialista ficaram a achar que haveria da parte do jornalismo alguma perseguição. Mas, na realidade, as notícias até foram a maior parte dos casos, a gente já vai chegar, porque é também interessante como exemplo prático aqui para a nossa conversa, foram basicamente notícias imparciais descrevendo as coisas que estavam a acontecer. O que aconteceu depois é que os comentadores, todos os comentadores que se posicionam politicamente em oposição, porque os comentadores são tudo menos jornalistas, mesmo que, e isso é uma questão interessante, mesmo quando nós temos jornalistas que são convidados para fazer comentário. Porque aí se libertam. E aí são aquilo que nós somos, pessoas. E a certa mentira é suposto que sejam. E é suposto que sejam. Agora, o problema é o nosso sistema mediático também tem algumas particularidades. E esse de ter muitos comentadores que são jornalistas e muitos comentadores, ou quase todos os comentadores que são políticos. Exatamente. Aliás, em Portugal quase que se poderia dizer que enquanto a televisão, os jornais e a rádio coroarem os próximos primeiros ministros e os próximos ministros de qualquer partido que venha a estar no poder ou que venha a estar numa câmara, ou em algum outro lugar, ou de ser deputado, etc. Enquanto tiverem a capacidade de fazer isso, ou das pessoas acharem que fazem isso, terão a sua presença assegurada nas nossas vidas. Mas isso a gente já pode
José Maria Pimentel
depois voltar a isso mais um bocado. Mas espera, deixa-me aproveitar rapidamente só esse parênteses, porque eu lembro-me de há alguns anos de ter lido uma notícia, se calhar até, confesso que já não lembro, mas se calhar até contribuíste para essa peça, não sei, era da Sábado da Visão, de uma dessas revistas, que era justamente sobre a peculiaridade do nosso sistema, na altura já dava o exemplo do atual Presidente da República, como aquela bizarria de nós termos comentadores que são ex-políticos, ou seja, de haver essa espécie
Gustavo Cardoso
de transição. Ou temos políticos que, por estar no comentário, aspiram a vir a ser mais. Ou
José Maria Pimentel
seja, é como
Gustavo Cardoso
o nosso ecossistema político, que é um ecossistema ainda herdado do século XX, e portanto eu acho que aliás o Marcelo Rebelo de Sousa é o último da sua... É alguém que cresceu, nasceu, cresceu com a televisão, aproveitou-a ao seu máximo, não tenho a certeza que a maior parte dos próximos políticos venha a ser... A poder fazer o mesmo caminho, até por uma razão muito simples. Não é que seja ainda dramático, mas em termos de práticas, na população mais jovem, as pessoas tendem a não consumir televisão. Consumem conteúdos televisivos, mas não consomem televisão. Ou seja, consomem séries, consomem filmes, mas têm alguma dificuldade. Consomem podcasts, mas têm alguma dificuldade em estar, olhar para um ecrã durante muito tempo. Consomem notícias nas redes sociais, também aquelas que lhes chegam, mas, portanto, há aqui uma... A televisão, enquanto vai continuar a ter a sua presença, vai continuar a estar, mas não quer dizer que seja possível repetir um efeito Marcelo Rebelo de
José Maria Pimentel
Sousa. Sim, eu já falava disso com o Pedro Boucher, a questão da televisão de fluxo, acho que é assim que se chama, aquela televisão da pessoa ligar e estar a dar, não é? Essa é uma televisão que hoje em dia se consome cada vez menos, embora eu acho que nunca se vai deixar de consumir, admito.
Gustavo Cardoso
Assim, os jornais nunca desapareceram, portanto a rádio não vai desaparecer e a televisão também não. Mas as práticas... Há coisas que desaparecem, não é? Há coisas que desaparecem, mas não aquelas... Mas não aquelas que têm uma presença... Ou melhor, colocando as coisas de outra maneira. Nós somos pessoas porque temos rotinas. A nossa vida é feita de rotinas. Mesmo que a rotina que nós adoramos seja quebrar rotinas. Mas é uma rotina, de qualquer das maneiras. E, portanto, os meios de comunicação social e o jornalismo e os conteúdos televisivos sejam oferecidos por plataformas nacionais, internacionais, por marcas nacionais, internacionais, têm a ver com a nossa capacidade de organizar o nosso dia em rotinas. E, portanto, por isso eu creio que eles não vão desaparecer. Agora, não quer dizer que tenham que ser dominantes. Portanto, essa é a questão. Mas, Voltando ainda àquele exemplo que estávamos a dar há bocado, só para percebermos um exemplo prático sobre o funcionamento do sistema mediático português e o cotidiano atual dos nossos mídia, a vontade, por exemplo, de encontrar ligações familiares produziu coisas completamente que dariam razão a Donald Trump em dizer que estão a ver os jornalistas que só queriam notícias falsas. Porque o que é que aconteceu? Quando o El País fez uma notícia sobre António Vitorino e a Ministra do Mar, dizendo que eram familiares, ou quando pôs o candidato das europeias, o número 1 e o número 2 da lista do Partido Socialista, como sendo familiares também. Quer dizer, começaram a surgir todos os disparates que são características de notícias falsas na imprensa que é suposto não ser criadora de notícias falsas. Portanto, o que nós de repente tivemos aqui foi um paradigma, a demonstração do paradigma dos problemas do contexto atual. E isto é importante porquê? Porque, ao contrário, muitas vezes, daquilo que os jornalistas e os políticos pensam, e porque são duas profissões de poder, ok? Essa também é uma questão importante. O jornalismo é uma profissão de política, é uma profissão de social. Aquilo que se repente as pessoas que não se pensam, ou que essas profissões normalmente não pensam sobre a população em geral, as pessoas têm ideias muito claras sobre a comunicação e sobre os erros. O caso português, medido internacionalmente, comparativamente com aquilo que faz o Oxford Reuters Institute, que tem um questionário que é aplicado em muitos países, Os portugueses têm a noção de que existem muitas notícias falsas no seu país, mas que notícias falsas são essas? São erros grosseiros dos jornalistas, ou seja, das marcas de jornalismo e dos jornalistas profissionais? São a perceção de que existem tentativas de clickbait, entre aspas, ou seja, tentar levar as pessoas a uma coisa que não é exatamente aquilo sobre o que é tratado. Portanto, o que se passou é que nós estamos a viver num mundo em que cada vez que há um pequeno problema, as pessoas aumentam a sua perceção de que o problema é muito grande. E aqui… E porquê que isso acontece? Acontece porque está criada a perceção de que há um problema, que são notícias falsas, propaganda, por aí por diante. Quando o jornalismo não toma ainda mais preocupações em lidar com esse fenómeno, qualquer pequena coisa que acontece contamina a percepção que se tem sobre o todo. E isso tem a ver com o seguinte, estávamos a falar, para responder o porquê, Jornalismo e política são duas profissões de poder, assim como os juízes também são e os bancais também. Todas aquelas pessoas que estão na órbita de uma profissão de poder têm... Há um problema que está sempre associado a eles, ou seja, que é este, O mal de um contamina a perceção sobre todos e por isso quando há corrupção com um político, os políticos são todos corruptos. Quando há erros grosseiros na prática jornalística, os jornalistas são todos desonestos. Quando há um problema num banco, os banqueiros são, já se sabe, o que são todos. Portanto, esta, quando o juiz faz, é porque os juízes são todos assim. E daí que seja, ao contrário de outras profissões, por exemplo, quando um professor faz um disparate, normalmente não se diz que os professores são todos iguais. E há outras profissões...
José Maria Pimentel
Mas porquê essa diferença?
Gustavo Cardoso
Porque tem a ver com a relação de poder. O professor tem poder dentro da sala de aula, mas tem quase nenhum poder fora de aula. Um político, um jornalista, um banqueiro, um jubilista tem poder na sua própria prática profissional, no sítio onde desempenha, mas vai muito para além daí, portanto, daí que sejam profissões de poder. E eu acho que o jornalismo em Portugal e noutros sítios, talvez não tenha ainda interiorizado, efetivamente, os prós e os contras de ser uma profissão de poder. Ser jornalista é ter a capacidade de poder moldar o curso dos acontecimentos. Esse é o lado, se quisermos falar, à guerra das estrelas, é o lado bom da força, mas também tem o lado mau da força. É que quando há um erro, isso volta-se para si e para todos. Aliás, se nós quisermos falar sobre questões de confiança, e agora juntando duas coisas que falámos, banca e jornalismo, não é por acaso que os bancos nunca, a menos que sejam obrigados, revelam os ataques de hackers ou os assaltos às suas dependências. Assim como o jornalismo normalmente também não gosta de dar visibilidade ao erro ou pedir desculpas com a mesma amplitude que deu visibilidade ao erro. Porque tem a ver com confiança. O jornalismo e a banca vivem da confiança das pessoas. Se as pessoas perdem a confiança, perde-se a relação, perde-se o negócio e vem tudo por aí abaixo. Portanto, quando nós normalmente apenas pensamos nestas questões da comunicação sobre as notícias, são boas, são más para uns, estão a sair, estão a ser bem feitas, mal feitas, mas as implicações das notícias na nossa vida, no nosso cotidiano, são muito mais vastas. E aliás, não é só a questão de basta perceber a confiança, por exemplo, nas redes sociais, é herdada, entre aspas, da prática jornalística. A partir do momento em que o Facebook começou a ser colocado em causa, em termos da confiança das pessoas para o tipo de informação e o tipo de impacto que estavam a ter as práticas, veio para baixo o seu valor bolsista também e muita gente começou a sair de utilizar o Facebook. A confiança é um elemento central em tudo aquilo que tem a ver com a informação e os erros pagam-se muito caro, daí que seja necessário que haja práticas muito bem controladas e muito bem estruturadas por parte das organizações onde as pessoas trabalham. E
José Maria Pimentel
a difusão desses erros também aumentou imenso com a internet, não é? Antigamente o jornal que errasse fazia uma nota no auge das últimas páginas. Eu vou introduzir
Gustavo Cardoso
alguma coisa do humor. Ampliou-se muito porque normalmente quando um jornal erra, ou uma rádio ou uma televisão erra, na era da internet erram todas a seguir por todas as copias umas às outras. Exato. Que é um outro problema.
José Maria Pimentel
E depois há outras questões, quer dizer, aquilo que nós falávamos há pouco de o problema do modelo de negócio e dos médias leva a que tenhas relações mais pequenas, relações com menos tempo e que sejam muito mais propensas a errar.
Gustavo Cardoso
Errar ou a ser desleixados. O jornalismo também tem modas. Para além de não ser igual em todos os países, tem modas. Os países podem ser todos democráticos, mas as práticas jornalísticas são diferentes e estão realizadas também da própria cultura dos países e daquilo que foi a prática jornalística que veio antes de quem está agora. Mas há também uma outra questão quando nós estamos a pensar no jornalismo que tem a ver com aquela pergunta básica que é, ok, mas então nós vamos fazer isto porque todos estão a fazer ou vamos fazer isto porque há pessoas que estão interessadas em nós. Eu diria que esta pergunta não é sequer enunciada nos dias de hoje, na maior parte dos casos, porque… e agora voltemos à questão económica. Se as coisas não estão bem economicamente nas redações, independentemente do seu tamanho, o que há é uma tentativa de resolver o problema. Tentativa de resolver o problema e aquilo que normalmente se está a tentar fazer, pelo menos quando nós olhamos para a nossa envolvente, seja em Portugal seja em outros sítios, é uma de duas estratégias, ganhar tempo ou concentrar. Ou seja, que desapareçam parte daqueles que estão, porque o mercado não vai crescer, mas divide-se por menos e, portanto, ganha-se tempo também. Ganhar tempo pode ser feito de outras maneiras, não seja apenas a concentração. Mas ninguém está muito interessado, muito preocupado em... Isso não é justo aquilo que eu estou a dizer. As pessoas estão interessadas, mas não conseguem perceber como é que vão resolver esse problema que têm atualmente, que é como é que eu vou criar novos produtos. O jornalismo, nós vemos, ah, estão a ser feitas coisas novas. Sim, estão a ser feitas coisas novas, mas se calhar estão a ser feitas coisas novas para exatamente as mesmas pessoas. Ou seja, há instrumentos diferentes, mas o jornalismo não mudou assim tanto que seja capaz de lidar, por exemplo, com as gerações mais novas. Eu estou sempre a repetir isto, não tenho a certeza absoluta de ter razão, mas estou à espera que me demonstrem que não tenho razão e por isso estou sempre a repetir, que é o seguinte, as pessoas mais novas que chegam à universidade e que vão para cursos de comunicação social atualmente, ou mesmo para jornalismo, uma parte substancial delas, eu diria a maioria, não consome produtos jornalísticos, mas deseja ir trabalhar para as empresas jornalísticas quando acabarem os cursos. Nesse processo, tudo correria bem se por aventura, na universidade ou nas empresas jornalísticas, houvesse espaço durante os estágios ou durante os cursos para que se experimentassem coisas novas. E quando eu digo coisas novas, não são as coisas que as pessoas velhas como eu, que tenho quase 50 anos, ou as pessoas que têm 30 ou que têm 40, que estão tão velhas nessa mesma perspectiva, sejam capazes de dizer aos outros para fazer, olha, faz desta maneira. Não. O que nós precisamos é de dar espaço para que as pessoas mais novas experimentem formatos, produtos, lógicas, práticas jornalísticas diferentes e têm que errar porque o grande problema é que não há espaço para errar hoje em dia nas empresas e a universidade não consegue
José Maria Pimentel
ser suficientemente...
Gustavo Cardoso
Não consegue porque tem essa relação, está a preparar pessoas para ir trabalhar para o mercado de trabalho que está lá fora, ou seja, não está vocacionada para inovar e para quebrar barreiras, porque a universidade é uma instituição conservadora, tal como, por exemplo, a Igreja Católica, sobrevive só por uma razão, quer uma quer outra. Mas esta é a minha visão, porque tolera a dissidência nas franjas e quando o mundo muda, tem alguém sempre disponível para ocupar o lugar da dianteira e vai buscar o lado de incidência, para manter a dimensão conservadora. Pronto. Portanto, a inovação é muito...
José Maria Pimentel
Essa é uma teoria interessante.
Gustavo Cardoso
É muito complicada de introduzir, mas existe. E portanto, elas inovam, sobrevivem, mas sempre num quadro conservador. E essa é a razão da sua durabilidade. Quando as empresas morrem e, portanto, as universidades continuam e as igrejas tendem também a ter essa capacidade de sobrevivência. Mas, isto para dizer que não há inovação suficiente para assegurar que haverá consumidores, que haverá fruidores de notícias. Porque, vamos ver, eu posso partir um jornal de uma hora e meia em clipes de dois minutos e vinte ou menos e posso montar e juntar, etc. Mas a questão está, é que isso não funciona, porque não é uma questão de duração. Eu acho que é mesmo uma questão de linguagem e de posicionamento. Isto não quer dizer que as gerações mais novas, como muitas vezes fazem as gerações mais velhas, passam a testar-se de burrice ao dizer que ah, eles gostam só de coisas disparatadas e não sei o quê, porque isso é passar, isso é dizer nós nunca conseguimos sair desta geração que chega, acha sempre coisas estranhas na geração que vem depois. Mas não há uma prática institucionalizada de experimentação. E as empresas têm um problema que é que não podem colocar as marcas em causa. Porque se falham e têm uma marca forte associada, paga-se um preço e quando as coisas estão a entrar em derrapagem, em termos de receitas, não é muito fácil fazer isso. Mas aqueles que sobreviverão serão aqueles que o fizerem. Eu estou a dizer isto a propósito de todas as marcas que as empresas têm. Elas podem ser jornais, podem ser rádios, podem ser televisões. Aqueles que não experimentarem, que não inovarem, que não criarem a próxima relação com as gerações mais novas, dificilmente vão ter sobrevivência, quer dizer, sobrevivem porque as nossas sociedades são cada vez mais constituídas por exagero, por três grupos. Pessoas com mais de 50, pessoas entre 25 e 50 e pessoas até os 25. E, portanto, há, com a esperança de vida aumenta, haverá consumos mais duradouros, mas isso não resolve o futuro dos livros.
José Maria Pimentel
Mas do ponto de vista da oferta, eu por acaso acho que até temos uma situação concluída, que dificilmente seria melhor, ou seja, com aquilo que falava há pouco da diluição praticamente total, da iluminação praticamente total das barreiras à entrada. Significa que qualquer pessoa saída da universidade com 21 ou 22 anos e queira criar qualquer coisa diferente, pode fazê-lo sem... Tudo leva tempo e tudo gasta alguns recursos, mas é possível fazê-lo, comparativamente com outras atividades, sem usar muitos recursos para isso. Aliás, há alguns exemplos
Gustavo Cardoso
interessantes nos últimos anos do... A questão é que o jornalismo, como nós o entendemos, não é uma profissão isolada, ou seja, não é uma profissão de um indivíduo. Depois já vamos fazer aqui uma comparação sobre outra coisa também que é importante. É essencialmente algo que é feito em grupo, porque para lidar com a complexidade é necessário também ter pessoas que trabalhem em conjunto. Mas vamos agora, então, isto é uma declaração primeiro para podermos falar depois da parte seguinte. E a parte seguinte é esta. No entretenimento, que tem a ver essencialmente com questões das artes e quando o entretenimento até podemos estar, eu estou a dizer entretenimento, ou falar, por exemplo, de youtubers, seja sobre que assunto estão a tratar, e também de algum tipo de podcast mais para a parte de divertimento e tanto menos ligada à informação. Aí nós encontramos muita coisa a acontecer. Porquê? Porque tradicionalmente sempre foi assim. As pessoas desenvolvem aptidões, fazem experiências, juntam-se com grupos informais e depois em algum momento há uma integração dessas pessoas num determinada instituição, seja uma editora, mesmo que a editora um dia se venha a se chamar Spotify, pronto, ou seja, vamos, aquilo que acontece é efetivamente que se vai para um grupo, se vai-se para um teatro, se entra no circuito das novelas, etc. Portanto, é um processo e sempre foi assim. Parte do individual para depois para o conjunto. O jornalismo nunca foi assim. O jornalismo sempre foi algo, sempre foram necessárias instituições existentes, acreditadas, presentes, onde as pessoas chegavam, ou seja, não se passava, não se começava a fazer jornalismo fora para depois entrar. Começava-se quando se entrava. Exato. E, aliás, Hoje em dia a gente pode dizer assim, bem, o que damos aqui os dois? Vamos criar, por exemplo, vamos experimentar fazer um telejornal, entre aspas, completamente diferente para o online. Os recursos estão lá, estão? Olha, basta tirar a página da Lusa, as notícias estão lá todas, são públicas, é um serviço público, está lá disponível, portanto eu posso ir buscar e dizer que a fonte é a Lusa e posso, portanto, tenho o material para fazer. Tenho também os computadores, tenho a internet, tenho as coisas todas. Mas quando nós vamos ver e olhamos por aí, não detectamos essas experiências a acontecerem. Vemos algumas coisas, O podcast é um exemplo, mas é um exemplo muito específico, muito limitado, não quer dizer ilimitado no número de pessoas a que chega, mas limitado no número de pessoas que estão a experimentar. Mas não vemos grande coisa. E não vemos em Portugal, nem vemos nos outros sítios. Portanto, há alguma coisa, e muitas vezes as empresas dizem, nós não vamos investir porque vamos ver o que é que está a acontecer, o que é que se vai passar nos outros lados e depois vamos interpretar isto e vamos trazer para cá. Mas há imensos formatos de entretenimento, mas formatos, outras coisas diferentes em termos de jornalismo, nós não as vemos aparecer. Mas
José Maria Pimentel
as fronteiras também se diluíram um bocadinho entre uma coisa e outra, ou seja, há muitas coisas que começam por... Claro, exatamente, era aí onde eu queria começar a
Gustavo Cardoso
chegar. Só que, nas nossas marcas, por exemplo, embora se possa pensar que há fronteiras e, em alguns casos, até existem fronteiras que são mais ou menos diluídas, não vemos as coisas serem feitas de maneira diferente. O que vemos é mais prática, muito semelhante. Vamos colocar assim, ok, o Ricardo Araújo Pereira tem programas em que mistura e que faz brinca e que fala de assuntos sérios, que sempre foi uma característica da sua presença, mesmo quando eram, em termos de gatos fedorentos, com entrevistas imaginárias e outras coisas, personagens, tudo isso permite trazer temas novos, mas estamos a falar quase sempre de uma pessoa. Não estamos a ver outras pessoas a fazerem experiências e a colocarem que depois possam ser trazidas para dentro das marcas que já existem ou que possam dar origem a outras marcas. Isso não acontece. E se este diagnóstico está correto, e se não estiver correto, ótimo, quer dizer que a gente está a colocar uma hipótese, a hipótese demonstra-se como não verdadeira, mas que o problema do jornalismo está resolvido, mas, se efetivamente isto for assim, for aquilo que está a caracterizar o nosso ambiente em termos de experimentação, ou seja, que não existe, que é residual, isso é muito problemático e quer dizer também que ela tem que ser criada da forma como sempre foi, ou seja, os meios têm que fazer coisas diferentes. Por exemplo,
José Maria Pimentel
onde é que há… Tem que ter origem nos próprios meios, é isso que queres dizer? Se
Gustavo Cardoso
não surgem marcas novas, se não surgem organizações novas, elas têm que acontecer nas que estão, nas que são incumbentes. De maneiras diferentes, por exemplo, não tem que ser as marcas, não tem que ser a TVI, a SIC, a RTP, pode ser, entre aspas, powered by RTP, powered by SIC, powered by TVI, mas tem que acontecer ao lado e tem que florescer sem ter os holofotes em cima, ou seja, essas coisas têm que começar a acontecer. Porque o jornalismo é algo, apesar de tudo, que custa carne. Vamos ver.
José Maria Pimentel
Eu, se quiser... Sim,
Gustavo Cardoso
O jornalismo é sério, sim, claro. Eu tenho, se nós quisermos, os dois que aqui estamos, cada um com as coisas que faz, eu posso pegar nos vídeos que nós fazemos lá no Realidade Aumentada no WhiskyTé, que podemos pegar aqui no teu podcast, e se gastarmos 100 euros por semana no Facebook nós atingimos 100 mil pessoas, que é mais ou menos aquilo que um programa de desporto, por exemplo, tem de audiência a uma sexta-feira num canal de cálculo de informação. Ok, só que isso no final do mês custa 400 euros e é uma vez, um podcast por semana, um vídeo por semana. Portanto, quando eu estou a dizer, tu tens que ter economias de escala e tens que ter, se queres efetivamente, ter uma produção que permita alimentar uma relação contínua com a informação, isso custa dinheiro. E, portanto, as empresas, mesmo numa época de baixas barreiras em entrada e que as coisas sejam relativamente paradas. Porque depois, para teres massa, para atingires as pessoas, tu tens que, o modelo de negócio atual é, ou tu tens a capacidade de criar essa relação fora e vais levá-la para as redes sociais ou para a negociação que farás com canais de cabo, etc. Ou tens já um conjunto de fãs ou então tens que os criar. E criando fãs atualmente tu tens que pagar, tens que patrocinar as coisas que tens.
José Maria Pimentel
É curioso, por acaso, é engraçado discutirmos isso, porque eu não sei se concordo completamente. Óptimo, mas isso é bom. Sim, sim, é o que eu espero. A um lado isso claramente é verdade, ou seja, o facto, esta descolagem, nós falámos há pouco, entre o valor econômico e o valor social do jornalismo, ou jornalismo no sentido lato, é uma coisa que faz com que haja menos oferta do que a oferta potencial, não é? Porque não houver essa recompensa económica, ou seja, há muitos potenciais criadores que ficam de fora simplesmente porque sabem que não vão ser remunerados por isso. Mas, por outro lado, por várias razões, pelo papel social do jornalismo, aqui no sentido de lato, eu posso incluir o meu podcast no jornalismo neste sentido de lato, no sentido de street, claramente não é. Por esse papel social, por essa questão até de poder, se tu quiseres, há muita gente que, sem receber nada por isso, faz, sobretudo quanto mais rico for o país. Em Portugal nós vemos, no país como os Estados Unidos, ver se isso mesmo em termos relativos, creio que se vê isso ainda mais. Mas tu tiveste muita gente, hoje em dia é um bocadinho mais em baixo, mas tiveste muita gente a escrever nos blogs, a própria escrever num blog antes de ter o podcast, hoje em dia tens pessoas nos podcasts, tens sites, tens coisas que surgem organicamente e ainda fora, Isto falando apenas de coisas que são feitas de certa forma por hobby, que depois podem ou não descolar dali. E mesmo fora, a verdade é que, aliás, esse é um dos paradoxos curiosos, é porque os jornais têm o problema de modelo de negócio que têm. Mas continua a haver jornais a ser criados todos os anos, quer dizer, nos últimos anos houve vários jornais, lembro-me de dois ou três jornais conhecidos que foram criados nos últimos três anos, pessoas que tiveram interesse justamente por esse poder social do jornalismo. Exatamente, mas não para ganhar dinheiro. Não para ganhar dinheiro. O que eu quero dizer é, não sempre possível ganhar dinheiro diminui a oferta, mas há outras coisas que
Gustavo Cardoso
persistem. Claro, mas introduz um problema e não nos resolve uma característica que é essencial para falarmos em termos de jornalismo. É que quando se criam jornais para não ganhar dinheiro com eles, das duas uma, ou se tem uma missão filantrópica e, portanto, é o mais próximo que se pode encontrar de uma determinada imparcialidade, mas mesmo a filantropia por vezes tende a ter uma relação com o seu fundador e com a visão política e económica e cultural do fundador e, portanto, cria um viés. Não é que alguém diga que não se pode fazer isto, são as próprias pessoas que fazem, que acham, bem, dado que somos financiados por talvez, devemos fazer menos disto ou não entrar tanto por aquilo. E, portanto, o que nós temos, se nós não tivermos algum tipo de independência na prática do jornalismo económica, independência económica, não depender de mecenas que tenham visões próprias do mundo e não depender de financiadores que queiram ter algum outro tipo. Se nós não conseguimos fazer isto, nós não vamos ter práticas jornalísticas que voltem a lidar com aquela tensão, ou seja, por um lado a imparcialidade, por outro lado a proximidade com determinadas visões do mundo. Vamos ter sempre algo que vai estar desequilibrado E isso já não é o jornalismo como nós o conhecemos, será um outro patamar para outra coisa. O que, assim, talvez não crie, vamos dizer, criará sociedades diferentes das nossas, claramente. Eu acho que existe uma propensão, se isso acontecer, uma das dimensões para um determinado tipo de sociedade mais democrática, poderá estar posta em causa. Mas, vamos ver, se o mundo todo cedir que quer viver num mundo menos democrático, haverá alguns, talvez como eu, que vão se sentir deslocados, mas não será isso que marcará o tempo onde nós estamos a viver. Mas eu acho que há, continuo a defender e continuo a achar, que é importante que haja essas características, que existam essas características do jornalismo. Uma dimensão, claro, de imparcialidade e de objetividade, porque é aquilo que cria algum tipo de contrapoder também. Mais do que não seja porque a dada altura, se houver bastante, o equilíbrio acaba por se gerar mesmo, porque por vezes existem uns desequilíbrios de um lado ao outro. Se não houver, então nós estamos claramente a posicionar-nos num espaço que não garantirá as mesmas características E eu, sinceramente, não me apetece muito viver numa sociedade assim. Se for obrigado, terei, não é? Mas não é o meu desejo profundo daquilo que quero para mim e para as pessoas à minha volta e para os meus filhos, etc.
José Maria Pimentel
O valor social do jornalismo que nós falávamos depende dessa independência, de rigor e da capacidade de ser feito em profundidade, porque senão essas estranhidades positivas passam a ser negativas.
Gustavo Cardoso
Até porque há uma coisa, eu sobre isto, vamos lá ver, nós estamos aqui a ter uma conversa que tem uma base na maior parte dos casos ou científica demonstrada ou de hipóteses para entender a realidade. Também estamos a fazer um bocadinho de consultores em algumas coisas, porque estamos a dizer, mas elas são baseadas em experimentação e em alguma dimensão teórica ou científica para a análise que está a ser feita. Mas há uma coisa que vai para além disto, que é tentar responder à pergunta o que faz uma pessoa que tem muito dinheiro e que pode ter tudo e que já comprou tudo e que já teve tudo. Vamos falar, por exemplo, do Jeff Bezos. O que é que faz alguém como Jeff Bezos comprar o Washington Post? Se não é por um negócio, é por filantropia? Pode ser, mas há uma terceira hipótese.
José Maria Pimentel
E o que é filantropia?
Gustavo Cardoso
Filantropia no sentido de prestar, vamos, filantropia naquilo que é a sua aceção limitada, a dizer assim.
José Maria Pimentel
Não, quer dizer, qual é o objetivo do filantropo? É alguém que
Gustavo Cardoso
quer dar, quer contribuir para uma sociedade melhor e que dá o dinheiro e não quer saber de mais nada do que é que se passa dentro do jornal e, portanto, nem está nem aí, não quer, nem quer, pronto, quer total liberdade para o que se passa. Mas há uma terceira hipótese, que é menos simpática e que pode ser, enfim, o que é que faz um homem muito poderoso comprar e querer ter participações num jornal? A gente pode tentar dar uma resposta que é menos simpática para todos nós, que é fazer-nos pensar e ver o mundo da mesma forma que ele vê. Podia haver um outro tipo de resposta, é ganhar mais dinheiro, ou seja, quero que as minhas empresas tenham mais sucesso. Mas nem sequer estamos a entrar por aí, estamos a entrar porque essa ainda, eu acho que apesar de tudo é menos perigosa do que esta, porque esta última de querer que as pessoas vejam o mundo e pensem como eu, é muito mais autoritária, é muito mais perigosa para todos nós. E a questão, eu acho que é preciso nós nos colocarmos assim para entendermos que se o jornalismo vier a ser feito apenas por pessoas que querem que as outras pensem como elas. Então aí nós estamos a caminhar por um mundo muito complicado, em que efetivamente o gráfico vai ter apenas, quando a gente vê aqueles mapas com os meios mais à direita, mais à esquerda e ao centro, etc. Nós vamos passar a ter um mundo em que uns estão para um lado e outros estão para o outro. Só nos tremos, claro. Que é um bocadinho aquilo que nós vemos quando mapeamos discussões políticas ou de futebol, por exemplo, no Twitter, em que vemos um grupo de pessoas a favor, outro grupo de pessoas contra e no meio, meia dúzia de pessoas perdidas que fazem a ponta entre esses dois. Isso cria sociedades que vão ser muito conflituais e que vão acabar por resolver os seus problemas não através do diálogo mas através do conflito. Porque o jornalismo também, aliás tenho um amigo meu, mais velho e que escreve sobre as questões da comunicação também, e que diz que, ao contrário daquilo que nós muitas vezes pensamos sobre os média, dizer que estão alinhados com uma equipa ou com outra, ou que são o árbitro, não. Ele diz, pronto, numa parábola com a questão do futebol, que os média e o jornalismo em geral são os donos do estádio onde se joga. E se não houver estádios, não se vai conseguir jogar, ou pelo menos não se consegue jogar este jogo da democracia onde nós estamos. E aí temos coisas como a China, ou a Rússia, ou democracias mais musculares, etc. Estádios haverá sempre,
José Maria Pimentel
podem ter condições, mas podem ter o campo inclinado, ou ter outras características.
Gustavo Cardoso
A questão é que quem quer jogar tem que ir até ao estádio, não é? E se o estádio não estiver efetivamente desenhado para... Ou seja, que as linhas não sejam, ou que as balizas não estejam furadas, as redes, etc. A questão é essa. O grande desafio é aquilo que nós temos vindo a falar desde o princípio aqui na conversa. O jornalismo e os médias fazem parte de sociedades com determinadas características. É possível haver jornalismo e ser um regime ditatorial, só que não é o jornalismo democrático, equilibrado, imparcial, objetivo que nós estamos a falar. Mas é possível fazer jornalismo de várias maneiras.
José Maria Pimentel
Sim, estamos a falar de um jornalismo que cria valor social.
Gustavo Cardoso
Exatamente. E depois é, será difícil de definir, mas vamos admitir que... Sim, mas vamos... Agora, ao introduzir mudanças tecnológicas e, através das práticas que as pessoas adotaram, mudanças culturais nas nossas sociedades, nós estamos a mudar o campo onde o jornalismo se posiciona e o desafio é perceber como é que nós podemos reinventar, pode ser de formas diferentes, vamos só fazer aqui uma analogia só para voltar a uma coisa que estávamos a falar atrás. Imprensa regional. A imprensa regional não tem a ver com as imprensas nacionais. É suposto continuar a existir, mas tem normalmente lógicas de lucro e lógicas de mercado diferentes. Interessa que se mantenha aberta. É um bocadinho como fazer a comparação entre o café de bairro, que cria emprego para as pessoas que lá trabalham e permite sustentar, e depois aquela cadeia de franchising que abre cafés por todos os bairros. São lógicas diferentes, têm um lugar. A questão está, acho eu, e nós podemos pensar no mundo dessa maneira, se nós queremos que as nossas marcas, o nosso jornalismo continue baseado e relativamente livre ou se queremos, por exemplo, um mundo onde de repente o Google e o Facebook passem para um outro tipo de ação, ou o Marcos Zuckerberg começa a comprar jornais em todos os países para que haja um jornal financiado pelo Facebook e que o Google, em vez de distribuir dinheiro para apoiar a imprensa como contrapartida pela utilização das notícias, dá um passo a seguir e torna-se acionista minoritário de uma série de canais e de jornais etc. Esse é um mundo também muito diferente, é um mundo em que nós passaremos de uma escala local para uma escala global e que há certo tipo de coisas que ficarão mais controladas ainda do que aquilo que já são os interesses de grandes empresas multinacionais. E há visão em última análise que essas pessoas que têm essas empresas têm do mundo e da forma como acham que nós devíamos pensar ou não. Portanto, este é um assunto sério e é um problema. Resolver a questão económica dos meios de comunicação social é assegurar também que as democracias terão mais hipóteses de funcionar e de prosperar num mundo diferente daquilo que foi a segunda metade do século XX.
José Maria Pimentel
E a questão é, aquilo que disseste agora no final é que é importante para isto, porque é resolver a questão económica da maneira certa, ou seja, assegurando que ao mesmo tempo, permitindo ao mesmo tempo que se assegura essa imparcialidade, essa objetividade, mas também que existe a adaptação, digamos assim, orgânica do próprio jornalismo à realidade do século XXI, não é aquilo que falavas há pouco? Então, isso é um bom ponto para voltarmos àquilo que falavas antes. Nós já falávamos disso, quer dizer, houve aqui uma espécie de tempestade perfeita nos últimos anos ou nas últimas décadas, porque por um lado, com o surgimento do online e com a diminuição das vendas de formato físico, aquelas receitas foram encolhendo cada vez mais. Por outro lado, a publicidade, que lá está, era a peça que fazia a diferença entre o valor social e o valor económico, começou a diminuir ela própria, porque foi toda, embora a publicidade online tenha aumentado imenso, ela começou a ir toda, como dizias há pouco, para os Googles e Facebooks e afins, mas sobretudo para estes dois. E, portanto, deitou completamente por terra o modelo de negócio dos jornais. Aliás, até era uma pergunta que eu te queria fazer. Em média, portanto, em Portugal, pré-esta realidade nova, como é que se repartiam as receitas dos jornais entre receitas de vendas, receitas de assinatura e publicidade? Tens ideia? Números
Gustavo Cardoso
redondos. É assim, a primeira era sempre a publicidade, depois a seguir as vendas de banca mesmo. E depois
José Maria Pimentel
as assinaturas.
Gustavo Cardoso
Agora, em termos de valores, as coisas variavam muito. Sim, sim. Se nós formos ver o registro, as empresas continuam a gerar, as televisões continuam a gerar receitas e continuam a ser interessantes. Depende depois do grau de endividamento que tem ou não para remunerar os endividamentos que fizeram no passado, mas em termos globais as televisões privadas funcionam bem. Entretanto, o que aconteceu, a rádio também conseguiu efetivamente manter algum tipo de equilíbrio em termos da publicidade e os jornais foram aqueles que perderam mais na relação com a internet. Por isso é que nós estamos sempre a falar nos jornais, mas na realidade os problemas estão em todos. Só são mais fortes na imprensa escrita. Mas, assim, então vamos... Quer dizer, uma espécie de receita de cozinha, como é que isto se resolve? Há coisas que não dependem nenhum de nós, nem sequer dos nossos governantes a nível nacional. Talvez dependam da Comissária da Concorrência na União Europeia, talvez, mas dependem muito do sítio onde as empresas monopolísticas globais estão sediadas, que é os Estados Unidos. Sim. Parte deste problema só se resolverá em termos económicos se efetivamente for possível fazer com o Facebook ou o Google, aquilo que já se fez noutras épocas, com
José Maria Pimentel
o IBM,
Gustavo Cardoso
com o AT&T, etc. Que é fazer, através da regulação, criar limites para o tamanho daquelas empresas, dividindo unidades de negócio. Nós já fizemos a mesma coisa com a TVCabo em Portugal e com a Portugal Telecom, que é dizer, basta dividir um primeiro passo relativamente simples, simples no sentido de que as pessoas vão perceber o que nós estamos aqui a dizer, complicado em termos de negócio da regulação e das dimensões políticas, que é separar a propriedade do Youtube do Google. Pronto. Exato. Só isso já criaria um folgo para ter dois concorrentes à escala global. Porque o problema atualmente é que existe uma entidade e essa entidade capta, mas depois também tem coisas completamente ridículas que tinham sido mais vezes exploradas. Eu tenho um outro amigo meu que, estudando estas matérias no Youtube, sobre vídeos do Estado Islâmico, colocados no YouTube, perguntava ao YouTube a publicidade que vocês colocam nestes vídeos, o que é que vocês fazem? Entregam o dinheiro ao Estado Islâmico, ficam com ele para vocês? O que é que se passa? Porque o modelo efetivamente tem estes problemas. Tudo é publicidade. Eu já não sei o que eu gostaria de ver no outro dia, mas era aqui em Portugal que estava a aparecer publicidade a um casino, nacional também, mas que a página tenha as maiores dúvidas que estivesse interessada em ter aquele tipo de publicidade. Portanto, há uma série de... O sistema, aquilo que oferece a relação entre anunciantes e quem coloca, está longe de ser perfeito, mas implica também uma alteração da própria capacidade dos atuais anunciantes perceberem também esses limites. E depois também existem coisas herdadas do passado a nível nacional, por exemplo. Práticas que têm a ver com alguma concentração também na gestão das contas e depois na relação. Gestão das contas entre anunciantes e entre onde é que se publica, quando publica, que estou a dizer publica, estou a falar de rádio, televisão, jornais, porque quem intermedia o negócio da publicidade também ganha dinheiro nessa intermediação. E na realidade, é assim, nós vivemos numa época de desintermediação, mas quando se intermedia aquilo que se pretende é ganhar mais dinheiro do que menos, e onde é que se ganha? Ganha-se muito mais dinheiro vendendo televisão do que vendendo internet, até porque para vender mais caro a internet tinha que se aumentar os preços. Portanto, isto, há uma série de coisas que estão, que é aquele momento de interregno, a gente ainda não conseguiu abandonar as práticas antigas e ainda não introduzimos as práticas novas. Mas, ao nível nacional também, nós temos que introduzir outras lógicas. Eu já escrevi sobre isso, eu sei que parece um bocado exagerado ou pelo menos é uma mudança de paradigma muito grande, mas nós estávamos habituados a ter receitas de três sítios, temos que pensar como é que se tem receitas de 33 sítios diferentes. E isso implica valorizar nos meios grandes também formas diferentes de rentabilidade que não são apenas aquelas que têm a ver com subscrições, publicidade e por aí por diante. Embora as subscrições, no caso, por exemplo, de coisas que não são jornalismo, mas que são o Netflix, é um sucesso. Muito pelos cartões que são vendidos nos supermercados e nas grandes superfícies. Outras, sim. Porque em Portugal tem muito a ver com isso. Mais do que com cartões de crédito até. Curioso. Eu
José Maria Pimentel
fazia ideia por acaso de Netflix, achava que era o contrário. Não.
Gustavo Cardoso
Porque é mais fácil, quando se já tem uma subscrição com uma televisão e com a internet em casa, se não se quer aumentar a nossa obrigatoriedade mensal de fazer alguma coisa, encontrar meios dos quais é fácil desistir. Depois não desistimos, mas temos aquela percepção de que é fácil, é só não comprar mais um cartão. Mas nós temos que, efetivamente, olhar para o mapa e perceber que existem muitas formas de ganhar dinheiro, mas implicam esforço e implicam ter, por exemplo, vamos dizer aqui fora nós, para fazermos de ganhar dinheiro neste tipo de trabalho que aqui estamos a fazer hoje de podcast, tu terias que contratar um comercial que tivesse a capacidade de andar a angariar e a desenvolver um conjunto de atividades para as quais tu não tens tempo. Portanto, esta é a questão, é que isto não se resolve com uma pessoa apenas. Pode-se resolver melhor com duas ou com três, mas... Porque a questão do podcast aqui, os conteúdos, se as pessoas gostarem de nos ouvir, obviamente, aquilo que nós estamos aqui a dizer, está resolvida. Há outros sítios que é mais complicado. Estamos a falar, por exemplo, de Netflix, não é? Onde é que nós encontramos jornalismo, e quando eu estou a fazer jornalismo, estou a juntar crítica, mas mais do que isso. Crítica, por exemplo, aos filmes e às séries, mas mais para além disso. Onde é que nós encontramos alguma marca em Portugal que esteja a oferecer esse tipo de serviço? Para mim, que sou, por exemplo, cliente do Netflix, saber que séries, quando é que estão as séries que me interessam, o que é que vai acontecer, etc. Não há. Porquê? Porque eu acho que as pessoas, uma parte das pessoas, embora possa consumir, não estão no alvo, naquela faixa de consumidores que procurariam esse tipo de informação. Há imensas coisas para serem feitas. Eu acho é que não há... A ideia é... Eu tinha um amigo e professor que dizia e que tinha um texto até sobre isso, que era o José Manuel Paquete Oliveira, que dizia que os públicos não existem, criam-se. Eu acho que muitas vezes nós nos mídia achamos que os públicos estão lá e nós temos de trabalhar para eles. Se não os criarmos, de certeza que estamos condenados. Ou seja, se perdermos a lógica de que os públicos têm que ser criados, há ninguém que quer ver isso. Para já, isso hoje em dia, é uma conversa porque há sempre pessoas que querem alguma coisa e é preciso chegar lá até elas. Pode não ser economicamente interessante, mas está lá. E depois também, como nós estávamos a falar há bocado, se nós estamos a falar nos canais temáticos, 100 mil pessoas a ver um determinado programa, sim. Porquê que não há, não há noutras plataformas, noutras coisas, 100 mil pessoas disponíveis para ver coisas? Existem. É questão de ter os meios para o poder fazer. E isso a Universidade pode ajudar a criar formato. Já tenho mais dúvidas que a Universidade tenha capacidade de criar mais coisas para além disso. Bem, agora só para introduzir aqui uma coisa a brincar. Bem, de alguma maneira, aqui ao lado em Espanha, houve um partido político que foi criado numa universidade e que criou também uma, através do canal de televisão, na universidade. É possível criar, mas de qualquer das maneiras, a dada altura não é possível mais dar universidade. Seja para criar uma empresa de comunicação social ou um partido político, tem que sair da universidade e ir para o mundo. E, portanto, a universidade pode jogar um papel nisto, de iniciar processos, mas não é de certeza o sítio para conseguir grandes audiências ou enormes números de votantes. Enormes números de votantes.
José Maria Pimentel
E a verdade é que há aqui dois problemas paralelos. Uma questão é, no fundo, criar esses novos conteúdos e determinar aquilo que vai, ou criar aquilo que vai permitir a sustentabilidade do sistema a longo prazo e outra questão, com alguma intersecção, mas diferente, que é a questão de resolver o problema do modelo de negócios dos meios atuais e sobretudo, como dizias há pouco, isto é sobretudo um problema nos jornais. E tu falavas há pouco da questão, no fundo, das receitas de publicidade e obviamente que há muito que pode ser feito aí, mas vamos por um momento assumir que o caudal dessa torneira se mantém. Não aumenta, não conseguimos que ele volte a aumentar. Tu à bocado aludias à questão daquela espécie de subsidiação via empresas de telecomunicações, o que é interessante, porque no fundo, não vou dar aqui uma atenção grande, não é aquilo que nós temos estado a falar da questão da calagem entre o valor social e o valor económico, determina que haja alguém que tenha que intervir. E depois tens um problema, porque se intervir o Estado, estás sujeito a que aquele meio, ou por outra, aquele meio fica sujeito a pressões por parte de políticos e de governantes. Se intervenção vier do lado dos privados, aquele meio fica sujeito a influência por parte daquele poder económico. Mas não há muito mais, o que significa que, lá está, é um bem particular, porque ele não pode ser completamente providenciado pelo Estado. Temos que ter uma certa diversidade aqui. Para
Gustavo Cardoso
a questão, só para a gente clarificar aqui, para a questão dos equilíbrios de poder, A única maneira até agora experimentada para funcionar, ou pelo menos que funcionava no século XX, era ter empresas várias, ou seja, dividir um mercado entre várias empresas, mais ou menos todas elas com a mesma força, e esperar que nenhuma delas seja capturada por interesses políticos ou económicos muito específicos que criem um viés tal que…
José Maria Pimentel
Se for uma não há problema. Se forem várias é que há, se a maioria for é que há problema. Se for só uma… Os equilíbrios são… A concorrência encarregar-se-á de… Agora,
Gustavo Cardoso
se de repente chegarmos à conclusão, Não, vai tudo para um lado, vai tudo para um… está tudo associado a um grande grupo económico, está tudo associado a um determinado núcleo de partidos. Portanto, aí obviamente que as coisas não funcionam. Agora, até hoje este modelo funcionou numa lógica de um mundo muito mais repartido, a questão é saber como é que
José Maria Pimentel
funciona. Mas eu não vejo, eu não vejo com nada como aos olhos, embora tenha que ser feito com muito cuidado, a questão de haver uma contribuição direta dos cidadãos para a empresa que ela está sendo justificada.
Gustavo Cardoso
Eu inclusive já disse uma coisa, que disse meio a sério, meio a brincar, mas agora está na época também de preenchimento do IRS. Se estão com tantos problemas relativamente às empresas de comunicação social, basta fazer uma coisa que é, só que depois já vou vos dizer qual é que é o problema. É assim, que é permitir aos cidadãos introduzirem para além das IPSS as empresas de comunicação social para as financiarem diretamente. O grande problema, obviamente, é que estamos a financiar a atores que são cotados em mercado, uma parte deles. E, portanto, há aqui uma espécie de contradição, mas que se poderia resolver porque o valor social se chegar a uma questão de dizer assim, tão importante para um país é ter uma comunicação social forte quando é ter assistência social forte e presente no terceiro setor, então as pessoas depois decidem se querem dar dinheiro à SICA, à TVI, ao público, ao observador, ao Correio da Manhã, ou se querem dar à Santa Casa da Misericórdia de uma determinada região, ou à IPSS, à ADOC, portanto, é possível, os mecanismos existem, ainda é que pensar um pouco fora da caixa, mas temos que resolver primeiro a questão de perceber qual é o grau de importância que nós queremos atribuir às coisas. Portanto, tudo isto, todos os modelos são possíveis. Eu até acho que aquilo que seria mais interessante era efetivamente termos uma paisagem de mídia e comunicação social em termos de instituições, podemos chamar umas empresas, outras fundações, o que quisermos, desde que haja aquelas que estão claramente financiadas pelo mercado, outras que são financiadas por apoios filantrópicos, individuais, etc, outras que estão ligadas à dimensão dos poderes públicos. Quer dizer, se isto tudo for possível de ser reconstruído desta forma, eu acho ótimo e acho que se ganha. E muita gente a fazer coisas como aquelas que nós estamos aqui a fazer, em parcerias mais ou menos ligadas a marcas que estão no mercado ou fazendo coisas totalmente à parte, ligadas a universidades, ligadas a empresas que não são do setor, mas que querem fazer alguma coisa. E nós, se fizermos a caracterização daquilo que vemos, é isto que estamos a ver despontar. O problema é que existem desequilíbrios à áreas em que isso acontece, outras onde não acontece.
José Maria Pimentel
E existe, quer dizer, no fundo nós temos aqui dois valores que temos que casar e temos que assegurar que a imprensa ou os médias não deixam de ter o nível socialmente ótimo por questões económicas. No fundo, é esse o problema que temos que resolver. Admitindo que não é possível neste momento resolvê-lo de outra forma, uma forma de resolvê-lo é através da contribuição pelos próprios contribuintes, seja via impostos, seja via taxa de audiovisual, seja via... Assustou que tu fazia lá porque eu acho interessante o valor extra na fatura de telecomunicações.
Gustavo Cardoso
A coisa de fazer um valor extra é mesmo um serviço, é da mesma maneira que te telefonam para casa a perguntar, olha, agora vamos lhe dar, podemos lhe dar mais um cartão
José Maria Pimentel
de x-minutos. Mas era obrigatório ou não? Não, não, não. Ah, era facultativo. Eu acho que é
Gustavo Cardoso
facultativo. Ah, ok. E eu acho que ia resultar. O grande problema, vamos lá ver, os jornais já fazem isto e dizem, Por 9 euros pode ter não sei quê x tempo, mas a questão, como nós sabemos, não é, quando tu dizes 9 euros ou 10 euros, é muito dinheiro na perspectiva da resposta. Se tu puseres 25 centimos, que é uma coisa quase como estar a arredondar a conta no final do mês, é mais dinheiro do que os jornais recebem. Mas
José Maria Pimentel
eu estou-te a perceber, mas...
Gustavo Cardoso
E portanto, tu terias sempre gente que faria, que acabaria por aderir, seria sempre mais rentável do que manter o atual sistema. Sim.
José Maria Pimentel
Rentável eu admito que sim. O problema é que não haveria lugar
Gustavo Cardoso
para todos, porque isto só resultaria se de repente, por exemplo, a NOS dissesse vamos fazer isto com o público e depois a Vodafone tinha que escolher um para fazer também, fazer
José Maria Pimentel
colher de notícias. Pois, pelo menos tinhas uma associação entre o...
Gustavo Cardoso
Mas essa seria a fórmula possível.
José Maria Pimentel
A limitação que eu vejo nisso, para mim é razão porque isto tem que ser feito com algum cuidado. É que para todos os efeitos há aqui o risco de nós... Bem, nesse modelo há o risco de estar-se de repente a colar e a juntar os destinos de um jornal e de uma empresa de telecomunicações mas independentemente disso há o problema também de a decisão de alguém de subscrever o jornal torna-se ligeiramente distante do consumo e da qualidade do consumo daquele jornal, ou seja, é uma coisa que é feita mais ou menos automaticamente, fica lá na fatura, a pessoa não volta lá e é um bocadinho diferente daquilo que seria desejável para aquele jornal ter incentivo para produzir o conteúdo de maior qualidade, que é alguém eu, por exemplo, num modelo antigo, que eu vou todos os dias comprar o público ali à... Como é que se diz? Ao quiosque, todos os dias eu vou lá comprar o público e se de repente, progressivamente, eu vou deixando de gostar, deixo de comprar. E, portanto, aquilo refletia-se logo nas receitas do jornal. Neste caso esse efeito era mais difícil.
Gustavo Cardoso
Esse caso é tão idêntico ao facto das pessoas continuarem com subscrições de coisas, com as empresas de telecomunicações que não usam. É
José Maria Pimentel
verdade, sim, é verdade.
Gustavo Cardoso
Isso é uma estratégia comercial.
José Maria Pimentel
São partidas a utilities, normalmente. Mas, tendo um modelo de subsidiação, por exemplo, um modelo de, através de impostos, em que nós contribuíssemos para os jornais, ele podia ser pior do que isso, no sentido de ser… eu já não sei qual era, acho que era na Suécia que eles têm um modelo desse género, ou na Dinamarca, que o contributo é feito, ou seja, a subsidiação é feita aos jornais com base no tamanho da redação, que me parece uma coisa, me
Gustavo Cardoso
parece um grande contrassenso. Eu já não lembro, não tenho certeza absoluta se é assim, mas eu penso que em Macau, para os jornais de língua portuguesa e língua chinesa, existe um valor, ou seja, existe um valor flat que é entregue pelo Estado a todos por igual. Se não é por igual, haverá diferenças também. Mas, portanto... Como
José Maria Pimentel
parece uma destrução grande... A experimentação
Gustavo Cardoso
existe. Agora, a questão é os equilíbrios que nós queremos que essas práticas tragam, não é? Aí é que é a questão. Agora, eu acho que aquilo que nós podemos acordar é, isto não pode continuar da forma como está se queremos ter um jornalismo que seja não só nos conteúdos, um jornalismo do século XXI, como possa estar ao nível das sociedades que nós almejamos construir no século XXI também. E que sejam democráticas, prósperas, e que haja, isto agora já é uma visão minha, mas que haja maior equidade, sustentabilidade também ambiental, e que exista uma prática democrática que seja subjacente. O jornalismo tem um papel a desenvolver nesse campo. Agora, se nós vamos, também podemos pensar outra coisa. Eu compreendo o que gostavas a dizer, por exemplo, o The Guardian, a subscrição, o apoio que é feito, por exemplo, ao jornal. A pessoa identifica-se, mas então temos que introduzir aqui uma coisa sobre Portugal. Portugal é provavelmente dos países que eu estava até a falar há pouco do Oxford Reuters Institute do Inquérito Feito, onde a percepção dos portugueses introduz menor diferenciação, por exemplo, nos jornais. Os nossos jornais estão todos ao centro. Mesmo aqueles, mesmo aqueles, na perspectiva dos leitores, os jornais estão todos no centro do gráfico. Ou seja, num lado está à direita, politicamente, à esquerda, politicamente do outro lado, os jornais estão todos no meio. Para além de estarem todos no meio, mesmo aqueles que, daquilo que supostamente é mais à direita em termos das representações, que as pessoas reconhecem como tal que é o observador, está quase ao centro, mas um bocadinho mais desviado
José Maria Pimentel
para a direita.
Gustavo Cardoso
Portanto, na realidade, nós temos que resolver isto ou mudamos...
José Maria Pimentel
Mas isto é coisa de perceber.
Gustavo Cardoso
A questão não sei se é bom ou
José Maria Pimentel
mau, depende do que nós quisermos.
Gustavo Cardoso
Depende do que nós quisermos. Nós já experimentámos as duas coisas. Nós já tivemos jornais mais alinhados num posicionamento e num outro posicionamento. Depois tivemos uma fase em que, quer dizer, ditadura, depois democracia, democracia nacionalizado, tudo mais ou menos alinhado por um determinado ponto, alguns outliers diferentes, portanto mais à esquerda, um outro outlier mais ao centro-direita, depois liberalização, venda, posicionamento, durante alguns tempos as coisas também tiveram relativamente diferenciadas e depois a percepção foi que cada vez tudo é mais parecido. Eu, aliás, tenho algumas dúvidas, enquanto académico, estudar isto. Por exemplo, circulação de diretores. O mesmo diretor que já esteve no jornal A, no jornal B, passa para o jornal C, passa para o jornal... Isto, em termos de dinâmicas de marketing, construção, eu acho que tem um problema. É que cria, é impossível não criar copycats, ou seja, cópias de práticas, de procedimentos, de visões editoriais muito idênticas. E, portanto, esta circulação de diretores, por exemplo, eu acho que é má para o negócio e má para a relação que as pessoas têm. Mas é uma prática que nós temos em Portugal, em que fazemos circular as pessoas por diferentes locais. Outra coisa também, nós já fizemos isso no ISC-T e vamos publicar agora, aproximadamente, três anos depois, só uma atualização, porque é bom deixar ficar, passar algum tempo. Isto não é o tempo da comunicação social, é o tempo da universidade, se a gente quer pensar. Um mapa sobre como é que seria o Parlamento se fosse constituído pelos comentadores políticos residentes das televisões. E, portanto, embora tudo somando esquerda e direita no final dê algum equilíbrio. A repartição era... A repartição por vezes há partidos que têm representações... O
José Maria Pimentel
PSD devia ter menos, imagino.
Gustavo Cardoso
Que têm menos deputados do que... Ou seja, teria menos deputados nesta distribuição de comentadores. O CDS tem uma representação desproporcional, ou tinha. Estou a falar daquilo que era há três anos, depois agora guardamos o segredo, depois publicamos quando tivermos, se quisermos, falarmos sobre isso. Mas há, portanto, dinâmicas que têm que ser pensadas, porque em última análise, o público, as pessoas em Portugal circulam entre canais, não são fiéis, não têm uma relação de fidelidade. Têm, em alguns casos, relações que são herdadas de, podem não gostar muito de um determinado meio, mas porque já estão com ele há muito tempo, continuam. Mas se tiverem oportunidade circulam pelos outros também, só se só tiverem aquilo disponível, ou em papel ou em digital, e é o único que têm ali para folhear ou para ver. Portanto, isso na questão da imprensa escrita. De resto, e mesmo nos canais, não são. Mas também há uma coisa que explica isso, é que é a circulação de pessoas entre canais e a pouca diferenciação entre os mesmos.
José Maria Pimentel
Sim, para caso nunca haviam pensado nisso dessa forma. Bom, Gustavo, vamos terminar, então foi uma ótima conversa. Vou-te só pedir, então, para aconselhares o livro para terminar em
Gustavo Cardoso
beleza a conversa e depois acabamos. Eu vou aconselhar um livro de um amigo meu, chamado Jonathan Taplin, que tem uma vida... Ele já tem 70 ou próximo dos 80, tem uma vida cheia. Começou como road manager do Bob Dylan, chegou para ser road manager também dos Rolling Stones, mas eles estavam demasiado pedrados no dia que ele foi lá até com eles e ele achou que aquilo não ia correr bem, quando eles estavam exilados no sul de França. Produziu filmes do Martin Scorsese, foi consultor da Disney também há uns anos atrás, Foi diretor do Innovation Lab da Universidade da Califórnia do Sul, da Escola de Comunicação de Annenberg. E tem um livro que tem tido sucesso, já tem cerca de um ano e meio, e que teve na lista também, ganhou prémios e teve também na lista do New York Times, que chama-se Move Fast and Break Things. Depois tem um subtítulo que é How Amazon, Google and Facebook have destroyed... Não é destroyed, mas como... Cornered
José Maria Pimentel
Culture and Remind Democracy. Sim, exatamente. E
Gustavo Cardoso
é um título interessante porque foi para o monitório de algumas coisas que nós depois viemos a ver nos últimos anos, nomeadamente nas práticas do Facebook e no Google e eu acho que para discutir as questões da comunicação nós temos que olhar não só para Portugal, mas para fora. Temos que olhar, no fim de contas, temos que olhar para o nosso cotidiano. O nosso cotidiano está cheio de aplicações e marcas que não são nossas. E, portanto, temos que perceber que parte dos problemas locais tem que ser resolvidos globalmente, o que é um bocadinho ao contrário daquela coisa do pensar, do agir local, pensar global, agir local, aqui eu acho que temos que agir globalmente enquanto estamos a pensar localmente.
José Maria Pimentel
E foi uma boa maneira de pôr isso para cá. Olha, obrigado por teres vindo.
Gustavo Cardoso
Não, obrigado, eu também, por a convite. Foi uma ótima
José Maria Pimentel
conversa. Gostaram
Gustavo Cardoso
deste episódio? Se encontram o valor no 45°, existem várias formas de contribuir para a continuidade deste projeto. Podem avaliá-lo na aplicação que utilizam, seja ela o iTunes, Spotify, Stitcher ou outra, e podem também partilhá-lo com amigos e comentá-lo nas vossas páginas ou redes sociais. Se acharem mesmo que merece e puderem fazê-lo, podem ainda tornar-se mecenas deste podcast através do Patreon ou do Paypal. Com esse apoio estão a contribuir para a viabilidade deste projeto, que passa a ser também um bocadinho vosso. Para além disso, obtêm em troca vários benefícios como, por exemplo, o acesso ao backstage do podcast e também a possibilidade de sugerir perguntas aos convidados. No fim do dia, já se sabe, são os ouvintes que tornam possível um projeto destes. Ouvintes como Gustavo Pimenta, João Vítor Baltazar, Salvador Cunha, Ana Matheus, Nelson Teodoro, Paulo Ferreira, Duarte Dória, João Castanheira, Tiago Leite, Gonçalo Martins, entre outros mecenas, a quem agradeço e cujos nomes podem encontrar na descrição deste episódio. Até à próxima!