#58 João Nuno Coelho - Futebol e Sociedade
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José Maria Pimentel
Bem-vindo. O convidado deste episódio é João Nuno Coelho e vem falar
sobre um tema que já há muito tinha pensado em trazer ao
podcast. Futebol. Tinha pensado, mas tinha também hesitado, porque adivinho que só
uma parte dos meus ouvintes tem algum interesse por este tema. Dito
isto, posso dizer com alguma confiança que este é um episódio que
pode interessar a quase todos aqueles que tenham pelo menos algum interesse
por futebol, sobretudo se esse interesse for mais pelo desporto em si
e pelo fenómeno social que lhe está associado do que propriamente pela
atualidade que vai preenchendo diariamente os jornais e programas de comentário televisivo.
Eu próprio, aliás, como explico no início da conversa, passei de seguir
futebol regularmente até mais ou menos ao final da faculdade para praticamente
não ver atualmente. Vejo mais os jogos da seleção, o que como
ex-adicto, reconheço que é a marca distintiva de um leigo. Nos últimos
anos tenho-me vindo a desencantar com a corrupção do mundo do futebol,
mas não só, também o efeito de novidade se vai perdendo com
o passar dos anos ao enésimo campeonato nacional e à enésima liga
dos campeões. Não só por ser realmente um desporto diferente dos outros,
mas também porque é um fenómeno que pela sua relevância social se
presta a uma série de análises interessantes, como vão ver. Como disse
no início, Demorei a trazer o tema ao podcast, mas foi uma
espera que valeu a pena, por permitir o encontrar o convidado à
medida. O João Nuno Coelho é uma verdadeira enciclopédia fotobolística, mas nisso
não está sozinho. Há outros casos em Portugal e também não era
propriamente um programa de factoides que eu queria fazer. O que torna
o convidado especial é juntar a essa febre de bola outras características,
essas sim, singulares. O João é sociólogo, com vários livros escritos sobre
o fenómeno do futebol e é membro do grupo de História e
do Desporto do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa.
Tudo isto dá-lhe uma perspectiva sociológica e histórica sobre o futebol, a
qual junta, como vão ver, a capacidade em pensar também o desporto,
das regras à organização das competições, racionalmente, cientificamente diria, e olhando para
o futuro. Nos últimos anos o convidado tem participado em alguns programas
regulares de televisão, atualmente o peculiar, a grande enciclopédia do ludopédio, sendo
que ludopédio é a tradução literal da palavra futebol em português. Durante
a conversa começámos, como não poderia deixar de ser, pela sociologia do
futebol, para perceber, entre outras coisas, porque é este desporto tão popular
e porquê é que não passa de moda? Quais são os benefícios
e, por outro lado, os custos do futebol e da febre clubística
para a sociedade? Ainda neste campo discutimos também as especificidades do contexto
em que surgiu este desporto no século XIX e de que forma
é que esse contexto permitiu a sua ascensão tão rápida. E falamos
também dos custos da futebolização da sociedade portuguesa e dos perigos do
pensamento nacionalista aplicado a este esporte. Falámos também do jogo em si,
falámos das regras e de alterações que o poderão melhorar, desde mudanças
no modo como funcionam os clubes e os campeonatos, a alterações das
próprias regras do jogo e ao número de jogadores em campo. E
conversámos também sobre outros aspectos do próprio jogo, desde a vantagem da
equipa que joga em casa, que todos conhecemos mas cujas causas são
menos óbvias, ao modo como a tática evoluiu desde o futebol que
se praticava há 50 anos até ao tiki-taka do Guardiola. E terminámos,
como não poderia deixar de ser, a olhar para o futuro, mais
especificamente para a aplicabilidade ao futebol, da análise quantitativa e das métricas
estatísticas que já revolucionaram outros desportos como por exemplo o beisebol nos
Estados Unidos, o que foi retratado no livro e no filme Moneyball.
E pronto, vamos à conversa que começa a partida. João, bem-vindo ao
podcast. Até tinha pensado começar esta conversa de maneira diferente, mas depois
há bocadinho ocorreu-me não começar, como é que eu ia dizer, diretamente
por falar de aspectos do futebol, mas mais um bocado aquilo da
parte sociológica, que no fundo tem muito que ver com a tua
própria área de formação. Até porque a minha ideia é fazer no
limite uma conversa sobre futebol que possa ser interessante mesmo para pessoas
que não seguem futebol semanalmente, como é de resto o meu caso,
quando era miúdo Seguia imenso, mas nos últimos anos fui seguindo cada
vez menos e aliás já lá vamos, que também é um aspecto
interessante. O que é engraçado no futebol, se a pessoa pensar, já
pensei nisto várias vezes, isto é verdade, o futebol é um fenómeno
fascinante a vários níveis e é um fenómeno que perdura imenso a
nível internacional, mas então no caso português, se a pessoa pensar, eu
não digo, se recuarmos no tempo, não digo 100 anos, 100 anos
já seria demais, mas se recuarmos para aí 80 anos, ou seja
para 1939, estaríamos numa sociedade em que, e isto para um sociólogo,
suponho que seja uma coisa também tentadora de analisar, teríamos uma sociedade
em que tínhamos quase tudo diferente, o regime era diferente, as instituições
eram quase todas elas diferentes, os números dos jornais eram diferentes, a
própria organização social toda ela era diferente, e no entanto, se olharmos
para o campeonato de futebol para o topo sobretudo ele era muito
parecido. Sendo certo que o Porto não era na altura o Porto
que é hoje em dia mas ainda assim acho que basicamente não
há grandes diferenças entre uma coisa e outra. Por
José Maria Pimentel
Exatamente. Sim, depois é que eu vou prestonar o que é hoje.
Mas Qual é a tua interpretação para este fenómeno? Porque, por exemplo,
parece-me ver, assim, muito grosseiramente, parece-me, por exemplo, ver o fenómeno do
futebol ou do interesse das pessoas pelo futebol é um bocadinho diferente
entre aquilo que é quando nós somos miúdos e aquilo que se
torna quando crescemos. Eu acho que o meu desinteresse pelo futebol, digamos
assim, semanal tem um bocado que vê com isso. Ou seja, quando
éramos miúdos tinha um bocadinho a ver com o jogo e com
o... A pessoa construía quase um... As amizades muito à volta daquilo
e depois quando crescemos parece-me que começa a ter um papel se
calhar de desenjoo da vida do dia a dia, não é? Assim,
de espécie de 90 minutos em que a pessoa desliga do resto
da realidade. Acho que isto, Tom Froome, tem sido estudado também, não
é?
João Nuno Coelho
em que a vida é dominada por responsabilidades e restrições permanentes. E
se calhar isso tem a ver um bocadinho com a nossa ligação
ao jogo. E depois há o outro aspecto importante. Eu acho que
para a maior parte das pessoas a complexidade das questões ditas sérias,
a política, a economia, acaba por as desmotivar um bocadinho, enquanto o
futebol tem uma simplicidade se calhar que é só aparente, porque vemos
hoje em dia como se preparam as equipas, como tudo aquilo que
existe à volta do mundo do futebol É complexo, não é simples,
mas há uma certa ilusão de simplicidade que
faz com que a maior
parte das pessoas pensem que têm realmente os dados na mão suficientes
para poderem dissertar sobre o jogo e no fundo sentirem-se valorizadas por
isso. Os célebres treinadores de bancada que nós vemos por todo lado,
seja nos fóruns da rádio e da televisão ou quer seja depois
nos programas com comentadores que não estão propriamente relacionados profissionalmente com o
jogo. E portanto há aqui uma certa ilusão que o futebol nos
dá e que, na verdade, eu estou de acordo com aquilo que
tu disseste logo de início. Se calhar é a possibilidade das pessoas
saírem de uma certa... Um certo encarceramento em que vivem, do trabalho,
da família. Isso faz com que haja muita gente que tem no
futebol, desde a infância até à morte, um tema que preenche as
suas vidas. Se isso é grave em termos sociais ou não, como
sociólogo, não é algo que me preocupe, tem a ver com determinada
formação social em que vivemos. Pessoalmente, muitas vezes questiono, até porque tantos
me exprimo isto também na minha vida profissional e às vezes parece-se
demasiado dominante, demasiado ditutorial o futebol na minha vida. E depois isto
faz-nos pensar naquilo que tu também lançaste como tema para esta conversa,
que tem a ver porque é que é o futebol tão popular
e, ao mesmo tempo, o que é que o diferencia dos outros
desportos que acabam por não escapar essa, digamos, essa dimensão de desporto,
enquanto o futebol parece estar já no outro patamar completamente diferente. É
difícil aplicar ao futebol profissional dos nossos tempos apenas a condição de
desporto. É uma indústria, é um espetáculo, massas, é uma instituição social,
ou seja, em muitos aspectos ultrapassou essa dimensão de simples desporto. Isso,
quer dizer, já ultrapassou há tanto tempo
que,
por exemplo, no final do século XIX em Inglaterra já havia jogadores
profissionais de futebol. Portanto, isso não é algo que exista há décadas,
existe há mais de 100 anos. O que foi interessante foi mudando
também com a questão dos mídias, da globalização, Mas esse profissionalismo no
futebol é algo que existe já há 130 anos, há 140 anos,
o que é absolutamente incrível. E faz-me pensar... Foi um
João Nuno Coelho
obviamente, até porque depois teve muitas variações. Por exemplo, em Portugal não
se admitiu o profissionalismo até aos anos 60, embora toda a gente
soubesse que haviam jogadores a receber dinheiro, mas a verdade é que
não eram oficialmente profissionais. E o mesmo aconteceu, por incrível que pareça,
em países como a Holanda ou como a Alemanha, onde o profissionalismo
foi muito mais tardio do que em Inglaterra, na América do Sul
ou por exemplo na zona da Europa Central onde também houve uma
profissionalização muito, muito, muito rápida do fenómeno. E isto leva um bocadinho
àquilo que para mim são as explicações.
Às
vezes não é fácil explicar algo que está tão conectado, pelo menos
em termos de discurso, com a paixão. Muitas vezes há quem diga
que a paixão pelo futebol não se pode explicar porque é uma
paixão. Essa é aquela visão anti-científica, digamos, em que não vamos explicar
uma coisa só porque tem a ver com emoções. Não. As coisas
explicam-se, ou pelo menos procura-se a sua explicação. E no caso do
futebol, eu acho que há duas ordens de explicações complementares. Por um
lado, a própria estrutura do jogo, ou seja, as próprias características intrínsecas
do jogo, que são realmente exemplares. Eu acho que o futebol, e
isso é uma das coisas que sempre me fascinou no futebol conforme
fui começando a estudar, foi perceber que em termos de configuração do
jogo é realmente muito inteligente e reproduz muito daquilo que é a
própria condição humana, ou seja, por um lado é um disporte de
contacto e o facto de haver contacto, de haver combate, digamos assim,
desde logo tem tudo a ver com a luta pelo poder e
portanto logo desde aí tem essa dimensão. Depois, o fato de ser
muito simples também ajuda imenso. É realmente um dos jogos mais simples
com menos regras, digamos assim. Comparado com o cricket. Com o cricket
e com o beisebol ou com outros esportes, realmente é simples e
é fácil de jogar. É fácil no fundo.
João Nuno Coelho
quem seja um bocadinho mais radical, já que falamos em estudiosos e
em livros. Há, por exemplo, um livro que chama The Number's Game
de um autor, dois autores, um chamado Chris Anderson e outro David
Sully, em que eles defendem essa ideia dos 50-50. Isto implica o
que implica? Realmente total grau de incerteza e de imprevisibilidade e também
de possibilidade de haver outsiders a vencer, que também acho que aumenta
a popularidade do jogo. Depois o facto também de haver esta fácil
ligação entre o futebol e realmente a tal confrontação. O futebol é
permanente equilíbrio entre ataque e defesa, ameaçar e ser ameaçado, em que
rapidamente se pode passar de uma situação de estar sob ameaça para
estar a ameaçar, para estar em cima do adversário. Todas estas condições
levam ao que o Norberto Elias, que foi um sociólogo alemão muito
importante, nomeadamente pela sua teoria do processo civilizacional. E depois vamos já
perceber porque é que as duas coisas estão ligadas. Em que no
fundo o processo civilizacional diz que as sociedades humanas têm caminhado no
sentido de uma maior civilidade, civilização. Cada vez temos menos contactos com
formas de violência extrema, por exemplo, já não se resolve tudo à
estalada como se resolve há umas décadas atrás, por exemplo. É uma
coisa engraçada. As pessoas têm pouco contacto com situações de limites de
agressividade, pelo menos nas sociedades ditas ocidentais.
Sim, exatamente.
Somos confrontados com a morte de uma maneira muito protegida, não é?
Quer dizer, a maior parte de nós nunca teve que lidar com
situações de morte na
João Nuno Coelho
E o que o Norberto, aliás, diz, e ele quando estuda esse
processo civilizacional, ele considera que, por exemplo, o desporto, e nomeadamente o
futebol, produz altos níveis de excitação, de emoção, que no fundo acabam
por se substituírem às situações de risco. Ou seja, o que ele
diz é que no fundo o futebol acaba por ser uma imitação
dessa excitação. E portanto, o que ele diz é que futebol é
um desporto excitante em sociedades cada vez mais enxitantes ou inexcitadas. Mas
José Maria Pimentel
isso é uma coisa engraçada. Isso porque eu, ainda no outro dia,
a propósito de uma conversa que não tinha nada que ver com
isto, falava exatamente da questão do futebol ser um bocadinho um reduto
da violência na sociedade contemporânea.
Exatamente. E
eu não sei, confesso, e gostava de saber a tua opinião em
relação a isso, se o futebol contribui para, no fundo, manter acantonada
essa violência ou se pelo contrário contribui para a promover. Para mim
não é nada fácil perceber isso, porque se eu ouvir os típicos
membros das clássicas portuguesas, não é? Aquilo tem a ar de estar
a promover a violência, mas por outro lado pode estar a contê-la,
não é?
João Nuno Coelho
É sim, em relação a essas margens, provavelmente até dá a hipótese
a que elas manifestem essa violência. Há o tal anonimato do estádio,
mas em termos da sociedade mais vasta não tenho dúvidas que o
futebol contribui para o control social, ou seja, há uma possibilidade limitada
de transgressão social que o futebol permite, que ajuda depois a que
essas manifestações não aconteçam a propósito de outros assuntos e em dimensões
muito mais graves, ou muito mais intensas, no fundo. Porque, repara, há
um autor que é o Nick Hornby que escreveu para mim o
melhor livro sobre futebol do ponto de vista do adepto, que se
chama Fever Pitch, Febre no Relvado. O Nick Hornby é um autor
inglês que não escreve só sobre futebol, é um romancista. Mas um
dos livros dele é sobre a sua paixão pelo Arsenal. E ele
conta que a coisa que o mais induciu a esmogar o futebol
quando era miúdo, os pais tinham se separado, a forma que o
pai tinha de manter contacto com ele e manter alguma sociabilidade era
levar o futebol. E ele no início não achou piada nenhuma até
perceber que podia, que à volta dele toda a gente estava a
dizer asneiras, palavrões, com os quais ele não tinha contato em mais
lado nenhum, porque havia um grande controle à volta disso e portanto
o único sítio onde ele podia estar a ouvir pessoas a insultarem-se
e a a dizerem palavrões era no futebol e ele achou isso
fantástico. Foi a coisa que começou porque está mais no futebol. E
eu acho que tem a ver exatamente com esta, com aquilo que
o Elias chama um descontrolo controlado das emoções. Ou seja, apesar de
haver realmente um descontrolo emocional, é com regras. Esse descontrolo tem regras
e as regras estão bem definidas.
José Maria Pimentel
E acho que aqui parece-me também há dois tipos de violência, ou
seja, uma coisa é, no fundo, a possibilidade que o futebol, como
outro desporto, nos dá, nós seres humanos ditos normais, de ir a
um estádio e canalizar um bocado aquele lado animalesco que todos temos,
lá está de forma controlada, outra coisa é hooligans, que são coisas
diferentes. E neste primeiro, lá está, de acordo contigo, também acho que
esse é um papel muito importante. Precisamos sempre de um escape algúres
para isso, depois os hooligans acabam por funcionar ao contrário, Acaba por
haver uma promoção de violência, não é por acaso que são, que
acabam por ser sítios de onde medra, sei lá, a extrema direita,
por exemplo, e coisas desse género. E isso é engraçado. Há bocado,
já gosto de fazer um comentário relativamente a uma coisa que tu
disseste há bocadinho a propósito do futebol, isto é, enquanto fenómeno de
paixões, a única... Eu também já pensei nisso várias vezes e aquilo
que nunca, quer dizer, de certa forma nunca encontrei uma solução perfeita
para isto, porque por um lado acho que faz sentido que o
futebol existe enquanto esporte, naturalmente, e que a pessoa o siga de
uma forma apaixonada, se gostar daquele clube. Depois, o que acontece, e
acho que há muitas pessoas que, no fundo, acabam por, de maneira
intencional ou não intencional, se aproveitar disso, é que acaba a funcionar
muitas vezes como uma espécie de teto à razão, não é? Ou
seja, tu és do Benfica, por exemplo, toleras do presidente do teu
clube um tipo de disputismo, por exemplo, que não toleras de um
político normal. É verdade, é verdade. Não é? É verdade, claro que
sim. E eu sou do Porto, atenção, portanto, repara que eu estou
a dizer isto sabendo do que estou a falar, não é?
João Nuno Coelho
É que aí entra a outra razão fundamental para essa popularidade do
futebol. Lá está com base nos investimentos simbólicos que se fazem, que
é a importância das identidades, ou seja, se nós sofremos com um
jogo de futebol, se passamos da infelicidade para a maior felicidade do
mundo por causa de um golo, tem a ver com o facto
de gostarmos do jogo em si, mas acima de tudo de gostarmos
do clube ou da seleção ou da identidade que está ali em
questão. Pode ser também o clube do bairro, em alguns casos, como
por exemplo na Escócia, em Glasgow, tem a ver com o sectarismo
entre os católicos e os protestantes, por exemplo, que são representados pelo
Celtic e pelo Rangers. Mas o que eu quero dizer é que
se nós temos esse tipo de investimento simbólico e emocional no futebol
tem a ver exatamente com a questão das identidades. Por isso é
que eu dizia que, por um lado, a explicação para a popularidade
de futebol está relacionada com a própria estrutura do jogo, com as
características do jogo, com o facto do jogo produzir a tal excitação,
a tal emoção, depende também dos contextos sociais em que ele se
foi desenvolvendo. E eu acho que o futebol teve, para lá da
sorte de realmente ser um jogo muito inteligente, por exemplo comparado com
o rugby costuma-se dizer que o que o futebol é um desporto
muito inteligente jogado por bandidos, enquanto o rugby é o contrário É
um desporto um bocado bruto, um bocado para pessoas inteligentes e cultas
ou pelo menos com mais cultura desportiva que os que jogam futebol.
É óbvio que há uma generalização, mas para dizer o que é
o futebol, além de realmente ter sido, ter conseguido uma regulamentação, uma
estruturação fantástica em termos de como desporto, apareceu num momento perfeito para
o seu desenvolvimento, ou seja, industrialização, urbanização, que permitiram, no fundo, cair
no goto das classes sociais certas, num momento certo, para se tornar
o desporto mais importante da escola global. Ou seja, o que eu
quero dizer é que o futebol não é o mais popular por
ser o melhor desporto, porque isso é muito discutível. O que teve
foi um timing brilhante.
João Nuno Coelho
nada acontece por acaso, obviamente, mas a verdade é que Quando, no
século XIX, aquilo que era chamado de folk football, que eram manifestações
quase selvagens, de competições entre aldeias, em que basicamente o objetivo era
levar uma bola de uma aldeia até à outra, em que toda
a gente estava envolvido nisto, era no fundo uma pancadaria a céu
aberto. Tudo isto foi regulamentado depois nas escolas mais elitistas inglesas, foi
miniaturizado, no fundo, foi transformado em algo mais disciplinado e, a partir
daí, porque estamos a falar de escolas que produziram alguns dos líderes,
nomeadamente de empresas e da indústria daquela altura, foi depois transportado para
o meio industrial, digamos assim, nomeadamente do Norte de Inglaterra, e foi
aí que se popularizou. Ou seja, foi no momento certo, foi quando
começaram a surgir as grandes aglomerações urbanas e o futebol era a
atividade preferida daquela malta. Nomeadamente, quando começaram a ter tempo livre, quando
surgiu a semana inglesa com os sábados à tarde livres e a
atividade que foi consagrada, digamos assim, que se tornou dominante, foi o
futebol, que no fundo, enquanto desporto como o conhecemos, não tinha pouquíssimas
décadas nessa altura. E portanto houve essa coincidência brutal e que fez
com que, de repente, o futebol em poucas décadas tenha tornado na
prática dominante nas cidades industriais. Depois ainda...
João Nuno Coelho
muito rápido porque coincide também com um momento fundamental daquilo que muitos
autores chamam a democratização funcional. Ou seja, o que acontece é que
a partir de um certo momento nestas cidades industriais, pela primeira vez
temos cidades com milhões de habitantes, nestas cidades começa a haver uma
grande especialização funcional. E há alguns indivíduos que têm mais qualidade a
fazer determinadas práticas, neste caso jogar futebol, que são tornados representantes da
comunidade, nomeadamente através dos clubes e, mais uma vez, quando existe esta
democratização funcional e quando há representantes desportivos, digamos, de uma determinada identidade,
a atividade mais importante é o futebol e, portanto, não é por
acaso que de repente muitas cidades tinham nas equipas de futebol os
seus representantes da comunidade, digamos assim. E portanto o futebol viveu realmente
de quase que, como se costuma dizer, de estar no sítio certo,
à hora certa e assim se tornou, eu diria mesmo, com todo
o exagero, que isto parece ter, é algo que é muito discutível
obviamente, mas eu penso que é uma das formas culturais e quando
digo aqui culturais digo no sentido muito mais abrangente não de cultura
João Nuno Coelho
No sentido sociológico obviamente, uma das formas culturais da modernidade, porque realmente
foi catalisado, digamos assim, como uma forma de representação da comunidade, das
diferentes identidades. É, portanto, daí que no final não seja melhor ou
pior que os outros esportes, apenas no fundo acabou por causar de
um determinado momento social, transformação social, que elevou a estes níveis de
popularidade inacreditáveis. Até porque depois, obviamente isso é mais ou menos lógico,
quando foi para ser, digamos, disseminado pelo mundo e ainda prima tinha
o maior império ao seu serviço, não é? Um império britânico. E
portanto, como era um produto britânico, foi espalhado pelo mundo através dos
industriais, dos comerciantes, da armada inglesa e, portanto, teve o caminho muito
mais simplificado, muito mais aberto para se tornar realmente um desporto à
escala planetária.
João Nuno Coelho
Por razões obviamente sociais também e culturais, no caso dos Estados Unidos
é relativamente fácil perceber que depois da Guerra da Independência, no final
do século XVIII, não havia grande vontade de estar a adotar o
desporto inglês, que era como ele era chamado, como o desporto nacional,
como uma prática muito acarinhada e, portanto, os americanos arranjaram outras alternativas
e que, depois, em termos sociais, se impuseram, impedindo, no fundo, a
difusão do futebol com a mesma força do que aconteceu, por exemplo,
na América do Sul, onde foi um dos locais onde a sua
popularização foi mais
José Maria Pimentel
rápida. É curioso, porque essa contingência histórica de que tu falas, no
fundo, a independência dos Estados Unidos já se tinha dado há mais
de um século e no fundo eles estavam, apesar de tudo, pouco
interessados em importar um desporto do antigo colonizador. Mas por outro lado,
também há um lado que está relacionado quase com a maneira de
ser da sociedade americana e que o futebol espelha pouco, não é?
Quer dizer, aquele lado... O futebol é muito diferente... Eu no outro
dia estava a ouvir um programa, giro para casa, em que o
programa era exatamente sobre isto, porque é que o futebol não pega
nos Estados Unidos, quer dizer, já se tentou. Os Estados Unidos é
por isso que é curioso, que eles ficaram, acho que, Salver em
terceiro lugar no primeiro campeonato do mundo. Sim, sim, sim. Depois, logo
no primeiro eles ficam em terceiro, mas depois caem outra vez, depois
organizam aquele mundial em 91.
José Maria Pimentel
94, tens razão, exatamente, em 94. E aquilo não pega também, e
este último mundial não foram, talvez nem sequer foram qualificados. O futebol
acaba por nunca pegar lá. E havia um dos tipos do programa
que dizia uma coisa com muita piada. Alguém comentava, o jogador de
futebol qualquer que é muito atlético e dizia aquilo de uma maneira
depreciativa. E dizia, pois, só no futebol, neste futebol, é que dizer
que um jogador é atlético não é necessariamente o elogio, quando no
futebol americano ou no outro desporto qualquer americano. Isso é uma das
críticas mais importantes do futebol. Quer dizer, uma das coisas que eu
acho que tem, eu concordo com aquilo que diz, isto é, acho
muito interessante a explicação que tu tens há pouco do lado contingencial
da ascensão do futebol, no fundo ter estado no sítio certa a
hora certa, mas também acho que existem algumas coisas que tornam o
futebol único, quer dizer, tu teres... Como é que tu consegues ter
um desporto cujo melhor jogador não corresponde a nenhuma das características físicas.
Exatamente, não chega até o metis 70. Exatamente, o melhor ou o
segundo melhor? Se quisermos ser um bocado patrióticos, não sei o que
é discutir, mas acho que é... Quer dizer, é uma discussão que
não interessa muito ter, mas seguramente... Primeiro, o segundo melhor jogador da
história, quer dizer, o Messi... Se tivesse que desenhar um jogador, já
mais desenharias algo...
João Nuno Coelho
mas também das próprias características do jogo. O facto de ver... Para
já é um jogo que proporciona facilmente grande plasticidade, ou seja, facilmente
se adotam diversos estilos, há diversas formas de jogar e isso também
ajuda a explicar como é que se espalhou pelo mundo todo, porque
no fundo cada país, ou pelo menos cada zona, cada cultura, adotou
o futebol à sua maneira. Joga-o de forma diferente. Isso agora é
claro que se vai alterando um bocadinho
com a
globalização e com o mercado livre de jogadores e por aí fora,
mas não deixa de haver mesmo assim características físicas que determinam a
forma como se joga. Portanto, tudo isso ajudou a que o futebol
se tornasse tão popular e Não é só a questão da popularidade,
é popularidade para um lado e a forma intensa e extrema como
se vive o jogo. Porque uma coisa é a popularidade, outra coisa
é levar-se a paixão e levar-se o empenho por aquilo que se
passa no jogo a níveis às vezes quase delirantes, não é? No
fundo, um bocadinho aquela ideia do Freud que o homem é um
animal delirante, não é? E eu acho que o futebol é um
bom exemplo disso. Transformar um jogo de 22 contra 22... 11 contra
11 de 22 homens numa coisa que às vezes parece ser dramática,
quase decisiva para a vida das pessoas, não deixa de ser uma
forma de delírio, mas também ao mesmo tempo dá-me a
impressão
que nós precisamos um bocadinho desse tipo de delírio. E isso é
uma das coisas que, por exemplo, a mim me faz um bocadinho
de confusão e é uma coisa que eu tenho também escrito um
pouco sobre isso, sendo um adepte fervoroso como sou de futebol. Eu
costumo dizer que gosto mais de futebol do que gosto da minha
equipa, desde há muito tempo. Ao mesmo tempo, assusta-me e preocupa-me quando
as coisas são demasiado manicaístas, ou seja, por exemplo, em Portugal eu
acho que há um exagero na forma como toda a nossa construção
de identidade nacional anda à volta do futebol.
João Nuno Coelho
O futebol ocupa um espaço demasiado mediático, em detrimento de muitas outras
coisas que também podiam ser importantes para a construção da nossa identidade
e para também, e não só para a identidade, mas também para
a melhoria do nível de cidadania e de conhecimento e de cultura
das pessoas. Ou seja, o que eu acho é que o futebol,
ao contrário do que acontece com muitos outros desportos, o futebol realmente
mexe com a personalidade, empolga, mas empolga como pode empolgar o teatro
ou a música ou a poesia, não é? E o que me
parece a mim é que nós acabamos por ser um bocado vítimas
de uma certa futebolização da sociedade portuguesa. Por exemplo, Ronaldo não tem
culpa nenhuma disso, mas acaba por ser um dos elementos fundamentais nesse
processo.
João Nuno Coelho
Absolutamente ridículos, dos quais ele não tem culpa nenhuma,
obviamente. Sim, sim,
claro. E para mim uma das coisas que me fascina, por exemplo,
em Inglaterra, é perceber que é um país apaixonado por futebol, claramente,
é dado uma importância grande ao futebol, mas é dada a importância
ao futebol como é dada importância a muitas outras manifestações culturais no
sentido antropológico, muitas outras formas de atividade, muitas outras formas de vivência.
A mim o que me preocupa é quando as coisas são demasiado
concentradas, demasiado monolíticas e hegemónicas. E eu às vezes tenho a sensação
que em Portugal o futebol é realmente uma forma hegemónica em termos
sociais e culturais e o melhor exemplo para mim é realmente a
questão da produção de identidade nacional, em que a identidade nacional parece
que está dependente da bola que vai ao posto, da classificação num
campeonato do mundo, do valor que nós reconhecemos a nós próprios por
causa dos desempenhos clubísticos ou da seleção nacional.
José Maria Pimentel
Aliás, o que tu falas nesse paper, ou pelo menos num dos
que publicaste sobre isso, que tem muita piada, é aquela quase licença
para ser nacionalista ou para ser absolutamente parcial, se instituir quando há
um campeonato do mundo ou uma coisa do género, e que eu
acho que em parte é compreensível, não é? Não íamos estar a
falar de um sábio. Sim, a torcer pelos outros, obviamente. Mas há
um exagero quase como se aquilo fosse um fim em si mesmo,
não é? E ultrapassasse todos os outros fatores que qualquer análise mais
objetiva do jogo seria muito mais interessante. Sabe que
João Nuno Coelho
E acabei por fazer a minha tese de mestrado sobre isso e
muito com base na obra de um autor americano, nem sequer fala
de futebol, chama-se Michael Billig e o livro é Banal Nationalism, no
fundo nacionalismo banal e perceber de que forma é que quando dizemos
que, por exemplo, nos países ocidentais não há nacionalismo e consideramos o
nacionalismo apenas aquele mais sangrento, aquele de imposição de uma identidade nacional.
E o que o Michael Bellic diz é que o nacionalismo é
feito todos os dias, é construído todos os dias à custa de
coisas tão banais como, por exemplo, um jogo de esportivo, neste caso
o futebol. E o que me parece é que todas essas formas
são formas de manifestação de nacionalismo banal e que, no caso português,
ainda são mais preocupantes porque são tão hegemónicas.
José Maria Pimentel
Mas onde é que tu colocas a fronteira, entre uma espécie de,
se quisermos usar aquela dictomia habitual, entre um patriotismo benévolo aplicado ao
futebol, ou seja, no fundo, futebol só dá gozo se for entre
a nossa equipe e dos outros, não é? E um exagero que
já cai, que não sendo obviamente sangrento, nada que se pareça, já
cai no terreno do nacionalismo.
João Nuno Coelho
A fronteira eu penho-a muito mais em termos narrativos e discursivos, mas
que ao mesmo tempo são estruturantes. Atenção, o problema é esse. É
que quando nós reduzimos a nossa linguagem de identidade ao sangue e
à nação, estamos nos a autolimitar e estamos a excluir, e para
mim é aí que eu penho a barreira, ou seja, sim senhor,
Vivemos num mundo organizado em estados de nação, não é? É a
forma de organização global, mas para mim, a partir do momento em
que a pertença a uma determinada identidade nacional
me
limita e me faz, por exemplo, a excluir outras, para mim já
é a diferença entre patriotismo e nacionalismo, percebes? Sim,
sim. E, portanto,
eu sinceramente,
o
patriotismo aplicado ao futebol é uma coisa que me assusta um bocadinho.
Aceito, quero que a seleção ganhe, mas custa-me porque me parece que
é uma... Se há um aspecto em que me parece que o
futebol é colonizado, é muitas vezes por esse discurso nacionalista. Não só,
também pelo capitalista, sem dúvida. Aliás, se calhar, as marcas essenciais do
futebol dos nossos dias é essa mistura de capitalismo, nacionalismo e mídia
que produzem
o que o futebol é hoje em dia e em que muita
coisa se perdeu pelo caminho, claramente. A tal condição de desporto, a
tal condição de cultura desportiva, parece-me que se perdeu um pouco pelo
caminho e nesse aspecto seria aquele em que nós, se calhar o
futebol teria mais a aprender com outras modalidades, mas ao mesmo tempo
não sei se isso seria possível porque as circunstâncias sociais são completamente
diferentes. Muitas vezes fala-se, por exemplo, da questão do rugby. E não
é por acaso que o vídeo árbitro, por exemplo, uma das experiências
que corre melhor é com a do rugby. Mas o que eu
me pergunto é, será possível termos uma cultura desportiva dominante no futebol
como temos no
rugby?
Será que é possível comparar o nível cultural e social dos adeptos
do rugby com os adeptos do futebol? É muito complicado
porque
o rugby é um esporte.
João Nuno Coelho
Sim, mas de qualquer maneira, em termos sociológicos, o campo de recrutamento
do futebol em termos de adeptos é tão vasto que dificilmente poderemos
ter uma cultura desportiva, uma capacidade de lidar com a derrota e
com a vitória de uma forma muito mais filosófica que como temos
por exemplo no rugby, em que o ambiente é completamente diferente e
portanto será sempre muito difícil que o futebol escape ao seu entorno,
porque, no fundo, o futebol, se dizemos que realmente é um reflexo
da sociedade, utiliza-se muito este clichê, mas não podia ser de outra
forma. E muitas vezes quando se fala, por exemplo, que era importante
evitar a promiscuidade entre o futebol e a política e o futebol
e a economia, isso é uma visão reducionista completamente porque em termos
sociológicos tudo está intrincado, tudo está relacionado, não está compartimentado de forma
a que possamos dizer que se o futebol não fosse contaminado pelos
valores ideológicos, se não fosse contaminado pelo capitalismo, pela economia, era muito
mais uma escola de virtudes, era muito mais um exemplo, era muito
mais uma forma de educar do que é. Mas também se na
verdade não tivesse essa dimensão de popularidade que tem, se não tivesse
presente em todas as classes e estratos sociais, também não tinha o
impacto social que tem. Portanto, é muito difícil gerir isto. Agora, eu
acho que a luta pela cultura desportiva é a luta também pela
cultura cívica. No fundo são coisas que fazem parte do mesmo pacote.
Para mim cultura desportiva é um item da cultura cívica e eu
acho que a única coisa que nós podemos fazer é lutar para
que essa cultura seja mais ampla, seja em termos cívicos, quer seja
em termos desportivos e só assim é que vamos poder melhorar também
em termos daquilo que o futebol pode contribuir para a sociedade, nomeadamente
em termos de educação pelo jogo, sem dúvida
José Maria Pimentel
nenhuma. Sim, isso que estávamos a falar lembrou-me de uma coisa que
eu também queria falar contigo e que vem a propósito, porque o...
Como estávamos a dizer, quer dizer, é muito... O futebol é um
fenómeno de tal maneira massificado que é muito difícil inverter completamente essa
tendência, mas eu acho que existem algumas reformas que era possível fazer
e tornaria o futebol um desporto mais interessante do que é, como
por exemplo algo que pelo menos batesse a dominância, porque existe tipicamente
por dois ou três, no caso três clubes em Portugal, em outros
países, em alguns casos por menos, outros casos por mais. Eu estava
a falar com um amigo, a propósito desta conversa nós íamos ter,
e eu estava a lhe a perguntar, a pedir sugestões de perguntas,
até porque esse meu amigo está mais dentro do futebol da atualidade
do que eu, e ele sugeriu uma pergunta gira que era uma
coisa que eu já me tinha lembrado e acho que vem a
propósito disto, embora me pareça provavelmente pouco executível, que era adaptar ao
futebol aquele modelo que é usado pelo menos na NBA nos Estados
Unidos, que é curioso, ainda por si, porque sendo os Estados Unidos
o, no fundo, o paradigma do país capitalista, é curioso que no
desporto eles acabam por ter uma série de mecanismos de compensação desse
desnivelamento. E tu saberás isso melhor do que eu, mas na NBA,
o Salveiros tem um orçamento limitado, depois tem a prioridade na escolha
dos jogadores, porque no caso são jogadores que vêm...
João Nuno Coelho
é? Deve, deve. E o outro aspecto fundamental é que na Europa
somos praticamente o último país que resiste sem os direitos centralizados, sem
haver uma negociação centralizada. Portanto, aí
nem
sequer somos exemplo da Europa, porque na Europa já toda a gente
percebeu que se não se trabalhar minimamente para o bem comum, neste
caso de uma liga, essa liga está condenada. E esse é o
princípio básico da NBA. Mas para isso é preciso uma cultura desportiva
muito acima do que nós temos em Portugal, em que a única
coisa que interessa é o bem individual, neste caso de um clube,
em relação aos outros. Se não pensarmos na liga como um todo,
se vemos esta visão com palas, autenticamente egoísta, o que acontece é
isto que nós vemos. O Porto Benfica e o Sporting realmente têm
a maior parte dos adeptos e, portanto, acham que têm direito a
controlar e a dominar completamente a liga em questão. Mas
João Nuno Coelho
a Inglaterra tens qualquer coisa como, eu não quero estar a exagerar,
mas penso que não estou muito longe da verdade, se disser que
os, para já os direitos televisivos da Inglaterra são brutais porque têm
também a Ásia e Estados Unidos e Companhia Limitada, que faz com
que realmente sejam valores brutais. Mas a diferença entre o dinheiro recebido
pelo primeiro colocado numa determinada edição da Liga e o último é
quase residual. Ou seja, a equipa que fica em último lugar da
liga inglesa recebe, por exemplo, à volta de uns 120 milhões de
euros pelas transmissões televisivas da época que acabou. Eu imagino, por exemplo,
o primeiro classificado receberá volta de 150 milhões. Portanto, a diferença é
muito, muito, muito residual. O que permite que as equipas, que a
maior parte das equipas inglesas, possam comprar os jogadores que, à partida,
estariam completamente vedados. E isso faz com que a Liga Inglesa se
transforme realmente numa liga muito mais competitiva do que a maior parte
das outras ligas, em que qualquer equipa pode derrotar os primeiros classificados
a qualquer momento. Portanto, nem sequer precisamos de ir ao exagero dos
Estados Unidos, porque estamos a falar de ligas fechadas, por exemplo, não
é? Não há promoções e despromoções. São ligas por convite e em
que as equipas nunca chegam a descer divisão. E, por exemplo, os
clubes podem facilmente mudar de cidade. São tradições culturais também diferentes em
termos do modelo desportivo, mas, de qualquer forma, Acho que temos muito
a aprender e há cada vez mais gente a querer fazê-lo, aprender
com essas ligas, mas respeitando, lá está, as características, as tradições do
nosso próprio modelo desportivo, que passa por, no caso latino, por exemplo,
com os sócios a deterem a maioria dos clubes desportivos, que é
uma coisa que por exemplo em Inglaterra nunca existiu, os clubes sempre
foram, sempre tiveram donos, na tradição mais latina, mais do sul, isso
não é assim. Os clubes são detidos pelos sócios que votam e
escolhem os seus representantes. Agora, o que me parece é que é
possível aprender e copiar algumas algumas medidas e algumas filosofias sem ter
que perder a identidade. E acho que esse é o grande desafio
que tem, por exemplo, o futebol em Portugal em relação às outras
ligas europeias, nomeadamente na tal questão dos direitos televisivos. Mas repara como
tudo isto pode tornar-se praticamente impossível por questões circunstanciais. O Porto, o
Benfica e o Sporting fizeram a negociação dos direitos televisivos há 10
e há 20 anos. Ou seja, neste momento já gastaram o dinheiro
das transmissões televisivas dos próximos anos. Portanto, como é que podemos agora
fazer uma negociação centralizada se esse
João Nuno Coelho
já foi gasto? O imediato é muito mais importante. O curto prazo.
Uma equipa como a Oporta, um clube como a Oporta, como a
Benfica ou como o Sporting, não se pode dar ao luxo de
dizer que está a fazer um projeto futuro a 5 ou 6
anos. Tem que ganhar logo e imediatamente, porque as pessoas não estão
preparadas para outro tipo de realidade, não estão preparadas para outro tipo
de discurso, não estão preparadas para não ganhar. E esse é um
dos problemas fundamentais no futebol português e que faz com que, por
exemplo, seja muito difícil imaginar outros clubes a disputarem os campeonatos, a
disputarem os primeiros lugares, a conseguirem dar luta aos clubes grandes, é
porque simplesmente não há, as condições não existem para que isso seja
possível. E os próprios mídia, e eu falo por mim, acabamos por
reproduzir também um pouco o próprio status quo,
José Maria Pimentel
daí. Olá! Gostam do podcast? Se quiserem contribuir para a continuidade deste
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cada modalidade de contribuição. Desde já obrigado pelo apoio, mas para já
voltamos à conversa. Falando também nestes aspectos, mas falando agora de regras
mais específicas do jogo, uma coisa que eu tinha curiosidade era saber
a tua visão em relação a regras do futebol que valeria a
pena alterar. E isto até, para quem nos ouve e não está
por dentro disso, é outra das comparações curiosas entre o futebol e
outros desportos, é o facto do futebol ser muito avesso, ou por
outra, quem regula o futebol, ser muito avesso a alterações de regras.
O que tem o seu lado bom, por exemplo, facilita a comparação
com os jogos antigos, mas às vezes cria coisas muito anacrónicas.
João Nuno Coelho
tal questão da simplicidade, etc. Mas a mim parece-me que o futebol
tinha muito a ganhar com algumas alterações até estruturais e que eu
penso que não implicariam com aquilo que mais essencial tem o jogo
e possibilitaria, aliás, a médio prazo que o futebol pudesse resistir algumas
tendências que eu acho que podem ser não fatais, mas podem ser
muito perniciosas. E estou a pensar em duas
ou três
questões. Uma questão tem a ver, não é exatamente a questão do
tamanho da baliza, porque me parece que poderia, aumentar a baliza poderia
levar à tendência, por uma questão também quase de limitação física, à
tendência para que se privilegiasse demasiado os remates de muito longe, ou
seja, podia se tornar
o jogo um
bocadinho monocórdico. Como
João Nuno Coelho
sim. Mas eu iria muito mais no sentido do que defendeu já
há décadas um jogador brasileiro que depois faleceu porque era alguém que
conseguia pensar além do jogo, pensava muito bem o jogo, mas pensava
para lá do jogo também o Sócrates, o famoso Sócrates, que já
há 20 anos atrás dizia que o futebol ia ter que diminuir
o número de jogadores e manter o tamanho do campo. Ou seja,
dizia. Ele dizia isso? Dizia. Segundo eu, para 10 ou 9 jogadores.
Porque a capacidade física dos jogadores aumentou de uma forma brutal, a
sua preparação, o que lhes permite o tal pressing em que diminuiu
imenso o tempo e o espaço para pensar e, portanto, hoje em
dia nós não temos a noção do que é que é jogar
futebol ao mais alto nível. Um jogador de futebol no meio campo
recebe a bola e tem que pensar em frações de segundo, porque
é logo imediatamente cercado por outros jogadores e que lhe tentam tirar
a bola e, portanto, o jogo facilmente se torna demasiado defensivo, ou
seja, no sentido em que
é muito
difícil fazer ações e fazer ações com algum brilhantismo. Por isso é
que um jogador como o Messi é excepcional. É
João Nuno Coelho
na hora, mais do que na hora do futebol, passar a ser
um desporto cronometrado, como são outros, como é o básquet, como é
o futsal, por exemplo, em que há uma cronometragem que quando a
bola não está a ser jogada, o jogo, o cronômetro está parado.
E isso acabaria com as situações de perdas de tempo, que muitas
vezes nem são muito nítidas, mas que contribuem para que o jogo
não tenha ritmo nenhum. É fácil ver os exemplos destas situações. Tudo
que fosse medidas que pudessem possibilitar mais tempo útil de jogo seria,
penso que seriam de aplicar. Agora, não vai ser fácil lutar contra
todo o conservadorismo e, por exemplo, o próprio VAR está a surpreender
uma forma que foi rapidamente adaptado e
José Maria Pimentel
insuminado. Exatamente, era mesmo disso que eu ia falar, porque não deixa
de ser curioso. Esta sugestão que tu falaste era outra que acho
que o meu amigo tinha falado e que eu também achei muito
engraçado. Mas não deixa de ser curioso que uma coisa como o
VAR, o VAR, para quem está a ouvir, não está dentro do
esquema, embora tenha sido muito visto no mundo mundial, é aquela possibilidade
de no fundo ver numa câmera a repetição de determinado lance para
ajuizar se deve ser penalti ou não deve ser penalti e depois
decidir naquele momento o árbitro e o jogo continuar. E o VAR
é curioso porque o VAR à partida é uma intromissão no jogo
muito maior do que, por exemplo, esta questão de interromper o cronómetro,
de não o ter continuamente e depois ter aquela história do desconto
de tempo, que ainda por cima é uma entropia quase escusada e
ter um cronómetro que começa e para de acordo com o tempo
de jogo. Se me perguntassem, quer dizer, na teoria eu diria que
era muito mais fácil ser aceito este segundo do que o
João Nuno Coelho
Sim, e depois é aquela questão... Mal assistimos a um jogo em
que não há VAR, como por exemplo na Liga Inglesa, qualquer erro
que exista, a primeira reação é se houvesse VAR isto não acontecia.
Portanto
vai ser muito difícil voltar atrás com o VAR, sendo que a
mim me irrita profundamente uma das consequências do VAR, que é a
tal incapacidade, por exemplo, de um adepto que está a viver um
jogo intensamente, festejar um golo sem estar de pé atrás. Isso custa
muito. Agora, o valor da verdade esportiva acho que acaba por superar
tudo. Penso que se calhar a única forma que poderemos limitar isto
é tentar ter um VAR o menos intromissível possível, ou seja, na
minha opinião o VAR deveria realmente ser limitado às situações de erros
clares do árbitro, ou seja, não tanto parar constantemente o jogo para
ir ver as imagens, mas apenas o vídeo-árbitro ter a sensibilidade de
apenas interromper
ou chamar
a atenção do árbitro quando visse um erro realmente declarado, nítido,
João Nuno Coelho
Hoje em dia estamos a perceber que os jogadores, os treinadores, já
acabam por mandar um bocadinho no vídeo-árbitro. No sentido em que, mal
há uma situação que seja minimamente polémica, eles fazem um tal estardalhaço
com o árbitro e o video-árbitro não tem outro remédio senão parar
o jogo ou ir ver as imagens ou... E portanto acaba por
ser usado também como uma forma de pressão. Portanto, eu acho que
no caso do video-árbitro o que há a fazer é aprimorar o
máximo possível e limitar o mais possível a ação do... As situações,
o protocolo, digamos assim. Agora, que é irreversível, não tenho dúvidas nenhumas,
completamente irreversível. E estou de acordo contigo, estou de acordo contigo. É
mais um motivo para realmente não ficarmos chocados com a possibilidade, por
exemplo, da cronometragem dos jogos. Se foi possível introduzir o vídeo-árbitro, muito
mais fácil será introduzir o... E é muito fácil em termos tecnológicos,
muito mais que o vídeo-árbitro, com as câmaras todas e tudo.
Exatamente, sim.
Ter a tal mesa como há no basquete e nos outros esportes
de pavilhão em que se controla o tempo de jogo, basicamente. E
José Maria Pimentel
aliás, agora que falaste da questão do tempo de jogo, isso é
um bom atalho para uma coisa que eu queria falar contigo, não
sei se tu apanhaste isso, eu apanhei isso aqui há uns tempos
e achei imensa piada. Uma das questões que é muito falada no
futebol e em todos os desportos, mas que acho que é especialmente
relevante no futebol mesmo estatisticamente, é a questão da vantagem que um
clube tem ao jogar em casa. Sim. Isto existe em quase todos
os desportos, mas o futebol até, lá está pela sua complexidade, é
dos desportos onde isso tem o maior peso. E no outro dia
apanhei, e agora fui recuperar isso para esta conversa, apanhei uma coisa
muito engraçada de um paper, se está a ouvir, de um tipo
americano, economista, mas que decidiu estudar o fenómeno do futebol e ele
estudou não só no futebol, mas em vários desportos, sendo americano era
difícil que não o fizesse, essa questão da vantagem de jogar em
casa. E a conclusão a que ele chegou, que é, pelo menos
para mim, foi altamente imprevisível, foi de que essa vantagem existia de
facto. Não tinha que ver propriamente com o apoio dado pelos adeptos,
que é muitas vezes aquilo que a pessoa pensa, os jogadores terem
os adeptos a impulsioná-los, mas sim com a pressão sobre o árbitro.
E como é que ele chegou a esta conclusão? Que tem muita
piada. Chegou ela estatisticamente, mas conseguiu fazer, conseguiu despistar os vários fatores
de uma maneira inteligente. Houve uma altura em, aqui há uns anos,
eu lembro-me bem, tu lembras melhor de certeza, em Itália, que jogos
decorreram com estádios vazios. Lembras-te? Já não sei em que ano é
que foi isso. Será sido em que? Já não sei. Lembro que
o Porto estava a jogar na Liga dos Campeões na altura, mas
não me lembro. Será sido em 2005,
se for uma coisa do género. Sim, o
Porto jogou o
José Maria Pimentel
Isso, é aquele gol do Hugalmei, do quase no McCamp. Exatamente, exatamente.
E na altura, no fundo o que eles conseguiram foi ter uma
espécie de caso de laboratório para conseguir perceber como é que os
jogadores se comportavam sem adeptos. E o que eles observaram é que
a precisão dos passes, dos remates, quase todas as estatísticas de jogo
não tinham uma alteração estatisticamente significante entre um cenário e outro, entre
ter adeptos ou não ter adeptos. Ou seja, o clube da casa
não jogava pior por não ter adeptos e o clube de fora
também não jogava melhor por não ter a pressão dos adeptos de
casa. O que faz com que só sobrasse um elemento no jogo.
E depois eles complementam isto com outra evidência, esta do campeonato espanhol,
Savoer, em que isto naquele tempo, Porque também houve aqui uma alteração,
porque antigamente os árbitros basicamente tinham completa discricionariedade no desconto de tempo
e hoje em dia, se há vergonha já não é assim, hoje
em dia eles têm... Ah não, desculpa, desculpa, não é isso, o
que alterou não foi a regra. O que alterou é que eles
agora têm que anunciar quanto tempo é que dão, desconto de tempo.
E houve um tempo em que eles não tinham o que o
fazer, exatamente. Então o que eles detectaram é que quando a equipa
da casa estava numa situação desfavorável, aliás isto é uma coisa que
nós sabemos empiricamente, os árbitros tendiam a dar mais tempo de uma
maneira significativa, Exatamente por essa pressão e muitas vezes, casos haveria provavelmente,
como nós sabemos, em que era mais do que sim a expressão
dos adeptos, mas noutros casos é simplesmente o árbitro a sentir-se pressionado
pelos adeptos. Eu achei muita piada esta explicação porque... E faz sentido.
Faz algum sentido, né? É curioso.
João Nuno Coelho
em Portugal e que deixou de acontecer. Agora todos os estádios são
em cima do campo e já não há as redes que havia
de antes.
Portanto,
alguma dessas coisas, tudo isso também poderá ter alguma influência. Mas lá
está, tem muito a ver também com as características das próprias equipas.
E às vezes até com características tão simples como, sei lá, o
facto de ser uma equipa de uma ilha, por exemplo, não é?
O Marítimo, por exemplo, sempre fez uma grande parte dos seus pontos,
e atenção que o Marítimo é uma das equipas que já não
desce há mais tempo na primeira divisão, desde 86, sempre fez a
maior parte dos seus pontos em casa, por exemplo. Por exemplo, as
equipas inglesas nas competições europeias não há equipas, não há mais nenhum
país que tenha uma percentagem de vitórias tão elevada como as equipas
inglesas. Tem a ver também com as próprias condicionantes sociais, geográficas,
José Maria Pimentel
assim, uma alternativa dependente das estatísticas, acho... Ia sempre levar a que
uma equipe estivesse a gerir aquilo, a gerir essa estatística paralelamente durante
o jogo. O que eu me lembro, é certo ponto, mas não
sei se isto era muito execuível, sempre que dais esta ideia a
alguém a pessoa torceu o nariz, portanto presumo que vais fazer o
mesmo, era que a partir, vamos supor, a partir do... Imagina, podia
funcionar assim mas podia funcionar de outra forma. Ou logo a partir
dos 90 minutos ou depois de decorrer uma primeira parte do prolongamento,
a cada equipe era retirado um jogador a cada 3 minutos, 5
minutos, o que fosse. De modo a que tu fosse tornando o
campo, lá está, cada vez...
João Nuno Coelho
Agora, também é verdade que seria, em termos físicos, seria brutal para
os jogadores que ficassem, porque eles cada vez estavam mais cansados e
o campo cada vez era maior.
Mas
não deixava de ter a sua piada, acho eu. E até permitia
também, e obrigaria, a uma gestão por parte dos treinadores desafiante. Perceber
quais eram os jogadores que convinha manter em campo, não é? Será
que seriam os mais rápidos, os mais habilidosos, os melhores fisicamente, os
mais resistentes? É interessante pensar isso também.
José Maria Pimentel
Eu alinhava-me a tentar
uma coisa dessas,
a fazer experiências. Exato, pois, também me parece interessante. E a questão
do... Essa objeção do cansaço é que normalmente, uma das que normalmente
me dão quando faço essa sugestão. Mas acho que isso em última
hora tinha que ver com a calibração, ou seja, se tu no
limite, se tu começasse a fazer isso logo a partir dos 90
minutos, de uma maneira muito rápida... Sim, não havia, pois, sim. A
maioria dos jogos, precipitar-se ia muito rapidamente. Sim, sim, de certeza que
sim. Se calhar a Tern é que tinha muito interesse, não é?
Se calhar a Tern era interessante estar a fazer, tirar os jogadores
minuto a minuto, por exemplo, por absurdo. Mas, mas, sobreviu uma coisa
engraçada de tentar. Mas há bocadinho estávamos a falar, falámos a um
passando das alterações de jogo, que é também uma coisa engraçada que
eu queria falar contigo, porque a maneira como o futebol se joga
hoje em dia é muito diferente da maneira como se jogava há
30 ou 40 anos, eu lembro de ver, e há uma coisa
que eu acho que nem sei explicar completamente, de ver que há
uns tempos, por exemplo, um jogo do Maradona, por exemplo, e acontece
uma coisa muito estranha que é... Por facto, tu traz mais discernimento
em relação ao que explica isso do que eu, mas a minha
sensação foi de que estava a ver uma coisa que era diferente
da atualidade, mas que eu não sabia explicar exatamente porquê. Depois apanhei
algumas estatísticas interessantes, como por exemplo o facto de, na altura, se
rematar muito mais à baliza do que se remata hoje em dia.
Eu estava a ver no outro dia uma estatística que comparava a
final do Mundial de... Isto tinha sido feito na altura do Mundial
do ano passado, porque comparava o Mundial de 2014, a final do
Mundial de 2014 com a final do Mundial de 66. E no
Mundial de 2014, havia apenas 20 remates à baliza e no de
66, 77. O que é incrível, são quase 4 vezes mais o
número de remates. Por que é que o estilo de jogo mudou
tanto? Tem só a ver com a questão da maior resistência dos
jogadores e conseguir, assim, preencher melhores espaços?
João Nuno Coelho
É assim, para mim essa é a grande diferença. Para mim a
grande diferença é a intensidade que os jogadores colocam no jogo, a
diminuição do tempo e do espaço e, portanto, a maior dificuldade em
ter tempo para pensar e para executar. Esse é, para mim, o
aspecto fundamental. Até porque, se pensarmos em termos da evolução tática, as
transformações não foram assim tantas. Realmente há aquilo que foi utilizado pelo
Jonathan Wilson, que é a ideia de inverter a pirâmide, ou seja,
começou-se
por
jogar com pouquíssimos defesas e muito avançados e foi se invertendo até
aos dias de hoje em que realmente joga-se com menos avançados e
mais jogadores com funções defensivas, isso é óbvio, mas em termos de
ocupação dos espaços, por exemplo, de 66 para agora, não houve assim
uma diferença tão grande. Na altura a maior parte das equipas jogavam
em
4-2-4
ou em 4-3-3, portanto não é assim
uma diferença
por aí além. O que me parece é que A forma como
as equipas se prepararam, as equipas se preparavam e preparam agora é
muito diferente e tem realmente uma capacidade física, mas também em termos
de, lá está, de cientificização de todos os processos, seja de alimentação,
seja de trabalho muscular, seja de... Faz com que sejam realmente muito
mais máquinas os jogadores de qualquer na altura. São capazes de fazer
coisas que os jogadores de altura não podiam fazer e que
tenho
a certeza que a maior parte deles se tivessem a preparação que
os de hoje têm também iam ser capazes de fazer. Porque em
termos técnicos não houve uma evolução linear, digamos assim. Não se pode
dizer que os jogadores dos anos 50, 40, 50 ou 60, fossem
piores tecnicamente do que são os da atualidade. Até porque o futebol
de rua, digamos assim, o futebol mais puro, tem-se vindo um bocadinho
a perder e com isso tem-se perdido também alguma habilidade aparentemente mais
inata, quase que mais intrínseca aos jogadores. Os jogadores parecem já mais
do laboratório do que o que eram. Portanto, em termos técnicos não
acho que haja grandes diferenças. O que me parece é que há
realmente uma capacidade física e uma preparação tão diferente que permite aos
jogadores, ou aliás, que não permite aos jogadores, poderem fazer certas coisas
que antes podiam fazer. Eu estou a pensar, por exemplo, no Mundial
de 70, vendo aquela final entre o Brasil e a Itália, em
que o Brasil tem jogadas fantásticas, mas que nos dias de hoje
seriam quase impraticáveis na maioria, porque os jogadores, e diz, costuma-se dizer
que o Brasil jogava com o meio campo só com números 10,
que nas suas equipas eram números 10, mas hoje em dia não
iam ter tempo nem espaço para fazerem aquilo que faziam e há
o Selvre 4-1 que é uma jogada em que o Brasil dá
não sei quantos toques na bola, em que o último é uma
bola passada para o Pelé, em que ele pisa a bola, levanta
a cabeça, olha para todo lado e depois dá um toque, uma
assistência para o colega marcar. Hoje em dia seria praticamente impossível um
jogador ter tanto tempo
João Nuno Coelho
Eu acho que essa é a grande diferença, essa é a grande
diferença em termos de evolução do jogo e do estilo de jogo
ao longo dos tempos. Claro que a tal questão da ocupação dos
espaços e do aumento das preocupações defensivas, reflexo disso, é um facto.
Também é verdade que houve variações, tal como o tal Jonathan Wilson
naquele artigo que eu te enviei falava de como parece que já
não há nada para inventar, agora temos é que reaproveitar, digamos assim,
fazer uma espécie de reformulação do que já se fez antes. Mas
isso a mim parece-me sempre um bocadinho circunstancial porque na verdade o
pior que para mim existe é quando se quer considerar que só
há uma maneira de jogar futebol, só há uma maneira bonita de
jogar, por exemplo, há muitas maneiras de jogar, todas elas são aceitáveis
desde que cumpram as regras, obviamente, e há muitas maneiras de chegar
ao mesmo objetivo. E se eu, por exemplo, sou um apaixonado pelo
modelo holandês e pela forma de jogar do Barça, por exemplo, consigo
perceber perfeitamente, exato, consigo perceber perfeitamente e também admirar, e se for
o caso, se for bem executado, consigo perfeitamente admirar uma equipa de
transições rápidas ou de futebol direto. Não me faz confusão absolutamente nenhuma.
Agora, é uma questão de preferência pessoal, não sou nada manicaísta.
João Nuno Coelho
sim, sim. Mas ao mesmo tempo, ao mesmo tempo, ao mesmo tempo,
poderá ter a tendência, e tem tido, no caso do Barcelona, do
Bayern, de Manchester City, as equipas do Guardiola nos últimos anos, aliás,
as únicas que ele teve, porque a carreira não é tão longa
quanto isso. A verdade é que, normalmente, para que esse jogo, esse
tipo de jogo, seja eficaz, para que produza golos, tem alguma tendência
para provocar desequilíbrios defensivos. Ou seja, porque as equipas vão também percebendo
quais são os pontos fracos desta forma de jogar e uma defesa
bastante recuada, que ocupa muito bem os espaços, nomeadamente no centro do
terreno, no corredor central, faz com que estas equipas que jogam este
tipo de jogo acabem depois por ter que arriscar um bocadinho mais
e serem apanhadas muitas vezes no contra-ataque. Eu penso que não será
por acaso que o Guardiola depois de sair do Barcelona não foi
campeão europeu mais, não é? Ou seja, nas competições regulares ao longo
de toda a temporada, nos campeonatos, ele tem ganho tudo. Tem ganho
em todo lado, por onde tem passado. Aliás, do Bayern, ganhou os
campeonatos todos que disputou. No City, já ganhou em Inglaterra um campeonato,
não ganhou o outro, e este agora está a disputar o Ligue
1 com o Liverpool. Mas nas provas a eliminar, contra adversários de
grande qualidade e com grandes jogadores, tem mais dificuldades. Ou seja, durante
uma temporada inteira em que faz muitos jogos contra equipas mais fracas,
vai acumulando os pontos suficientes para ser campeão. Mas depois quando é
eliminar, tem muitas dificuldades. E eu digo, por exemplo, sinceramente que não
acredito que o Manchester City este ano seja campeão europeu. Porque quando
joga com equipas que têm muita qualidade na transição rápida, o City
acaba sempre por permitir desequilíbrios. O ano passado foi o que aconteceu
contra o Liverpool, e eu acredito que este ano, por exemplo, equipas
como o Liverpool e como a Juventus são mesmo talhadas para conseguir
desfazer o tipo de jogo do site e do ortel.
João Nuno Coelho
é o objetivo, aliás, é o objetivo, mas não é qualquer custo.
Ou seja, há coisas mais importantes e respeitar a forma como se
joga é considerado mais importante do que o resultado final, o que
é algo completamente contracorrente com o espírito do capitalismo aplicado ao futebol,
em que a única coisa que interessa é o sucesso. Mas para
estes ideólogos do futebol, digamos assim, os princípios e o modelo é
mais importante, aquilo que eles chamam de processo, é mais importante que
o resultado. E eu acho isso interessante, eu acho isso muito interessante,
sem dúvida alguma.
João Nuno Coelho
É, é muito curioso e Eu gosto que eles ganhem, mas a
verdade é que na maior parte das vezes não é isso que
acontece. Podes me perguntar como é que, por exemplo, o Barcelona foi
tricampeão europeu entre 2006 e 2011. Ganhou três vezes a taça da
Liga dos campeões. E eu penso que tem muito a ver com
dois fatores. Primeiro, por exemplo, durante a prova, confrontou muitas equipas abertas.
Por exemplo, as finais, duas das finais foram contra o Manchester City,
contra o Manchester United e uma contra o Arsenal. Ou seja, por
exemplo, nos jogos da final, confrontou equipas muito mais, digamos, muito mais...
Muito pouco cínicas, não é? Por outro lado, o modelo de ataque
do modelo de jogo do Barcelona, do Pep Guardiola, estava baseado num
tique-taque, que é um bocadinho diferente do que jogam as equipas do
Guardiola, tanto o Bayern como o Manchester City. As equipas do Guardiola
no Barcelona eram de tal forma envolventes na maneira como atacavam, atacavam
de uma forma que lhes permitia reagir mais rapidamente à perda de
bola, nomeadamente com o Xavi, com o Iniesta, em que
José Maria Pimentel
Sim, sim, exatamente, é um caso interessante. É um caso muito interessante.
Bom, não te vou tirar muito mais tempo, queria só, antes de
passarmos ao livro, há um tema giro que eu não queria deixar
de falar. Ou por outro, não queria deixar de obter a tua
opinião sobre ele, que é a questão da ascensão da análise quantitativa
e do potencial que está associado, nós já falamos um bocadinho de
estatísticas, mas há um... Há uma... Ou pelo outro, noutros desportos, sobretudo
em desportos americanos, até há aquele filme do Mani Ball muito conhecido...
Exatamente, Mani Ball. A análise quantitativa e estatística tem tido um papel
crescente, seja na detecção dos jogadores, seja no planeamento dos jogos. A
ideia que eu tenho é que no futebol europeu, embora isso já
exista, tarde em ter um efeito, tarde em ter um papel tão
grande assim, não é? Sim, sim.
João Nuno Coelho
E eu penso que isso tem a ver com dois aspectos. Por
um lado, o mais intrínseco, o próprio jogo, em que os tais
fatores aleatórios são realmente mais vastos do que nos desportes coletivos de
pavilhão. Portanto, é mais difícil traduzir, não se trata tanto de traduzir
em números, mas depois de interpretar e de operacionalizar os dados que
se recolhem. Por um lado, isso é verdade, e portanto eu admito
perfeitamente que pessoas como a Guardiola e a maior parte dos estudantes
dizem que não gostam de estatística no futebol. Embora a gente saiba
que depois eles trabalham muito os dados estatísticos, o que não deixa
de ser curioso. E entronca-no a outra razão, para mim, que levou
a esse afastamento, que só agora é que está a ser ultrapassado.
É que, no futebol, a tradição é realmente uma coisa importantíssima. O
futebol é realmente um universo muito conservador. E o que se pensou
ao longo dos tempos no futebol sempre foi, isto é a maneira
como sempre fizemos as coisas e portanto esta é que é a
maneira de fazer. É esse imobilismo que dominou o futebol durante muitas
décadas, em que os jogadores se tornam depois treinadores, ou seja, são
os homens da prática que depois se tornam os pensadores do jogo,
também enquanto treinadores. E só há alguns anos é que começaram a
entrar no futebol os licenciados, as pessoas que estudavam cientificamente o desporto,
e o caso do José Mourinho foi um bom exemplo, abriu muitas
portas na altura, e, portanto, só foi preciso ultrapassar este ceticismo resultante
da tradição e da importância da tradição, que levava a que no
futebol achassem que sabiam tudo e que não precisavam de influências externas,
digamos. E, portanto, só há poucos anos é que se começou a
dar importância a estudar os números e a perceber, acima de tudo,
que os números só por si não significam nada. Se calhar o
que não tem interesse para o futebol são dados frios, são aqueles
dados não interpretados. É fundamental contextualizar e interpretar os dados que se
recolhem. Porque se formos dar tanta importância, se não formos criteriosos na
forma como analisamos os dados, realmente corremos o risco de não acrescentar
nada. Se formos, por exemplo, considerar todos os passos como sendo iguais,
não vamos conseguir compreender a importância do passo e o que é
que se tem que mudar em termos do passo se formos dar
tanta importância ou formos aplicar o mesmo critério a um passo para
trás do que um passo de ruptura, por exemplo, não é? É
óbvio que não vamos chegar a conclusões nenhumas e essa foi uma
coisa que eu tive possibilidade e para mim foi fundamental porque foi
um trabalho de base. Eu em 2006 comecei a trabalhar, aliás comecei
a coordenar uma coisa chamada Football Ideas que nasceu numa produtora de
televisão que foi a responsável pela criação da famosa Liga dosltimos. O
mentor e o dono da empresa é o Daniel Deusdado, que foi
diretor de programas na RTP até há um ano atrás. E ele
foi muito sensível às minhas ideias sobre este assunto e então criou
a tal Futebol Ideas em que começamos com folhas de Excel, basicamente,
a construir uma grelha de análise e de observação dos jogos, mas
feito completamente de raiz, o que me ensinou imensa coisa. Imagino o
que é pensar quais são os eventos que nós queremos observar e
contabilizar.
João Nuno Coelho
Golos. Como é que são obtidos os golos? Ataque organizado, ataque rápido,
bolas paradas. Dentro do ataque organizado, os flancos que são utilizados, o
tipo de passos, em termos de rematos, os rematos dentro da área,
fora da área, os rematos no alvo e fora do alvo. Ou
seja, fomos construindo uma grelha de análise, de observação e análise, que
quando demos por ela tinha dezenas e dezenas de campos. Isso possibilitou-me
perceber que há dados que são realmente cruciais e há outros que
acabam por ser muito pouco significativos, não é?
João Nuno Coelho
depois, pronto, depois no fundo fui fazendo este caminho todo até ao
Números Redondos, até ao programa de rádio da TSF, sendo que nem
sequer sou... Quer dizer, eu fiz Sociologia, portanto tive uma cadeira de
Estatística, mas nunca fui muito sensível sequer à estatística. Por exemplo, o
meu trabalho em termos de sociologia, sempre relacionado com o futebol, sempre
foi muito mais qualitativo do que quantitativo. Mas houve um momento em
que eu tive a noção de que me interessava pensar e comentar
futebol não a partir de meras opiniões, de meras sensações, mas gostava
de fazê-lo a partir de números. Não acabar nos números, mas começar
nos números. E é isso que eu faço e, portanto, é diferente
do que fazem os observadores e os analistas de uma equipa de
futebol, até porque eles têm, e eu agora também já tenho, mas
na altura não tinha, eles agora têm acesso a dados
muito
rigorosos e muito, muito, muito, muito, muito minuciosos em termos do que
se passa dentro do campo de futebol, porque está tudo completamente informatizado,
quer dizer, não andam a tirar os... Não fazem observação como uma
folha de Excel, no é? Tipo, têm que utilizar aquilo que os
jogadores fazem dentro do campo que vai ao nível mais ínfimo e,
portanto, a minha grande questão é o que fazer e como analisar
esses números. E no fundo é isso que eu tenho feito e
não tenho parado nesse sentido de mudar de opinião, de evoluir, de
às vezes regredir, quer dizer, é uma coisa que eu acho que
ainda tem um campo brutal de desenvolvimento e acho que ainda vai
ter muito mais, porque há muita coisa que se pode retirar a
partir da análise estatística. Agora, sempre contextualizada. Tem que ser sempre contextualizado
e tem que ter sempre, curiosamente, e é uma coisa que eu
ainda não consegui verbalizar muito bem, o momento em que se vai
conseguir relacionar os números, portanto, dados objetivos, com uma análise semi-objetiva, ou
seja, conseguir ter instrumentos que nos permitam quase que humanizar os dados
estatísticos que temos dos jogadores. Estou a pensar, por exemplo, a diferença
no tipo de passos. É óbvio que é muito diferente um passo
vertical de um passo que é feito para trás ou para o
lado. É muito diferente um passo que é feito em longa distância
de um passo que é feito a uma curta distância e como
é que nós vamos conseguir operacionalizar isto, ou seja, no fundo, como
é que nós vamos conseguir correlacionar, tendo a noção de que há
aqui elementos subjetivos. Imagina, por exemplo, a questão dos remates. Há alguns
remates que, quer dizer, os remates não valem todos o mesmo. Nós
vamos ter que conseguir fazer a diferença entre os remates que são
efetuados e, por exemplo, perceber quando dizemos, há dados curiosíssimos, por exemplo,
o Jonas precisa de mais ou menos 1.6 ocasiões de golo para
marcar um golo. Já o Marega precisa mais do que de 13
ocasiões para marcar um golo, mas as ocasiões também não são todas
iguais. E
portanto, como
é que nós vamos conseguir fazer uma valoração destes diferentes eventos, ou
antes, do mesmo evento, mas com características diferentes. E eu penso que
esse vai ser o grande passo para a seguir.
João Nuno Coelho
preferes? É isso mesmo, é isso mesmo.
É exatamente isso. É exatamente
isso. É por exemplo o que acontece com o Básezos. O Bázezos
pensa que tem qualquer coisa como oito penaltis, não, mais. Sim, sim,
ele tem oito penaltis em quatorze gols marcados na primeira divisão. Portanto,
pode-se dizer, quer dizer, ele marca muitos golos, mas a maior parte
deles são penaltis. Mas também, no entanto, 6 dos penaltis foram cometidos
sobre
João Nuno Coelho
relacionar tudo isto, por exemplo, quando estás a fazer a avaliação de
um jogador. E portanto, tudo isto é muito interessante, mas vai-se complexificando
cada vez mais. E eu penso que esse é um dos aspectos
que o futebol também vai ter que saber lidar. É a constante
racionalização e complexificação de que está a ser alvo, mas que é
uma tendência social geral, não é apenas no futebol, não é? E
como é que vai manter ao mesmo tempo a simplicidade que o
levou a ser tão popular. E
esse
choque penso que é muito interessante e é uma das minhas maiores
curiosidades em relação ao futuro. Infelizmente já estou quase a fazer 50
e portanto também já não vou poder ver o futebol de 2050,
provavelmente, mas tenho muita curiosidade de ver, pelo menos nos próximos anos,
como é que isto vai evoluir. Imenso.
Bem,
2050
João Nuno Coelho
fazer a comparação dos golos do Messi e do Ronaldo, por exemplo,
em função da importância do jogo, do grau de dificuldade do jogo.
Tenho quase a certeza que se fizermos isso vai ser um fator
a favor do Ronaldo, por exemplo. Tenho quase a certeza que, ao
contrário do que acontecia há páginas tantas, nos últimos anos, por exemplo,
o Ronaldo tem sido muito mais decisivo, ou antes, aparece muito mais
nos jogos decisivos, é muito mais forte mentalmente nesses jogos do que
é o Messi, por exemplo. E a
José Maria Pimentel
fundo. Para mim, se o jogo se tornasse praticamente determinístico, como um
jogo de snooker, por exemplo, é uma coisa que quase depende, o
resultado é mais ou menos mesurável a partir do talento individual de
cada jogador, se calhar alguém que perceba muito snooker agora está-se a
contorcer a ouvir isto, mas acho que cai mais ou menos nessa
classificação. Se fosse possível chegar a esse grau de explicação, claro que
o futebol perdia a piada, mas eu acho que não havendo esse
risco, o grau de clareza que isto traz, pelo menos, Por exemplo,
para mim uma das coisas que sempre me irritaram no futebol, e
se calhar é uma das coisas que me criam algum desinteresse, bem,
um enorme desinteresse naqueles programas de comentário da atualidade, é que muitas
vezes este ruído, esta aleatoriedade é tratado como se fosse, como se
tivesse uma
causa. Eu sei,
eu sei. É verdade. É completamente ridículo. É verdade. Tens um jogo
que podia ter caído para aqui ou caído para ali, e se
ele cai para ali, o comentário é feito como se fosse quase
determinista que ele fosse cair naquela direção que não era, não é?
Podia ter acontecido ao contrário.
José Maria Pimentel
alguma. Sim, exatamente. E tu tens fenómenos, eu lembro de ver, por
exemplo, no europeu, por exemplo, no último europeu, que nos correu bem,
claramente numa realidade paralela à nossa, se existisse, em que aqueles jogos
decorressem, nós tínhamos ficado facilmente numa, Pá, e na primeira eliminatória. Na
José Maria Pimentel
Ou até na fase de grupos, exatamente. Sim,
sim, sim. Ou
seja, e o que é que... E até acho que o Fernando
Santos fez um bom trabalho, atenção. Mas o que é que seria...
Qual seria o juízo em relação a ele, por exemplo, se tivéssemos
ficado na fase de grupos, que poderia perfeitamente ter acontecido, não aconteceu
por uma contingência, mas de repente tu tens um endeusamento. É verdade,
é verdade. Não sei se podia ser outro tipo, só porque aquilo
correu bem. Sem dúvida alguma. Havia um tipo, mas eu acho que
esta, apesar de tudo, quer dizer, estou a ver a coisa de
fora, mas acho que o papel da análise quantitativa vai sobretudo ser
incontornável quando houver alguém de um clube que consiga usá-lo, no fundo
como esse exemplo do manibol, do Bilge, não sei qual era o
apelido dele, fez na altura com outro desporto, que é tu um
clube de meio da tabela conseguir utilizando estes meios superiorizar-se aos outros.
Há alguns que já tentaram fazer, eu no outro dia apanhei uma
peça que era sobre o Matthew Bentham, que é o dono do
Brentford, que é um clube inglês que estava na segunda liga deles,
que já não sei como é, a segunda liga deles não se
chama segunda liga, não é? Chama-se... Championship. Championship, exatamente. E ele é
um tipo que ganhou imenso dinheiro nas apostas esportivas e depois tentou
fazer isso, ou está a tentar fazer isso com esse clube e
com o clube dinamarquês onde este tem tido mais sucesso. Mas ainda
não conseguiu, é curioso, ele ainda não está a tentar fazer isto
há alguns anos, acho que se tem dado, quer dizer, acho que
o clube tem tido melhores resultados do que tinha até aqui, mas
não conseguiu passar ainda à primeira liga, Não conseguiu passar ainda ao
escalão principal. E uma coisa que ele fez curiosa que aparecia nessa
peça foi, a certa altura, como no modelo dele, embora a equipa
nem tivesse mal, estava em quinto lugar, no modelo dele a equipa
aparecia como estando relativamente fraca e no fundo correspondendo a um lugar
de meio da tabela e portanto se tudo correu, se o modelo
tivesse certo ela ia convergir para aquele lugar, ele despediu o treinador
e a equipa técnica toda, no fundo argumentando-o que essa aleatoriedade estava
a jogar a favor dele. Sim, sim, sim. E obviamente que a
solução não foi provavelmente bem acatada. Mas pronto, João, vamos terminar então
com a recomendação do livro ou há alguma outra coisa que queres
dizer?
João Nuno Coelho
É interessantíssimo pensar também a partir dessa visão da questão da estatística
e da inovação. E que no futebol se torna complicada pela tal
conjugação de tantos fatores que existem à volta de uma equipa. E
isso Nota-se bem, por exemplo, no papel do treinador. Há realmente a
dimensão do talento dos jogadores, isso é fundamental. Há a dimensão do
caráter dos jogadores. Depois há todo a envolvente social, digamos assim, cultural
do local onde um clube está. Isto faz com que realmente seja
muito difícil poder usar receitas, não é? É difícil usar receitas. Por
exemplo, a questão da análise estatística em relação aos jogadores que se
vão comprar, que era uma das questões fundamentais do Moneyball, não é?
Consegui
perceber que há alguns números, alguns dados que são fundamentais para identificar
os jogadores que podem até ser mais baratos, mas que têm essas
características. E que se nós pudermos ter acesso a esses jogadores, podemos
ficar com uma equipa mais forte. Tudo isso pode ajudar no futebol,
mas depois não sabemos minimamente como é que esses jogadores vão dar
numa determinada circunstância, num determinado contexto, num determinado grupo, Com um determinado
treinador. Ou
seja, há aqui uma conjugação de tal ordem que muitas vezes eu
penso no treinador de futebol um bocadinho como uma atividade de características
muito semelhantes, por exemplo, à de um realizador de cinema. Ou seja,
tem que ter a capacidade, digamos que estética, criativa, de contar uma
história. Ao mesmo tempo tem que ter a capacidade também de lidar
com os atores, que tal como os futebolistas são caprichosos e ganham
muito dinheiro e não são fáceis de gerir. Ao mesmo tempo tem
que lidar com a parte mais logística e mais de produção do
produtor e todas as questões financeiras. Se estivermos a falar do futebol
inglês ainda mais, porque o treinador é manager, portanto tem uma panóplia
de funções ainda mais vasta, portanto é realmente complicado e é realmente
complexo como é que isto se pode, no fundo, encontrar uma receita
para o sucesso. E depois ainda há a tal dimensão de ter
que lidar com um desporto que tem tanto de aleatório e tanto
de imprevisível. E, portanto, eu acho que tudo isso ajuda a explicar
muito a paixão pelo jogo, afeta ou que toma conta da pessoa
mais simples, com menos estudos, até aquela mais intelectual e que consegue
ter insights mais profundos sobre o próprio jogo. Acho que isso é
que é fascinante. E aproveito para falar do livro, porque é o
livro que eu já referi aqui, e lá está, é de um
escritor, de alguém que é um intelectual, tipo o inglês, neste caso
o Nick Hornby. O livro chama-se Fever Pitch. É considerado realmente um
dos melhores livros de sempre sobre futebol. Deu origem a um filme
ou dois já, mas muito aquele filme mais mainstream de Hollywood e
tal, não tem um interesse por aí alguém. O livro sim, ele
é fascinante, porque no fundo mostra como é que a vida de
um adepto pode andar completamente ao sabor dos resultados e do que
acontece à sua equipa de futebol. O Nick Hornby é adepto de
uma equipa de Londres, do Arsenal de Londres, e ele mostra muito
bem como é que, no fundo, sendo um adepto, alguém que partilha
o fundamental, ou seja, ser apaixonado por um clube e partilhar isso
com milhões, se o DuPain fica ainda com mais milhões estão, não
é? Mas ao mesmo tempo vive isso de uma forma completamente individual.
E é isso que eu acho mais fascinante neste livro, é perceber
algo que é social, algo que é coletivo, gostar de um determinado
clube, mas depois a forma como nós vivemos isso é totalmente individualizado.
E eu, no fundo, acabo por me identificar extremamente com isto porque
nunca me hei de esquecer que no dia em que o Porto
foi campeão europeu pela primeira vez, eu tinha 17 anos, estive a
João Nuno Coelho
mês de nascida. Isso é curioso. E lembro-me que estava a ver
o jogo em casa com os meus pais e foi uma alegria
realmente, porque para quem era adepto do Porto já há 10 anos
e estava habituado a ver o Porto, a não conseguir passar das
primeiras eliminatórias europeias e mesmo em Portugal ganhar raramente, foi assim uma
espécie de ir à rua, não é? Quer dizer, foi uma coisa
completamente imprevisível e completamente uma revelação autêntica. Eu lembro perfeitamente do jogo
acabar e os meus pais dizerem tipo vamos até à baixa festejar
e tal e de repente estou a receber telefonemas dos meus amigos
não por telemóvel mas pelo fixo a dizerem vamos para a baixa
e a minha reação foi eu não quero vou ficar em casa
Eu vou ficar em casa porque eu tenho que ficar aqui. Eu
não quero ir para o meio de uma festa. Eu quero ficar
aqui sozinho, em recolhimento, a pensar na proeza que isto foi e
a celebrar dentro da minha cabeça. Eu acho que isso é exatamente,
no fundo, é exatamente isso aquilo que podemos ler neste livro do
Hornby, que é, sendo algo de partilhado, é também algo completamente individual.
A forma como vivemos o jogo e como vivemos o nosso clube
e como vivemos a paixão pelo futebol.
João Nuno Coelho
que é assim. Ao contrário de Portugal, por exemplo, que só nos
últimos anos é que começaram a aparecer livros de show de futebol,
em Inglaterra Eu quando comecei a minha tese de licenciatura sobre futebol,
na altura disse ao meu professor, que era no fundo o orientador,
disse-lhe, afinal vai ser impossível fazer uma tese sobre futebol, gostava muito,
porque não há nada aqui em Portugal, mas fui à biblioteca e
não há um único livro que relaciona futebol e sociedade. Portanto, eu
não posso fazer uma tese se não há livros. Na altura não
havia
internet, não havia
nada disso.
João Nuno Coelho
cá. Não, isto é fantástico, fantástico, tem realmente, no fundo, acompanhamos o
crescimento da pessoa, desde miúdo até aos seus 40 e muitos, seguindo
a sua história de vida que, no fundo, é marcada muito pelos
acontecimentos futebolísticos que ele foi vivendo, nomeadamente através da paixão pelo Arsenal.
Em português, há uma tradição chamada febre dos relevados, penso eu, mas
não é muito boa. Devo admitir que não é grande coisa. E
este livro lê-se bastante bem em inglês, não é nada complicado.
José Maria Pimentel
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Gustavo Pimenta, João Vítor Baltazar, Salvador Cunha, Ana Matheus, Nelson Teodoro, Paulo
Ferreira, Duarte Dória, João Castanheira, Tiago Leite, Gonçalo Martins, entre outros mecenas,
a quem agradeço e cujos nomes podem encontrar na descrição deste episódio.
Até à próxima! Ae