#58 João Nuno Coelho - Futebol e Sociedade

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José Maria Pimentel
Bem-vindo. O convidado deste episódio é João Nuno Coelho e vem falar sobre um tema que já há muito tinha pensado em trazer ao podcast. Futebol. Tinha pensado, mas tinha também hesitado, porque adivinho que só uma parte dos meus ouvintes tem algum interesse por este tema. Dito isto, posso dizer com alguma confiança que este é um episódio que pode interessar a quase todos aqueles que tenham pelo menos algum interesse por futebol, sobretudo se esse interesse for mais pelo desporto em si e pelo fenómeno social que lhe está associado do que propriamente pela atualidade que vai preenchendo diariamente os jornais e programas de comentário televisivo. Eu próprio, aliás, como explico no início da conversa, passei de seguir futebol regularmente até mais ou menos ao final da faculdade para praticamente não ver atualmente. Vejo mais os jogos da seleção, o que como ex-adicto, reconheço que é a marca distintiva de um leigo. Nos últimos anos tenho-me vindo a desencantar com a corrupção do mundo do futebol, mas não só, também o efeito de novidade se vai perdendo com o passar dos anos ao enésimo campeonato nacional e à enésima liga dos campeões. Não só por ser realmente um desporto diferente dos outros, mas também porque é um fenómeno que pela sua relevância social se presta a uma série de análises interessantes, como vão ver. Como disse no início, Demorei a trazer o tema ao podcast, mas foi uma espera que valeu a pena, por permitir o encontrar o convidado à medida. O João Nuno Coelho é uma verdadeira enciclopédia fotobolística, mas nisso não está sozinho. Há outros casos em Portugal e também não era propriamente um programa de factoides que eu queria fazer. O que torna o convidado especial é juntar a essa febre de bola outras características, essas sim, singulares. O João é sociólogo, com vários livros escritos sobre o fenómeno do futebol e é membro do grupo de História e do Desporto do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. Tudo isto dá-lhe uma perspectiva sociológica e histórica sobre o futebol, a qual junta, como vão ver, a capacidade em pensar também o desporto, das regras à organização das competições, racionalmente, cientificamente diria, e olhando para o futuro. Nos últimos anos o convidado tem participado em alguns programas regulares de televisão, atualmente o peculiar, a grande enciclopédia do ludopédio, sendo que ludopédio é a tradução literal da palavra futebol em português. Durante a conversa começámos, como não poderia deixar de ser, pela sociologia do futebol, para perceber, entre outras coisas, porque é este desporto tão popular e porquê é que não passa de moda? Quais são os benefícios e, por outro lado, os custos do futebol e da febre clubística para a sociedade? Ainda neste campo discutimos também as especificidades do contexto em que surgiu este desporto no século XIX e de que forma é que esse contexto permitiu a sua ascensão tão rápida. E falamos também dos custos da futebolização da sociedade portuguesa e dos perigos do pensamento nacionalista aplicado a este esporte. Falámos também do jogo em si, falámos das regras e de alterações que o poderão melhorar, desde mudanças no modo como funcionam os clubes e os campeonatos, a alterações das próprias regras do jogo e ao número de jogadores em campo. E conversámos também sobre outros aspectos do próprio jogo, desde a vantagem da equipa que joga em casa, que todos conhecemos mas cujas causas são menos óbvias, ao modo como a tática evoluiu desde o futebol que se praticava há 50 anos até ao tiki-taka do Guardiola. E terminámos, como não poderia deixar de ser, a olhar para o futuro, mais especificamente para a aplicabilidade ao futebol, da análise quantitativa e das métricas estatísticas que já revolucionaram outros desportos como por exemplo o beisebol nos Estados Unidos, o que foi retratado no livro e no filme Moneyball. E pronto, vamos à conversa que começa a partida. João, bem-vindo ao podcast. Até tinha pensado começar esta conversa de maneira diferente, mas depois há bocadinho ocorreu-me não começar, como é que eu ia dizer, diretamente por falar de aspectos do futebol, mas mais um bocado aquilo da parte sociológica, que no fundo tem muito que ver com a tua própria área de formação. Até porque a minha ideia é fazer no limite uma conversa sobre futebol que possa ser interessante mesmo para pessoas que não seguem futebol semanalmente, como é de resto o meu caso, quando era miúdo Seguia imenso, mas nos últimos anos fui seguindo cada vez menos e aliás já lá vamos, que também é um aspecto interessante. O que é engraçado no futebol, se a pessoa pensar, já pensei nisto várias vezes, isto é verdade, o futebol é um fenómeno fascinante a vários níveis e é um fenómeno que perdura imenso a nível internacional, mas então no caso português, se a pessoa pensar, eu não digo, se recuarmos no tempo, não digo 100 anos, 100 anos já seria demais, mas se recuarmos para aí 80 anos, ou seja para 1939, estaríamos numa sociedade em que, e isto para um sociólogo, suponho que seja uma coisa também tentadora de analisar, teríamos uma sociedade em que tínhamos quase tudo diferente, o regime era diferente, as instituições eram quase todas elas diferentes, os números dos jornais eram diferentes, a própria organização social toda ela era diferente, e no entanto, se olharmos para o campeonato de futebol para o topo sobretudo ele era muito parecido. Sendo certo que o Porto não era na altura o Porto que é hoje em dia mas ainda assim acho que basicamente não há grandes diferenças entre uma coisa e outra. Por
João Nuno Coelho
acaso o Porto até era a melhor equipa na altura, em 39. Ah, era? Foi campeão, em 40 também. Aliás, foi sempre campeão nos primeiros anos de estreia das provas nacionais. Portanto, até isso estava realmente ao nível do Benfica, do Sporting, na altura do Pugnentes também. Nos anos 40 e 50 é que te caiu um bocado e 60 também. E depois o Porto acaba por recuperar mais no final dos anos 70 com o Pedroto e com o Pinto da Costa e com o Pinha.
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Exatamente. Sim, depois é que eu vou prestonar o que é hoje. Mas Qual é a tua interpretação para este fenómeno? Porque, por exemplo, parece-me ver, assim, muito grosseiramente, parece-me, por exemplo, ver o fenómeno do futebol ou do interesse das pessoas pelo futebol é um bocadinho diferente entre aquilo que é quando nós somos miúdos e aquilo que se torna quando crescemos. Eu acho que o meu desinteresse pelo futebol, digamos assim, semanal tem um bocado que vê com isso. Ou seja, quando éramos miúdos tinha um bocadinho a ver com o jogo e com o... A pessoa construía quase um... As amizades muito à volta daquilo e depois quando crescemos parece-me que começa a ter um papel se calhar de desenjoo da vida do dia a dia, não é? Assim, de espécie de 90 minutos em que a pessoa desliga do resto da realidade. Acho que isto, Tom Froome, tem sido estudado também, não é?
João Nuno Coelho
Sim, é verdade. Eu às vezes... Olha, antes, mais obrigado pelo convite. Fiquei satisfeito, porque, lá está, é uma conversa que se pretende que fuja daquele futebol mais puro e duro, digamos assim, dentro das quatro linhas e
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como se dizia, energia.
João Nuno Coelho
Mas o ponto de partida é diferente e logo por essa pergunta se percebe. Às vezes tenho a sensação, por experiência própria também, que o futebol é aquilo que me permite não crescer totalmente, ou seja, de certa forma é aquilo que me permite a minha ligação permanente à infância, ou Dar importância àquilo que é um jogo e viver os resultados e os jogos como se tratasse de uma coisa realmente importante na minha vida, se calhar permite-me manter a tal ligação à infância. Se calhar os adeptos mais empenhados de futebol utilizam isso para evitar crescer, tornarem-se
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adultos
João Nuno Coelho
em que a vida é dominada por responsabilidades e restrições permanentes. E se calhar isso tem a ver um bocadinho com a nossa ligação ao jogo. E depois há o outro aspecto importante. Eu acho que para a maior parte das pessoas a complexidade das questões ditas sérias, a política, a economia, acaba por as desmotivar um bocadinho, enquanto o futebol tem uma simplicidade se calhar que é só aparente, porque vemos hoje em dia como se preparam as equipas, como tudo aquilo que existe à volta do mundo do futebol É complexo, não é simples, mas há uma certa ilusão de simplicidade que faz com que a maior parte das pessoas pensem que têm realmente os dados na mão suficientes para poderem dissertar sobre o jogo e no fundo sentirem-se valorizadas por isso. Os célebres treinadores de bancada que nós vemos por todo lado, seja nos fóruns da rádio e da televisão ou quer seja depois nos programas com comentadores que não estão propriamente relacionados profissionalmente com o jogo. E portanto há aqui uma certa ilusão que o futebol nos dá e que, na verdade, eu estou de acordo com aquilo que tu disseste logo de início. Se calhar é a possibilidade das pessoas saírem de uma certa... Um certo encarceramento em que vivem, do trabalho, da família. Isso faz com que haja muita gente que tem no futebol, desde a infância até à morte, um tema que preenche as suas vidas. Se isso é grave em termos sociais ou não, como sociólogo, não é algo que me preocupe, tem a ver com determinada formação social em que vivemos. Pessoalmente, muitas vezes questiono, até porque tantos me exprimo isto também na minha vida profissional e às vezes parece-se demasiado dominante, demasiado ditutorial o futebol na minha vida. E depois isto faz-nos pensar naquilo que tu também lançaste como tema para esta conversa, que tem a ver porque é que é o futebol tão popular e, ao mesmo tempo, o que é que o diferencia dos outros desportos que acabam por não escapar essa, digamos, essa dimensão de desporto, enquanto o futebol parece estar já no outro patamar completamente diferente. É difícil aplicar ao futebol profissional dos nossos tempos apenas a condição de desporto. É uma indústria, é um espetáculo, massas, é uma instituição social, ou seja, em muitos aspectos ultrapassou essa dimensão de simples desporto. Isso, quer dizer, já ultrapassou há tanto tempo que, por exemplo, no final do século XIX em Inglaterra já havia jogadores profissionais de futebol. Portanto, isso não é algo que exista há décadas, existe há mais de 100 anos. O que foi interessante foi mudando também com a questão dos mídias, da globalização, Mas esse profissionalismo no futebol é algo que existe já há 130 anos, há 140 anos, o que é absolutamente incrível. E faz-me pensar... Foi um
José Maria Pimentel
porte-início crescente, não é? Foi crescente,
João Nuno Coelho
obviamente, até porque depois teve muitas variações. Por exemplo, em Portugal não se admitiu o profissionalismo até aos anos 60, embora toda a gente soubesse que haviam jogadores a receber dinheiro, mas a verdade é que não eram oficialmente profissionais. E o mesmo aconteceu, por incrível que pareça, em países como a Holanda ou como a Alemanha, onde o profissionalismo foi muito mais tardio do que em Inglaterra, na América do Sul ou por exemplo na zona da Europa Central onde também houve uma profissionalização muito, muito, muito rápida do fenómeno. E isto leva um bocadinho àquilo que para mim são as explicações. Às vezes não é fácil explicar algo que está tão conectado, pelo menos em termos de discurso, com a paixão. Muitas vezes há quem diga que a paixão pelo futebol não se pode explicar porque é uma paixão. Essa é aquela visão anti-científica, digamos, em que não vamos explicar uma coisa só porque tem a ver com emoções. Não. As coisas explicam-se, ou pelo menos procura-se a sua explicação. E no caso do futebol, eu acho que há duas ordens de explicações complementares. Por um lado, a própria estrutura do jogo, ou seja, as próprias características intrínsecas do jogo, que são realmente exemplares. Eu acho que o futebol, e isso é uma das coisas que sempre me fascinou no futebol conforme fui começando a estudar, foi perceber que em termos de configuração do jogo é realmente muito inteligente e reproduz muito daquilo que é a própria condição humana, ou seja, por um lado é um disporte de contacto e o facto de haver contacto, de haver combate, digamos assim, desde logo tem tudo a ver com a luta pelo poder e portanto logo desde aí tem essa dimensão. Depois, o fato de ser muito simples também ajuda imenso. É realmente um dos jogos mais simples com menos regras, digamos assim. Comparado com o cricket. Com o cricket e com o beisebol ou com outros esportes, realmente é simples e é fácil de jogar. É fácil no fundo.
José Maria Pimentel
E joga-se em todo lado, não é? Exatamente.
João Nuno Coelho
É fácil de produzir as condições mínimas para juzgar. E depois tem outra característica que me parece fantástica, que é o domínio da incerteza. Ou seja,
José Maria Pimentel
é julgado
João Nuno Coelho
em condições bastante expostas ao clima e à própria natureza, o que faz com que o fator de incerteza e de sorte, por exemplo, seja mais influente do que não é o parte dos desportos. Exatamente. Há vários estudos feitos, nomeadamente por estudiosos relacionados com matemática e estatística, que vão ao ponto de dizer que num jogo de futebol entre equipas semelhantes será um jogo de 50-50, ou seja, 50% de sorte, 50% de competência.
José Maria Pimentel
Eu tinha apanhado 70-30, curiosamente. Não é bem competência. 70 previsível e 30% de ruído, de aleatoriedade. Há
João Nuno Coelho
quem seja um bocadinho mais radical, já que falamos em estudiosos e em livros. Há, por exemplo, um livro que chama The Number's Game de um autor, dois autores, um chamado Chris Anderson e outro David Sully, em que eles defendem essa ideia dos 50-50. Isto implica o que implica? Realmente total grau de incerteza e de imprevisibilidade e também de possibilidade de haver outsiders a vencer, que também acho que aumenta a popularidade do jogo. Depois o facto também de haver esta fácil ligação entre o futebol e realmente a tal confrontação. O futebol é permanente equilíbrio entre ataque e defesa, ameaçar e ser ameaçado, em que rapidamente se pode passar de uma situação de estar sob ameaça para estar a ameaçar, para estar em cima do adversário. Todas estas condições levam ao que o Norberto Elias, que foi um sociólogo alemão muito importante, nomeadamente pela sua teoria do processo civilizacional. E depois vamos já perceber porque é que as duas coisas estão ligadas. Em que no fundo o processo civilizacional diz que as sociedades humanas têm caminhado no sentido de uma maior civilidade, civilização. Cada vez temos menos contactos com formas de violência extrema, por exemplo, já não se resolve tudo à estalada como se resolve há umas décadas atrás, por exemplo. É uma coisa engraçada. As pessoas têm pouco contacto com situações de limites de agressividade, pelo menos nas sociedades ditas ocidentais. Sim, exatamente. Somos confrontados com a morte de uma maneira muito protegida, não é? Quer dizer, a maior parte de nós nunca teve que lidar com situações de morte na
José Maria Pimentel
rua, por exemplo. Sim, de risco de vida, no fundo. Exatamente.
João Nuno Coelho
E o que o Norberto, aliás, diz, e ele quando estuda esse processo civilizacional, ele considera que, por exemplo, o desporto, e nomeadamente o futebol, produz altos níveis de excitação, de emoção, que no fundo acabam por se substituírem às situações de risco. Ou seja, o que ele diz é que no fundo o futebol acaba por ser uma imitação dessa excitação. E portanto, o que ele diz é que futebol é um desporto excitante em sociedades cada vez mais enxitantes ou inexcitadas. Mas
José Maria Pimentel
isso é uma coisa engraçada. Isso porque eu, ainda no outro dia, a propósito de uma conversa que não tinha nada que ver com isto, falava exatamente da questão do futebol ser um bocadinho um reduto da violência na sociedade contemporânea. Exatamente. E eu não sei, confesso, e gostava de saber a tua opinião em relação a isso, se o futebol contribui para, no fundo, manter acantonada essa violência ou se pelo contrário contribui para a promover. Para mim não é nada fácil perceber isso, porque se eu ouvir os típicos membros das clássicas portuguesas, não é? Aquilo tem a ar de estar a promover a violência, mas por outro lado pode estar a contê-la, não é?
João Nuno Coelho
É sim, em relação a essas margens, provavelmente até dá a hipótese a que elas manifestem essa violência. Há o tal anonimato do estádio, mas em termos da sociedade mais vasta não tenho dúvidas que o futebol contribui para o control social, ou seja, há uma possibilidade limitada de transgressão social que o futebol permite, que ajuda depois a que essas manifestações não aconteçam a propósito de outros assuntos e em dimensões muito mais graves, ou muito mais intensas, no fundo. Porque, repara, há um autor que é o Nick Hornby que escreveu para mim o melhor livro sobre futebol do ponto de vista do adepto, que se chama Fever Pitch, Febre no Relvado. O Nick Hornby é um autor inglês que não escreve só sobre futebol, é um romancista. Mas um dos livros dele é sobre a sua paixão pelo Arsenal. E ele conta que a coisa que o mais induciu a esmogar o futebol quando era miúdo, os pais tinham se separado, a forma que o pai tinha de manter contacto com ele e manter alguma sociabilidade era levar o futebol. E ele no início não achou piada nenhuma até perceber que podia, que à volta dele toda a gente estava a dizer asneiras, palavrões, com os quais ele não tinha contato em mais lado nenhum, porque havia um grande controle à volta disso e portanto o único sítio onde ele podia estar a ouvir pessoas a insultarem-se e a a dizerem palavrões era no futebol e ele achou isso fantástico. Foi a coisa que começou porque está mais no futebol. E eu acho que tem a ver exatamente com esta, com aquilo que o Elias chama um descontrolo controlado das emoções. Ou seja, apesar de haver realmente um descontrolo emocional, é com regras. Esse descontrolo tem regras e as regras estão bem definidas.
José Maria Pimentel
E acho que aqui parece-me também há dois tipos de violência, ou seja, uma coisa é, no fundo, a possibilidade que o futebol, como outro desporto, nos dá, nós seres humanos ditos normais, de ir a um estádio e canalizar um bocado aquele lado animalesco que todos temos, lá está de forma controlada, outra coisa é hooligans, que são coisas diferentes. E neste primeiro, lá está, de acordo contigo, também acho que esse é um papel muito importante. Precisamos sempre de um escape algúres para isso, depois os hooligans acabam por funcionar ao contrário, Acaba por haver uma promoção de violência, não é por acaso que são, que acabam por ser sítios de onde medra, sei lá, a extrema direita, por exemplo, e coisas desse género. E isso é engraçado. Há bocado, já gosto de fazer um comentário relativamente a uma coisa que tu disseste há bocadinho a propósito do futebol, isto é, enquanto fenómeno de paixões, a única... Eu também já pensei nisso várias vezes e aquilo que nunca, quer dizer, de certa forma nunca encontrei uma solução perfeita para isto, porque por um lado acho que faz sentido que o futebol existe enquanto esporte, naturalmente, e que a pessoa o siga de uma forma apaixonada, se gostar daquele clube. Depois, o que acontece, e acho que há muitas pessoas que, no fundo, acabam por, de maneira intencional ou não intencional, se aproveitar disso, é que acaba a funcionar muitas vezes como uma espécie de teto à razão, não é? Ou seja, tu és do Benfica, por exemplo, toleras do presidente do teu clube um tipo de disputismo, por exemplo, que não toleras de um político normal. É verdade, é verdade. Não é? É verdade, claro que sim. E eu sou do Porto, atenção, portanto, repara que eu estou a dizer isto sabendo do que estou a falar, não é?
João Nuno Coelho
É que aí entra a outra razão fundamental para essa popularidade do futebol. Lá está com base nos investimentos simbólicos que se fazem, que é a importância das identidades, ou seja, se nós sofremos com um jogo de futebol, se passamos da infelicidade para a maior felicidade do mundo por causa de um golo, tem a ver com o facto de gostarmos do jogo em si, mas acima de tudo de gostarmos do clube ou da seleção ou da identidade que está ali em questão. Pode ser também o clube do bairro, em alguns casos, como por exemplo na Escócia, em Glasgow, tem a ver com o sectarismo entre os católicos e os protestantes, por exemplo, que são representados pelo Celtic e pelo Rangers. Mas o que eu quero dizer é que se nós temos esse tipo de investimento simbólico e emocional no futebol tem a ver exatamente com a questão das identidades. Por isso é que eu dizia que, por um lado, a explicação para a popularidade de futebol está relacionada com a própria estrutura do jogo, com as características do jogo, com o facto do jogo produzir a tal excitação, a tal emoção, depende também dos contextos sociais em que ele se foi desenvolvendo. E eu acho que o futebol teve, para lá da sorte de realmente ser um jogo muito inteligente, por exemplo comparado com o rugby costuma-se dizer que o que o futebol é um desporto muito inteligente jogado por bandidos, enquanto o rugby é o contrário É um desporto um bocado bruto, um bocado para pessoas inteligentes e cultas ou pelo menos com mais cultura desportiva que os que jogam futebol. É óbvio que há uma generalização, mas para dizer o que é o futebol, além de realmente ter sido, ter conseguido uma regulamentação, uma estruturação fantástica em termos de como desporto, apareceu num momento perfeito para o seu desenvolvimento, ou seja, industrialização, urbanização, que permitiram, no fundo, cair no goto das classes sociais certas, num momento certo, para se tornar o desporto mais importante da escola global. Ou seja, o que eu quero dizer é que o futebol não é o mais popular por ser o melhor desporto, porque isso é muito discutível. O que teve foi um timing brilhante.
José Maria Pimentel
No fundo,
João Nuno Coelho
nada acontece por acaso, obviamente, mas a verdade é que Quando, no século XIX, aquilo que era chamado de folk football, que eram manifestações quase selvagens, de competições entre aldeias, em que basicamente o objetivo era levar uma bola de uma aldeia até à outra, em que toda a gente estava envolvido nisto, era no fundo uma pancadaria a céu aberto. Tudo isto foi regulamentado depois nas escolas mais elitistas inglesas, foi miniaturizado, no fundo, foi transformado em algo mais disciplinado e, a partir daí, porque estamos a falar de escolas que produziram alguns dos líderes, nomeadamente de empresas e da indústria daquela altura, foi depois transportado para o meio industrial, digamos assim, nomeadamente do Norte de Inglaterra, e foi aí que se popularizou. Ou seja, foi no momento certo, foi quando começaram a surgir as grandes aglomerações urbanas e o futebol era a atividade preferida daquela malta. Nomeadamente, quando começaram a ter tempo livre, quando surgiu a semana inglesa com os sábados à tarde livres e a atividade que foi consagrada, digamos assim, que se tornou dominante, foi o futebol, que no fundo, enquanto desporto como o conhecemos, não tinha pouquíssimas décadas nessa altura. E portanto houve essa coincidência brutal e que fez com que, de repente, o futebol em poucas décadas tenha tornado na prática dominante nas cidades industriais. Depois ainda...
José Maria Pimentel
Depois cresce muito rápido, depois mesmo a expansão pelo mundo é muito rápido. Cresce
João Nuno Coelho
muito rápido porque coincide também com um momento fundamental daquilo que muitos autores chamam a democratização funcional. Ou seja, o que acontece é que a partir de um certo momento nestas cidades industriais, pela primeira vez temos cidades com milhões de habitantes, nestas cidades começa a haver uma grande especialização funcional. E há alguns indivíduos que têm mais qualidade a fazer determinadas práticas, neste caso jogar futebol, que são tornados representantes da comunidade, nomeadamente através dos clubes e, mais uma vez, quando existe esta democratização funcional e quando há representantes desportivos, digamos, de uma determinada identidade, a atividade mais importante é o futebol e, portanto, não é por acaso que de repente muitas cidades tinham nas equipas de futebol os seus representantes da comunidade, digamos assim. E portanto o futebol viveu realmente de quase que, como se costuma dizer, de estar no sítio certo, à hora certa e assim se tornou, eu diria mesmo, com todo o exagero, que isto parece ter, é algo que é muito discutível obviamente, mas eu penso que é uma das formas culturais e quando digo aqui culturais digo no sentido muito mais abrangente não de cultura
José Maria Pimentel
enquanto... Sim, sim, sim, no sentido sociológico.
João Nuno Coelho
No sentido sociológico obviamente, uma das formas culturais da modernidade, porque realmente foi catalisado, digamos assim, como uma forma de representação da comunidade, das diferentes identidades. É, portanto, daí que no final não seja melhor ou pior que os outros esportes, apenas no fundo acabou por causar de um determinado momento social, transformação social, que elevou a estes níveis de popularidade inacreditáveis. Até porque depois, obviamente isso é mais ou menos lógico, quando foi para ser, digamos, disseminado pelo mundo e ainda prima tinha o maior império ao seu serviço, não é? Um império britânico. E portanto, como era um produto britânico, foi espalhado pelo mundo através dos industriais, dos comerciantes, da armada inglesa e, portanto, teve o caminho muito mais simplificado, muito mais aberto para se tornar realmente um desporto à escala planetária.
José Maria Pimentel
É engraçado, há sempre... Essa era uma das coisas que eu queria falar, mas aproveito até para... Ou por outra vez, uma das coisas que eu ia falar mais à frente, mas aproveito até para já trazer isso, é um fenómeno mas que depois não se estendeu a todo lado, nomeadamente aos Estados Unidos. Exatamente.
João Nuno Coelho
Por razões obviamente sociais também e culturais, no caso dos Estados Unidos é relativamente fácil perceber que depois da Guerra da Independência, no final do século XVIII, não havia grande vontade de estar a adotar o desporto inglês, que era como ele era chamado, como o desporto nacional, como uma prática muito acarinhada e, portanto, os americanos arranjaram outras alternativas e que, depois, em termos sociais, se impuseram, impedindo, no fundo, a difusão do futebol com a mesma força do que aconteceu, por exemplo, na América do Sul, onde foi um dos locais onde a sua popularização foi mais
José Maria Pimentel
rápida. É curioso, porque essa contingência histórica de que tu falas, no fundo, a independência dos Estados Unidos já se tinha dado há mais de um século e no fundo eles estavam, apesar de tudo, pouco interessados em importar um desporto do antigo colonizador. Mas por outro lado, também há um lado que está relacionado quase com a maneira de ser da sociedade americana e que o futebol espelha pouco, não é? Quer dizer, aquele lado... O futebol é muito diferente... Eu no outro dia estava a ouvir um programa, giro para casa, em que o programa era exatamente sobre isto, porque é que o futebol não pega nos Estados Unidos, quer dizer, já se tentou. Os Estados Unidos é por isso que é curioso, que eles ficaram, acho que, Salver em terceiro lugar no primeiro campeonato do mundo. Sim, sim, sim. Depois, logo no primeiro eles ficam em terceiro, mas depois caem outra vez, depois organizam aquele mundial em 91.
João Nuno Coelho
94, sim.
José Maria Pimentel
94, tens razão, exatamente, em 94. E aquilo não pega também, e este último mundial não foram, talvez nem sequer foram qualificados. O futebol acaba por nunca pegar lá. E havia um dos tipos do programa que dizia uma coisa com muita piada. Alguém comentava, o jogador de futebol qualquer que é muito atlético e dizia aquilo de uma maneira depreciativa. E dizia, pois, só no futebol, neste futebol, é que dizer que um jogador é atlético não é necessariamente o elogio, quando no futebol americano ou no outro desporto qualquer americano. Isso é uma das críticas mais importantes do futebol. Quer dizer, uma das coisas que eu acho que tem, eu concordo com aquilo que diz, isto é, acho muito interessante a explicação que tu tens há pouco do lado contingencial da ascensão do futebol, no fundo ter estado no sítio certa a hora certa, mas também acho que existem algumas coisas que tornam o futebol único, quer dizer, tu teres... Como é que tu consegues ter um desporto cujo melhor jogador não corresponde a nenhuma das características físicas. Exatamente, não chega até o metis 70. Exatamente, o melhor ou o segundo melhor? Se quisermos ser um bocado patrióticos, não sei o que é discutir, mas acho que é... Quer dizer, é uma discussão que não interessa muito ter, mas seguramente... Primeiro, o segundo melhor jogador da história, quer dizer, o Messi... Se tivesse que desenhar um jogador, já mais desenharias algo...
João Nuno Coelho
Sim, o Maradona era igual. E o
José Maria Pimentel
Maradona era a mesma coisa. Era mais baixo, tinha menos de dois centímetros. Ah, era mais baixo, me lembro-me.
João Nuno Coelho
Essa democraticidade do futebol ajuda também a compreender lá está a sua polaridade, sem dúvida alguma. Faz parte da tal parte, passa a redundância da estrutura do jogo. Daquela
José Maria Pimentel
imprevisibilidade que tu falaste. Sim, da imprevisibilidade,
João Nuno Coelho
mas também das próprias características do jogo. O facto de ver... Para já é um jogo que proporciona facilmente grande plasticidade, ou seja, facilmente se adotam diversos estilos, há diversas formas de jogar e isso também ajuda a explicar como é que se espalhou pelo mundo todo, porque no fundo cada país, ou pelo menos cada zona, cada cultura, adotou o futebol à sua maneira. Joga-o de forma diferente. Isso agora é claro que se vai alterando um bocadinho com a globalização e com o mercado livre de jogadores e por aí fora, mas não deixa de haver mesmo assim características físicas que determinam a forma como se joga. Portanto, tudo isso ajudou a que o futebol se tornasse tão popular e Não é só a questão da popularidade, é popularidade para um lado e a forma intensa e extrema como se vive o jogo. Porque uma coisa é a popularidade, outra coisa é levar-se a paixão e levar-se o empenho por aquilo que se passa no jogo a níveis às vezes quase delirantes, não é? No fundo, um bocadinho aquela ideia do Freud que o homem é um animal delirante, não é? E eu acho que o futebol é um bom exemplo disso. Transformar um jogo de 22 contra 22... 11 contra 11 de 22 homens numa coisa que às vezes parece ser dramática, quase decisiva para a vida das pessoas, não deixa de ser uma forma de delírio, mas também ao mesmo tempo dá-me a impressão que nós precisamos um bocadinho desse tipo de delírio. E isso é uma das coisas que, por exemplo, a mim me faz um bocadinho de confusão e é uma coisa que eu tenho também escrito um pouco sobre isso, sendo um adepte fervoroso como sou de futebol. Eu costumo dizer que gosto mais de futebol do que gosto da minha equipa, desde há muito tempo. Ao mesmo tempo, assusta-me e preocupa-me quando as coisas são demasiado manicaístas, ou seja, por exemplo, em Portugal eu acho que há um exagero na forma como toda a nossa construção de identidade nacional anda à volta do futebol.
José Maria Pimentel
Sim, descobri isso, inclusivamente.
João Nuno Coelho
O futebol ocupa um espaço demasiado mediático, em detrimento de muitas outras coisas que também podiam ser importantes para a construção da nossa identidade e para também, e não só para a identidade, mas também para a melhoria do nível de cidadania e de conhecimento e de cultura das pessoas. Ou seja, o que eu acho é que o futebol, ao contrário do que acontece com muitos outros desportos, o futebol realmente mexe com a personalidade, empolga, mas empolga como pode empolgar o teatro ou a música ou a poesia, não é? E o que me parece a mim é que nós acabamos por ser um bocado vítimas de uma certa futebolização da sociedade portuguesa. Por exemplo, Ronaldo não tem culpa nenhuma disso, mas acaba por ser um dos elementos fundamentais nesse processo.
José Maria Pimentel
Chega a atingir níveis ridículos.
João Nuno Coelho
Absolutamente ridículos, dos quais ele não tem culpa nenhuma, obviamente. Sim, sim, claro. E para mim uma das coisas que me fascina, por exemplo, em Inglaterra, é perceber que é um país apaixonado por futebol, claramente, é dado uma importância grande ao futebol, mas é dada a importância ao futebol como é dada importância a muitas outras manifestações culturais no sentido antropológico, muitas outras formas de atividade, muitas outras formas de vivência. A mim o que me preocupa é quando as coisas são demasiado concentradas, demasiado monolíticas e hegemónicas. E eu às vezes tenho a sensação que em Portugal o futebol é realmente uma forma hegemónica em termos sociais e culturais e o melhor exemplo para mim é realmente a questão da produção de identidade nacional, em que a identidade nacional parece que está dependente da bola que vai ao posto, da classificação num campeonato do mundo, do valor que nós reconhecemos a nós próprios por causa dos desempenhos clubísticos ou da seleção nacional.
José Maria Pimentel
Aliás, o que tu falas nesse paper, ou pelo menos num dos que publicaste sobre isso, que tem muita piada, é aquela quase licença para ser nacionalista ou para ser absolutamente parcial, se instituir quando há um campeonato do mundo ou uma coisa do género, e que eu acho que em parte é compreensível, não é? Não íamos estar a falar de um sábio. Sim, a torcer pelos outros, obviamente. Mas há um exagero quase como se aquilo fosse um fim em si mesmo, não é? E ultrapassasse todos os outros fatores que qualquer análise mais objetiva do jogo seria muito mais interessante. Sabe que
João Nuno Coelho
Eu comecei a reparar nisso enquanto adepto, foi esse transferte que eu fiz de adepto, na altura estive no Europeu de Inglaterra, em 96, e percebi a forma como o estar ali, ainda por cima no estrangeiro, estava a mexer comigo em termos emocionais. E comecei a me perguntar como é que se explicava isso, porque é que eu sentia arrepios quando estava no estádio a cantar o hino nacional e não sei o
José Maria Pimentel
quê.
João Nuno Coelho
E acabei por fazer a minha tese de mestrado sobre isso e muito com base na obra de um autor americano, nem sequer fala de futebol, chama-se Michael Billig e o livro é Banal Nationalism, no fundo nacionalismo banal e perceber de que forma é que quando dizemos que, por exemplo, nos países ocidentais não há nacionalismo e consideramos o nacionalismo apenas aquele mais sangrento, aquele de imposição de uma identidade nacional. E o que o Michael Bellic diz é que o nacionalismo é feito todos os dias, é construído todos os dias à custa de coisas tão banais como, por exemplo, um jogo de esportivo, neste caso o futebol. E o que me parece é que todas essas formas são formas de manifestação de nacionalismo banal e que, no caso português, ainda são mais preocupantes porque são tão hegemónicas.
José Maria Pimentel
Mas onde é que tu colocas a fronteira, entre uma espécie de, se quisermos usar aquela dictomia habitual, entre um patriotismo benévolo aplicado ao futebol, ou seja, no fundo, futebol só dá gozo se for entre a nossa equipe e dos outros, não é? E um exagero que já cai, que não sendo obviamente sangrento, nada que se pareça, já cai no terreno do nacionalismo.
João Nuno Coelho
A fronteira eu penho-a muito mais em termos narrativos e discursivos, mas que ao mesmo tempo são estruturantes. Atenção, o problema é esse. É que quando nós reduzimos a nossa linguagem de identidade ao sangue e à nação, estamos nos a autolimitar e estamos a excluir, e para mim é aí que eu penho a barreira, ou seja, sim senhor, Vivemos num mundo organizado em estados de nação, não é? É a forma de organização global, mas para mim, a partir do momento em que a pertença a uma determinada identidade nacional me limita e me faz, por exemplo, a excluir outras, para mim já é a diferença entre patriotismo e nacionalismo, percebes? Sim, sim. E, portanto, eu sinceramente, o patriotismo aplicado ao futebol é uma coisa que me assusta um bocadinho. Aceito, quero que a seleção ganhe, mas custa-me porque me parece que é uma... Se há um aspecto em que me parece que o futebol é colonizado, é muitas vezes por esse discurso nacionalista. Não só, também pelo capitalista, sem dúvida. Aliás, se calhar, as marcas essenciais do futebol dos nossos dias é essa mistura de capitalismo, nacionalismo e mídia que produzem o que o futebol é hoje em dia e em que muita coisa se perdeu pelo caminho, claramente. A tal condição de desporto, a tal condição de cultura desportiva, parece-me que se perdeu um pouco pelo caminho e nesse aspecto seria aquele em que nós, se calhar o futebol teria mais a aprender com outras modalidades, mas ao mesmo tempo não sei se isso seria possível porque as circunstâncias sociais são completamente diferentes. Muitas vezes fala-se, por exemplo, da questão do rugby. E não é por acaso que o vídeo árbitro, por exemplo, uma das experiências que corre melhor é com a do rugby. Mas o que eu me pergunto é, será possível termos uma cultura desportiva dominante no futebol como temos no rugby? Será que é possível comparar o nível cultural e social dos adeptos do rugby com os adeptos do futebol? É muito complicado porque o rugby é um esporte.
José Maria Pimentel
É coisa dinâmica, não é? Ou seja, uma coisa influencia a outra, não é?
João Nuno Coelho
Sim, mas de qualquer maneira, em termos sociológicos, o campo de recrutamento do futebol em termos de adeptos é tão vasto que dificilmente poderemos ter uma cultura desportiva, uma capacidade de lidar com a derrota e com a vitória de uma forma muito mais filosófica que como temos por exemplo no rugby, em que o ambiente é completamente diferente e portanto será sempre muito difícil que o futebol escape ao seu entorno, porque, no fundo, o futebol, se dizemos que realmente é um reflexo da sociedade, utiliza-se muito este clichê, mas não podia ser de outra forma. E muitas vezes quando se fala, por exemplo, que era importante evitar a promiscuidade entre o futebol e a política e o futebol e a economia, isso é uma visão reducionista completamente porque em termos sociológicos tudo está intrincado, tudo está relacionado, não está compartimentado de forma a que possamos dizer que se o futebol não fosse contaminado pelos valores ideológicos, se não fosse contaminado pelo capitalismo, pela economia, era muito mais uma escola de virtudes, era muito mais um exemplo, era muito mais uma forma de educar do que é. Mas também se na verdade não tivesse essa dimensão de popularidade que tem, se não tivesse presente em todas as classes e estratos sociais, também não tinha o impacto social que tem. Portanto, é muito difícil gerir isto. Agora, eu acho que a luta pela cultura desportiva é a luta também pela cultura cívica. No fundo são coisas que fazem parte do mesmo pacote. Para mim cultura desportiva é um item da cultura cívica e eu acho que a única coisa que nós podemos fazer é lutar para que essa cultura seja mais ampla, seja em termos cívicos, quer seja em termos desportivos e só assim é que vamos poder melhorar também em termos daquilo que o futebol pode contribuir para a sociedade, nomeadamente em termos de educação pelo jogo, sem dúvida
José Maria Pimentel
nenhuma. Sim, isso que estávamos a falar lembrou-me de uma coisa que eu também queria falar contigo e que vem a propósito, porque o... Como estávamos a dizer, quer dizer, é muito... O futebol é um fenómeno de tal maneira massificado que é muito difícil inverter completamente essa tendência, mas eu acho que existem algumas reformas que era possível fazer e tornaria o futebol um desporto mais interessante do que é, como por exemplo algo que pelo menos batesse a dominância, porque existe tipicamente por dois ou três, no caso três clubes em Portugal, em outros países, em alguns casos por menos, outros casos por mais. Eu estava a falar com um amigo, a propósito desta conversa nós íamos ter, e eu estava a lhe a perguntar, a pedir sugestões de perguntas, até porque esse meu amigo está mais dentro do futebol da atualidade do que eu, e ele sugeriu uma pergunta gira que era uma coisa que eu já me tinha lembrado e acho que vem a propósito disto, embora me pareça provavelmente pouco executível, que era adaptar ao futebol aquele modelo que é usado pelo menos na NBA nos Estados Unidos, que é curioso, ainda por si, porque sendo os Estados Unidos o, no fundo, o paradigma do país capitalista, é curioso que no desporto eles acabam por ter uma série de mecanismos de compensação desse desnivelamento. E tu saberás isso melhor do que eu, mas na NBA, o Salveiros tem um orçamento limitado, depois tem a prioridade na escolha dos jogadores, porque no caso são jogadores que vêm...
João Nuno Coelho
O draft, o famoso draft.
José Maria Pimentel
Exatamente, no draft são jogadores que vêm da universidade, eles têm a prioridade em inversa ou é pelo menos aproximadamente inversa da classificação das equipas e tudo aquilo é feito para nivelar as equipas. Ora, nós temos justamente o contrário, não é? E outra sugestão que vai na mesma linha é a questão dos direitos televisivos, não é? Que nós não temos... Eu não sei qual é a porcentagem de direitos televisivos que os três grandes arrecadam. Deve ser 90 e tal por cento, não
João Nuno Coelho
é? Deve, deve. E o outro aspecto fundamental é que na Europa somos praticamente o último país que resiste sem os direitos centralizados, sem haver uma negociação centralizada. Portanto, aí nem sequer somos exemplo da Europa, porque na Europa já toda a gente percebeu que se não se trabalhar minimamente para o bem comum, neste caso de uma liga, essa liga está condenada. E esse é o princípio básico da NBA. Mas para isso é preciso uma cultura desportiva muito acima do que nós temos em Portugal, em que a única coisa que interessa é o bem individual, neste caso de um clube, em relação aos outros. Se não pensarmos na liga como um todo, se vemos esta visão com palas, autenticamente egoísta, o que acontece é isto que nós vemos. O Porto Benfica e o Sporting realmente têm a maior parte dos adeptos e, portanto, acham que têm direito a controlar e a dominar completamente a liga em questão. Mas
José Maria Pimentel
nos outros países como é que isso se tornou prática? Foram os clubes mais fracos que se aliaram no fundo? Foram
João Nuno Coelho
os clubes mais práticos que se aliaram e os mais ricos que também perceberam a importância que houvesse competitividade na liga para ela ser interessante
José Maria Pimentel
em termos de mercado. Pois, visão de longo prazo no fundo. Exatamente. Para
João Nuno Coelho
a Inglaterra tens qualquer coisa como, eu não quero estar a exagerar, mas penso que não estou muito longe da verdade, se disser que os, para já os direitos televisivos da Inglaterra são brutais porque têm também a Ásia e Estados Unidos e Companhia Limitada, que faz com que realmente sejam valores brutais. Mas a diferença entre o dinheiro recebido pelo primeiro colocado numa determinada edição da Liga e o último é quase residual. Ou seja, a equipa que fica em último lugar da liga inglesa recebe, por exemplo, à volta de uns 120 milhões de euros pelas transmissões televisivas da época que acabou. Eu imagino, por exemplo, o primeiro classificado receberá volta de 150 milhões. Portanto, a diferença é muito, muito, muito residual. O que permite que as equipas, que a maior parte das equipas inglesas, possam comprar os jogadores que, à partida, estariam completamente vedados. E isso faz com que a Liga Inglesa se transforme realmente numa liga muito mais competitiva do que a maior parte das outras ligas, em que qualquer equipa pode derrotar os primeiros classificados a qualquer momento. Portanto, nem sequer precisamos de ir ao exagero dos Estados Unidos, porque estamos a falar de ligas fechadas, por exemplo, não é? Não há promoções e despromoções. São ligas por convite e em que as equipas nunca chegam a descer divisão. E, por exemplo, os clubes podem facilmente mudar de cidade. São tradições culturais também diferentes em termos do modelo desportivo, mas, de qualquer forma, Acho que temos muito a aprender e há cada vez mais gente a querer fazê-lo, aprender com essas ligas, mas respeitando, lá está, as características, as tradições do nosso próprio modelo desportivo, que passa por, no caso latino, por exemplo, com os sócios a deterem a maioria dos clubes desportivos, que é uma coisa que por exemplo em Inglaterra nunca existiu, os clubes sempre foram, sempre tiveram donos, na tradição mais latina, mais do sul, isso não é assim. Os clubes são detidos pelos sócios que votam e escolhem os seus representantes. Agora, o que me parece é que é possível aprender e copiar algumas algumas medidas e algumas filosofias sem ter que perder a identidade. E acho que esse é o grande desafio que tem, por exemplo, o futebol em Portugal em relação às outras ligas europeias, nomeadamente na tal questão dos direitos televisivos. Mas repara como tudo isto pode tornar-se praticamente impossível por questões circunstanciais. O Porto, o Benfica e o Sporting fizeram a negociação dos direitos televisivos há 10 e há 20 anos. Ou seja, neste momento já gastaram o dinheiro das transmissões televisivas dos próximos anos. Portanto, como é que podemos agora fazer uma negociação centralizada se esse
José Maria Pimentel
dinheiro
João Nuno Coelho
já foi gasto? O imediato é muito mais importante. O curto prazo. Uma equipa como a Oporta, um clube como a Oporta, como a Benfica ou como o Sporting, não se pode dar ao luxo de dizer que está a fazer um projeto futuro a 5 ou 6 anos. Tem que ganhar logo e imediatamente, porque as pessoas não estão preparadas para outro tipo de realidade, não estão preparadas para outro tipo de discurso, não estão preparadas para não ganhar. E esse é um dos problemas fundamentais no futebol português e que faz com que, por exemplo, seja muito difícil imaginar outros clubes a disputarem os campeonatos, a disputarem os primeiros lugares, a conseguirem dar luta aos clubes grandes, é porque simplesmente não há, as condições não existem para que isso seja possível. E os próprios mídia, e eu falo por mim, acabamos por reproduzir também um pouco o próprio status quo,
José Maria Pimentel
não é? Quando
João Nuno Coelho
damos mais atenção, por exemplo, aos grandes do que damos às outras equipas. Mas isso faz parte um bocadinho do contexto e do que é uma mina... É
José Maria Pimentel
uma pesquadinha de rabo na boca, em certo sentido. Não, é mesmo. Uma coisa leva à
João Nuno Coelho
outra. É mesmo, completamente.
José Maria Pimentel
O que é pena nesse caso é que um campeonato mais equilibrado tornasse-se muito mais interessante do que é atualmente, que no fundo, aliás, é uma das coisas que me fizeram desinteressar muito por este futebol do campeonato, é que é uma repetição danada. Obviamente que o resultado é diferente e há especificidades que são diferentes, mas os clubes são sempre
João Nuno Coelho
os mesmos. Pouco varia
José Maria Pimentel
daí. Olá! Gostam do podcast? Se quiserem contribuir para a continuidade deste projeto e juntarem-se assim à comunidade de mecenas do 45° podem apoiá-lo através do Patreon desde 2€ por mês. Visitem o site em www.patreon.com, escreve-se p-a-t-r-e-o-n, barra 45° por extenso, e vejam os benefícios associados a cada modalidade de contribuição. Desde já obrigado pelo apoio, mas para já voltamos à conversa. Falando também nestes aspectos, mas falando agora de regras mais específicas do jogo, uma coisa que eu tinha curiosidade era saber a tua visão em relação a regras do futebol que valeria a pena alterar. E isto até, para quem nos ouve e não está por dentro disso, é outra das comparações curiosas entre o futebol e outros desportos, é o facto do futebol ser muito avesso, ou por outra, quem regula o futebol, ser muito avesso a alterações de regras. O que tem o seu lado bom, por exemplo, facilita a comparação com os jogos antigos, mas às vezes cria coisas muito anacrónicas.
João Nuno Coelho
Sem dúvida, sem dúvida.
José Maria Pimentel
Um dos exemplos é o facto, por exemplo, da baliza no futebol ter a mesma dimensão há, o quê? 100 anos? Ou pelo menos há imenso tempo?
João Nuno Coelho
Há vontade há mais, praticamente há 150 anos.
José Maria Pimentel
Pois, ao mesmo tempo que a altura dos guarda-redes foi aumentando, não é? Exatamente. A altura média das pessoas foi aumentando. Tu, se pudesses mandar, digamos assim, que regras é que gostavas de alterar?
João Nuno Coelho
Olha, eu sinceramente compreendo até certo ponto porque é que se pode... Não muda muito. É óbvio que tem a ver com o conservadorismo das pessoas que dirigem, nomeadamente a International Board, que é a instituição responsável dentro da FIFA pelas regras e só para que tu vejas a International Board é formada pelas federações britânicas. Uma coisa que não faz sentido nenhum, que é completamente anacrónico. Parece que estamos no século XIX. Como é que é possível que isto se mantenha assim?
José Maria Pimentel
A sério, eu não se fazia ideia disso.
João Nuno Coelho
É verdade. Mas isso tem a ver também, tem a ver um bocadinho com o tal conservadorismo da instituição e faz ombrar um bocadinho a igreja, não é?
José Maria Pimentel
Exatamente.
João Nuno Coelho
É normal que se pergunte, quer dizer, então se isto resulta há 2 mil anos, porquê é que havíamos de mudar? Se a igreja se conseguiu manter durante 2 mil anos, provavelmente foi também porque teve essa resistência à mudança. É o que eles dizem.
José Maria Pimentel
Eu compreendo qual era a argumentação, a
João Nuno Coelho
tal questão da simplicidade, etc. Mas a mim parece-me que o futebol tinha muito a ganhar com algumas alterações até estruturais e que eu penso que não implicariam com aquilo que mais essencial tem o jogo e possibilitaria, aliás, a médio prazo que o futebol pudesse resistir algumas tendências que eu acho que podem ser não fatais, mas podem ser muito perniciosas. E estou a pensar em duas ou três questões. Uma questão tem a ver, não é exatamente a questão do tamanho da baliza, porque me parece que poderia, aumentar a baliza poderia levar à tendência, por uma questão também quase de limitação física, à tendência para que se privilegiasse demasiado os remates de muito longe, ou seja, podia se tornar o jogo um bocadinho monocórdico. Como
José Maria Pimentel
era antigamente, não é? O jogo evoluiu... Sim, sim, sim. O jogo antigamente era muito assim, não é? Claro que
João Nuno Coelho
sim. Mas eu iria muito mais no sentido do que defendeu já há décadas um jogador brasileiro que depois faleceu porque era alguém que conseguia pensar além do jogo, pensava muito bem o jogo, mas pensava para lá do jogo também o Sócrates, o famoso Sócrates, que já há 20 anos atrás dizia que o futebol ia ter que diminuir o número de jogadores e manter o tamanho do campo. Ou seja, dizia. Ele dizia isso? Dizia. Segundo eu, para 10 ou 9 jogadores. Porque a capacidade física dos jogadores aumentou de uma forma brutal, a sua preparação, o que lhes permite o tal pressing em que diminuiu imenso o tempo e o espaço para pensar e, portanto, hoje em dia nós não temos a noção do que é que é jogar futebol ao mais alto nível. Um jogador de futebol no meio campo recebe a bola e tem que pensar em frações de segundo, porque é logo imediatamente cercado por outros jogadores e que lhe tentam tirar a bola e, portanto, o jogo facilmente se torna demasiado defensivo, ou seja, no sentido em que é muito difícil fazer ações e fazer ações com algum brilhantismo. Por isso é que um jogador como o Messi é excepcional. É
José Maria Pimentel
como se com essa melhoria das condições físicas dos jogadores, é como se o campo tivesse incluído-se na prática.
João Nuno Coelho
Exatamente, exatamente. Não pode ser posto de uma forma mais inteligente. O outro aspecto que eu acho fundamental e já é de há algum tempo e é curioso que resulta muito de conversas com o meu pai que também adora futebol, também a minha paixão pelo futebol também tem a ver com a paixão dele pelo jogo. Outra coisa que eu acho que no futebol se tornou absolutamente anacrónico são os penáltis. A existência da área como existe atualmente, para mim, é completamente anacrónico. Vemos imensas situações de pequenas faltas, pequenos toques, que às vezes até são...
José Maria Pimentel
Ali no vértice, não é? No vértice da
João Nuno Coelho
área, que são penaltis, não faz sentido. Eu penso que há...
José Maria Pimentel
Seria do quê? Uma meia-lua?
João Nuno Coelho
Não, o que me parece é que, à exceção das situações de gol iminente, Ou seja, aquela situação em que o jogador é tirado para a baliza e há um jogador que tira a bola com a mão, por exemplo, ou um jogador que é rastreado no momento em que vai fazer o último toque para a baliza. Todas as outras situações teriam um nível direto como o de qualquer. Ou seja, com barreira, nem que fosse dentro da área. Parece-me que isso seria uma forma também
José Maria Pimentel
de evitar
João Nuno Coelho
muitas injustiças e no fundo um peso que está em cima dos árbitros também e que em certos casos quiser mexer um bocadinho mais mausinhos. É uma arma que eles têm para manipular alguns jogos, são as tais faltinhas que dão origem a penaltis. E depois o terceiro aspecto que para mim era fundamental é a questão da perda de tempo, da intensidade
José Maria Pimentel
do jogo. Ou seja, eu penso que estava
João Nuno Coelho
na hora, mais do que na hora do futebol, passar a ser um desporto cronometrado, como são outros, como é o básquet, como é o futsal, por exemplo, em que há uma cronometragem que quando a bola não está a ser jogada, o jogo, o cronômetro está parado. E isso acabaria com as situações de perdas de tempo, que muitas vezes nem são muito nítidas, mas que contribuem para que o jogo não tenha ritmo nenhum. É fácil ver os exemplos destas situações. Tudo que fosse medidas que pudessem possibilitar mais tempo útil de jogo seria, penso que seriam de aplicar. Agora, não vai ser fácil lutar contra todo o conservadorismo e, por exemplo, o próprio VAR está a surpreender uma forma que foi rapidamente adaptado e
José Maria Pimentel
insuminado. Exatamente, era mesmo disso que eu ia falar, porque não deixa de ser curioso. Esta sugestão que tu falaste era outra que acho que o meu amigo tinha falado e que eu também achei muito engraçado. Mas não deixa de ser curioso que uma coisa como o VAR, o VAR, para quem está a ouvir, não está dentro do esquema, embora tenha sido muito visto no mundo mundial, é aquela possibilidade de no fundo ver numa câmera a repetição de determinado lance para ajuizar se deve ser penalti ou não deve ser penalti e depois decidir naquele momento o árbitro e o jogo continuar. E o VAR é curioso porque o VAR à partida é uma intromissão no jogo muito maior do que, por exemplo, esta questão de interromper o cronómetro, de não o ter continuamente e depois ter aquela história do desconto de tempo, que ainda por cima é uma entropia quase escusada e ter um cronómetro que começa e para de acordo com o tempo de jogo. Se me perguntassem, quer dizer, na teoria eu diria que era muito mais fácil ser aceito este segundo do que o
João Nuno Coelho
VAR, não é? Completamente. E para mim também é curiosa a maneira como as resistências foram caindo rapidamente. A Liga Inglesa foi a que demorou mais, não é? Só para o ano é que vai haver, vai existir VAR. E penso que está muito relacionado também com o facto de, depois de se experimentar, é praticamente impossível regredir. Ou seja...
José Maria Pimentel
Sim, até porque as vantagens não estão contundentes, quer dizer...
João Nuno Coelho
Sim, e depois é aquela questão... Mal assistimos a um jogo em que não há VAR, como por exemplo na Liga Inglesa, qualquer erro que exista, a primeira reação é se houvesse VAR isto não acontecia. Portanto vai ser muito difícil voltar atrás com o VAR, sendo que a mim me irrita profundamente uma das consequências do VAR, que é a tal incapacidade, por exemplo, de um adepto que está a viver um jogo intensamente, festejar um golo sem estar de pé atrás. Isso custa muito. Agora, o valor da verdade esportiva acho que acaba por superar tudo. Penso que se calhar a única forma que poderemos limitar isto é tentar ter um VAR o menos intromissível possível, ou seja, na minha opinião o VAR deveria realmente ser limitado às situações de erros clares do árbitro, ou seja, não tanto parar constantemente o jogo para ir ver as imagens, mas apenas o vídeo-árbitro ter a sensibilidade de apenas interromper ou chamar a atenção do árbitro quando visse um erro realmente declarado, nítido,
José Maria Pimentel
quase que insultuoso. Ou seja, O ajuizamento era sempre do árbitro, mas o vídeo-árbitro é que decidia se ele era ou não chamada a rever a decisão.
João Nuno Coelho
Hoje em dia estamos a perceber que os jogadores, os treinadores, já acabam por mandar um bocadinho no vídeo-árbitro. No sentido em que, mal há uma situação que seja minimamente polémica, eles fazem um tal estardalhaço com o árbitro e o video-árbitro não tem outro remédio senão parar o jogo ou ir ver as imagens ou... E portanto acaba por ser usado também como uma forma de pressão. Portanto, eu acho que no caso do video-árbitro o que há a fazer é aprimorar o máximo possível e limitar o mais possível a ação do... As situações, o protocolo, digamos assim. Agora, que é irreversível, não tenho dúvidas nenhumas, completamente irreversível. E estou de acordo contigo, estou de acordo contigo. É mais um motivo para realmente não ficarmos chocados com a possibilidade, por exemplo, da cronometragem dos jogos. Se foi possível introduzir o vídeo-árbitro, muito mais fácil será introduzir o... E é muito fácil em termos tecnológicos, muito mais que o vídeo-árbitro, com as câmaras todas e tudo. Exatamente, sim. Ter a tal mesa como há no basquete e nos outros esportes de pavilhão em que se controla o tempo de jogo, basicamente. E
José Maria Pimentel
aliás, agora que falaste da questão do tempo de jogo, isso é um bom atalho para uma coisa que eu queria falar contigo, não sei se tu apanhaste isso, eu apanhei isso aqui há uns tempos e achei imensa piada. Uma das questões que é muito falada no futebol e em todos os desportos, mas que acho que é especialmente relevante no futebol mesmo estatisticamente, é a questão da vantagem que um clube tem ao jogar em casa. Sim. Isto existe em quase todos os desportos, mas o futebol até, lá está pela sua complexidade, é dos desportos onde isso tem o maior peso. E no outro dia apanhei, e agora fui recuperar isso para esta conversa, apanhei uma coisa muito engraçada de um paper, se está a ouvir, de um tipo americano, economista, mas que decidiu estudar o fenómeno do futebol e ele estudou não só no futebol, mas em vários desportos, sendo americano era difícil que não o fizesse, essa questão da vantagem de jogar em casa. E a conclusão a que ele chegou, que é, pelo menos para mim, foi altamente imprevisível, foi de que essa vantagem existia de facto. Não tinha que ver propriamente com o apoio dado pelos adeptos, que é muitas vezes aquilo que a pessoa pensa, os jogadores terem os adeptos a impulsioná-los, mas sim com a pressão sobre o árbitro. E como é que ele chegou a esta conclusão? Que tem muita piada. Chegou ela estatisticamente, mas conseguiu fazer, conseguiu despistar os vários fatores de uma maneira inteligente. Houve uma altura em, aqui há uns anos, eu lembro-me bem, tu lembras melhor de certeza, em Itália, que jogos decorreram com estádios vazios. Lembras-te? Já não sei em que ano é que foi isso. Será sido em que? Já não sei. Lembro que o Porto estava a jogar na Liga dos Campeões na altura, mas não me lembro. Será sido em 2005, se for uma coisa do género. Sim, o Porto jogou o
João Nuno Coelho
Inter, eu lembro-me bem disso.
José Maria Pimentel
Isso, é aquele gol do Hugalmei, do quase no McCamp. Exatamente, exatamente. E na altura, no fundo o que eles conseguiram foi ter uma espécie de caso de laboratório para conseguir perceber como é que os jogadores se comportavam sem adeptos. E o que eles observaram é que a precisão dos passes, dos remates, quase todas as estatísticas de jogo não tinham uma alteração estatisticamente significante entre um cenário e outro, entre ter adeptos ou não ter adeptos. Ou seja, o clube da casa não jogava pior por não ter adeptos e o clube de fora também não jogava melhor por não ter a pressão dos adeptos de casa. O que faz com que só sobrasse um elemento no jogo. E depois eles complementam isto com outra evidência, esta do campeonato espanhol, Savoer, em que isto naquele tempo, Porque também houve aqui uma alteração, porque antigamente os árbitros basicamente tinham completa discricionariedade no desconto de tempo e hoje em dia, se há vergonha já não é assim, hoje em dia eles têm... Ah não, desculpa, desculpa, não é isso, o que alterou não foi a regra. O que alterou é que eles agora têm que anunciar quanto tempo é que dão, desconto de tempo. E houve um tempo em que eles não tinham o que o fazer, exatamente. Então o que eles detectaram é que quando a equipa da casa estava numa situação desfavorável, aliás isto é uma coisa que nós sabemos empiricamente, os árbitros tendiam a dar mais tempo de uma maneira significativa, Exatamente por essa pressão e muitas vezes, casos haveria provavelmente, como nós sabemos, em que era mais do que sim a expressão dos adeptos, mas noutros casos é simplesmente o árbitro a sentir-se pressionado pelos adeptos. Eu achei muita piada esta explicação porque... E faz sentido. Faz algum sentido, né? É curioso.
João Nuno Coelho
Sendo que acredito também que também depende muito do contexto a importância do apoio dos adeptos, por exemplo. Há estádios em que isso se sente muito mais do que noutros, não é? E há estádios em que os adeptos acabam por ter uma contribuição muito maior. Mas depois há outros fatores, quer dizer, o próprio hábito de jogar num determinado campo ajuda muito na forma como se joga. O facto de estares habituado de passares ali... Hoje em dia já não treinam tanto no campo como treinavam antes, porque há as academias e não sei o que, os complexos de treino e portanto não fazes assim tantos treinos no real-estado onde jogas a competição. Mas de qualquer maneira conhecer os cantos à casa é uma vantagem importante também.
José Maria Pimentel
Não, exatamente, eu suponho que sim e mesmo isto era, bem, não só é uma conclusão preliminar como era, isto era o principal fator, não era o único fator. E
João Nuno Coelho
há um aspecto importante a ter em conta também, é que o fator casa tem diminuído de importância e isso é visível, por exemplo, nas competições europeias. Fazendo uma análise estatística
José Maria Pimentel
dos resultados. Ah, é? Ah, curioso, não sabia disso.
João Nuno Coelho
Fazendo uma análise estatística dos resultados, a prevalência das equipas que, por exemplo, jogam em casa à segunda eliminatória a partir de resultados iguais, tem vindo a diminuir. Portanto, o fator casa...
José Maria Pimentel
Curioso, isso é porquê? Eu
João Nuno Coelho
acho que tem a ver essencialmente com a maior preparação de todas as equipas. Ou seja, preparação em termos físicos, em termos mentais, portanto, estão mais preparadas para jogar fora de casa do que estavam antes.
José Maria Pimentel
Pois, de acordo com esta explicação, podia ser menos latitude para a ação do árbitro.
João Nuno Coelho
Também o facto de hoje em dia haver uma enorme mediatização e portanto a possibilidade de grande escrutínio daquilo que o árbitro faz, permite-lhe fazer menos diatribos, digamos assim. Quando não havia transmissões nem repetições, os árbitros estavam muito mais à vontade para fazerem o que quisessem porque nem sequer nunca mais ninguém ia ver aquela jogada.
José Maria Pimentel
E aliás o VAR que falávamos há pouco ainda vai reforçar isso, não é? Ainda vai
João Nuno Coelho
reforçar, obviamente. Portanto, eu penso que tudo isso tem contribuído para que jogar em casa seja menos vantagem do
José Maria Pimentel
que era antes. Desculpa, agora lembrei-me de uma informação que há bocado não cheguei a dar. É uma informação útil para os clubes que têm aquelas pistas de atletismo entre as bancadas e o campo. É que o efeito, de acordo com o estudo, o efeito da vantagem de jogar em casa diminuía para metade quando a equipa tinha essa vista de atletismo. E que acontecia muito
João Nuno Coelho
em Portugal e que deixou de acontecer. Agora todos os estádios são em cima do campo e já não há as redes que havia de antes. Portanto, alguma dessas coisas, tudo isso também poderá ter alguma influência. Mas lá está, tem muito a ver também com as características das próprias equipas. E às vezes até com características tão simples como, sei lá, o facto de ser uma equipa de uma ilha, por exemplo, não é? O Marítimo, por exemplo, sempre fez uma grande parte dos seus pontos, e atenção que o Marítimo é uma das equipas que já não desce há mais tempo na primeira divisão, desde 86, sempre fez a maior parte dos seus pontos em casa, por exemplo. Por exemplo, as equipas inglesas nas competições europeias não há equipas, não há mais nenhum país que tenha uma percentagem de vitórias tão elevada como as equipas inglesas. Tem a ver também com as próprias condicionantes sociais, geográficas,
José Maria Pimentel
tudo isso conta. Já agora uma última regra, gostava de saber a tua opinião, que é a questão dos... Para ser técnico, não dos penaltis... Não, sim, dos penaltis, exatamente, as grandes penalidades são as que ocorrem... Eu confundo sempre, as grandes penalidades são para desempatar ou são as que ocorrem durante o jogo? As
João Nuno Coelho
grandes penalidades são as que ocorrem durante o jogo.
José Maria Pimentel
Ah, então são os penaltis, exatamente.
João Nuno Coelho
Sim, aliás, a forma correta de dizer é que quando se faz o desempato é pontapés da marca de grande penalidade, nem sequer é penaltis nem sequer é grande penalidade. É pontapé,
José Maria Pimentel
separado da marca da grande penalidade. Sim, porque não é penalização para nada. Exatamente, é um desempate apenas. É isso mesmo. Tu tens alguma ideia alternativa para esse método de desempate? Quer dizer, sendo certo que ele é uma melhoria face à moeda ao ar que chegou a haver em tempos.
João Nuno Coelho
Exatamente. Eu já pensei muito sobre isso, porque não gosto nada de jogos de disputados
José Maria Pimentel
sem pantalhas dessa maneira. Nem eu, pois, por isso é que estou a perguntar. E,
João Nuno Coelho
por exemplo, é uma das razões pelas quais eu sou contra a mudança da regra dos golos fora nas competições da UEFA, que agora está em cima da mesa. Eu prefiro a regra dos golos fora do que mais desempates por penaltis. Mas a verdade é que também, ao mesmo tempo, Pensando em alternativas, não consigo encontrar. Podia ser os cantos, por exemplo, mas de repente... Quer dizer, ter mais cantos ou menos cantos normalmente não quer dizer que se ataque mais ou menos. É
José Maria Pimentel
assim, uma alternativa dependente das estatísticas, acho... Ia sempre levar a que uma equipe estivesse a gerir aquilo, a gerir essa estatística paralelamente durante o jogo. O que eu me lembro, é certo ponto, mas não sei se isto era muito execuível, sempre que dais esta ideia a alguém a pessoa torceu o nariz, portanto presumo que vais fazer o mesmo, era que a partir, vamos supor, a partir do... Imagina, podia funcionar assim mas podia funcionar de outra forma. Ou logo a partir dos 90 minutos ou depois de decorrer uma primeira parte do prolongamento, a cada equipe era retirado um jogador a cada 3 minutos, 5 minutos, o que fosse. De modo a que tu fosse tornando o campo, lá está, cada vez...
João Nuno Coelho
Sim, também, também, essa ideia também já ouvi e não me parece, não me parece não me parece disparatada de
José Maria Pimentel
todo. Não me parece disparatada de todo.
João Nuno Coelho
Lá está, porque eu não gosto realmente dessa
José Maria Pimentel
forma de ser pato. É que esta ideia mantinha, no fundo, o resultado continuava a ser determinado pelo que acontecia no terreno de jogo, não por alguma coisa aleatória.
João Nuno Coelho
Agora, também é verdade que seria, em termos físicos, seria brutal para os jogadores que ficassem, porque eles cada vez estavam mais cansados e o campo cada vez era maior. Mas não deixava de ter a sua piada, acho eu. E até permitia também, e obrigaria, a uma gestão por parte dos treinadores desafiante. Perceber quais eram os jogadores que convinha manter em campo, não é? Será que seriam os mais rápidos, os mais habilidosos, os melhores fisicamente, os mais resistentes? É interessante pensar isso também.
José Maria Pimentel
Eu alinhava-me a tentar uma coisa dessas, a fazer experiências. Exato, pois, também me parece interessante. E a questão do... Essa objeção do cansaço é que normalmente, uma das que normalmente me dão quando faço essa sugestão. Mas acho que isso em última hora tinha que ver com a calibração, ou seja, se tu no limite, se tu começasse a fazer isso logo a partir dos 90 minutos, de uma maneira muito rápida... Sim, não havia, pois, sim. A maioria dos jogos, precipitar-se ia muito rapidamente. Sim, sim, de certeza que sim. Se calhar a Tern é que tinha muito interesse, não é? Se calhar a Tern era interessante estar a fazer, tirar os jogadores minuto a minuto, por exemplo, por absurdo. Mas, mas, sobreviu uma coisa engraçada de tentar. Mas há bocadinho estávamos a falar, falámos a um passando das alterações de jogo, que é também uma coisa engraçada que eu queria falar contigo, porque a maneira como o futebol se joga hoje em dia é muito diferente da maneira como se jogava há 30 ou 40 anos, eu lembro de ver, e há uma coisa que eu acho que nem sei explicar completamente, de ver que há uns tempos, por exemplo, um jogo do Maradona, por exemplo, e acontece uma coisa muito estranha que é... Por facto, tu traz mais discernimento em relação ao que explica isso do que eu, mas a minha sensação foi de que estava a ver uma coisa que era diferente da atualidade, mas que eu não sabia explicar exatamente porquê. Depois apanhei algumas estatísticas interessantes, como por exemplo o facto de, na altura, se rematar muito mais à baliza do que se remata hoje em dia. Eu estava a ver no outro dia uma estatística que comparava a final do Mundial de... Isto tinha sido feito na altura do Mundial do ano passado, porque comparava o Mundial de 2014, a final do Mundial de 2014 com a final do Mundial de 66. E no Mundial de 2014, havia apenas 20 remates à baliza e no de 66, 77. O que é incrível, são quase 4 vezes mais o número de remates. Por que é que o estilo de jogo mudou tanto? Tem só a ver com a questão da maior resistência dos jogadores e conseguir, assim, preencher melhores espaços?
João Nuno Coelho
É assim, para mim essa é a grande diferença. Para mim a grande diferença é a intensidade que os jogadores colocam no jogo, a diminuição do tempo e do espaço e, portanto, a maior dificuldade em ter tempo para pensar e para executar. Esse é, para mim, o aspecto fundamental. Até porque, se pensarmos em termos da evolução tática, as transformações não foram assim tantas. Realmente há aquilo que foi utilizado pelo Jonathan Wilson, que é a ideia de inverter a pirâmide, ou seja, começou-se por jogar com pouquíssimos defesas e muito avançados e foi se invertendo até aos dias de hoje em que realmente joga-se com menos avançados e mais jogadores com funções defensivas, isso é óbvio, mas em termos de ocupação dos espaços, por exemplo, de 66 para agora, não houve assim uma diferença tão grande. Na altura a maior parte das equipas jogavam em 4-2-4 ou em 4-3-3, portanto não é assim uma diferença por aí além. O que me parece é que A forma como as equipas se prepararam, as equipas se preparavam e preparam agora é muito diferente e tem realmente uma capacidade física, mas também em termos de, lá está, de cientificização de todos os processos, seja de alimentação, seja de trabalho muscular, seja de... Faz com que sejam realmente muito mais máquinas os jogadores de qualquer na altura. São capazes de fazer coisas que os jogadores de altura não podiam fazer e que tenho a certeza que a maior parte deles se tivessem a preparação que os de hoje têm também iam ser capazes de fazer. Porque em termos técnicos não houve uma evolução linear, digamos assim. Não se pode dizer que os jogadores dos anos 50, 40, 50 ou 60, fossem piores tecnicamente do que são os da atualidade. Até porque o futebol de rua, digamos assim, o futebol mais puro, tem-se vindo um bocadinho a perder e com isso tem-se perdido também alguma habilidade aparentemente mais inata, quase que mais intrínseca aos jogadores. Os jogadores parecem já mais do laboratório do que o que eram. Portanto, em termos técnicos não acho que haja grandes diferenças. O que me parece é que há realmente uma capacidade física e uma preparação tão diferente que permite aos jogadores, ou aliás, que não permite aos jogadores, poderem fazer certas coisas que antes podiam fazer. Eu estou a pensar, por exemplo, no Mundial de 70, vendo aquela final entre o Brasil e a Itália, em que o Brasil tem jogadas fantásticas, mas que nos dias de hoje seriam quase impraticáveis na maioria, porque os jogadores, e diz, costuma-se dizer que o Brasil jogava com o meio campo só com números 10, que nas suas equipas eram números 10, mas hoje em dia não iam ter tempo nem espaço para fazerem aquilo que faziam e há o Selvre 4-1 que é uma jogada em que o Brasil dá não sei quantos toques na bola, em que o último é uma bola passada para o Pelé, em que ele pisa a bola, levanta a cabeça, olha para todo lado e depois dá um toque, uma assistência para o colega marcar. Hoje em dia seria praticamente impossível um jogador ter tanto tempo
José Maria Pimentel
para pensar e para discutir.
João Nuno Coelho
Eu acho que essa é a grande diferença, essa é a grande diferença em termos de evolução do jogo e do estilo de jogo ao longo dos tempos. Claro que a tal questão da ocupação dos espaços e do aumento das preocupações defensivas, reflexo disso, é um facto. Também é verdade que houve variações, tal como o tal Jonathan Wilson naquele artigo que eu te enviei falava de como parece que já não há nada para inventar, agora temos é que reaproveitar, digamos assim, fazer uma espécie de reformulação do que já se fez antes. Mas isso a mim parece-me sempre um bocadinho circunstancial porque na verdade o pior que para mim existe é quando se quer considerar que só há uma maneira de jogar futebol, só há uma maneira bonita de jogar, por exemplo, há muitas maneiras de jogar, todas elas são aceitáveis desde que cumpram as regras, obviamente, e há muitas maneiras de chegar ao mesmo objetivo. E se eu, por exemplo, sou um apaixonado pelo modelo holandês e pela forma de jogar do Barça, por exemplo, consigo perceber perfeitamente, exato, consigo perceber perfeitamente e também admirar, e se for o caso, se for bem executado, consigo perfeitamente admirar uma equipa de transições rápidas ou de futebol direto. Não me faz confusão absolutamente nenhuma. Agora, é uma questão de preferência pessoal, não sou nada manicaísta.
José Maria Pimentel
Eu acho que existe alguma lógica em se argumentar que esse modelo de depósito de bola como é o modelo do Barcelona, não sendo universal, acaba por ter uma vantagem inegável nesse sistema, não é? Porque é um... Só há uma bola, não é? Só há uma bola, eles mantêm-na e estão mais protegidos em relação a essas investidas do adversário e estão também prodigidos, de certa forma, do desgaste que um jogo que não seja de posse de bola precisa ter, que é um jogo muito mais baseado em sprints e em andar sempre a correr à volta da bola. Sim,
João Nuno Coelho
sim, sim. Mas ao mesmo tempo, ao mesmo tempo, ao mesmo tempo, poderá ter a tendência, e tem tido, no caso do Barcelona, do Bayern, de Manchester City, as equipas do Guardiola nos últimos anos, aliás, as únicas que ele teve, porque a carreira não é tão longa quanto isso. A verdade é que, normalmente, para que esse jogo, esse tipo de jogo, seja eficaz, para que produza golos, tem alguma tendência para provocar desequilíbrios defensivos. Ou seja, porque as equipas vão também percebendo quais são os pontos fracos desta forma de jogar e uma defesa bastante recuada, que ocupa muito bem os espaços, nomeadamente no centro do terreno, no corredor central, faz com que estas equipas que jogam este tipo de jogo acabem depois por ter que arriscar um bocadinho mais e serem apanhadas muitas vezes no contra-ataque. Eu penso que não será por acaso que o Guardiola depois de sair do Barcelona não foi campeão europeu mais, não é? Ou seja, nas competições regulares ao longo de toda a temporada, nos campeonatos, ele tem ganho tudo. Tem ganho em todo lado, por onde tem passado. Aliás, do Bayern, ganhou os campeonatos todos que disputou. No City, já ganhou em Inglaterra um campeonato, não ganhou o outro, e este agora está a disputar o Ligue 1 com o Liverpool. Mas nas provas a eliminar, contra adversários de grande qualidade e com grandes jogadores, tem mais dificuldades. Ou seja, durante uma temporada inteira em que faz muitos jogos contra equipas mais fracas, vai acumulando os pontos suficientes para ser campeão. Mas depois quando é eliminar, tem muitas dificuldades. E eu digo, por exemplo, sinceramente que não acredito que o Manchester City este ano seja campeão europeu. Porque quando joga com equipas que têm muita qualidade na transição rápida, o City acaba sempre por permitir desequilíbrios. O ano passado foi o que aconteceu contra o Liverpool, e eu acredito que este ano, por exemplo, equipas como o Liverpool e como a Juventus são mesmo talhadas para conseguir desfazer o tipo de jogo do site e do ortel.
José Maria Pimentel
Mas tu achas que esse tipo de equipas acabam procedar bem contra equipas bastante mais fracas mas depois quando jogam contra pares, contra equipas que estejam mais ou menos ao mesmo nível... Mas que sejam
João Nuno Coelho
cínicas têm muitas dificuldades. Que sejam mais cínicas, digamos assim. O Liverpool obviamente...
José Maria Pimentel
Mas as pequenas não conseguem ser-lo, não é? Não têm recursos para serem cínicas dessa forma. Não consegue
João Nuno Coelho
ser-lo e mais do que tudo, não consegue ter um plano B Porque o próprio Guardiola, quando estou a dizer Guardiola, há mais alguns casos de treinadores da sua escola, não querem ter um plano B. Querem ganhar daquela forma, querem ganhar respeitando os seus princípios. É uma forma muito própria de estar, em que já vem muito da escola do Cruyff, em que
José Maria Pimentel
ganhar não é o objetivo, não
João Nuno Coelho
é o objetivo, aliás, é o objetivo, mas não é qualquer custo. Ou seja, há coisas mais importantes e respeitar a forma como se joga é considerado mais importante do que o resultado final, o que é algo completamente contracorrente com o espírito do capitalismo aplicado ao futebol, em que a única coisa que interessa é o sucesso. Mas para estes ideólogos do futebol, digamos assim, os princípios e o modelo é mais importante, aquilo que eles chamam de processo, é mais importante que o resultado. E eu acho isso interessante, eu acho isso muito interessante, sem dúvida alguma.
José Maria Pimentel
Sim, é um caso curioso.
João Nuno Coelho
É, é muito curioso e Eu gosto que eles ganhem, mas a verdade é que na maior parte das vezes não é isso que acontece. Podes me perguntar como é que, por exemplo, o Barcelona foi tricampeão europeu entre 2006 e 2011. Ganhou três vezes a taça da Liga dos campeões. E eu penso que tem muito a ver com dois fatores. Primeiro, por exemplo, durante a prova, confrontou muitas equipas abertas. Por exemplo, as finais, duas das finais foram contra o Manchester City, contra o Manchester United e uma contra o Arsenal. Ou seja, por exemplo, nos jogos da final, confrontou equipas muito mais, digamos, muito mais... Muito pouco cínicas, não é? Por outro lado, o modelo de ataque do modelo de jogo do Barcelona, do Pep Guardiola, estava baseado num tique-taque, que é um bocadinho diferente do que jogam as equipas do Guardiola, tanto o Bayern como o Manchester City. As equipas do Guardiola no Barcelona eram de tal forma envolventes na maneira como atacavam, atacavam de uma forma que lhes permitia reagir mais rapidamente à perda de bola, nomeadamente com o Xavi, com o Iniesta, em que
José Maria Pimentel
os jogadores
João Nuno Coelho
iam todos juntos para atacar, ou seja, a equipa não ficava tão partida como ficam estas equipas do Guardiola e o próprio Barcelona agora, atualmente, o que lhe permitia depois reduzir muito mais os passos quando eram apanhadas em contra-ataque. Também
José Maria Pimentel
tinha a ver com os jogadores específicos,
João Nuno Coelho
não é? Exatamente, tinha a ver com os jogadores específicos. O que não quer dizer que não tenham sido apanhadas em alguns casos. Não sei se estás a lembrar daquele jogo, célebre jogo, do Inter de Mourinho em No Camp.
José Maria Pimentel
Sim. Em que ele
João Nuno Coelho
basicamente fez ali uma muralha à frente da defesa, mesmo a jogar com 10 e também porque estava a jogar com 10 e a verdade é que o Barcelona não teve soluções para entrar, acabou por marcar um gol mas como tinha perdido 3-1 na primeira mão, ficou na meia-final e depois o Inter seria campeão europeu no Bernabeu.
José Maria Pimentel
Sim, sim, exatamente, é um caso interessante. É um caso muito interessante. Bom, não te vou tirar muito mais tempo, queria só, antes de passarmos ao livro, há um tema giro que eu não queria deixar de falar. Ou por outro, não queria deixar de obter a tua opinião sobre ele, que é a questão da ascensão da análise quantitativa e do potencial que está associado, nós já falamos um bocadinho de estatísticas, mas há um... Há uma... Ou pelo outro, noutros desportos, sobretudo em desportos americanos, até há aquele filme do Mani Ball muito conhecido... Exatamente, Mani Ball. A análise quantitativa e estatística tem tido um papel crescente, seja na detecção dos jogadores, seja no planeamento dos jogos. A ideia que eu tenho é que no futebol europeu, embora isso já exista, tarde em ter um efeito, tarde em ter um papel tão grande assim, não é? Sim, sim.
João Nuno Coelho
E eu penso que isso tem a ver com dois aspectos. Por um lado, o mais intrínseco, o próprio jogo, em que os tais fatores aleatórios são realmente mais vastos do que nos desportes coletivos de pavilhão. Portanto, é mais difícil traduzir, não se trata tanto de traduzir em números, mas depois de interpretar e de operacionalizar os dados que se recolhem. Por um lado, isso é verdade, e portanto eu admito perfeitamente que pessoas como a Guardiola e a maior parte dos estudantes dizem que não gostam de estatística no futebol. Embora a gente saiba que depois eles trabalham muito os dados estatísticos, o que não deixa de ser curioso. E entronca-no a outra razão, para mim, que levou a esse afastamento, que só agora é que está a ser ultrapassado. É que, no futebol, a tradição é realmente uma coisa importantíssima. O futebol é realmente um universo muito conservador. E o que se pensou ao longo dos tempos no futebol sempre foi, isto é a maneira como sempre fizemos as coisas e portanto esta é que é a maneira de fazer. É esse imobilismo que dominou o futebol durante muitas décadas, em que os jogadores se tornam depois treinadores, ou seja, são os homens da prática que depois se tornam os pensadores do jogo, também enquanto treinadores. E só há alguns anos é que começaram a entrar no futebol os licenciados, as pessoas que estudavam cientificamente o desporto, e o caso do José Mourinho foi um bom exemplo, abriu muitas portas na altura, e, portanto, só foi preciso ultrapassar este ceticismo resultante da tradição e da importância da tradição, que levava a que no futebol achassem que sabiam tudo e que não precisavam de influências externas, digamos. E, portanto, só há poucos anos é que se começou a dar importância a estudar os números e a perceber, acima de tudo, que os números só por si não significam nada. Se calhar o que não tem interesse para o futebol são dados frios, são aqueles dados não interpretados. É fundamental contextualizar e interpretar os dados que se recolhem. Porque se formos dar tanta importância, se não formos criteriosos na forma como analisamos os dados, realmente corremos o risco de não acrescentar nada. Se formos, por exemplo, considerar todos os passos como sendo iguais, não vamos conseguir compreender a importância do passo e o que é que se tem que mudar em termos do passo se formos dar tanta importância ou formos aplicar o mesmo critério a um passo para trás do que um passo de ruptura, por exemplo, não é? É óbvio que não vamos chegar a conclusões nenhumas e essa foi uma coisa que eu tive possibilidade e para mim foi fundamental porque foi um trabalho de base. Eu em 2006 comecei a trabalhar, aliás comecei a coordenar uma coisa chamada Football Ideas que nasceu numa produtora de televisão que foi a responsável pela criação da famosa Liga dosltimos. O mentor e o dono da empresa é o Daniel Deusdado, que foi diretor de programas na RTP até há um ano atrás. E ele foi muito sensível às minhas ideias sobre este assunto e então criou a tal Futebol Ideas em que começamos com folhas de Excel, basicamente, a construir uma grelha de análise e de observação dos jogos, mas feito completamente de raiz, o que me ensinou imensa coisa. Imagino o que é pensar quais são os eventos que nós queremos observar e contabilizar.
José Maria Pimentel
Por exemplo,
João Nuno Coelho
Golos. Como é que são obtidos os golos? Ataque organizado, ataque rápido, bolas paradas. Dentro do ataque organizado, os flancos que são utilizados, o tipo de passos, em termos de rematos, os rematos dentro da área, fora da área, os rematos no alvo e fora do alvo. Ou seja, fomos construindo uma grelha de análise, de observação e análise, que quando demos por ela tinha dezenas e dezenas de campos. Isso possibilitou-me perceber que há dados que são realmente cruciais e há outros que acabam por ser muito pouco significativos, não é?
José Maria Pimentel
Sim, como alguém dizia, a diferença entre estatísticas e métricas. Exatamente, exatamente isso. As estatísticas não servem para nada, as métricas é que servem. E
João Nuno Coelho
depois, pronto, depois no fundo fui fazendo este caminho todo até ao Números Redondos, até ao programa de rádio da TSF, sendo que nem sequer sou... Quer dizer, eu fiz Sociologia, portanto tive uma cadeira de Estatística, mas nunca fui muito sensível sequer à estatística. Por exemplo, o meu trabalho em termos de sociologia, sempre relacionado com o futebol, sempre foi muito mais qualitativo do que quantitativo. Mas houve um momento em que eu tive a noção de que me interessava pensar e comentar futebol não a partir de meras opiniões, de meras sensações, mas gostava de fazê-lo a partir de números. Não acabar nos números, mas começar nos números. E é isso que eu faço e, portanto, é diferente do que fazem os observadores e os analistas de uma equipa de futebol, até porque eles têm, e eu agora também já tenho, mas na altura não tinha, eles agora têm acesso a dados muito rigorosos e muito, muito, muito, muito, muito minuciosos em termos do que se passa dentro do campo de futebol, porque está tudo completamente informatizado, quer dizer, não andam a tirar os... Não fazem observação como uma folha de Excel, no é? Tipo, têm que utilizar aquilo que os jogadores fazem dentro do campo que vai ao nível mais ínfimo e, portanto, a minha grande questão é o que fazer e como analisar esses números. E no fundo é isso que eu tenho feito e não tenho parado nesse sentido de mudar de opinião, de evoluir, de às vezes regredir, quer dizer, é uma coisa que eu acho que ainda tem um campo brutal de desenvolvimento e acho que ainda vai ter muito mais, porque há muita coisa que se pode retirar a partir da análise estatística. Agora, sempre contextualizada. Tem que ser sempre contextualizado e tem que ter sempre, curiosamente, e é uma coisa que eu ainda não consegui verbalizar muito bem, o momento em que se vai conseguir relacionar os números, portanto, dados objetivos, com uma análise semi-objetiva, ou seja, conseguir ter instrumentos que nos permitam quase que humanizar os dados estatísticos que temos dos jogadores. Estou a pensar, por exemplo, a diferença no tipo de passos. É óbvio que é muito diferente um passo vertical de um passo que é feito para trás ou para o lado. É muito diferente um passo que é feito em longa distância de um passo que é feito a uma curta distância e como é que nós vamos conseguir operacionalizar isto, ou seja, no fundo, como é que nós vamos conseguir correlacionar, tendo a noção de que há aqui elementos subjetivos. Imagina, por exemplo, a questão dos remates. Há alguns remates que, quer dizer, os remates não valem todos o mesmo. Nós vamos ter que conseguir fazer a diferença entre os remates que são efetuados e, por exemplo, perceber quando dizemos, há dados curiosíssimos, por exemplo, o Jonas precisa de mais ou menos 1.6 ocasiões de golo para marcar um golo. Já o Marega precisa mais do que de 13 ocasiões para marcar um golo, mas as ocasiões também não são todas iguais. E portanto, como é que nós vamos conseguir fazer uma valoração destes diferentes eventos, ou antes, do mesmo evento, mas com características diferentes. E eu penso que esse vai ser o grande passo para a seguir.
José Maria Pimentel
E há outra coisa ainda, que é, imagina que tu tens um jogador que precisa de duas situações para marcar e tens outro que precisa de três, mas este segundo produz o dobro das situações de gol. Qual é que tu
João Nuno Coelho
preferes? É isso mesmo, é isso mesmo. É exatamente isso. É exatamente isso. É por exemplo o que acontece com o Básezos. O Bázezos pensa que tem qualquer coisa como oito penaltis, não, mais. Sim, sim, ele tem oito penaltis em quatorze gols marcados na primeira divisão. Portanto, pode-se dizer, quer dizer, ele marca muitos golos, mas a maior parte deles são penaltis. Mas também, no entanto, 6 dos penaltis foram cometidos sobre
José Maria Pimentel
ele. Até preciso
João Nuno Coelho
relacionar tudo isto, por exemplo, quando estás a fazer a avaliação de um jogador. E portanto, tudo isto é muito interessante, mas vai-se complexificando cada vez mais. E eu penso que esse é um dos aspectos que o futebol também vai ter que saber lidar. É a constante racionalização e complexificação de que está a ser alvo, mas que é uma tendência social geral, não é apenas no futebol, não é? E como é que vai manter ao mesmo tempo a simplicidade que o levou a ser tão popular. E esse choque penso que é muito interessante e é uma das minhas maiores curiosidades em relação ao futuro. Infelizmente já estou quase a fazer 50 e portanto também já não vou poder ver o futebol de 2050, provavelmente, mas tenho muita curiosidade de ver, pelo menos nos próximos anos, como é que isto vai evoluir. Imenso. Bem, 2050
José Maria Pimentel
são só 30 anos. Sim, mas
João Nuno Coelho
provavelmente daqui a 30 anos já não estarei.
José Maria Pimentel
Está sempre assim, isto. A questão das estatísticas, acho que ainda tem um aspecto que tu não referiste diretamente, que é não só o que acontece, é preciso modelizar o que acontece, mas também o que não acontece, ou seja...
João Nuno Coelho
Exatamente, sem dúvida alguma.
José Maria Pimentel
O passo foi para a frente, mas podia ter ido em várias outras direções e
João Nuno Coelho
a partir daí ficas com uma... E
José Maria Pimentel
depois isto é giro porque tu acabas por ter aqui dentro daquilo que tu não consegues modelizar, à medida que tens coisas de indo de diferente, tens por um lado fatores aleatórios, uma espécie de chamado ruído, mas tens também fatores que simplesmente não são modelizáveis, seja isso, seja a própria psicologia dos jogadores, seja cada um monte de coisas que são tão complexas que não consegues modelizar. Por exemplo,
João Nuno Coelho
fazer a comparação dos golos do Messi e do Ronaldo, por exemplo, em função da importância do jogo, do grau de dificuldade do jogo. Tenho quase a certeza que se fizermos isso vai ser um fator a favor do Ronaldo, por exemplo. Tenho quase a certeza que, ao contrário do que acontecia há páginas tantas, nos últimos anos, por exemplo, o Ronaldo tem sido muito mais decisivo, ou antes, aparece muito mais nos jogos decisivos, é muito mais forte mentalmente nesses jogos do que é o Messi, por exemplo. E a
José Maria Pimentel
questão da equipa, não é? Da equipa em que está integrado também. Com o Messi não dá muito bem para fazer isso, não é? Porque só tens o Barcelona na seleção.
João Nuno Coelho
Exatamente, exatamente. É verdade, completamente, completamente. Mas é, o que me parece é que há realmente aqui um
José Maria Pimentel
conjunto
João Nuno Coelho
de possibilidades quase infindáveis e que, pronto, e que me parecem que podem ser exploradas não só no sentido, poderia parecer, que é apenas no sentido de alguma mecanização, alguma robotização do jogo, mas que podem ser também fatores apaixonantes do próprio jogo.
José Maria Pimentel
Sim, sim, de trazer clareza. Exatamente, trazer clareza,
João Nuno Coelho
trazer discussão, no fundo. Iluminada, não é? Não é uma discussão circular, é uma discussão que procura ir mais longe a partir da interpretação de dados, no
José Maria Pimentel
fundo. Para mim, se o jogo se tornasse praticamente determinístico, como um jogo de snooker, por exemplo, é uma coisa que quase depende, o resultado é mais ou menos mesurável a partir do talento individual de cada jogador, se calhar alguém que perceba muito snooker agora está-se a contorcer a ouvir isto, mas acho que cai mais ou menos nessa classificação. Se fosse possível chegar a esse grau de explicação, claro que o futebol perdia a piada, mas eu acho que não havendo esse risco, o grau de clareza que isto traz, pelo menos, Por exemplo, para mim uma das coisas que sempre me irritaram no futebol, e se calhar é uma das coisas que me criam algum desinteresse, bem, um enorme desinteresse naqueles programas de comentário da atualidade, é que muitas vezes este ruído, esta aleatoriedade é tratado como se fosse, como se tivesse uma causa. Eu sei, eu sei. É verdade. É completamente ridículo. É verdade. Tens um jogo que podia ter caído para aqui ou caído para ali, e se ele cai para ali, o comentário é feito como se fosse quase determinista que ele fosse cair naquela direção que não era, não é? Podia ter acontecido ao contrário.
João Nuno Coelho
Exatamente, Exatamente. Aliás, eu penso que essa é uma das maiores dificuldades que eu tenho, pelo menos eu, em lidar com alguns protagonistas do próprio jogo. É a forma como eles têm dificuldades em aceitar este grau de importância da
José Maria Pimentel
sorte e do azar, por exemplo.
João Nuno Coelho
Porque, obviamente, precisam de sentir que têm mais controle do que o que têm realmente sobre os acontecimentos. E não é por acaso também que, também não deixa de ser com certeza um fator para que, por exemplo, a superstição no futebol seja tão forte.
José Maria Pimentel
Claro, exatamente. É que as realidades
João Nuno Coelho
conscientem que existe uma coisa chamada sorte do jogo, isso não tenho qualquer dúvida que existe. Existe uma coisa chamada sorte do jogo e também é isso que faz com que o jogo seja tão fascinante, sem dúvida
José Maria Pimentel
alguma. Sim, exatamente. E tu tens fenómenos, eu lembro de ver, por exemplo, no europeu, por exemplo, no último europeu, que nos correu bem, claramente numa realidade paralela à nossa, se existisse, em que aqueles jogos decorressem, nós tínhamos ficado facilmente numa, Pá, e na primeira eliminatória. Na
João Nuno Coelho
fase de grupos, exatamente. Não tenho dúvidas de que não era juízo.
José Maria Pimentel
Ou até na fase de grupos, exatamente. Sim, sim, sim. Ou seja, e o que é que... E até acho que o Fernando Santos fez um bom trabalho, atenção. Mas o que é que seria... Qual seria o juízo em relação a ele, por exemplo, se tivéssemos ficado na fase de grupos, que poderia perfeitamente ter acontecido, não aconteceu por uma contingência, mas de repente tu tens um endeusamento. É verdade, é verdade. Não sei se podia ser outro tipo, só porque aquilo correu bem. Sem dúvida alguma. Havia um tipo, mas eu acho que esta, apesar de tudo, quer dizer, estou a ver a coisa de fora, mas acho que o papel da análise quantitativa vai sobretudo ser incontornável quando houver alguém de um clube que consiga usá-lo, no fundo como esse exemplo do manibol, do Bilge, não sei qual era o apelido dele, fez na altura com outro desporto, que é tu um clube de meio da tabela conseguir utilizando estes meios superiorizar-se aos outros. Há alguns que já tentaram fazer, eu no outro dia apanhei uma peça que era sobre o Matthew Bentham, que é o dono do Brentford, que é um clube inglês que estava na segunda liga deles, que já não sei como é, a segunda liga deles não se chama segunda liga, não é? Chama-se... Championship. Championship, exatamente. E ele é um tipo que ganhou imenso dinheiro nas apostas esportivas e depois tentou fazer isso, ou está a tentar fazer isso com esse clube e com o clube dinamarquês onde este tem tido mais sucesso. Mas ainda não conseguiu, é curioso, ele ainda não está a tentar fazer isto há alguns anos, acho que se tem dado, quer dizer, acho que o clube tem tido melhores resultados do que tinha até aqui, mas não conseguiu passar ainda à primeira liga, Não conseguiu passar ainda ao escalão principal. E uma coisa que ele fez curiosa que aparecia nessa peça foi, a certa altura, como no modelo dele, embora a equipa nem tivesse mal, estava em quinto lugar, no modelo dele a equipa aparecia como estando relativamente fraca e no fundo correspondendo a um lugar de meio da tabela e portanto se tudo correu, se o modelo tivesse certo ela ia convergir para aquele lugar, ele despediu o treinador e a equipa técnica toda, no fundo argumentando-o que essa aleatoriedade estava a jogar a favor dele. Sim, sim, sim. E obviamente que a solução não foi provavelmente bem acatada. Mas pronto, João, vamos terminar então com a recomendação do livro ou há alguma outra coisa que queres dizer?
João Nuno Coelho
A recomendação do livro vem já a seguir, só há um aspecto
José Maria Pimentel
que eu acho que
João Nuno Coelho
É interessantíssimo pensar também a partir dessa visão da questão da estatística e da inovação. E que no futebol se torna complicada pela tal conjugação de tantos fatores que existem à volta de uma equipa. E isso Nota-se bem, por exemplo, no papel do treinador. Há realmente a dimensão do talento dos jogadores, isso é fundamental. Há a dimensão do caráter dos jogadores. Depois há todo a envolvente social, digamos assim, cultural do local onde um clube está. Isto faz com que realmente seja muito difícil poder usar receitas, não é? É difícil usar receitas. Por exemplo, a questão da análise estatística em relação aos jogadores que se vão comprar, que era uma das questões fundamentais do Moneyball, não é? Consegui perceber que há alguns números, alguns dados que são fundamentais para identificar os jogadores que podem até ser mais baratos, mas que têm essas características. E que se nós pudermos ter acesso a esses jogadores, podemos ficar com uma equipa mais forte. Tudo isso pode ajudar no futebol, mas depois não sabemos minimamente como é que esses jogadores vão dar numa determinada circunstância, num determinado contexto, num determinado grupo, Com um determinado treinador. Ou seja, há aqui uma conjugação de tal ordem que muitas vezes eu penso no treinador de futebol um bocadinho como uma atividade de características muito semelhantes, por exemplo, à de um realizador de cinema. Ou seja, tem que ter a capacidade, digamos que estética, criativa, de contar uma história. Ao mesmo tempo tem que ter a capacidade também de lidar com os atores, que tal como os futebolistas são caprichosos e ganham muito dinheiro e não são fáceis de gerir. Ao mesmo tempo tem que lidar com a parte mais logística e mais de produção do produtor e todas as questões financeiras. Se estivermos a falar do futebol inglês ainda mais, porque o treinador é manager, portanto tem uma panóplia de funções ainda mais vasta, portanto é realmente complicado e é realmente complexo como é que isto se pode, no fundo, encontrar uma receita para o sucesso. E depois ainda há a tal dimensão de ter que lidar com um desporto que tem tanto de aleatório e tanto de imprevisível. E, portanto, eu acho que tudo isso ajuda a explicar muito a paixão pelo jogo, afeta ou que toma conta da pessoa mais simples, com menos estudos, até aquela mais intelectual e que consegue ter insights mais profundos sobre o próprio jogo. Acho que isso é que é fascinante. E aproveito para falar do livro, porque é o livro que eu já referi aqui, e lá está, é de um escritor, de alguém que é um intelectual, tipo o inglês, neste caso o Nick Hornby. O livro chama-se Fever Pitch. É considerado realmente um dos melhores livros de sempre sobre futebol. Deu origem a um filme ou dois já, mas muito aquele filme mais mainstream de Hollywood e tal, não tem um interesse por aí alguém. O livro sim, ele é fascinante, porque no fundo mostra como é que a vida de um adepto pode andar completamente ao sabor dos resultados e do que acontece à sua equipa de futebol. O Nick Hornby é adepto de uma equipa de Londres, do Arsenal de Londres, e ele mostra muito bem como é que, no fundo, sendo um adepto, alguém que partilha o fundamental, ou seja, ser apaixonado por um clube e partilhar isso com milhões, se o DuPain fica ainda com mais milhões estão, não é? Mas ao mesmo tempo vive isso de uma forma completamente individual. E é isso que eu acho mais fascinante neste livro, é perceber algo que é social, algo que é coletivo, gostar de um determinado clube, mas depois a forma como nós vivemos isso é totalmente individualizado. E eu, no fundo, acabo por me identificar extremamente com isto porque nunca me hei de esquecer que no dia em que o Porto foi campeão europeu pela primeira vez, eu tinha 17 anos, estive a
José Maria Pimentel
ver o jogo. Eu ainda não tinha nascido. Estava a um
João Nuno Coelho
mês de nascida. Isso é curioso. E lembro-me que estava a ver o jogo em casa com os meus pais e foi uma alegria realmente, porque para quem era adepto do Porto já há 10 anos e estava habituado a ver o Porto, a não conseguir passar das primeiras eliminatórias europeias e mesmo em Portugal ganhar raramente, foi assim uma espécie de ir à rua, não é? Quer dizer, foi uma coisa completamente imprevisível e completamente uma revelação autêntica. Eu lembro perfeitamente do jogo acabar e os meus pais dizerem tipo vamos até à baixa festejar e tal e de repente estou a receber telefonemas dos meus amigos não por telemóvel mas pelo fixo a dizerem vamos para a baixa e a minha reação foi eu não quero vou ficar em casa Eu vou ficar em casa porque eu tenho que ficar aqui. Eu não quero ir para o meio de uma festa. Eu quero ficar aqui sozinho, em recolhimento, a pensar na proeza que isto foi e a celebrar dentro da minha cabeça. Eu acho que isso é exatamente, no fundo, é exatamente isso aquilo que podemos ler neste livro do Hornby, que é, sendo algo de partilhado, é também algo completamente individual. A forma como vivemos o jogo e como vivemos o nosso clube e como vivemos a paixão pelo futebol.
José Maria Pimentel
Claro que é giro. Eu nem me lembro, nem conhecia este livro. Sendo que é engraçado, isto vem ao encontro de uma coisa que eu já tinha reparado, é que é incrível a quantidade de livros que existem publicados sobre futebol no Reino Unido por autores britânicos isto é.
João Nuno Coelho
É uma coisa absolutamente brutal. É
José Maria Pimentel
incrível, não é? Acho que não tem comparação nem com Portugal nem com outro país da Europa. Já há muitos anos
João Nuno Coelho
que é assim. Ao contrário de Portugal, por exemplo, que só nos últimos anos é que começaram a aparecer livros de show de futebol, em Inglaterra Eu quando comecei a minha tese de licenciatura sobre futebol, na altura disse ao meu professor, que era no fundo o orientador, disse-lhe, afinal vai ser impossível fazer uma tese sobre futebol, gostava muito, porque não há nada aqui em Portugal, mas fui à biblioteca e não há um único livro que relaciona futebol e sociedade. Portanto, eu não posso fazer uma tese se não há livros. Na altura não havia internet, não havia nada disso.
José Maria Pimentel
Claro, não havia bibliografia. Estamos
João Nuno Coelho
a falar em 1992. E basicamente, ele conseguiu arranjar-me algum dinheiro que tinha sobrado dos Erasmus. Então, eu fui fazer um programa Erasmus para Manchester, sem ir a aulas nenhumas. O meu programa Erasmus foi fazer pesquisa bibliográfica e no fundo também aproveitei para ir ao futebol e viver um bocadinho aquela cultura, mas acima de tudo foi para poder ter livros para me documentar e para poder fazer a tese. Portanto, só para veres como na altura lá
José Maria Pimentel
já havia
João Nuno Coelho
uma bibliografia brutal, quer em termos históricos, sociológicos, antropológicos, tudo e mais alguma coisa, biografias, histórias de clubes, tudo e mais alguma coisa, uma coisa fantástica.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim, é engraçado, essa história tem muita piada para
João Nuno Coelho
cá. Não, isto é fantástico, fantástico, tem realmente, no fundo, acompanhamos o crescimento da pessoa, desde miúdo até aos seus 40 e muitos, seguindo a sua história de vida que, no fundo, é marcada muito pelos acontecimentos futebolísticos que ele foi vivendo, nomeadamente através da paixão pelo Arsenal. Em português, há uma tradição chamada febre dos relevados, penso eu, mas não é muito boa. Devo admitir que não é grande coisa. E este livro lê-se bastante bem em inglês, não é nada complicado.
José Maria Pimentel
Sim, sim, sim. Não, fica a recomendação do
João Nuno Coelho
original. Ok. Está bem. João, obrigadíssimo por teres participado. Foi um prazer falar contigo. Igualmente. Espero que continue o podcast porque está na ordem do dia também. É bom sinal.
José Maria Pimentel
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