#52 Ricardo Paes Mamede - “Pensar políticas económicas não é apenas uma questão técnica...
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José Maria Pimentel
Bem-vindos.
O
convidado deste episódio é Ricardo Pais Mamede, que é professor de Economia
Política na Escola de Ciências Sociais e Humanas do ISCTE. Para além
disso, o convidado é membro do Conselho Económico e Social, é um
dos autores do blog Ladrões de Bicicletas e é também autor de
livros sobre economia, o mais recente dos quais a Economia como Desporto
de Combate e desde há alguns anos para cá comentador regular na
televisão. Antes de mais vale a pena dizer que embora esta conversa
surja apenas ao 52º episódio, na verdade o Ricardo foi das primeiras
pessoas que convidei para o podcast. Foi difícil, mas julgo que valeu
a pena. O convidado é então dos economistas mais reputados e um
caso particular, porque não só não evita, como assumo abertamente, transmitir a
visão de um economista de esquerda. Aliás, confesso que o meu objetivo
até era ter uma conversa mais sobre a economia enquanto ciência, mas
rapidamente, como vão ouvir, a economia política tomou conta da conversa. Como
é hábito no 45 Graus, tocámos numa série grande de assuntos. Começámos
por discutir a visão do convidado em relação às limitações da ciência
econômica,
desde
logo do currículo que é dado nos cursos da faculdade, mas também
da própria investigação que é feita, e o Ricardo faz observações muito
relevantes a este respeito. Por um lado, nota que as verdades em
economia, quando as conseguimos encontrar, são sempre específicas a um tempo e
espaço, e portanto não gerais, e por outro lado argumenta que as
conclusões da investigação são influenciadas sempre pelos valores de quem investiga, até
na escolha dos indicadores que se privilegia quando se avalia uma qualquer
realidade económica que é sempre ultra-complexa, com efeitos de vária ordem e
sobretudo esfazados no tempo. Dito isto, embora partilhe de alguma dessa embiração,
não concordo totalmente, como já vou explicar, que em economia tudo seja
relativizável. Seguidamente, a conversa levou-nos a muitos dos debates centrais da economia
política, como o Keynes e o contexto histórico do keynesianismo, a história
do capitalismo, o neoliberalismo, na definição particular do convidado, o poder explicativo
que tem a qualidade das instituições num determinado país, para lá das
políticas de esquerda ou direita, sobre prosperidade económica desse país, e ainda
ao caso específico do modelo económico das chamadas sociais democracias escandinavas, que
combinam uma economia capitalista competitiva com um Estado social forte. Finalmente, tentei
desafiar, sem muito sucesso, o convidado para algo que considero faltar em
Portugal. É que, apesar das ditas limitações da ciência económica e de
muitos economistas com acesso próximo ao ouvido dos políticos terem flacionado as
capacidades reais da disciplina nas últimas décadas, julgo que existem bons exemplos
de conclusões da investigação que são relativamente transversais à orientação política dos
investigadores e que fazia falta que tivessem mais protagonismo no debate político
que é tantas vezes, de um lado e de outro, ignorante e
simplista. Acho mesmo que esse é um contributo que os economistas, enquanto
cientistas, ainda que sociais, podiam dar conjuntamente.
Um
bom exemplo disto que falo, que vale a pena ouvir, embora seja
de outra realidade, foi o exercício feito pelo podcast Planet Money da
NPR, a rádio pública dos Estados Unidos, que conseguiu identificar cinco grandes
medidas de reforma fiscal, apoiadas por economistas que vão da esquerda à
direita. Encontra o como habitual link para este podcast na descrição deste
episódio. No final, falamos ainda rapidamente das limitações do PIB e da
visão do convidado em relação a políticas potenciais de crescimento económico em
Portugal. Muito rapidamente, antes de vos deixar em paz, uma nota para
algumas particularidades deste episódio. Esta conversa, quer pelo tema, quer pelo posicionamento
do convidado, tem algumas semelhanças óbvias com o episódio da Mariana Mortágua
que gravei para a série de política, sendo que na verdade esta
foi gravada antes dessa. Por causa dessa coincidência e porque o meu
interesse era sobretudo pela visão do Ricardo enquanto investigador e académico, irão
reparar que tive uma postura menos interventiva e mais próxima a de
um típico entrevistador. Outra particularidade, esta por constrangimento de tempo, é que
desta vez não houve recomendação de livro no final, mas não é
por isso que vale menos a pena. Ora ouçam. Ricardo, bem-vindo ao
podcast. Como estava a dizer há bocadinho em off, tenho muita piada
de estar a falar contigo porque eu sigo, na verdade ultimamente nem
tanto, mas segui durante muitos anos o vosso blog, o Lodões de
Bicicletas, na faculdade sobretudo. Eu, aliás, dizia muitas vezes, acho que até
tenho isso escrito, um blog que eu escrevi na altura, portanto isso
não me deixa mentir, que era o meu blog preferido de economia
de longe e nem era exatamente porque eu concordasse convosco, porque até
o meu posicionamento é um bocadinho diferente do vosso, para não dizer
até algumas coisas bastante diferentes. Mas a chave, primeiro vocês faziam uma
coisa que eu sempre senti muita falta na faculdade, é uma mágoa
que eu ainda tenho hoje em dia com a economia, que é
reconhecer a limitação do poder explicativo da economia, reconhecer que aqueles modelos
que a pessoa aprende na faculdade, não é que não tenham utilidade,
também não iria tão longe, mas são limitados e são necessárias outras
ciências sociais para explicar, e outras condicionantes, até muitas vezes históricas, para
explicar os fenómenos. E por outro lado, mesmo em temas que eu
não acordava convosco, vocês tinham, por norma, que eu acho que estava
a rias mãos, mas tinham, primeiro, alguma coragem intelectual para abordar no
tratamento de alguns temas e depois eram inegavelmente profundos, ou seja, não
faziam uma coisa pela rama, o que na altura não existia muito,
era aquilo que existia e sobretudo eram originais, havia uma coisa que...
Eu não sei se isto diz alguma coisa, mas outros blocos que
existiam na economia eram muito... Uma mimetização de blocos estrangeiros, se quiseres,
ou seja, eram muito... Até podiam ter conteúdo muito interessante, mas eram
inevitavelmente piores do que a origem, não é? Piores do que o...
A cópia era pior do que a original, mesmo que não fosse
propositalmente uma cópia. E o vosso era inevitavelmente original, que é uma
diferença grande, pelo menos para mim era uma diferença grande na altura,
eu achava muito giro isso, aquilo lá está, era escrito a várias
mãos e tinha muita piada a ler. Entretanto, uma das coisas que
vocês falavam era exatamente a questão da, e eu tenho duvido já
falar muito sobre isso, a questão das limitações da economia. Porque uma
coisa que... Há muita gente que... Há muita gente que tem traumas
com vários cursos, mas há muitas... Mas com a economia, há muitas
pessoas que têm contato com a economia e acham aquilo uma coisa
um bocadinho estrambólica,
Ricardo Paes Mamede
É, em larga medida sim. Antes de mais, obrigado por este convite
para o podcast. A forma como se ensina a economia tem-se transformado
bastante ao longo dos anos. Eu, quando estudei Economia na licenciatura, tive
uma quantidade muito grande de cadeiras de Ciências Sociais. Eu lembro-me que
tive um ano inteiro, duas cadeiras semestrais de História Económica e Social,
que aliás me marcaram muitíssimo. Tive dois semestres de cadeiras ligadas à
Sociologia, tive cadeiras ligadas a Direito, Direito Económico, depois tive como cadeiras
optativas cadeiras que, sendo do Departamento da Economia, tinham uma abordagem muito
pluralista às questões económicas, lembro-me, por exemplo, de uma cadeira de Aspetos
Sociais do Desenvolvimento, que era uma cadeira que marcadamente procurava compreender os
processos de desenvolvimento económico, indo buscar inspiração muito das outras ciências sociais,
por exemplo, e uma importância fundamental da antropologia. Sempre dei muito valor
a abordagens vindas das ciências políticas, nomeadamente em tudo o que tem
a ver com a compreensão do papel do Estado. Portanto, a economia
que eu aprendi na faculdade, na primeira metade dos anos 90, era
uma economia bastante plural, apesar de tudo desse ponto de vista. Várias
coisas se passaram desde então, nomeadamente uma tendência enorme para que as
várias faculdades de economia começassem a padecer de um problema habitual da
concorrência do mercado, que é tornarem-se todas iguais umas às outras e
tentarem todas mimetizar aquilo que acham que é o padrão de sucesso
e, portanto, hoje um curso de economia, ainda para mais a partir
do momento que os cursos de economia passaram a ser de 3
anos e não de 4, os… anteriormente eram de 5, como é
sabido, os cursos de economia passaram a ser, essencialmente, aquilo que se
convencionou considerar as ferramentas fundamentais de qualquer economista e isto basicamente resume-se
a macro, micro e econometria, que para os não economistas têm uma
vaga ideia do que é que eu estou a falar, mas todas
as pessoas que passaram por um curso de economia sabem exatamente do
que é que eu estou a falar. E de facto, quando nós
tentamos olhar para o mundo apenas com base nas ferramentas que nos
são dadas pela microeconomia tradicional, pela macroeconomia convencional, dominante dos dias de
hoje, e pela econometria, o mundo é uma coisa muito simplificada, muito
abstrata, e são instrumentos que, apesar de eu considerar úteis, são apenas,
do meu ponto de vista, uma pequeníssima parte daquilo que deve ser
o instrumental de qualquer economista para ter a capacidade para compreender a
forma como as economias funcionam e como evoluem. Sim,
José Maria Pimentel
e Eu acho que há um erro em que se caiu na
economia, talvez noutras áreas, mas parece-me que sobretudo na economia, que é
fazer aquilo que é feito, e é normal que seja feito, em
muitas ciências exatas, que é uma espécie de eliminação da história. Não
digo eliminação, mas abstração face à história. Para aprenderes física não precisas
de aprender a vida de Einstein ou as condicionantes da vida dele
para perceber a teoria da relatividade. É giro se aprenderes e é
uma boa maneira de entrar e qualquer documentário de divulgação científica vai
muito por aí. Mas para tu perceberes físico não precisares saber isso,
precisas ver os cálculos e entender o modelo. Na economia não é
bem assim, porque todos os modelos económicos são contingenciais face à altura
em que surgiram. Face a tudo, face aos valores das pessoas que
o criou, faça até à própria estrutura da economia que existia naquela
altura e tudo isso muda. E um grande problema, acho eu, de
nos abstrairmos face a isso e só darmos uma coisa estilizada é
que estamos até a retirar informação que quem... Não estamos a dar
ouvinto a informação que quem criou aquele modelo tinha. Sim, absolutamente, mas
Ricardo Paes Mamede
é verdade que o que tu estás a referir diz respeito a
um aspecto histórico que é relevante, não sendo o único. Tu estás
a referir-te essencialmente à questão da história do pensamento económico. Sim. Isto
é, e eu considero que isso é absolutamente fundamental, acho que, por
exemplo, uma alternativa para os currículos da economia seria ensinar-se tudo o
que se ensina a partir de uma perspectiva de história de pensamento
económico. Exato, sim, sim, sim. Eu acho que isso é extremamente útil.
Eu, das experiências que tive de ensino em que procurei, por exemplo,
eu dou aqui uma cadeira de mestrado de economia e políticas públicas,
em que apresenta as várias visões dos autores economistas sobre o papel
do Estado, em que o faço a partir de uma perspectiva da
história de pensamento económico. E eu acho que é extremamente poderoso, acho
que é extremamente útil, é muitíssimo mais útil do que estar a
partir daquela forma muito abstrata, formalizada, que os economistas têm de tratar
estes problemas a partir de conceitos como falhas de mercado ou falhas
de governo. Acho que as pessoas percebem muito melhor aquilo que são
os dilemas associados ao papel relativo do Estado e do mercado, quando
olham para a forma como o pensamento económico foi evoluindo ao longo
do tempo, com base em experiências específicas que os seus autores estavam
a viver, do que estar simplesmente a compreender estes argumentos a partir
de uma lógica abstrata. Mas há uma outra dimensão que eu valorizo
muito, mesmo talvez até mais do que esta, que é o seguinte,
os processos económicos têm uma marca histórica indelébil, isto é, é impossível,
do meu ponto de vista, compreender os processos económicos concretos sem perceber
o contexto histórico em que eles aconteceram, sem perceber aquilo que foi
o conjunto de sequências causais que num momento específico, em locais específicos,
levaram a que as coisas acontecessem como aconteceram. E os economistas são
pouco treinados para fazer este tipo de análise histórica. Nós deveríamos sempre
fazer uma análise que é baseada na teoria, mas que, portanto, olha
para a história e procura perceber como é que um conjunto de
expectativas que nós temos sobre os processos que decorrem das teorias, perceber
se elas estão a acontecer ou se não estão a acontecer, mas
deveríamos sempre olhar nos contextos históricos, porque as sociedades são complexas, a
quantidade de fatores que afetam o modo como as economias evoluem é
muito diverso, e não há nenhum modelo económico abstrato que nos consiga
contar a história da humanidade. E, portanto, sendo que eu reconheço, obviamente,
o valor, vou dizer um palavrão, heurístico, ou seja, o contributo que
os modelos abstratos nos dão para ajudar a construir conhecimento, ajudar-nos a
construir compreensão, eu reconheço esse valor heurístico dos modelos abstratos, mas considero
que se a análise económica se limitar a esses modelos abstratos e
não procurar sempre confrontar a nossa modelização abstrata, mais ou menos formal,
com aquilo que são os processos históricos concretos, nós vamos sempre ter
uma compreensão que é, na melhor das hipóteses, superficial e na pior
das hipóteses, fantasiosa, daquilo que são os processos económicos. A história, a
meu ver, é muitíssimo importante quando estudamos economia, nestes dois sentidos, naquilo
que tu referias, que é a história do pensamento económico, perceber porquê
as ideias surgiram como surgiram em determinados momentos, mas também porque nós
não conseguimos verdadeiramente compreender o funcionamento das economias se não tivermos em
consideração os contextos históricos em que os processos acontecem.
Ricardo Paes Mamede
Não, mas na verdade o modelo que nós aprendemos na faculdade, o
modelo ISLM que nos dizem que é o modelo Keynesiano básico, não
é o modelo de Keynes. Keynes nunca apresentou isso em nenhum lugar.
Isso foi a simplificação que Ickes fez posteriormente do pensamento de Keynes
e que, na verdade, elimina um aspecto que, a meu ver, é
absolutamente fundamental ter em contra no pensamento de Keynes, que é a
questão da incerteza irredutível dos processos económicos num contexto de capitalismo avançado.
Que é um aspecto que Keynes desenvolve no capítulo 12 da sua
teoria geral e que é um elemento que nos chama a atenção
para o facto de as economias capitalistas contemporâneas serem intrinsecamente economias instáveis,
economias incertas, com um conjunto de comportamentos que são, em larga medida,
irracionais do ponto de vista coletivo e que a menos que se
tomem um conjunto de medidas institucionais para controlar os ímpetos de investidores
num contexto de mercado, as economias vão estar sistematicamente a viver crises
que são altamente perturbadoras da vida em sociedade. E basicamente o modelo
que nós chamamos Keynesiano, que se aprende na faculdade, ignora completamente isto.
Este Keynes não existe nas faculdades. Mesmo há, eu tenho visto muitas
vezes, economistas que acham que são keynesianos e que sabem que os
modelos que apresentam aos seus alunos como keynesianos não têm este elemento
fundamental da análise de Keynes, que é a crítica devastadora que Keynes
faz a uma sociedade financiarizada onde o grosso do investimento passa pelos
mercados de capitais que são inelevelmente instáveis. Mas há duas coisas... Posso
dizer duas coisas em relação a isso de sentido contrário. Eu percebo
o que
José Maria Pimentel
dizes, embora também seja verdade que nós não sabemos o que é
que é alguém, como Keynes, por exemplo, ou a visão que ele
teria e o modelo que ele teria desenvolvido se vivesse nos dias
de hoje, porque a economia que ele conhecia é muito diferente da
economia atual. Podia ser melhor ou pior, depende do nosso ponto de
vista, mas era claramente diferente. Esse juízo que ele estava a fazer,
essas conclusões que ele estava a tirar, eram para uma economia que
não tinha uma série de coisas que existem hoje em dia. Por
um lado era menos capitalista, num certo sentido, mas por outro lado
era mais, no sentido em que há muitas funções do Estado que
não existiam.
Ricardo Paes Mamede
desenvolve o seu pensamento num contexto em que as sociedades eram caracterizadas
pela livre circulação de capitais, num contexto em que se estava a
desenvolver... Não estava a desenvolver, estava a explodir o modelo que é
hoje dominante de economias que são dominadas por empresas cotadas em bolsa
e em que o valor das empresas depende muito de fatores que
têm uma natureza fortemente especulativa, os investidores já não investem com a
perspetiva dos lucros que as empresas vão poder distribuir no futuro, mas
sim com a perspectiva da valorização imediata do preço das ações que
compram. E este tipo de lógica que Keynes descreve e que onde
ele identifica o fundamental da instabilidade das economias contemporâneas, é muito, muito
semelhante àquilo que nós temos hoje. Keynes, desse ponto de vista, é
profundamente atual e profundamente moderno. Quer dizer, quem hoje releia a teoria
geral de Keynes, não sente essa discrepância dos tempos. Quer dizer, sente
que a crise que nós vivemos em 2008 e 2009 segue a
diversíssimos níveis, os mesmos padrões que
José Maria Pimentel
Keynes identifica para descrever a crise de 1929. Há um aspecto do
teu texto aí que eu acho muito engraçado e é uma coisa
que sempre me fez alguma confusão, sobretudo até no debate económico, porque
me parece que Há duas coisas que são diferentes, estando relacionadas, mas
são fundamentalmente diferentes. E acho que isto está um bocadinho relacionado com
aquilo que tu dizes há pouco das pessoas que se afirmam keynesianas
e depois acabam por passar modelos que não seriam perfilhados por eles.
Uma coisa é a estrutura da economia, outra coisa é o estímulo
que tu das à economia no consorte do ciclo económico, ou seja,
uma coisa é a estrutura de uma economia de um determinado país,
qual é o peso do Estado, qual é o volume de gastos
do Estado, qual é o peso da regulação do Estado, qual é
o grau de liberdade económica que existe, quer dizer, uma série de
coisas. Isso é a estrutura da economia, a maneira como a economia
funciona. Outra coisa é tu dizeres. Outra coisa é a evolução do
ciclo económico, que tem altos e baixos, e tu decidires ou não
se deves estimular a economia, por exemplo, quando ela está num período
de abaixamento, e se deves fazê-lo, como deves fazê-lo. Claro que ideologicamente
nós sabemos que as duas coisas estão relacionadas, ou seja, alguém que
seja mais liberal tenderá a torcer mais o nariz, e aliás isto
mostra quão ideológica é a economia, ideológica no sentido de que é
dependente dos valores de quem pensa sobre ela. Um liberal economicamente tenderá
a torcer um pouco o nariz à intervenção do Estado na economia
para estimular a economia e, sobretudo, terá a ter uma visão diferente
desse tipo de estímulo. Mas, apesar de tudo, são conversas diferentes. Tu
podes ser liberal economicamente e ser a favor de medidas keynesianas no
sentido do estímulo da procura
Ricardo Paes Mamede
e não deixar, no entanto, de defender uma economia mais capitalista e
o contrário também teoricamente será possível. Bom, mas Keynes era um liberal
e era defensor de capitalismo. Keynes não era um socialista. Exatamente, mas
eu acho que isso muitas vezes é confundido no debate público. Sim,
mas isso é habitual de confundirem-se muitos termos no debate público. Keynes
não era um socialista. Keynes, na melhor das hipóteses, seria o que
hoje chamamos um social-democrata. Era essencialmente alguém que tinha uma perspectiva muito
crítica em relação à teoria clássica da economia no que respeita ao
funcionamento dos mecanismos de mercado. Um dos grandes contributos do Keynes é
algo que eu considero ser a aprendizagem número um, aquilo que diferencia
um economista de um não economista, que é basicamente a ideia de
que a soma de comportamentos racionais individuais não resulta numa racionalidade global.
Isto é um contributo absolutamente crucial da análise macroeconómica do Keynes. É
o momento em que ele descreve que aquilo que podem ser comportamentos
extremamente racionais ao nível das famílias e das empresas, como por exemplo
o comportamento de poupança no momento de uma crise, é algo que
faz sentido à escala individual, mas é algo que é absolutamente desastroso
num contexto de crise à escala de uma economia. E esta intuição
de Keynes não é nem de esquerda nem de direita, neste momento
é uma lição que é básica. Qualquer pessoa que se diga economista,
alguém que se diga economista e que não perceba… É objetivo, não
é? Bom, não sei se é objetivo, mas alguém que não perceba
esta intuição é alguém que não percebe efetivamente o que é que
é um sistema económico e porquê compreender um sistema económico não é
a mesma coisa que compreender as finanças de uma família. Portanto, isto
é um contributo Keynesiano fundamental e é a crítica que Keynes faz
à teoria económica clássica. E depois há um elemento de Keynes que
é a compreensão da transformação enorme que existe no sistema capitalista a
partir do momento em que o sistema financeiro se torna a chave
fundamental desse sistema e o poder de instabilidade que o sistema financeiro
tem sobre as economias. E mais uma vez, a meu ver, nós
podemos ser de esquerda ou de direita, que isso não tem de
pôr em causa a nossa perspectiva sobre isto. Quero dizer, eu consigo
conceber que haja pessoas, muito de direita até, de uma direita quase
libertária, que olham para aquilo que é o poder do sistema financeiro
hoje como algo extremamente prejudicial para o funcionamento do capitalismo. E portanto,
efetivamente, eu tenho dificuldade. É óbvio que as ideias keynesianas foram no
momento em que apareceram nos anos 30 elas foram muito apropriadas pela
esquerda social democrata e há bons motivos para isso podemos ir lá
porque é uma história um bocadinho mais desenvolvida.
Ricardo Paes Mamede
temos tempo para isso. Mas, para não perder o raciocínio, historicamente foram
apropriadas por uma esquerda social democrata, foram apropriadas em particular por Roosevelt,
num contexto histórico muito particular, em que há uma transformação institucional profunda
dos Estados Unidos, em que a economia e a sociedade americana são
transformadas num sentido que é claramente progressista, claramente, se quisermos simplificar, de
esquerda, em que se põe o Estado a controlar o papel do
sistema financeiro, em que se põe o Estado a assegurar um conjunto
de serviços básicos à população. Ou seja, o Estado a ter um
papel central no modelo de desenvolvimento e nesse contexto as ideias keynesianas
assentavam que nem uma luva à justificação, à legitimação daquilo que era
a agenda rooseveltiana e que veio a ser a agenda dos partidos
trabalhistas sociais-democratas europeus. Agora, isso não significa que Keynes fosse ele próprio
um ideólogo da esquerda ou da socialdemocracia, era um homem com um
conjunto de valores peculiares e que se afirmava fundamentalmente como um liberal.
Agora, o contexto em que a socialdemocracia surge ou se expande ou
se afirma no pós-grande depressão de 1929, nós... Mais uma vez a
história, a importância
Ricardo Paes Mamede
Que acaba com a guerra, acaba com lutas imperiais entre grandes potências
e que dá origem, já antes disso tinha havido um enorme período
de uma longa depressão em vários países, em várias partes do mundo
e, portanto, começa a haver uma reação das sociedades a esta vaga
de liberalismo, àquilo que ela representa do ponto de vista de perda
de controle sobre a nossa vida coletiva. As pessoas viviam as coisas
nestes termos. Os capitais movem-se, as grandes empresas movem-se, os grandes bancos
movem-se de um lado para o outro, as pessoas andam de um
lado para o outro, os bens andam de um lado para o
outro e nós sentimos o controle da nossa vida a escapar-nos entre
os dedos. Portanto, foi um período marcado por abundância, mas também por
grande instabilidade e por períodos de enorme recessão, depressão e crise social.
E houve uma reação política a isto, e a reação política a
isto não houve uma, houve várias reações políticas a isto. Houve reações
políticas que foram, que passaram pela revolução, foi o que aconteceu na
Rússia e noutros países. Houve outra reação política que foi o fascismo
e foi a ideia de ordem, ordem autoritária de pôr um Estado
poderoso a controlar a economia, a domar o liberalismo, não para destruir
o capitalismo, mas para o domar através do controlo, do contrariar a
ordem liberal e pôr o Estado à frente dos destinos do funcionamento
do capitalismo através da imposição de uma suposta harmonia entre capital e
trabalho. Houve outra reação, essencialmente nos países em desenvolvimento, que foi o
nacionalismo, aquilo que se passa muito na América Latina e mais tarde,
pós-segunda guerra em África, que é a dizer que este liberalismo implica
que nós temos países estrangeiros a quererem decidir como é que a
nossa economia se desenvolve, como é que o nosso país se desenvolve.
Nós não queremos isso e, portanto, há uma reação nacionalista, não necessariamente
fascisante, ao estado anterior do liberalismo absoluto. E depois há a socialdemocracia
e a socialdemocracia o que vem dizer é, nós temos de preservar
os elementos positivos de uma economia que tem elementos de mercado, temos
de preservar a democracia liberal, mas temos de assegurar que o capitalismo
não se torna autodestrutivo. E isto é o discurso de Keynes.
O discurso
de Keynes é isto. O Keynes não se afirmava social-democrata, nem era
líder de nenhum partido social-democrata, mas o que fazia era, no fundo,
chamar a atenção para o facto do capitalismo ter forças autodestrutivas e
que era necessário, não é apenas a questão de combater crise através
de políticas expansionistas em momentos de recessão, expansionistas em momentos de recessão,
é também controlar um conjunto de elementos institucionais, e aqui a finan�a
é questão central, para garantir que o capitalismo não se autodestruía, daí
que vindo a ser apropriado pela esquerda social-democrata. Mas a partir de
certa altura, como alguém dizia, acho que era o Samuelson, a partir
de certa altura todos éramos Keynesianos e portanto mesmo a direita dominante,
que era a direita democrata cristã, foi buscar essas ideias de Keynes
e portanto esse elemento do Keynes de combater os ciclos económicos é
algo que acabou por se generalizar e não é uma coisa historicamente,
especificamente da esquerda. Mas
Ricardo Paes Mamede
Seria algo semelhante a... Hoje seria considerado uma revolução. E na altura
Roosevelt foi atacado como sendo um comunista disfarçado. Mas, quer dizer, nós
quando vemos aquilo que é a intervenção de Roosevelt no sistema fiscal,
por exemplo, chegarmos a ter taxas marginais de imposto
de
91%, alterou o tecido social americano de forma radical. Quando temos a
criação do sistema de segurança social público, quando temos a criação e
a expansão, a generalização do subsídio de desemprego, o investimento público, as
intervenção profunda no sistema financeiro, a obrigação da separação entre a banca
comercial e a banca de investimento. Isto foi uma coisa que durou
durante décadas, sobreviveu décadas. Aliás, foi preciso vir um presidente democrata, Clinton,
para destruir algumas das reformas institucionais que tinham sido feitas 60 anos
antes por Roosevelt.
José Maria Pimentel
E que não surgiu por acaso uma das teorias históricas que eu
tenho e que aplica a outras coisas é que quando tu deixas
de ter, e isso acontece, na vida acontece em tudo, quando tu
deixas de ter uma espécie de concorrência ou modelo concorrente neste caso.
Tu durante, no pós-segundo da guerra mundial até ao final da Guerra
Fria, o capitalismo tinha um modelo concorrente. Na verdade desde 1917. Claro,
mas tornou-se evidente a partir do momento em que passaste até 2,
porque desde 1917 existia o modelo comunista, mas o modelo capitalista não
tinha saído vitorioso, como tinha saído a 2 Guerra Mundial. A partir
daquele momento, tu tinhas todos os olhos, a todos os países, a
ver qual era o modelo que resultava melhor. E, portanto, havia uma
pressão brutal sobre isto. É uma teoria um bocadinho macro-histórica e portanto
obviamente um bocadinho grosseira, mas para mim não é coincidência que esta
letargia, esta complacência em que se entrou tenha sido depois da queda
do muro de Berlim, porque
De repente
estás à vontade, de repente já não tens que prestar provas a
ninguém.
Ricardo Paes Mamede
O fim, o colapso de um modelo alternativo, de um sistema que
concorria com o sistema capitalista dominante, obviamente libertou forças, a meu ver,
extremamente negativas para o funcionamento das nossas sociedades. Quer dizer, eu não
sou um defensor do modelo soviético de todo e considerando-me social-democrata, a
social-democracia também se desenvolve em contraponto com vários aspectos daquilo que era
o modelo soviético, seja ao nível da democracia liberal, da democracia representativa,
do Estado de Direito, da valorização ou do reconhecimento de dimensões importantes
dos mecanismos de mercado enquanto mecanismos de afetação de recursos, naturalmente das
questões das liberdades políticas. Tudo isto são coisas que me afastam de
forma incontornável do modelo soviético, isso não significa que não consiga perceber
que o colapso da União Soviética, o colapso do socialismo real, tornou
muitíssimo mais difícil a vida aos sociais democratas. E, portanto, é muito
difícil querer, é muito diferente querer, tentar procurar dominar a propensão autodestruidora
do capitalismo quando há uma ideia clara de que pode ser um
modelo alternativo, do que quando não existe essa alternativa sistémica e, na
verdade, nós não sabemos qual é o modelo, o que é que
pode vir depois do capitalismo ou em alternativa ao
José Maria Pimentel
capitalismo. Eu acho engraçado que tu disseste que tornou a vida difícil
aos cheres democráticos, eu acho que tornou a vida difícil aos capitalistas,
quiseres, ou aos defensores da economia do mercado. Isso é um paradoxo,
mas o que acontece é se tu, quando o teu adversário se
torna fraco, tu tornas-te complacente. Há bocadinho estávamos a falar da Luísa
Lima, por exemplo, eu falei muito com ela sobre isso, a questão
do conformismo. E isto, lá está, de novo É um bocadinho grosseiro
isto, mas claramente aconteceu um fenómeno desse género, que é de repente
tu deixas de ter concorrência e deixas de ter inteligência coletiva, quer
dizer, deixas
Ricardo Paes Mamede
Sim, se calhar é essa a questão mesmo. Nós começámos a conversa
com os leadores de bicicletas,
com o
blog. Um dos motivos fundamentais que leva à criação do blog Ladrões
de Bicicletas é precisamente a percepção que aquele conjunto de pessoas teve
na altura de que as ideias neoliberais, que as doutrinas que já
sabemos que é sempre um papão e é uma pena que seja,
porque isto tem um conteúdo doutrinário bastante específico, mas que estas ideias
que, para não haver confusão, podemos chamar de fundamentalismo de mercado, estavam
a ter o peso que elas estavam a ter, o espaço que
elas estavam a ganhar na sociedade e a falta de confronto ideológico
que estava a existir na sociedade portuguesa em relação à expansão dessas
ideias. E a verdade, como eu estava a dizer há pouco, é
que não foi pelo facto de cair o muro de Berlim que
o anarcocapitalismo, que as ideias extremas sobre o que deve ser a
liberalização completa das nossas sociedades e a expansão da lógica de mercado
a todas as dimensões da vida em sociedade, perdeu pujança, pelo contrário.
Portanto, acho que a existência de uma sociedade alternativa tinha um papel.
Eu percebo A ideia que tu tentas transmitir e dizer que quando
há ali um sistema e alguém que o defende, há sempre mais
necessidade de ter ideias bem claras sobre porque é que não queremos
um sistema alternativo.
José Maria Pimentel
Já agora só para concretizar o meu ponto ou para dar outro
exemplo que não tem nada a ver com a economia. O exemplo
da lei sobre o aborto ou interrupção voluntária da gravidez, como que
queremos chamar. Para mim é um exemplo desse paradoxo muito interessante, porque
o que tu tinhas na altura, e nós lembramos os dois do
debate que existia na altura, e se suponho aliás que estivéssemos ambos
do lado da defesa da lei, quer dizer, eu estava e estou
a assumir que tu também estarias, aconteceu um paradoxo semelhante a este,
que é, tu tinhas as pessoas que se defendiam à lei, por
motivos com os quais concordavam em grande maioria, e depois tinhas do
outro lado uma força, pelo menos vocal, que aparentemente não tinha maioria
social, mas era vocal, e que alertava para os perigos imensos daquilo
que iria acontecer, para basicamente passar a ser uma rebaldaria, ter o
número de abortos a aumentar exponencialmente e ter um monte de consequências
negativas. Essa voz do contra levou a que Quem tenha estado por
trás da implementação da lei que foi aprovada, tenha tido imenso cuidado.
E o que nós tivemos foi uma lei que foi altamente bem
sucedida. É uma coisa... É quase incriticável. O número de abortos aumentou,
salvo erro muito pouco, e sobretudo muito menos do que se previa.
E portanto, paradoxalmente, tu tens um inimigo forte ou tens um adversário
forte, acabou por frutar. Imagina que não existia aquele adversário. Eu tenho
quase certeza que tinha havido muito mais complacência, que a coisa tinha
sido muito mais... Sim,
Ricardo Paes Mamede
Não diria isso. Há vários instrumentos de difusão das ideias neoliberais em
Portugal, a nível mundial, quero dizer, e em Portugal nós não deixamos
de ver isso, basta qualquer pessoa pode ir ler o site do
Instituto Von Mises em Portugal ou em qualquer outro. Ah, mas é
residual, não é? Não é residual, é em parte residual, mas aquilo
foi a transformação do PSD na última década. O peso que as
visões mais liberais dentro do PSD, o peso que vieram a assumir
no mandato do Passo Escolha enquanto Presidente do PSD, são muito reflexo
da influência destas ideias mais extremistas sobre o papel dos mecanismos de
mercado enquanto solução institucional.
Ricardo Paes Mamede
influência é fortíssima, a influência é fortíssima e eu acho que é
sintomática, apesar de eu estar de acordo que os ideólogos neoliberais em
Portugal são, representam uma parcela pequeníssima da sociedade portuguesa, isso não significa
que eles não tenham uma influência muito grande no espaço público e
acho que a iniciativa liberal ou observador são muito sintomas disso e
portanto são ideias que acabam por ser suficientemente fortes para encontrarem os
recursos financeiros para expandirem na nossa sociedade. Portanto, a economia austríaca, para
simplificar, digamos que é a doutrina económica que olha para a concorrência
de mercado como um mecanismo fundamental para o bom desenvolvimento das sociedades
e que aspira a trazer esta ideia da concorrência e da competição
para todas as esferas da vida em sociedade. E é na verdade,
eu agora não quero entrar neste aspecto para os economistas, é um
aspecto muito interessante, é que a teoria austríaca é uma teoria herética
do ponto de vista da teoria económica convencional, porque recusa as noções
de equilíbrio, recusa em larga medida o formalismo que a economia convencional
tem. É uma economia que em larga medida tem uma natureza histórica
e institucional. Acaba por se aproximar, eu ia dizer isso há um
bocadinho. Em vários aspectos aproxima-se da minha visão, daquilo que eu me
revejo enquanto economista institucionalista, economista político institucionalista, tem vários aspectos que me
aproximam da economia austríaca do ponto de vista do método, do ponto
de vista epistemológico, não do ponto de vista seguramente normativo e das
suas conclusões. Mas ao mesmo tempo que tivemos estes ideólogos alguéreticos que
foram assumindo uma importância crescente no debate público, depois temos um conjunto
de autores que não tiveram muita influência no debate público, mas tiveram
muita influência dentro da ciência económica. E a teoria da escolha pública
é este nível muito importante. É um conjunto de autores que estabeleceram
como a sua agenda de investigação académica procurar compreender aquilo que chamaram
as falhas do Estado, isto é, tentar compreender como é que os
mecanismos de incentivo internos ao funcionamento dos Estados fazem com que os
Estados não contribam para o bem-estar da sociedade, mas sejam essencialmente mecanismos
de apropriação de recursos por grupos de interesses específicos. Sejam eles os
grupos que fazem lobby, os grandes interesses económicos, ou até os próprios
funcionários públicos ou os políticos, e portanto é uma visão que é
conservadora, no sentido em que põe em causa a bondade da intervenção
do Estado para transformar as economias e as sociedades, porque acha que
o Estado não está, nunca será, um instrumento ao serviço do conjunto
da economia das sociedades, será sempre um objeto à espera de ser
capturado por interesses específicos. E esta conversa toda veio por eu dizer
que eu leio com interesse os autores neoliberais, sejam eles da vertente
austríaca ou da vertente da teoria da escolha pública, porque eu acho
que eles efetivamente nos ajudam a perceber os riscos das ideias que
pessoas como eu defendemos, isto é, eu defendo que o Estado é
um ator fundamental para combater a poluição autodestrutiva do capitalismo, para limitar
as desigualdades, para construir uma sociedade que seja mais sustentável em termos
não apenas económicos e sociais, mas também em termos ambientais. Vejo o
Estado como um elemento fundamental do projeto de sociedade que eu defendo.
Agora, para que eu consiga defender de forma robusta estas minhas ideias,
é muito importante, como tu estavas a sugerir, olharmos com atenção para
os críticos destas visões. E os autores neoliberais são, desse ponto de
vista, a meu ver, uma fonte indispensável para qualquer pensador, para qualquer
economista, para qualquer político de esquerda. Porque há muitas das críticas que
são feitas por estes autores e muitos dos elogios que são feitos
destes autores aos mecanismos de mercado, que têm boas razões de ser,
que são argumentos bastante convincentes e, portanto, não podem ser ignorados, sob
pena de nós termos, inclusive, uma enorme fragilidade em defender as nossas
idades.
Sim, exatamente.
Em qualquer caso, nós podemos ter horas de debates sobre o que
é ou deixa de ser o neoliberalismo, eu defino o neoliberalismo como
uma doutrina que promove a expansão da lógica de mercado a todas
as esferas da vida e sociedade. Eu acho que este é o
elemento fundamental do neoliberalismo e acho que, deste ponto de vista, o
neoliberalismo é e deve ser o inimigo número um de qualquer pessoa
que se diga de esquerda e qualquer pessoa que considere que é
fundamental procurarmos desenvolver uma sociedade que seja menos sujeita a instabilidade, que
seja menos sujeita a desigualdades, que não tenha a propensão para tratar
o ser humano como alguém cujo o objetivo é disputar o seu
espaço de liberdade com todos os outros. Deixa-me trazer-te para outro caminho,
que eu acho
José Maria Pimentel
interessante, mais relacionado com a ciência económica, se quiseres. Porque eu acho
que nós, quer dizer, a pessoa, e vê-se muito de economistas entrarem
no debate político, por exemplo, e acho que muitas vezes estão a
fazer um mau serviço ao seu próprio trabalho, no sentido em que
a pessoa entra numa lógica, se quiser de esquerda ou direita, numa
lógica de valores que muitas vezes está a substituir a uma lógica
mais positivista que tem conclusões que são ultra interessantes. Por exemplo, se
nós pensarmos, discutir valores na relação ao tipo de sociedade em que
se quer viver é muitíssimo interessante, é ultra relevante, não é de
todo destrinçável de uma análise mais objetiva, porque as duas coisas estão
ligadas, mas há uma série de coisas objetivas que a pessoa pode
concluir independentemente disso. Por exemplo, o que é que tem mais poder
explicativo? É se uma sociedade tem um maior peso do Estado ou
um peso menor ou a qualidade das instituições? Claramente é a segunda.
Eu sou muito, partilho muito da visão do ACMob e outros economistas
institucionalistas porque claramente é isso que tu encostas. Se tu olhares para
o... E esse aliás é outro dos grandes problemas daqueles modelos estilizados.
A certa altura eu ouvi um debate com um economista que eu
sei que tu gostas muito, nunca sei pronunciar o nome dele, o
Raju Shankar. Raju Shankar. O exemplo típico é o exemplo de Singapura.
É Singapura, uma economia de mercado. A economia de mercado tem um
peso de estado gigante, gigante sobretudo para uma economia de mercado. E
se tu olhares para as economias desenvolvidas, para as economias que tu
estabeleces como modelo, mesmo que não seja um modelo total, mesmo que
seja um modelo parcial, o que elas têm sobretudo é instituições de
grande qualidade. Depois o problema é descobrir como é que se chegou
lá. E normalmente acabas por chegar a explicações contingentes porque não consegues
ter algo que esteja na origem disso e quando tentas fazer normalmente
não dá o maior resultado. Mas quer dizer, tu tens uma série
de economias desenvolvidas que seguem modelos diferentes. A Ingapura segue um modelo
muito diferente do modelo nórdico, por exemplo. O Japão, por exemplo, tem
um modelo muito diferente do modelo nórdico. Por exemplo, enquanto o modelo
nórdico vive muito dos impostos que são cobrados por rendimentos diferentes, o
Japão tem muito mais rendimentos que são os próprios relativamente semelhantes à
partida. São dois modelos muito diferentes. E às vezes faz-me um bocadinho
de impressão, e este podcast também segue muito esse espírito de... Eu
acho muito interessante discussões normativas, mas acho que a pessoa tem a
obrigação de tentar, sobretudo, ser fiel aos dados, ser fiel à evidência
que tem do... Sim,
Ricardo Paes Mamede
Mas basicamente, no fundo, o que o Acemoglu está a sugerir é
a ideia de que a democracia liberal está tipicamente associada ao bom
desempenho económico e, portanto, o ter mecanismos de disputa partidária, de disputa
política numa sociedade e garantir que a sociedade não é dominada por
grupos que, no fundo, exercem coerção sobre outros grupos que existem. Existe
oportunidade para as ideias serem confrontadas e para o poder ser disputado,
que isto cria boas condições para que as economias se desenvolvam, independentemente
do modelo económico específico que está em causa. Depois o Acemoglu, coitado,
defronta-se com um problema fundamental que é a China.
Ricardo Paes Mamede
indicador que escolhes, é as realidades que procuras estudar a fundo, são
imediatamente determinadas, são indelevelmente determinadas por aquilo que são os teus valores
de partida, quer dizer, eu quando escolho as minhas áreas de investigação,
escolho-as de acordo com aquilo que são as minhas preocupações e as
minhas preocupações são muito ditadas pelos meus valores de base. Portanto, não
existem dados sem valores. Isto não significa que eu não reconheça não
só a possibilidade, mas até a absoluta necessidade do debate sobre as
políticas públicas e sobre as opções societais, deverem ser baseadas em dados,
em evidência, como se diz no mundo anglo-saxónico. Sou absolutamente defensor da
ideia da evidence-based policy, isto é, as decisões sobre políticas públicas têm
de ser baseadas no máximo de informação e análise robusta que temos
à nossa disposição E não se devem tomar decisões que não saibamos
minimamente que consequências é que possam vir a ter. Agora, isso não
é o mesmo que dizer que os valores devem ser subvalorizados. Os
valores têm sempre um papel crucial e as nossas... Nós não tomamos
nenhuma decisão sobre a nossa vida que não tenha por base uma
determinada visão sobre como é que as sociedades devem ser organizadas. Podemos
ter mais consciência disso ou menos consciência disso, mas ela está lá
sempre.
José Maria Pimentel
Sim, Para decidir tens que ter valores, isso é evidente. Agora, para
pegar num exemplo concreto, eu já te ouvi dizer, e para ti
não é nada propriamente muito original, dizer que defendes o modelo, chamar
de modelo nórdico, ou seja, que defendes isto, é uma boa referência
para o que faz sentido sobretudo uma economia de um país europeu,
almejar, e o modelo nórdico pode ser olhado de dois pontos de
vista porque, Por um lado, é um modelo que tem um peso
do Estado, enquanto agente redistributivo, muito grande, até como prestador de serviços.
Mas também são economias com um grau de desregulação em alguns setores
e com um grau de competitividade, lá está, quando digo competitividade, isto
é implícito, os valores de quem avalia essa competitividade, que não são
necessariamente partilhados por todos, muito elevados. Um ranking que é absolutamente insuspeito
de ser de esquerda do World Economic Forum, por exemplo, tens permanentemente
os países nórdicos, não estão nos lugares chimaeiros, mas estão no top
10, tens para ir dois ou três países e depois salvo eu,
é a Finlândia que está lá um bocadinho, que está para ir
em 12º ou 13º. Ou seja, são países que no fundo quase
fazem a quadratura do círculo em dois sentidos e que até podem,
nesse sentido, ser vistos desses dois pontos de vista a agradar um
lado ou outro do espectro porque são países que têm inegavelmente um
peso do Estado grande ou seja, têm um Estado que funciona bem,
entre outras coisas, e que é eficiente não é só ter um
peso grande, é um estado que é eficiente, mas também são economias
com muita inovação, por exemplo, muitas empresas de referência surgiram lá, que
têm, por exemplo, um mercado laboral mais liberalizado do que existe em
países do sul como Portugal. Como é que tu olhas para essas
economias, sobretudo partindo do nosso modelo e pensando numa espécie de convergência,
sendo verdade ainda assim, como nós falámos no início, que as verdades,
a economia às verdades, mesmo que seja possível encontrá-las, são sempre parciais,
tanto no tempo como no espaço. E portanto, neste ponto serão sempre
parciais no espaço e portanto o modelo não funciona. Eu
Ricardo Paes Mamede
não faço questão nenhuma de mitificar o modelo da socialdemocracia nórdica. Eu
acho que enquanto projeto de longo prazo é o tipo de projeto
em que eu me identifico. Isto é, a socialdemocracia nórdica, apesar de
todas as transformações e foram muito profundas as que tiveram nos últimos
anos, eu seguramente me identifico muito mais com a socialdemocracia nórdica de
há 30 anos do
que com
aquela que existe atualmente, mas dito isto, há por detrás da ideia
da socialdemocracia nórdica a ideia de, em primeiro lugar, um projeto coletivo,
isto é, a ideia de que o Estado existe para representar o
conjunto de uma sociedade, representar em particular os trabalhadores, aqueles que vivem
do seu salário e o Estado deve ser um instrumento ao serviço
da promoção da igualdade de oportunidades, um instrumento ao serviço de um
projeto de desenvolvimento coletivo, sustentável, dos vários pontos de vista, e que
equilibra as tendências autodestrutivas do capitalismo, inclusive as que têm a ver
com concentração de poder e com o abuso do poder por parte
daqueles que têm acesso aos recursos financeiros. E esse projeto é, para
mim, em larga medida a essência do que eu imagino ser a
socialdemocracia. Isto é, viver numa sociedade em que domina o liberalismo político,
no fundo uma democracia, como eu já disse, uma democracia participativa, em
que temos um Estado de direito, em que temos elementos de mercado
a funcionar, mas em que se procura assegurar que os elementos perturbadores
ao bom funcionamento da sociedade que decorrem do funcionamento do capitalismo são
domados a vários níveis. Isto é muito genérico e, portanto, é tão
genérico quanto a ideia da social democracia, e portanto eu não, quando
eu refiro os países nórdicos, eu não quero dizer que quero importar
aquilo que hoje existe na Suécia, na Noruega ou na Dinamarca ou
na Finlândia para Portugal tal como existe. Eu não concordo contigo quando
dizes, ou não concordo inteiramente contigo, quando tu dizes que esses países
têm hoje modelos de mercado de trabalho que são mais liberais do
que os portugueses. Quando dizes isso, provavelmente estás a pensar na ideia
do despedimento, que há uma facilidade de despedimento que existe de acordo
com a ideia de flexigurança, que não tem a ver com aquilo
que existe atualmente. Agora, nós não podemos esquecer que essa facilidade do
despedimento que existe nos países nórdicos existe num contexto marcado em primeiro
lugar por uma cultura e uma prática institucionalizada de diálogo social e
de concertação social, onde os sindicatos continuam a ter um poder absolutamente
fundamental e, portanto, a arbitrariedade por parte dos empregadores está fortemente limitada
pelo peso dos sindicatos, pela importância reconhecida e valorizada dos sindicatos.
Ricardo Paes Mamede
a dizer, mas para chamar a atenção que aquilo que tu chamas
de liberalismo não é liberalismo, não é o mesmo tipo de liberalismo
que nós pensamos quando temos em Portugal. E além da questão do
papel dos sindicatos, há a questão da proteção social fundamental, isto é,
num país como a Suécia ou na Dinamarca, uma pessoa que vai
para o desemprego tem a sua vida muitíssimo mais protegida do que
uma pessoa que vá para o desemprego em Portugal. E estes dois
elementos, sindicatos mais proteção no desemprego, alteram radicalmente aquilo que é a
relação de forças no mercado laboral. E é essa a questão que
deve preocupar um social-democrata mais do que saber se há facilidade ou
dificuldade de despedimento. Aquilo que deve
preocupar
um social-democrata é se a tendência para num mercado não regulado existe
para haver uma enorme simmetria de poder entre empregadores e empregados está
de alguma forma a ser resolvida. E acho que aquilo que é
a solução que foi encontrada nos países nórdicos, independentemente de eu achar
que ela pode ou não pode ser importada, transposta para o caso
português, continua a ser coerente nesta ideia de procurar manter algum equilíbrio
ou promover algum equilíbrio entre empregadores e empregados. Portanto, desse ponto de
vista, acho que a socialdemocracia nórdica continua a ser uma referência para
a qual vale a pena olhar com cuidado, independentemente de concordarmos ou
não com os pormenores. E nós devemos ter mais uma… também, muitas
vezes quando nós temos a discussão em Portugal sobre esquerda e direita,
há uma tendência muito grande para estereotipar as posições.
José Maria Pimentel
Eu como imaginas, me faz imensa impressão esse tipo de caricatura porque
tira a maior parte do sumo que existe que está no espaço
intermédio e não entre os tremos. Mas é isso que estávamos a
falar, o mercado de trabalho é um ponto interessante para pegar. Eu
volto a fazer aquele répte que estava a fazer há pouco. Foi
uma coisa em que eu pensei também a preparar esta conversa porque
há um lado de discussão ideológica e tu tens tido a coragem
de, enquanto economista, te assumir como pessoa de esquerda e fazer esse
debate, mas eu acho que dentro do meio académico e sem deixar
de ter em consideração o peso das outras ciências, mas quer dizer,
a pessoa age com os instrumentos de que dispõe, também existe a
possibilidade de haver alguns consensos técnicos pelo menos parciais, quer dizer, por
exemplo, esta questão do mercado de trabalho. Se nós tomarmos o modelo,
Vamos simplificar e tomar o modelo nórdico como referência com todas as
notas de rodapé que estávamos a falar há pouco de não ser
diretamente aplicável e não ser sequer necessariamente o melhor. Eu acho que
não é, independentemente da gradação que ponhamos nisso, é... Creio que podemos
estar de acordo de que é um modelo que tem pontos em
que é mais liberalizado do que o modelo que tem sido implementado
em Portugal e pontos em que tem por outro lado uma intervenção,
não só uma intervenção do Estado, mas também um peso dos sindicatos
maior. O que acontece em Portugal muitas vezes é que quando quando
se tenta fazer por exemplo, essa questão da flexi-segurança isso foi, acho
que tentaram implementar isso, ao invés de estar no tempo do Sócrates,
não estou em erro Bom, falava-se muito com isso. Falava-se e depois
acho que a coisa não avançou muito. O problema é que, totalmente,
depois nunca consegues ter o consenso político, mas que eu creio que
podia surgir se tivesse um bocadinho mais ali cerçado num consenso técnico
de, ok, para nós avançarmos para aqui temos que dar com uma
mão e tirar com a outra, ou seja, no caso, para nós
tirarmos com uma mão, no sentido de para nós liberalizarmos e deixarmos
mecanismos de mercado atuar no mercado de trabalho, que a meu ver
são fundamentais, nós temos também que dar com a outra mão, no
sentido de oferecer essa proteção para as pessoas não ficarem desamparadas e
não caísse numa injustiça pior. No sentido de, se tu e o
Mário Centeno tinhas até até nesse sentido, que depois teve que rever
um bocadinho, tanto pelos apoios que teve que ter, até por outros
condicionantes, mas para tu teres... Dificilmente faz sentido, do ponto de vista
técnico, que tu tenhas limitações enormes ao despedimento, por exemplo. Mas, ao
mesmo tempo, não é difícil reconhecer, quer dizer, acho eu, qualquer pessoa
que partilhe valores sociais, que tu tens que ter um amparo para
alguém que fica despedido, até porque não podes presumir que aquilo foi
uma decisão justa, não é? Que aquela pessoa foi tratada justamente. Em
muitos casos não será, não é? Portanto, tem que ter um amparo,
tem que ter um amparo social do Estado e convém que tenha
também um amparo sindical, se quiser, ou outro tipo de instituições. Mas
é muito, eu vejo este caminho sempre como muito difícil, não é?
E, portanto, é sempre, antes que nos tirem alguma
Ricardo Paes Mamede
que os modelos nórdicos nos ensinam é que a consertação social, a
paz social é algo que pode ser benéfico para as várias partes.
E, portanto, esta tentativa furiosa de estar sempre a partir de uma
posição de poder, porque já é uma posição de poder, porque os
empregadores em Portugal têm objetivamente uma posição de poder. Partindo dessa posição,
exigir que em todas as feiras possíveis da regulação do mercado de
trabalho se reduza ainda mais o poder negocial da parte mais fraca,
é algo que denota muito pouco de uma predisposição para uma solução
que seja mais equitativa e, portanto, é natural que do lado dos
sindicatos a reação seja, nós não vos vamos dar neste momento uma
benesse, quando a vossa postura nunca foi aceitar que isso fosse compensado
de outra forma qualquer.
Ricardo Paes Mamede
força. Não, mas tu estás a pôr as coisas nesses termos como
se houvesse um equilíbrio de poderes entre os empregadores, os representantes das
associações patronais e os sindicatos. Não existe, nunca existiu. Quer dizer, tu
nunca estiveste em Portugal desde o 25 de Abril, após o PREC,
nunca estiveste numa situação em que os governos estão a tomar decisões
ao lado dos sindicatos contra os patrões, isso não existe, mas já
tiveste dezenas e dezenas e dezenas de situações em que os governos,
seja do PS, PSD ou CDS, tomam posições ao lado dos patrões
contra os sindicatos. E, portanto, claramente nós não podemos tirar outra conclusão
que não seja que é vivemos numa sociedade em que a assimetria
de poder é brutal. E quando a assimetria de poder é brutal,
é natural que a posição dos sindicatos seja extremamente cautelosa. Eu com
isto não estou a dizer que me revejo naquilo que é a
postura das organizações sindicais portuguesas no que respeita à consertação social. Acho
que já houve alguns momentos importantes onde, principalmente a CGTP, que eu
acho que é a confederação sindical mais forte, mais ativa, mais relevante,
é uma das instituições mais importantes em Portugal, e o facto de
lhe reconhecer isso significa que não tem apreciado criticamente posições que num
momento ou outro assumiu em que poderia dar um sinal de predisposição
sem custos, pelo contrário, para aquilo que são os direitos dos trabalhadores
e optou por não o fazer. Lá estão as suas razões, não
quero meter nisso, mas não consegui encontrar nesses momentos argumentos que me
convencessem da bondade das
Ricardo Paes Mamede
em que isso foi assumido. Agora, dito isto, eu consigo compreender que
não haja... Vamos lá ver, vamos pôr as coisas em termos… tu
estavas a perguntar, mas se isso alguma vez aconteceu… bom, quer dizer,
eu faço parte do Conselho Económico e Social, portanto sei o ridículo
que seria alguém chegar a uma reunião da Concertação Social, da Comissão
Permanente da Concertação Social e dizer, bom, vamos lá aqui a discutir
uma solução em que reforçamos brutalmente o poder dos sindicatos, em que
aumentamos fortemente o subsídio de desemprego e, em troca disso, concordamos com
uma revisão constitucional para abolir o despedimento sem justa causa. Quer dizer,
o despedimento sem justa causa é um princípio que, a meu ver,
dificilmente pode ser questionado, mas mesmo que seja um despedimento por motivos
económicos, que já existe em larga medida, Onde já se chegou na
liberalização do despedimento em Portugal, que já se foi muito longe, sem
qualquer espécie de contrapartida, mostra que não há condições. Pode vir a
haver, Eu espero que venha a haver no futuro essas condições para
esse tipo de acordos. Talvez se tivesse sido melhor propor esses acordos
mais cedo. Não havia qualquer condição para eles serem aceitos. Qualquer condição.
Na forma como a economia portuguesa evoluiu nos últimos 20 anos, e
a sociedade e a política portuguesa evoluiu nos últimos 20 anos, não
havia qualquer condição de ponto de vista de equilíbrio de forças para
conseguir obter ganhos para a posição negocial dos trabalhadores. Era impossível. Bem
poderia os sindicatos dizer vamos aqui propor um acordo de sistema. Quer
dizer, se tu estás numa posição de força, tu próprio dizias, não
cabe aos patrões defender as posições dos sindicatos. E vice-versa? Efectivamente, mas
se é assim e se a posição dos últimos anos foi sempre
os patrões estarem numa posição de força negocial absoluta, porquê é que
eles haviam de abdicar dessa posição negocial absoluta e transferir parte daquilo
que é o valor que se vai criando na sociedade para os
trabalhadores.
José Maria Pimentel
O que eu digo neste caso, aplicando esse modelo, é que não
cabe. É ótimo se o fizerem, liricamente é desejável que ambos defendam
o valor comum, mas o que tu tens numa inociação é uma
cada parte a defender o seu lado. E existe aí uma luta,
obviamente, de defesa de ideias e que depois, idealmente, quando lá está
melhor, foram as instituições, mas elas estendam ao ambiente político, mas elas
estendam ao resto da sociedade, e daí resultará, idealmente, um ponto de
equilíbrio que é melhor do que se tivesse só uma das forças.
Acho que devemos
José Maria Pimentel
O que o Banco de Catar fazia há pouco não era em
relação aos sindicatos, não era em relação à entidade patronal, era em
relação aos economistas. E o que eu respondo em relação aos economistas
pode ser feito em relação a uma série de outras áreas. Estou
a dizer isto porque calha nós termos ambos, calha tu ser professor
de economia e eu ser de ter tirado da economia. E o
que acontece é, o que me parece haver aqui é que parece
haver potencial para haver um consenso técnico com as suas limitações, certo
que têm as suas limitações, mas que permita auxiliar depois as decisões
que são tomadas na esfera política. Para que é que servem as
ciências, sobretudo as ciências sociais? Servem para criar valor? Servem para várias
coisas, obviamente, mas uma das funções, no meu entender, que têm é
que é tu tirar as conclusões e acumular conhecimento que depois permita
ser útil
Ricardo Paes Mamede
para... Acho que nós temos de ver isso ponto a ponto, até
porque sabes que, precisamente por eles... Pelo facto das sociedades serem complexas
e os arranjos institucionais serem sempre muito específicos à história de cada
país em cada momento, torna muito difícil haver generalizações. Isto é, não
tens muitos casos na ciência económica de conclusões robustas. A economia tem
muito poucas leis. Nós passamos a vida a falar das leis da
economia, mas a verdade é que há pouquíssimos casos em que possamos
dizer isto causa aquilo. As verdades locais no máximo. E isso torna
muito difícil esse consenso técnico que tu estás a referir. Em alguns
aspectos é possível esse consenso técnico. Não diria um consenso, mas uma
aproximação a um consenso. Por exemplo, em relação ao salário mínimo. Nós
hoje sabemos muito sobre os efeitos do salário mínimo. Nós hoje sabemos
que a ideia de que os aumentos do salário mínimo necessariamente levam
ao aumento do desemprego, que era aquilo que a teoria clássica da
economia clássica nos dizia, é uma conclusão que nós não podemos tirar.
Hoje sabemos que, tendencialmente, os aumentos do salário mínimo, em circunstâncias mais
ou menos normais de funcionamento da economia, têm efeitos marginais sobre o
volume de emprego e que em algumas circunstâncias podem ter efeitos positivos
se isso contribuir para um aumento da procura agregada. Depende do local
e depende da altura em que é. A questão é essa, não
é? Depende do face do ciclo económico. É uma universalidade. Depende do
conjunto de instituições, mas apesar disso, hoje podemos dizer que é difícil
encontrar um economista que seriamente diga do salário mínimo vai inevitavelmente
conduzir ao aumento
do desemprego. Mas também o conhecimento empírico leva a dizer, uma pessoa
que tem uma postura séria em relação a este tema, que qualquer
aumento do salário mínimo deve ser acompanhado de uma monitorização cuidada para
ver se alguns dos efeitos que se sabe que pode resultar, alguns
efeitos negativos que podem ter, estão ou não a concretizar-se naquele contexto
específico. Portanto, no fundo, dá-te pistas para aquilo que é uma boa
política pública. Mas não sou tão otimista quanto tu estavas a sugerir
sobre a
José Maria Pimentel
o otimismo da vontade, não é? Exatamente. Olha, estamos a terminar o
tempo, queria só fazer uma última pergunta que não resisto. Vou cair
numa simplificação caricatural, como é que já estávamos a falar há bocadinho.
Costuma-se dizer, ou é muito comum, por o debate nos termos de
que a direita defende o aumento do bolo e a esquerda está
preocupada com a repartição do bolo. O que obviamente é uma caricatura,
embora tenha alguma razão de ser, tendo em conta os pontos que
são frisados por um lado e por outro. Eu achava interessante ter
a tua perspectiva enquanto economista assumidamente de esquerda em relação à expansão
do bolo. Discutimos aqui uma série de aspectos, eu já conhecia outros
e quem nos estiver a ouvir, se te conhecer, conhece ainda muitos
outros aspectos que dizem respeito à repartição do bolo, ou seja, à
repartição dos recursos pela Sociedade de Justiça Social. Eu tinha curiosidade, tendo
em conta até que tu tens alguma investigação nessa área, qual é
o teu aspecto em relação à expansão do bolo, ou seja, ao
desenvolvimento económico, à expansão do nosso bem-estar, se quiseres, em Portugal. E
isso até me leva a outra coisa que eu não falei há
bocadinho, e também se quiseres podes comentar, que tem a ver com
as limitações do PIB. Nós vivemos focados no PIB E curiosamente até
a própria esquerda fala muito no PIB, o que é curioso, quando
claramente é um indicador que está obsoleto. Quer dizer, tens uma série
de coisas, tens o capital humano, tens os recursos naturais, que têm
muito a ver não só, mas também com a questão das alterações
climáticas. Tens a questão do capital social, por exemplo, que eu aqui
no podcast falei com o Pedro Magalhães, e que é interessantíssimo e
muitas vezes pode ser destruído por medidas que aumentem o PIB, por
exemplo, e portanto pode haver um trade-off entre uma medida e outra
e nós focando-nos no PIB apenas estamos a ignorar uma série de
questões que têm que ver com o desenvolvimento económico ou social num
sentido mais lato e que não deixam de ser. Portanto, o Canadá,
agora o Serviço de Estatísticas, salve erro do Canadá, que agora começou
a calcular um indicador muito interessante, cuja metodologia eu... Quer dizer, cujo
rigor metodológico eu não conheço, mas confio, e salvo erro, o que
aquilo indicava é que enquanto o PIB tinha crescido tipo 1, 5%
nos últimos 30 anos, esta espécie de riqueza no sentido lá, tinha
crescido 0, 2%, o que é praticamente zero, e é uma diferença
muito grande. E lá está, é um desses, não digo consenso técnico,
mas princípio de consenso técnico pode ajudar se calhar a recentrar o
debate. Desculpa, Águil, acabei de fazer duas perguntas em
Ricardo Paes Mamede
pensamos no caso português, porque de facto o PIB é, para além
de todos os problemas técnicos da sua medição, para além do facto
de nos fazer concentrar as atenções sobre aspectos que não são os
únicos relevantes do desenvolvimento das economias, também tem o problema de ser
um indicador muito enganador quando é analisado apenas no curto e médio
prazo. E acho que a história recente da economia portuguesa mostra-nos isso.
Portugal teve um crescimento muito, muito acelerado. Nos 15 anos que antecederam
o ano 2000, que antecederam a mudança de século, que antecederam a
entrada no euro, e uma parte importante, não toda, mas uma parte
importante do crescimento do PIB nesse período, não só foi largamente artificial,
foi induzido através de investimentos com carácter fortemente especulativo, como, além disso,
colocou sob enorme pressão, por outras palavras, criou uma enorme fragilidade à
economia portuguesa, que viria a revelar-se na viragem do século e com
um conjunto de choques externos em que a economia portuguesa foi sujeita.
E, portanto, isto chama-nos a atenção para o facto de nós podermos
assistir a períodos que às vezes são até na vida de uma
pessoa parecem prolongados, quer dizer, eu se pensar entre os meus 20
e 25 anos vivi num país que estava em crescimento galopante e
em que tínhamos revistas como a Economist a dizer que era a
grande New Boy in Town, o grande caso de sucesso das economias
europeias E pouco tempo depois estava a entrar num processo de estagnação
que dura basicamente até hoje. Portanto, efetivamente, olhar, termos o PIB como
objetivo e termos o PIB como referência é problemático. Nós devemos ter
uma preocupação que é conseguir garantir que as economias desenvolvem as suas
capacidades produtivas de forma sustentável ao longo do tempo, tendo em conta
aquilo que são as condições que elas enfrentam para se desenvolver. E
desse ponto de vista, também é um dos motivos pelos quais eu
olho com muita atenção para o papel do Estado, é que eu
quando olho para a história do desenvolvimento das economias a nível mundial,
vejo sempre o Estado a ter um papel crucial na estruturação económica
para que as economias estejam mais capazes de enfrentar os desafios que
têm de enfrentar em cada momento. Eu acho que nós em Portugal
temos uma economia que é estruturalmente muitíssimo frágil. É frágil porque temos
uma história de muitas décadas de atraso tecnológico, chegámos muito tarde à
industrialização, chegámos muito tarde à alfabetização da população, chegámos muito tarde à
generalização do ensino superior e depois destruímos ao longo do pós 25
de Abril, destruímos todas as possibilidades que tínhamos de ter âncoras fundamentais
de desenvolvimento. Numa economia capitalista nós precisamos ter empresas de grande dimensão,
com capital robusto para ancorar processos de desenvolvimento e os processos de
privatização que foram altamente elogiados ao longo de todos estes anos, qualquer
pessoa que punha em causa as privatizações só poderia ser comunista ou
muito pior do que isso, e a verdade é que nós chegamos
ao momento atual e não temos âncoras de desenvolvimento. As grandes empresas
portuguesas ou desapareceram ou acabaram por ser vendidas a empresas multinacionais cuja
preocupação fundamental não é a estruturação do desenvolvimento da economia portuguesa, isto
torna ainda mais relevante a necessidade de nós termos um grande ator
económico que procure fomentar o desenvolvimento e eu não vejo outro ator
económico que tenha a capacidade para o fazer numa economia como a
portuguesa que não seja o Estado. Obviamente que o Estado só o
pode fazer se funcionar bem, se for escrutinado, se tiver estratégia, mas
se não for o Estado eu não estou a ver quem é
que o poderá ser. E de facto quando olhamos para a história
do desenvolvimento económico vemos que houve sempre políticas públicas pensadas, estruturadas, estratégias
bem definidas, boas implementações, aparelhos de Estado a funcionar em condições que
criaram, contribuíram para a criação das condições necessárias ao desenvolvimento a prazo
e recuperarmos deste atraso secular que a economia portuguesa tem. Termos capacidade
de robustecer o nível de conhecimento, o nível tecnológico, termos a capacidade
de criar massas críticas, termos a capacidade de tirar partido de algumas
competências que já estão instaladas e não as perder rapidamente no processo
de desenvolvimento, é um desafio muito grande para a economia portuguesa e
que, obviamente, precisam de um setor empresarial robusto, mas precisam de uma
estratégia coletiva, uma estratégia nacional que o único ator em condições de
a protagonizar é o Estado.
José Maria Pimentel
Políticas públicas podem ser desenvolvidas no sentido de promover o dinamismo do
setor privado, ou seja, a intervenção do Estado não é igual ao
Estado enquanto produtor ou enquanto prestador de serviços, ou seja, isso que
tu estás a dizer, para o meu ver, não é nada incompatível
com, por exemplo, medidas da promoção da inovação. Porquê é que eu
te perguntava isso, Por exemplo, imagina, do ponto de vista de medidas
que promovam o desenvolvimento económico pela via, lá está, da economia do
mercado, que lhe queremos chamar, do setor privado, tu se pudestes propor
medidas nesse sentido, quer dizer, esta é uma pergunta de algebeira, mas
se pudestes propor medidas nesse sentido, quais é que estavam no topo
da tua lista?
Ricardo Paes Mamede
Eu, tendo a minha área de especialidade na economia da inovação, eu
posso te dar uma lista muito grande do tipo de medidas que
eu acho que não é uma medida. Estas coisas não funcionam com
uma medida. Não há aquilo que os anglo-saxónicos chamam as balas de
prata. Existem conjuntos de medidas que têm para o objetivo assegurar que
o sistema económico funciona como um sistema de inovação que é persistente,
que é coerente e que se vai desenvolvendo, que vai acumulando competências,
que vai acumulando capacidades ao longo do tempo. E essas medidas passam
por uma lista enorme de medidas de política económica, muitas delas que
já existem em Portugal. Passa por ter processos, apostas em investimentos, em
apoiar investimento privado em atividades inovadoras, em atividades mais expostas à concorrência
internacional, em atividades que são capazes de deixar na economia portuguesa competências
não apenas ao nível técnico, mas também ao nível organizativo e ao
nível do conhecimento dos mercados, que são capazes de alavancar outras atividades
atrás de si, que são capazes de atrair investimentos sofisticados que Por
seu lado também eles vêm contribuir. Políticas que sejam capazes de contribuir
para a atração de investimento direto estrangeiro que seja qualificado, que ele
próprio contribua para reforçar as capacidades produtivas do país em vez de
olhar para o país essencialmente como uma fonte de recursos e de
dividendos. Isto é um... Bom, e podemos falar muito mais do que
isto, podemos falar no papel fundamental que instituições de transferência têm, como
os centros tecnológicos, os centros de formação profissional em cada um dos
setores de atividade, as iniciativas que visam a classificação de atividades económicas,
no fundo assegurar que agentes económicos estão ligados a uma determinada fileira
produtiva, interagem entre si, que cooperam entre si, que colaboram para o
desenvolvimento das suas atividades. Eu acho que quando vivemos num mundo de
grande abertura comercial, de grande abertura de capitais em que existe um
processo de integração económica de escala global, é inevitável que o processo
de desenvolvimento económico passe também por preparar as empresas que concorrem em
mercado aberto para serem mais robustas, mas isto deve ser feito sempre
a partir de uma perspectiva do interesse coletivo, do interesse nacional. Numa
economia capitalista a empresa é sempre, sempre o núcleo da inovação. A
inovação faz-se na empresa capitalista, sempre. Agora, isso não significa que o
Estado se deva abster não apenas de criar condições para que essa
inovação surja, mas, tão ou mais importante, assegurar que essa inovação é
feita não apenas para benefício da empresa particular, dos seus acionistas, mas
para o benefício do conjunto da sociedade como um todo. Claro, porque
o Estado
Ricardo Paes Mamede
Sim, mas hoje é muito difícil fazer isto, não é absolutamente nada
fácil garantir que haja uma política de inovação, uma política de desenvolvimento
a prazo que respeite este tipo de orientações. Para já o facto
de termos um ciclo político de quatro anos faz com que os
agentes políticos beneficiem, valorizem pouco aquilo que são medidas cujos resultados só
podem ser vistos daqui a muitos anos e ninguém vai verdadeiramente saber
quem é que foi responsável por eles, mas também aquilo que eu
dizia há pouco que é na ausência de grandes empresas que possam
funcionar, empresas privadas que possam funcionar como âncoras do desenvolvimento económico em
parceria com o Estado, isto torna muito mais difícil este tipo de
estratégia. Bom, mas nós não podemos limitar-nos a lamentar as condições que
temos, temos de trabalhar com as condições que temos e torna ainda
mais exigente a intervenção do Estado e, portanto, torna-me ainda mais crítico
daqueles que, de forma superficial, dizem que há Estado a mais, porque
nestes domínios nós temos mesmo Estado a
José Maria Pimentel
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