#52 Ricardo Paes Mamede - “Pensar políticas económicas não é apenas uma questão técnica...

Click on a part of the transcription, to jump to its video, and get an anchor to it in the address bar

José Maria Pimentel
Bem-vindos. O convidado deste episódio é Ricardo Pais Mamede, que é professor de Economia Política na Escola de Ciências Sociais e Humanas do ISCTE. Para além disso, o convidado é membro do Conselho Económico e Social, é um dos autores do blog Ladrões de Bicicletas e é também autor de livros sobre economia, o mais recente dos quais a Economia como Desporto de Combate e desde há alguns anos para cá comentador regular na televisão. Antes de mais vale a pena dizer que embora esta conversa surja apenas ao 52º episódio, na verdade o Ricardo foi das primeiras pessoas que convidei para o podcast. Foi difícil, mas julgo que valeu a pena. O convidado é então dos economistas mais reputados e um caso particular, porque não só não evita, como assumo abertamente, transmitir a visão de um economista de esquerda. Aliás, confesso que o meu objetivo até era ter uma conversa mais sobre a economia enquanto ciência, mas rapidamente, como vão ouvir, a economia política tomou conta da conversa. Como é hábito no 45 Graus, tocámos numa série grande de assuntos. Começámos por discutir a visão do convidado em relação às limitações da ciência econômica, desde logo do currículo que é dado nos cursos da faculdade, mas também da própria investigação que é feita, e o Ricardo faz observações muito relevantes a este respeito. Por um lado, nota que as verdades em economia, quando as conseguimos encontrar, são sempre específicas a um tempo e espaço, e portanto não gerais, e por outro lado argumenta que as conclusões da investigação são influenciadas sempre pelos valores de quem investiga, até na escolha dos indicadores que se privilegia quando se avalia uma qualquer realidade económica que é sempre ultra-complexa, com efeitos de vária ordem e sobretudo esfazados no tempo. Dito isto, embora partilhe de alguma dessa embiração, não concordo totalmente, como já vou explicar, que em economia tudo seja relativizável. Seguidamente, a conversa levou-nos a muitos dos debates centrais da economia política, como o Keynes e o contexto histórico do keynesianismo, a história do capitalismo, o neoliberalismo, na definição particular do convidado, o poder explicativo que tem a qualidade das instituições num determinado país, para lá das políticas de esquerda ou direita, sobre prosperidade económica desse país, e ainda ao caso específico do modelo económico das chamadas sociais democracias escandinavas, que combinam uma economia capitalista competitiva com um Estado social forte. Finalmente, tentei desafiar, sem muito sucesso, o convidado para algo que considero faltar em Portugal. É que, apesar das ditas limitações da ciência económica e de muitos economistas com acesso próximo ao ouvido dos políticos terem flacionado as capacidades reais da disciplina nas últimas décadas, julgo que existem bons exemplos de conclusões da investigação que são relativamente transversais à orientação política dos investigadores e que fazia falta que tivessem mais protagonismo no debate político que é tantas vezes, de um lado e de outro, ignorante e simplista. Acho mesmo que esse é um contributo que os economistas, enquanto cientistas, ainda que sociais, podiam dar conjuntamente. Um bom exemplo disto que falo, que vale a pena ouvir, embora seja de outra realidade, foi o exercício feito pelo podcast Planet Money da NPR, a rádio pública dos Estados Unidos, que conseguiu identificar cinco grandes medidas de reforma fiscal, apoiadas por economistas que vão da esquerda à direita. Encontra o como habitual link para este podcast na descrição deste episódio. No final, falamos ainda rapidamente das limitações do PIB e da visão do convidado em relação a políticas potenciais de crescimento económico em Portugal. Muito rapidamente, antes de vos deixar em paz, uma nota para algumas particularidades deste episódio. Esta conversa, quer pelo tema, quer pelo posicionamento do convidado, tem algumas semelhanças óbvias com o episódio da Mariana Mortágua que gravei para a série de política, sendo que na verdade esta foi gravada antes dessa. Por causa dessa coincidência e porque o meu interesse era sobretudo pela visão do Ricardo enquanto investigador e académico, irão reparar que tive uma postura menos interventiva e mais próxima a de um típico entrevistador. Outra particularidade, esta por constrangimento de tempo, é que desta vez não houve recomendação de livro no final, mas não é por isso que vale menos a pena. Ora ouçam. Ricardo, bem-vindo ao podcast. Como estava a dizer há bocadinho em off, tenho muita piada de estar a falar contigo porque eu sigo, na verdade ultimamente nem tanto, mas segui durante muitos anos o vosso blog, o Lodões de Bicicletas, na faculdade sobretudo. Eu, aliás, dizia muitas vezes, acho que até tenho isso escrito, um blog que eu escrevi na altura, portanto isso não me deixa mentir, que era o meu blog preferido de economia de longe e nem era exatamente porque eu concordasse convosco, porque até o meu posicionamento é um bocadinho diferente do vosso, para não dizer até algumas coisas bastante diferentes. Mas a chave, primeiro vocês faziam uma coisa que eu sempre senti muita falta na faculdade, é uma mágoa que eu ainda tenho hoje em dia com a economia, que é reconhecer a limitação do poder explicativo da economia, reconhecer que aqueles modelos que a pessoa aprende na faculdade, não é que não tenham utilidade, também não iria tão longe, mas são limitados e são necessárias outras ciências sociais para explicar, e outras condicionantes, até muitas vezes históricas, para explicar os fenómenos. E por outro lado, mesmo em temas que eu não acordava convosco, vocês tinham, por norma, que eu acho que estava a rias mãos, mas tinham, primeiro, alguma coragem intelectual para abordar no tratamento de alguns temas e depois eram inegavelmente profundos, ou seja, não faziam uma coisa pela rama, o que na altura não existia muito, era aquilo que existia e sobretudo eram originais, havia uma coisa que... Eu não sei se isto diz alguma coisa, mas outros blocos que existiam na economia eram muito... Uma mimetização de blocos estrangeiros, se quiseres, ou seja, eram muito... Até podiam ter conteúdo muito interessante, mas eram inevitavelmente piores do que a origem, não é? Piores do que o... A cópia era pior do que a original, mesmo que não fosse propositalmente uma cópia. E o vosso era inevitavelmente original, que é uma diferença grande, pelo menos para mim era uma diferença grande na altura, eu achava muito giro isso, aquilo lá está, era escrito a várias mãos e tinha muita piada a ler. Entretanto, uma das coisas que vocês falavam era exatamente a questão da, e eu tenho duvido já falar muito sobre isso, a questão das limitações da economia. Porque uma coisa que... Há muita gente que... Há muita gente que tem traumas com vários cursos, mas há muitas... Mas com a economia, há muitas pessoas que têm contato com a economia e acham aquilo uma coisa um bocadinho estrambólica,
Ricardo Paes Mamede
que não se percebe que é quase uma
José Maria Pimentel
coisa que está na estratosfera, que é um bocado bizarro como a ciência social, não é?
Ricardo Paes Mamede
É, em larga medida sim. Antes de mais, obrigado por este convite para o podcast. A forma como se ensina a economia tem-se transformado bastante ao longo dos anos. Eu, quando estudei Economia na licenciatura, tive uma quantidade muito grande de cadeiras de Ciências Sociais. Eu lembro-me que tive um ano inteiro, duas cadeiras semestrais de História Económica e Social, que aliás me marcaram muitíssimo. Tive dois semestres de cadeiras ligadas à Sociologia, tive cadeiras ligadas a Direito, Direito Económico, depois tive como cadeiras optativas cadeiras que, sendo do Departamento da Economia, tinham uma abordagem muito pluralista às questões económicas, lembro-me, por exemplo, de uma cadeira de Aspetos Sociais do Desenvolvimento, que era uma cadeira que marcadamente procurava compreender os processos de desenvolvimento económico, indo buscar inspiração muito das outras ciências sociais, por exemplo, e uma importância fundamental da antropologia. Sempre dei muito valor a abordagens vindas das ciências políticas, nomeadamente em tudo o que tem a ver com a compreensão do papel do Estado. Portanto, a economia que eu aprendi na faculdade, na primeira metade dos anos 90, era uma economia bastante plural, apesar de tudo desse ponto de vista. Várias coisas se passaram desde então, nomeadamente uma tendência enorme para que as várias faculdades de economia começassem a padecer de um problema habitual da concorrência do mercado, que é tornarem-se todas iguais umas às outras e tentarem todas mimetizar aquilo que acham que é o padrão de sucesso e, portanto, hoje um curso de economia, ainda para mais a partir do momento que os cursos de economia passaram a ser de 3 anos e não de 4, os… anteriormente eram de 5, como é sabido, os cursos de economia passaram a ser, essencialmente, aquilo que se convencionou considerar as ferramentas fundamentais de qualquer economista e isto basicamente resume-se a macro, micro e econometria, que para os não economistas têm uma vaga ideia do que é que eu estou a falar, mas todas as pessoas que passaram por um curso de economia sabem exatamente do que é que eu estou a falar. E de facto, quando nós tentamos olhar para o mundo apenas com base nas ferramentas que nos são dadas pela microeconomia tradicional, pela macroeconomia convencional, dominante dos dias de hoje, e pela econometria, o mundo é uma coisa muito simplificada, muito abstrata, e são instrumentos que, apesar de eu considerar úteis, são apenas, do meu ponto de vista, uma pequeníssima parte daquilo que deve ser o instrumental de qualquer economista para ter a capacidade para compreender a forma como as economias funcionam e como evoluem. Sim,
José Maria Pimentel
e Eu acho que há um erro em que se caiu na economia, talvez noutras áreas, mas parece-me que sobretudo na economia, que é fazer aquilo que é feito, e é normal que seja feito, em muitas ciências exatas, que é uma espécie de eliminação da história. Não digo eliminação, mas abstração face à história. Para aprenderes física não precisas de aprender a vida de Einstein ou as condicionantes da vida dele para perceber a teoria da relatividade. É giro se aprenderes e é uma boa maneira de entrar e qualquer documentário de divulgação científica vai muito por aí. Mas para tu perceberes físico não precisares saber isso, precisas ver os cálculos e entender o modelo. Na economia não é bem assim, porque todos os modelos económicos são contingenciais face à altura em que surgiram. Face a tudo, face aos valores das pessoas que o criou, faça até à própria estrutura da economia que existia naquela altura e tudo isso muda. E um grande problema, acho eu, de nos abstrairmos face a isso e só darmos uma coisa estilizada é que estamos até a retirar informação que quem... Não estamos a dar ouvinto a informação que quem criou aquele modelo tinha. Sim, absolutamente, mas
Ricardo Paes Mamede
é verdade que o que tu estás a referir diz respeito a um aspecto histórico que é relevante, não sendo o único. Tu estás a referir-te essencialmente à questão da história do pensamento económico. Sim. Isto é, e eu considero que isso é absolutamente fundamental, acho que, por exemplo, uma alternativa para os currículos da economia seria ensinar-se tudo o que se ensina a partir de uma perspectiva de história de pensamento económico. Exato, sim, sim, sim. Eu acho que isso é extremamente útil. Eu, das experiências que tive de ensino em que procurei, por exemplo, eu dou aqui uma cadeira de mestrado de economia e políticas públicas, em que apresenta as várias visões dos autores economistas sobre o papel do Estado, em que o faço a partir de uma perspectiva da história de pensamento económico. E eu acho que é extremamente poderoso, acho que é extremamente útil, é muitíssimo mais útil do que estar a partir daquela forma muito abstrata, formalizada, que os economistas têm de tratar estes problemas a partir de conceitos como falhas de mercado ou falhas de governo. Acho que as pessoas percebem muito melhor aquilo que são os dilemas associados ao papel relativo do Estado e do mercado, quando olham para a forma como o pensamento económico foi evoluindo ao longo do tempo, com base em experiências específicas que os seus autores estavam a viver, do que estar simplesmente a compreender estes argumentos a partir de uma lógica abstrata. Mas há uma outra dimensão que eu valorizo muito, mesmo talvez até mais do que esta, que é o seguinte, os processos económicos têm uma marca histórica indelébil, isto é, é impossível, do meu ponto de vista, compreender os processos económicos concretos sem perceber o contexto histórico em que eles aconteceram, sem perceber aquilo que foi o conjunto de sequências causais que num momento específico, em locais específicos, levaram a que as coisas acontecessem como aconteceram. E os economistas são pouco treinados para fazer este tipo de análise histórica. Nós deveríamos sempre fazer uma análise que é baseada na teoria, mas que, portanto, olha para a história e procura perceber como é que um conjunto de expectativas que nós temos sobre os processos que decorrem das teorias, perceber se elas estão a acontecer ou se não estão a acontecer, mas deveríamos sempre olhar nos contextos históricos, porque as sociedades são complexas, a quantidade de fatores que afetam o modo como as economias evoluem é muito diverso, e não há nenhum modelo económico abstrato que nos consiga contar a história da humanidade. E, portanto, sendo que eu reconheço, obviamente, o valor, vou dizer um palavrão, heurístico, ou seja, o contributo que os modelos abstratos nos dão para ajudar a construir conhecimento, ajudar-nos a construir compreensão, eu reconheço esse valor heurístico dos modelos abstratos, mas considero que se a análise económica se limitar a esses modelos abstratos e não procurar sempre confrontar a nossa modelização abstrata, mais ou menos formal, com aquilo que são os processos históricos concretos, nós vamos sempre ter uma compreensão que é, na melhor das hipóteses, superficial e na pior das hipóteses, fantasiosa, daquilo que são os processos económicos. A história, a meu ver, é muitíssimo importante quando estudamos economia, nestes dois sentidos, naquilo que tu referias, que é a história do pensamento económico, perceber porquê as ideias surgiram como surgiram em determinados momentos, mas também porque nós não conseguimos verdadeiramente compreender o funcionamento das economias se não tivermos em consideração os contextos históricos em que os processos acontecem.
José Maria Pimentel
Sim, e atualizarmos a informação face àquilo que existia quando aquele modelo foi criado. É um bocado até, paradoxalmente, uma má homenagem às vezes que é prestada a quem criou esses modelos. Se a pessoa pensar no exemplo óbvio que é o Canes, por exemplo, não é mais do que caricaturá-lo, pegar naquele modelo e aplicá-lo de enxerto na realidade atual. Ele não o faria.
Ricardo Paes Mamede
Não, mas na verdade o modelo que nós aprendemos na faculdade, o modelo ISLM que nos dizem que é o modelo Keynesiano básico, não é o modelo de Keynes. Keynes nunca apresentou isso em nenhum lugar. Isso foi a simplificação que Ickes fez posteriormente do pensamento de Keynes e que, na verdade, elimina um aspecto que, a meu ver, é absolutamente fundamental ter em contra no pensamento de Keynes, que é a questão da incerteza irredutível dos processos económicos num contexto de capitalismo avançado. Que é um aspecto que Keynes desenvolve no capítulo 12 da sua teoria geral e que é um elemento que nos chama a atenção para o facto de as economias capitalistas contemporâneas serem intrinsecamente economias instáveis, economias incertas, com um conjunto de comportamentos que são, em larga medida, irracionais do ponto de vista coletivo e que a menos que se tomem um conjunto de medidas institucionais para controlar os ímpetos de investidores num contexto de mercado, as economias vão estar sistematicamente a viver crises que são altamente perturbadoras da vida em sociedade. E basicamente o modelo que nós chamamos Keynesiano, que se aprende na faculdade, ignora completamente isto. Este Keynes não existe nas faculdades. Mesmo há, eu tenho visto muitas vezes, economistas que acham que são keynesianos e que sabem que os modelos que apresentam aos seus alunos como keynesianos não têm este elemento fundamental da análise de Keynes, que é a crítica devastadora que Keynes faz a uma sociedade financiarizada onde o grosso do investimento passa pelos mercados de capitais que são inelevelmente instáveis. Mas há duas coisas... Posso dizer duas coisas em relação a isso de sentido contrário. Eu percebo o que
José Maria Pimentel
dizes, embora também seja verdade que nós não sabemos o que é que é alguém, como Keynes, por exemplo, ou a visão que ele teria e o modelo que ele teria desenvolvido se vivesse nos dias de hoje, porque a economia que ele conhecia é muito diferente da economia atual. Podia ser melhor ou pior, depende do nosso ponto de vista, mas era claramente diferente. Esse juízo que ele estava a fazer, essas conclusões que ele estava a tirar, eram para uma economia que não tinha uma série de coisas que existem hoje em dia. Por um lado era menos capitalista, num certo sentido, mas por outro lado era mais, no sentido em que há muitas funções do Estado que não existiam.
Ricardo Paes Mamede
Não estou totalmente de acordo contigo. É verdade que as coisas mudaram muito a vários níveis, mas quem se escreve no contexto… não escreve, quem desenvolve o seu pensamento sobre o funcionamento das economias no auge do liberalismo.
José Maria Pimentel
Exatamente. Portanto, ele
Ricardo Paes Mamede
desenvolve o seu pensamento num contexto em que as sociedades eram caracterizadas pela livre circulação de capitais, num contexto em que se estava a desenvolver... Não estava a desenvolver, estava a explodir o modelo que é hoje dominante de economias que são dominadas por empresas cotadas em bolsa e em que o valor das empresas depende muito de fatores que têm uma natureza fortemente especulativa, os investidores já não investem com a perspetiva dos lucros que as empresas vão poder distribuir no futuro, mas sim com a perspectiva da valorização imediata do preço das ações que compram. E este tipo de lógica que Keynes descreve e que onde ele identifica o fundamental da instabilidade das economias contemporâneas, é muito, muito semelhante àquilo que nós temos hoje. Keynes, desse ponto de vista, é profundamente atual e profundamente moderno. Quer dizer, quem hoje releia a teoria geral de Keynes, não sente essa discrepância dos tempos. Quer dizer, sente que a crise que nós vivemos em 2008 e 2009 segue a diversíssimos níveis, os mesmos padrões que
José Maria Pimentel
Keynes identifica para descrever a crise de 1929. Há um aspecto do teu texto aí que eu acho muito engraçado e é uma coisa que sempre me fez alguma confusão, sobretudo até no debate económico, porque me parece que Há duas coisas que são diferentes, estando relacionadas, mas são fundamentalmente diferentes. E acho que isto está um bocadinho relacionado com aquilo que tu dizes há pouco das pessoas que se afirmam keynesianas e depois acabam por passar modelos que não seriam perfilhados por eles. Uma coisa é a estrutura da economia, outra coisa é o estímulo que tu das à economia no consorte do ciclo económico, ou seja, uma coisa é a estrutura de uma economia de um determinado país, qual é o peso do Estado, qual é o volume de gastos do Estado, qual é o peso da regulação do Estado, qual é o grau de liberdade económica que existe, quer dizer, uma série de coisas. Isso é a estrutura da economia, a maneira como a economia funciona. Outra coisa é tu dizeres. Outra coisa é a evolução do ciclo económico, que tem altos e baixos, e tu decidires ou não se deves estimular a economia, por exemplo, quando ela está num período de abaixamento, e se deves fazê-lo, como deves fazê-lo. Claro que ideologicamente nós sabemos que as duas coisas estão relacionadas, ou seja, alguém que seja mais liberal tenderá a torcer mais o nariz, e aliás isto mostra quão ideológica é a economia, ideológica no sentido de que é dependente dos valores de quem pensa sobre ela. Um liberal economicamente tenderá a torcer um pouco o nariz à intervenção do Estado na economia para estimular a economia e, sobretudo, terá a ter uma visão diferente desse tipo de estímulo. Mas, apesar de tudo, são conversas diferentes. Tu podes ser liberal economicamente e ser a favor de medidas keynesianas no sentido do estímulo da procura
Ricardo Paes Mamede
e não deixar, no entanto, de defender uma economia mais capitalista e o contrário também teoricamente será possível. Bom, mas Keynes era um liberal e era defensor de capitalismo. Keynes não era um socialista. Exatamente, mas eu acho que isso muitas vezes é confundido no debate público. Sim, mas isso é habitual de confundirem-se muitos termos no debate público. Keynes não era um socialista. Keynes, na melhor das hipóteses, seria o que hoje chamamos um social-democrata. Era essencialmente alguém que tinha uma perspectiva muito crítica em relação à teoria clássica da economia no que respeita ao funcionamento dos mecanismos de mercado. Um dos grandes contributos do Keynes é algo que eu considero ser a aprendizagem número um, aquilo que diferencia um economista de um não economista, que é basicamente a ideia de que a soma de comportamentos racionais individuais não resulta numa racionalidade global. Isto é um contributo absolutamente crucial da análise macroeconómica do Keynes. É o momento em que ele descreve que aquilo que podem ser comportamentos extremamente racionais ao nível das famílias e das empresas, como por exemplo o comportamento de poupança no momento de uma crise, é algo que faz sentido à escala individual, mas é algo que é absolutamente desastroso num contexto de crise à escala de uma economia. E esta intuição de Keynes não é nem de esquerda nem de direita, neste momento é uma lição que é básica. Qualquer pessoa que se diga economista, alguém que se diga economista e que não perceba… É objetivo, não é? Bom, não sei se é objetivo, mas alguém que não perceba esta intuição é alguém que não percebe efetivamente o que é que é um sistema económico e porquê compreender um sistema económico não é a mesma coisa que compreender as finanças de uma família. Portanto, isto é um contributo Keynesiano fundamental e é a crítica que Keynes faz à teoria económica clássica. E depois há um elemento de Keynes que é a compreensão da transformação enorme que existe no sistema capitalista a partir do momento em que o sistema financeiro se torna a chave fundamental desse sistema e o poder de instabilidade que o sistema financeiro tem sobre as economias. E mais uma vez, a meu ver, nós podemos ser de esquerda ou de direita, que isso não tem de pôr em causa a nossa perspectiva sobre isto. Quero dizer, eu consigo conceber que haja pessoas, muito de direita até, de uma direita quase libertária, que olham para aquilo que é o poder do sistema financeiro hoje como algo extremamente prejudicial para o funcionamento do capitalismo. E portanto, efetivamente, eu tenho dificuldade. É óbvio que as ideias keynesianas foram no momento em que apareceram nos anos 30 elas foram muito apropriadas pela esquerda social democrata e há bons motivos para isso podemos ir lá porque é uma história um bocadinho mais desenvolvida.
José Maria Pimentel
Se quiseres contar,
Ricardo Paes Mamede
temos tempo para isso. Mas, para não perder o raciocínio, historicamente foram apropriadas por uma esquerda social democrata, foram apropriadas em particular por Roosevelt, num contexto histórico muito particular, em que há uma transformação institucional profunda dos Estados Unidos, em que a economia e a sociedade americana são transformadas num sentido que é claramente progressista, claramente, se quisermos simplificar, de esquerda, em que se põe o Estado a controlar o papel do sistema financeiro, em que se põe o Estado a assegurar um conjunto de serviços básicos à população. Ou seja, o Estado a ter um papel central no modelo de desenvolvimento e nesse contexto as ideias keynesianas assentavam que nem uma luva à justificação, à legitimação daquilo que era a agenda rooseveltiana e que veio a ser a agenda dos partidos trabalhistas sociais-democratas europeus. Agora, isso não significa que Keynes fosse ele próprio um ideólogo da esquerda ou da socialdemocracia, era um homem com um conjunto de valores peculiares e que se afirmava fundamentalmente como um liberal. Agora, o contexto em que a socialdemocracia surge ou se expande ou se afirma no pós-grande depressão de 1929, nós... Mais uma vez a história, a importância
José Maria Pimentel
da história.
Ricardo Paes Mamede
Nós temos de perceber que quando se chega à Primeira Guerra Mundial, o mundo estava a passar por um período de extremo liberalismo. Foi a grande liberalização do último quartel do século XIX, foi a globalização, a primeira grande globalização… Que
José Maria Pimentel
acaba com a guerra.
Ricardo Paes Mamede
Que acaba com a guerra, acaba com lutas imperiais entre grandes potências e que dá origem, já antes disso tinha havido um enorme período de uma longa depressão em vários países, em várias partes do mundo e, portanto, começa a haver uma reação das sociedades a esta vaga de liberalismo, àquilo que ela representa do ponto de vista de perda de controle sobre a nossa vida coletiva. As pessoas viviam as coisas nestes termos. Os capitais movem-se, as grandes empresas movem-se, os grandes bancos movem-se de um lado para o outro, as pessoas andam de um lado para o outro, os bens andam de um lado para o outro e nós sentimos o controle da nossa vida a escapar-nos entre os dedos. Portanto, foi um período marcado por abundância, mas também por grande instabilidade e por períodos de enorme recessão, depressão e crise social. E houve uma reação política a isto, e a reação política a isto não houve uma, houve várias reações políticas a isto. Houve reações políticas que foram, que passaram pela revolução, foi o que aconteceu na Rússia e noutros países. Houve outra reação política que foi o fascismo e foi a ideia de ordem, ordem autoritária de pôr um Estado poderoso a controlar a economia, a domar o liberalismo, não para destruir o capitalismo, mas para o domar através do controlo, do contrariar a ordem liberal e pôr o Estado à frente dos destinos do funcionamento do capitalismo através da imposição de uma suposta harmonia entre capital e trabalho. Houve outra reação, essencialmente nos países em desenvolvimento, que foi o nacionalismo, aquilo que se passa muito na América Latina e mais tarde, pós-segunda guerra em África, que é a dizer que este liberalismo implica que nós temos países estrangeiros a quererem decidir como é que a nossa economia se desenvolve, como é que o nosso país se desenvolve. Nós não queremos isso e, portanto, há uma reação nacionalista, não necessariamente fascisante, ao estado anterior do liberalismo absoluto. E depois há a socialdemocracia e a socialdemocracia o que vem dizer é, nós temos de preservar os elementos positivos de uma economia que tem elementos de mercado, temos de preservar a democracia liberal, mas temos de assegurar que o capitalismo não se torna autodestrutivo. E isto é o discurso de Keynes. O discurso de Keynes é isto. O Keynes não se afirmava social-democrata, nem era líder de nenhum partido social-democrata, mas o que fazia era, no fundo, chamar a atenção para o facto do capitalismo ter forças autodestrutivas e que era necessário, não é apenas a questão de combater crise através de políticas expansionistas em momentos de recessão, expansionistas em momentos de recessão, é também controlar um conjunto de elementos institucionais, e aqui a finan�a é questão central, para garantir que o capitalismo não se autodestruía, daí que vindo a ser apropriado pela esquerda social-democrata. Mas a partir de certa altura, como alguém dizia, acho que era o Samuelson, a partir de certa altura todos éramos Keynesianos e portanto mesmo a direita dominante, que era a direita democrata cristã, foi buscar essas ideias de Keynes e portanto esse elemento do Keynes de combater os ciclos económicos é algo que acabou por se generalizar e não é uma coisa historicamente, especificamente da esquerda. Mas
José Maria Pimentel
eu acho que eu interpreto essa frase, não conhecia essa frase do Samuelson, mas eu interpreto, se calhar erradamente, mas interpreto sermos todos keynesianos mais no sentido, sobretudo nos Estados Unidos, mais no sentido da intervenção sobre o ciclo económico.
Ricardo Paes Mamede
É exatamente isso. É nesse sentido. É nesse sentido. Não
José Maria Pimentel
tanto no sentido de domar o capitalismo, porque o modelo americano apesar de tudo é muito diferente do nosso. Mesmo pós Roosevelt continua a ser muito diferente.
Ricardo Paes Mamede
Sim, mas atenção que nós não devemos subestimar aquilo que foi a intervenção do Roosevelt. Aquilo que Roosevelt fez nos anos 30...
José Maria Pimentel
É difícil subestimar.
Ricardo Paes Mamede
Seria algo semelhante a... Hoje seria considerado uma revolução. E na altura Roosevelt foi atacado como sendo um comunista disfarçado. Mas, quer dizer, nós quando vemos aquilo que é a intervenção de Roosevelt no sistema fiscal, por exemplo, chegarmos a ter taxas marginais de imposto de 91%, alterou o tecido social americano de forma radical. Quando temos a criação do sistema de segurança social público, quando temos a criação e a expansão, a generalização do subsídio de desemprego, o investimento público, as intervenção profunda no sistema financeiro, a obrigação da separação entre a banca comercial e a banca de investimento. Isto foi uma coisa que durou durante décadas, sobreviveu décadas. Aliás, foi preciso vir um presidente democrata, Clinton, para destruir algumas das reformas institucionais que tinham sido feitas 60 anos antes por Roosevelt.
José Maria Pimentel
E que não surgiu por acaso uma das teorias históricas que eu tenho e que aplica a outras coisas é que quando tu deixas de ter, e isso acontece, na vida acontece em tudo, quando tu deixas de ter uma espécie de concorrência ou modelo concorrente neste caso. Tu durante, no pós-segundo da guerra mundial até ao final da Guerra Fria, o capitalismo tinha um modelo concorrente. Na verdade desde 1917. Claro, mas tornou-se evidente a partir do momento em que passaste até 2, porque desde 1917 existia o modelo comunista, mas o modelo capitalista não tinha saído vitorioso, como tinha saído a 2 Guerra Mundial. A partir daquele momento, tu tinhas todos os olhos, a todos os países, a ver qual era o modelo que resultava melhor. E, portanto, havia uma pressão brutal sobre isto. É uma teoria um bocadinho macro-histórica e portanto obviamente um bocadinho grosseira, mas para mim não é coincidência que esta letargia, esta complacência em que se entrou tenha sido depois da queda do muro de Berlim, porque De repente estás à vontade, de repente já não tens que prestar provas a ninguém.
Ricardo Paes Mamede
O fim, o colapso de um modelo alternativo, de um sistema que concorria com o sistema capitalista dominante, obviamente libertou forças, a meu ver, extremamente negativas para o funcionamento das nossas sociedades. Quer dizer, eu não sou um defensor do modelo soviético de todo e considerando-me social-democrata, a social-democracia também se desenvolve em contraponto com vários aspectos daquilo que era o modelo soviético, seja ao nível da democracia liberal, da democracia representativa, do Estado de Direito, da valorização ou do reconhecimento de dimensões importantes dos mecanismos de mercado enquanto mecanismos de afetação de recursos, naturalmente das questões das liberdades políticas. Tudo isto são coisas que me afastam de forma incontornável do modelo soviético, isso não significa que não consiga perceber que o colapso da União Soviética, o colapso do socialismo real, tornou muitíssimo mais difícil a vida aos sociais democratas. E, portanto, é muito difícil querer, é muito diferente querer, tentar procurar dominar a propensão autodestruidora do capitalismo quando há uma ideia clara de que pode ser um modelo alternativo, do que quando não existe essa alternativa sistémica e, na verdade, nós não sabemos qual é o modelo, o que é que pode vir depois do capitalismo ou em alternativa ao
José Maria Pimentel
capitalismo. Eu acho engraçado que tu disseste que tornou a vida difícil aos cheres democráticos, eu acho que tornou a vida difícil aos capitalistas, quiseres, ou aos defensores da economia do mercado. Isso é um paradoxo, mas o que acontece é se tu, quando o teu adversário se torna fraco, tu tornas-te complacente. Há bocadinho estávamos a falar da Luísa Lima, por exemplo, eu falei muito com ela sobre isso, a questão do conformismo. E isto, lá está, de novo É um bocadinho grosseiro isto, mas claramente aconteceu um fenómeno desse género, que é de repente tu deixas de ter concorrência e deixas de ter inteligência coletiva, quer dizer, deixas
Ricardo Paes Mamede
de ter razões para estar a fazer second guessing em relação... Infelizmente acho que não tens razão. Isto é, aquilo que eu assisti nos últimos 30 anos foi um reforço muito substancial das ideias mais extremistas na defesa de um fundamentalismo de mercado. E isso é algo que tinha, em larga medida, desaparecido. Isto é, apesar de as obras fundamentais da Hayek terem sido escritas entre os anos 40 e os anos 60, até aos anos 70 e 80, Hayek era um pensador absolutamente marginal. A partir dos anos 80 e 90 houve uma explosão das ideias daquilo que hoje chamamos de doutrina neoliberal. E eu não vejo que a queda do muro berlim tenha diminuído a influência ou sequer a pujança das ideias neoliberais nas sociedades contemporâneas, muito pelo contrário. Isto é, o que aconteceu foi o debate político desviou-se ainda mais para a direita.
José Maria Pimentel
Sim, mas eu vou estar a usar o mesmo. Eu acho que criou foi complacência em quem estava dentro do sistema em faça a necessidade de teres que manter ideias robustas e que são desafiadas e que são confrontadas com a evidência. Nós estamos a olhar para isto de duas perspectivas diferentes.
Ricardo Paes Mamede
Sim, se calhar é essa a questão mesmo. Nós começámos a conversa com os leadores de bicicletas, com o blog. Um dos motivos fundamentais que leva à criação do blog Ladrões de Bicicletas é precisamente a percepção que aquele conjunto de pessoas teve na altura de que as ideias neoliberais, que as doutrinas que já sabemos que é sempre um papão e é uma pena que seja, porque isto tem um conteúdo doutrinário bastante específico, mas que estas ideias que, para não haver confusão, podemos chamar de fundamentalismo de mercado, estavam a ter o peso que elas estavam a ter, o espaço que elas estavam a ganhar na sociedade e a falta de confronto ideológico que estava a existir na sociedade portuguesa em relação à expansão dessas ideias. E a verdade, como eu estava a dizer há pouco, é que não foi pelo facto de cair o muro de Berlim que o anarcocapitalismo, que as ideias extremas sobre o que deve ser a liberalização completa das nossas sociedades e a expansão da lógica de mercado a todas as dimensões da vida em sociedade, perdeu pujança, pelo contrário. Portanto, acho que a existência de uma sociedade alternativa tinha um papel. Eu percebo A ideia que tu tentas transmitir e dizer que quando há ali um sistema e alguém que o defende, há sempre mais necessidade de ter ideias bem claras sobre porque é que não queremos um sistema alternativo.
José Maria Pimentel
E de melhorar o sistema. E
Ricardo Paes Mamede
de melhorar o sistema que temos, sem dúvida. E havia uma concorrência entre sistemas que era benéfica para o sistema capitalista, desse ponto de vista. É quase um paradoxo. Que tornava o sistema capitalista um bocadinho menos desumano do que é. Agora, a verdade é que o debate ideológico não morreu com a queda do muro de Berlim, com o fim dos regimes soviéticos. Não morreu, o debate ideológico continuou e não é hoje menos agressivo do que era. E acho que aquilo que estamos a assistir com Bolsonaro e com Trump é muito reflexo disso. A ideia é a demonstração de que ideias muito radicais sobre a liberalização económica das sociedades estão muito vivas e estão perigosamente vivas.
José Maria Pimentel
Já agora só para concretizar o meu ponto ou para dar outro exemplo que não tem nada a ver com a economia. O exemplo da lei sobre o aborto ou interrupção voluntária da gravidez, como que queremos chamar. Para mim é um exemplo desse paradoxo muito interessante, porque o que tu tinhas na altura, e nós lembramos os dois do debate que existia na altura, e se suponho aliás que estivéssemos ambos do lado da defesa da lei, quer dizer, eu estava e estou a assumir que tu também estarias, aconteceu um paradoxo semelhante a este, que é, tu tinhas as pessoas que se defendiam à lei, por motivos com os quais concordavam em grande maioria, e depois tinhas do outro lado uma força, pelo menos vocal, que aparentemente não tinha maioria social, mas era vocal, e que alertava para os perigos imensos daquilo que iria acontecer, para basicamente passar a ser uma rebaldaria, ter o número de abortos a aumentar exponencialmente e ter um monte de consequências negativas. Essa voz do contra levou a que Quem tenha estado por trás da implementação da lei que foi aprovada, tenha tido imenso cuidado. E o que nós tivemos foi uma lei que foi altamente bem sucedida. É uma coisa... É quase incriticável. O número de abortos aumentou, salvo erro muito pouco, e sobretudo muito menos do que se previa. E portanto, paradoxalmente, tu tens um inimigo forte ou tens um adversário forte, acabou por frutar. Imagina que não existia aquele adversário. Eu tenho quase certeza que tinha havido muito mais complacência, que a coisa tinha sido muito mais... Sim,
Ricardo Paes Mamede
eu, como economista de esquerda, leio com apenas interesse, mas também com bastante convicção, os autores neoliberais. Isto é, o neoliberalismo no quadro da economia entende fundamentalmente um casamento improvável entre o que se chama a teoria da escolha pública e a escola austríaca.
José Maria Pimentel
E quer... Mas agora, se não... Eu só pedi para explicares isso para quem está a ouvir. Ok. A escola austríaca do AEC, não é?
Ricardo Paes Mamede
A escola austríaca é aquilo que é hoje mais visível no debate ideológico, é uma defesa feroz, não apenas do capitalismo, mas também dos mecanismos de mercado, da lógica da concorrência como solução institucional ideal para o desenvolvimento das sociedades. E
José Maria Pimentel
quase não existe, é uma coisa mais... Nesse estado de pura existe quase só nos Estados Unidos, não é? Aqueles libertários...
Ricardo Paes Mamede
Não diria isso. Há vários instrumentos de difusão das ideias neoliberais em Portugal, a nível mundial, quero dizer, e em Portugal nós não deixamos de ver isso, basta qualquer pessoa pode ir ler o site do Instituto Von Mises em Portugal ou em qualquer outro. Ah, mas é residual, não é? Não é residual, é em parte residual, mas aquilo foi a transformação do PSD na última década. O peso que as visões mais liberais dentro do PSD, o peso que vieram a assumir no mandato do Passo Escolha enquanto Presidente do PSD, são muito reflexo da influência destas ideias mais extremistas sobre o papel dos mecanismos de mercado enquanto solução institucional.
José Maria Pimentel
Ah, sim, sim, influência sim, claro. A
Ricardo Paes Mamede
influência é fortíssima, a influência é fortíssima e eu acho que é sintomática, apesar de eu estar de acordo que os ideólogos neoliberais em Portugal são, representam uma parcela pequeníssima da sociedade portuguesa, isso não significa que eles não tenham uma influência muito grande no espaço público e acho que a iniciativa liberal ou observador são muito sintomas disso e portanto são ideias que acabam por ser suficientemente fortes para encontrarem os recursos financeiros para expandirem na nossa sociedade. Portanto, a economia austríaca, para simplificar, digamos que é a doutrina económica que olha para a concorrência de mercado como um mecanismo fundamental para o bom desenvolvimento das sociedades e que aspira a trazer esta ideia da concorrência e da competição para todas as esferas da vida em sociedade. E é na verdade, eu agora não quero entrar neste aspecto para os economistas, é um aspecto muito interessante, é que a teoria austríaca é uma teoria herética do ponto de vista da teoria económica convencional, porque recusa as noções de equilíbrio, recusa em larga medida o formalismo que a economia convencional tem. É uma economia que em larga medida tem uma natureza histórica e institucional. Acaba por se aproximar, eu ia dizer isso há um bocadinho. Em vários aspectos aproxima-se da minha visão, daquilo que eu me revejo enquanto economista institucionalista, economista político institucionalista, tem vários aspectos que me aproximam da economia austríaca do ponto de vista do método, do ponto de vista epistemológico, não do ponto de vista seguramente normativo e das suas conclusões. Mas ao mesmo tempo que tivemos estes ideólogos alguéreticos que foram assumindo uma importância crescente no debate público, depois temos um conjunto de autores que não tiveram muita influência no debate público, mas tiveram muita influência dentro da ciência económica. E a teoria da escolha pública é este nível muito importante. É um conjunto de autores que estabeleceram como a sua agenda de investigação académica procurar compreender aquilo que chamaram as falhas do Estado, isto é, tentar compreender como é que os mecanismos de incentivo internos ao funcionamento dos Estados fazem com que os Estados não contribam para o bem-estar da sociedade, mas sejam essencialmente mecanismos de apropriação de recursos por grupos de interesses específicos. Sejam eles os grupos que fazem lobby, os grandes interesses económicos, ou até os próprios funcionários públicos ou os políticos, e portanto é uma visão que é conservadora, no sentido em que põe em causa a bondade da intervenção do Estado para transformar as economias e as sociedades, porque acha que o Estado não está, nunca será, um instrumento ao serviço do conjunto da economia das sociedades, será sempre um objeto à espera de ser capturado por interesses específicos. E esta conversa toda veio por eu dizer que eu leio com interesse os autores neoliberais, sejam eles da vertente austríaca ou da vertente da teoria da escolha pública, porque eu acho que eles efetivamente nos ajudam a perceber os riscos das ideias que pessoas como eu defendemos, isto é, eu defendo que o Estado é um ator fundamental para combater a poluição autodestrutiva do capitalismo, para limitar as desigualdades, para construir uma sociedade que seja mais sustentável em termos não apenas económicos e sociais, mas também em termos ambientais. Vejo o Estado como um elemento fundamental do projeto de sociedade que eu defendo. Agora, para que eu consiga defender de forma robusta estas minhas ideias, é muito importante, como tu estavas a sugerir, olharmos com atenção para os críticos destas visões. E os autores neoliberais são, desse ponto de vista, a meu ver, uma fonte indispensável para qualquer pensador, para qualquer economista, para qualquer político de esquerda. Porque há muitas das críticas que são feitas por estes autores e muitos dos elogios que são feitos destes autores aos mecanismos de mercado, que têm boas razões de ser, que são argumentos bastante convincentes e, portanto, não podem ser ignorados, sob pena de nós termos, inclusive, uma enorme fragilidade em defender as nossas idades. Sim, exatamente. Em qualquer caso, nós podemos ter horas de debates sobre o que é ou deixa de ser o neoliberalismo, eu defino o neoliberalismo como uma doutrina que promove a expansão da lógica de mercado a todas as esferas da vida e sociedade. Eu acho que este é o elemento fundamental do neoliberalismo e acho que, deste ponto de vista, o neoliberalismo é e deve ser o inimigo número um de qualquer pessoa que se diga de esquerda e qualquer pessoa que considere que é fundamental procurarmos desenvolver uma sociedade que seja menos sujeita a instabilidade, que seja menos sujeita a desigualdades, que não tenha a propensão para tratar o ser humano como alguém cujo o objetivo é disputar o seu espaço de liberdade com todos os outros. Deixa-me trazer-te para outro caminho, que eu acho
José Maria Pimentel
interessante, mais relacionado com a ciência económica, se quiseres. Porque eu acho que nós, quer dizer, a pessoa, e vê-se muito de economistas entrarem no debate político, por exemplo, e acho que muitas vezes estão a fazer um mau serviço ao seu próprio trabalho, no sentido em que a pessoa entra numa lógica, se quiser de esquerda ou direita, numa lógica de valores que muitas vezes está a substituir a uma lógica mais positivista que tem conclusões que são ultra interessantes. Por exemplo, se nós pensarmos, discutir valores na relação ao tipo de sociedade em que se quer viver é muitíssimo interessante, é ultra relevante, não é de todo destrinçável de uma análise mais objetiva, porque as duas coisas estão ligadas, mas há uma série de coisas objetivas que a pessoa pode concluir independentemente disso. Por exemplo, o que é que tem mais poder explicativo? É se uma sociedade tem um maior peso do Estado ou um peso menor ou a qualidade das instituições? Claramente é a segunda. Eu sou muito, partilho muito da visão do ACMob e outros economistas institucionalistas porque claramente é isso que tu encostas. Se tu olhares para o... E esse aliás é outro dos grandes problemas daqueles modelos estilizados. A certa altura eu ouvi um debate com um economista que eu sei que tu gostas muito, nunca sei pronunciar o nome dele, o Raju Shankar. Raju Shankar. O exemplo típico é o exemplo de Singapura. É Singapura, uma economia de mercado. A economia de mercado tem um peso de estado gigante, gigante sobretudo para uma economia de mercado. E se tu olhares para as economias desenvolvidas, para as economias que tu estabeleces como modelo, mesmo que não seja um modelo total, mesmo que seja um modelo parcial, o que elas têm sobretudo é instituições de grande qualidade. Depois o problema é descobrir como é que se chegou lá. E normalmente acabas por chegar a explicações contingentes porque não consegues ter algo que esteja na origem disso e quando tentas fazer normalmente não dá o maior resultado. Mas quer dizer, tu tens uma série de economias desenvolvidas que seguem modelos diferentes. A Ingapura segue um modelo muito diferente do modelo nórdico, por exemplo. O Japão, por exemplo, tem um modelo muito diferente do modelo nórdico. Por exemplo, enquanto o modelo nórdico vive muito dos impostos que são cobrados por rendimentos diferentes, o Japão tem muito mais rendimentos que são os próprios relativamente semelhantes à partida. São dois modelos muito diferentes. E às vezes faz-me um bocadinho de impressão, e este podcast também segue muito esse espírito de... Eu acho muito interessante discussões normativas, mas acho que a pessoa tem a obrigação de tentar, sobretudo, ser fiel aos dados, ser fiel à evidência que tem do... Sim,
Ricardo Paes Mamede
mas os dados não nos chegam.
José Maria Pimentel
Os dados não chegam, é verdade. Eu
Ricardo Paes Mamede
posso ser capaz de reconhecer alguns aspectos de análises como as do AC Mogulo que atribuem no fundo a afluência, digamos assim, o desenvolvimento económico dos países àquilo que tu chamaste aqui qualidade das instituições. Nós depois temos de traduzir isto em miúdos o que é que é essa coisa da qualidade das instituições. Sim. Mas, basicamente…
José Maria Pimentel
Instituições inclusivas, não é o que ele chama? Exatamente.
Ricardo Paes Mamede
Mas basicamente, no fundo, o que o Acemoglu está a sugerir é a ideia de que a democracia liberal está tipicamente associada ao bom desempenho económico e, portanto, o ter mecanismos de disputa partidária, de disputa política numa sociedade e garantir que a sociedade não é dominada por grupos que, no fundo, exercem coerção sobre outros grupos que existem. Existe oportunidade para as ideias serem confrontadas e para o poder ser disputado, que isto cria boas condições para que as economias se desenvolvam, independentemente do modelo económico específico que está em causa. Depois o Acemoglu, coitado, defronta-se com um problema fundamental que é a China.
José Maria Pimentel
Era o que eu ia dizer, exatamente. E
Ricardo Paes Mamede
que depois não bate certo com o seu modelo e, portanto, a única coisa que lhe resta é dizer isto não vai durar.
José Maria Pimentel
Exatamente, sim. Só que, entretanto, dura.
Ricardo Paes Mamede
Ficamos todos à espera da demonstração se dura ou se não dura. Em qualquer caso, eu não tenho grande dificuldade em concordar com esta ideia que efetivamente é muito robusta a partir dos dados. Nós olhamos os dados e eles demonstram-nos que efetivamente há um conjunto de características institucionais e até de condução de política económica, alguma sustentabilidade das finanças públicas, alguma estabilidade na política monetária, Isto são elementos que estão associados a processos bem sucedidos de desenvolvimento económico a prazo. Depois se é uma questão de causar consequência é outra questão, mas eu não tenho dificuldade em aceitar essa perspectiva. Agora, o pensar a política económica e pensar a intervenção do Estado nas economias e na sociedade não é apenas uma questão técnica, isto é, em última
José Maria Pimentel
análise, nós
Ricardo Paes Mamede
temos de tomar decisões de valores e, portanto, quando discutimos, por exemplo, como é que deve ser organizado o sistema educativo, uma discussão meramente técnica e olhar para os dados, a ver os sistemas que funcionam bem ou que funcionam mal, não é suficiente para nós tomarmos uma decisão sobre qual é o sistema educativo que nós devemos decidir.
José Maria Pimentel
Mas o meu ponto, Ricardo, desculpa interromper-te, mas o meu ponto é isso que estás a dizer é absolutamente verdade, mas os valores devem surgir depois dos dados e não antes. Sabes o que eu quero dizer?
Ricardo Paes Mamede
Pois, eu não consigo estar de acordo apenas por uma questão, é que nós sem valores também não sabemos quais são os dados que queremos recolher. Os dados são uma coisa infinita, não é? A realidade é muito complexa.
José Maria Pimentel
E o indicador que escolhes depende do que valorizes. Não é só o
Ricardo Paes Mamede
indicador que escolhes, é as realidades que procuras estudar a fundo, são imediatamente determinadas, são indelevelmente determinadas por aquilo que são os teus valores de partida, quer dizer, eu quando escolho as minhas áreas de investigação, escolho-as de acordo com aquilo que são as minhas preocupações e as minhas preocupações são muito ditadas pelos meus valores de base. Portanto, não existem dados sem valores. Isto não significa que eu não reconheça não só a possibilidade, mas até a absoluta necessidade do debate sobre as políticas públicas e sobre as opções societais, deverem ser baseadas em dados, em evidência, como se diz no mundo anglo-saxónico. Sou absolutamente defensor da ideia da evidence-based policy, isto é, as decisões sobre políticas públicas têm de ser baseadas no máximo de informação e análise robusta que temos à nossa disposição E não se devem tomar decisões que não saibamos minimamente que consequências é que possam vir a ter. Agora, isso não é o mesmo que dizer que os valores devem ser subvalorizados. Os valores têm sempre um papel crucial e as nossas... Nós não tomamos nenhuma decisão sobre a nossa vida que não tenha por base uma determinada visão sobre como é que as sociedades devem ser organizadas. Podemos ter mais consciência disso ou menos consciência disso, mas ela está lá sempre.
José Maria Pimentel
Sim, Para decidir tens que ter valores, isso é evidente. Agora, para pegar num exemplo concreto, eu já te ouvi dizer, e para ti não é nada propriamente muito original, dizer que defendes o modelo, chamar de modelo nórdico, ou seja, que defendes isto, é uma boa referência para o que faz sentido sobretudo uma economia de um país europeu, almejar, e o modelo nórdico pode ser olhado de dois pontos de vista porque, Por um lado, é um modelo que tem um peso do Estado, enquanto agente redistributivo, muito grande, até como prestador de serviços. Mas também são economias com um grau de desregulação em alguns setores e com um grau de competitividade, lá está, quando digo competitividade, isto é implícito, os valores de quem avalia essa competitividade, que não são necessariamente partilhados por todos, muito elevados. Um ranking que é absolutamente insuspeito de ser de esquerda do World Economic Forum, por exemplo, tens permanentemente os países nórdicos, não estão nos lugares chimaeiros, mas estão no top 10, tens para ir dois ou três países e depois salvo eu, é a Finlândia que está lá um bocadinho, que está para ir em 12º ou 13º. Ou seja, são países que no fundo quase fazem a quadratura do círculo em dois sentidos e que até podem, nesse sentido, ser vistos desses dois pontos de vista a agradar um lado ou outro do espectro porque são países que têm inegavelmente um peso do Estado grande ou seja, têm um Estado que funciona bem, entre outras coisas, e que é eficiente não é só ter um peso grande, é um estado que é eficiente, mas também são economias com muita inovação, por exemplo, muitas empresas de referência surgiram lá, que têm, por exemplo, um mercado laboral mais liberalizado do que existe em países do sul como Portugal. Como é que tu olhas para essas economias, sobretudo partindo do nosso modelo e pensando numa espécie de convergência, sendo verdade ainda assim, como nós falámos no início, que as verdades, a economia às verdades, mesmo que seja possível encontrá-las, são sempre parciais, tanto no tempo como no espaço. E portanto, neste ponto serão sempre parciais no espaço e portanto o modelo não funciona. Eu
Ricardo Paes Mamede
não faço questão nenhuma de mitificar o modelo da socialdemocracia nórdica. Eu acho que enquanto projeto de longo prazo é o tipo de projeto em que eu me identifico. Isto é, a socialdemocracia nórdica, apesar de todas as transformações e foram muito profundas as que tiveram nos últimos anos, eu seguramente me identifico muito mais com a socialdemocracia nórdica de há 30 anos do que com aquela que existe atualmente, mas dito isto, há por detrás da ideia da socialdemocracia nórdica a ideia de, em primeiro lugar, um projeto coletivo, isto é, a ideia de que o Estado existe para representar o conjunto de uma sociedade, representar em particular os trabalhadores, aqueles que vivem do seu salário e o Estado deve ser um instrumento ao serviço da promoção da igualdade de oportunidades, um instrumento ao serviço de um projeto de desenvolvimento coletivo, sustentável, dos vários pontos de vista, e que equilibra as tendências autodestrutivas do capitalismo, inclusive as que têm a ver com concentração de poder e com o abuso do poder por parte daqueles que têm acesso aos recursos financeiros. E esse projeto é, para mim, em larga medida a essência do que eu imagino ser a socialdemocracia. Isto é, viver numa sociedade em que domina o liberalismo político, no fundo uma democracia, como eu já disse, uma democracia participativa, em que temos um Estado de direito, em que temos elementos de mercado a funcionar, mas em que se procura assegurar que os elementos perturbadores ao bom funcionamento da sociedade que decorrem do funcionamento do capitalismo são domados a vários níveis. Isto é muito genérico e, portanto, é tão genérico quanto a ideia da social democracia, e portanto eu não, quando eu refiro os países nórdicos, eu não quero dizer que quero importar aquilo que hoje existe na Suécia, na Noruega ou na Dinamarca ou na Finlândia para Portugal tal como existe. Eu não concordo contigo quando dizes, ou não concordo inteiramente contigo, quando tu dizes que esses países têm hoje modelos de mercado de trabalho que são mais liberais do que os portugueses. Quando dizes isso, provavelmente estás a pensar na ideia do despedimento, que há uma facilidade de despedimento que existe de acordo com a ideia de flexigurança, que não tem a ver com aquilo que existe atualmente. Agora, nós não podemos esquecer que essa facilidade do despedimento que existe nos países nórdicos existe num contexto marcado em primeiro lugar por uma cultura e uma prática institucionalizada de diálogo social e de concertação social, onde os sindicatos continuam a ter um poder absolutamente fundamental e, portanto, a arbitrariedade por parte dos empregadores está fortemente limitada pelo peso dos sindicatos, pela importância reconhecida e valorizada dos sindicatos.
José Maria Pimentel
Hoje em dia, hoje em dia, menos. Eu imagino que seja uma das críticas.
Ricardo Paes Mamede
Não, não, quanto quer dizer, isso continua a existir. Tu entras numa empresa... Mas a taxa de sindicalização acho que não baixou muito. A taxa de sindicalização pode ter baixado, mas tu entras numa empresa sueca e assim que pões o pé dentro da empresa vês sindicato por todo o lado.
José Maria Pimentel
Eu não estava a dizer isto por uma vantagem, a atenção estava a dizer isto... Achei que também te referes a isto há bocadinho. Eu percebo que estás
Ricardo Paes Mamede
a dizer, mas para chamar a atenção que aquilo que tu chamas de liberalismo não é liberalismo, não é o mesmo tipo de liberalismo que nós pensamos quando temos em Portugal. E além da questão do papel dos sindicatos, há a questão da proteção social fundamental, isto é, num país como a Suécia ou na Dinamarca, uma pessoa que vai para o desemprego tem a sua vida muitíssimo mais protegida do que uma pessoa que vá para o desemprego em Portugal. E estes dois elementos, sindicatos mais proteção no desemprego, alteram radicalmente aquilo que é a relação de forças no mercado laboral. E é essa a questão que deve preocupar um social-democrata mais do que saber se há facilidade ou dificuldade de despedimento. Aquilo que deve preocupar um social-democrata é se a tendência para num mercado não regulado existe para haver uma enorme simmetria de poder entre empregadores e empregados está de alguma forma a ser resolvida. E acho que aquilo que é a solução que foi encontrada nos países nórdicos, independentemente de eu achar que ela pode ou não pode ser importada, transposta para o caso português, continua a ser coerente nesta ideia de procurar manter algum equilíbrio ou promover algum equilíbrio entre empregadores e empregados. Portanto, desse ponto de vista, acho que a socialdemocracia nórdica continua a ser uma referência para a qual vale a pena olhar com cuidado, independentemente de concordarmos ou não com os pormenores. E nós devemos ter mais uma… também, muitas vezes quando nós temos a discussão em Portugal sobre esquerda e direita, há uma tendência muito grande para estereotipar as posições.
José Maria Pimentel
Sim, caricaturar quase.
Ricardo Paes Mamede
Caricaturar, isto é, quando se olha para... Quando se fala em esquerda, imediatamente se imagina uma economia de planeamento central... Com planos quinquenais. Com planos quinquenais, em que não há qualquer espécie de espaço para os mecanismos de mercado, em que os empresários são vistos como inimigos do povo, em que o trabalhador e o funcionário público são deificados. São deificados. Esta não é a minha visão, não é a forma como eu olho para o funcionamento das sociedades. Acho que é possível ter uma perspectiva social-democrata em que se olha para a necessidade de haver elementos socialistas fundamentais no contexto de uma sociedade capitalista, sem que... Sem adotar uma perspectiva de planeamento central. Aliás, a socialdemocracia desenvolve-se em larga medida por contraponto a essa
José Maria Pimentel
perspectiva. Exatamente, sim. A socialdemocracia é exatamente a... É quase... Tentamos fazer com a doutora do circo, entre os elementos positivos que se reconhece existir na economia de mercado e os elementos positivos que se considerava existir no socialismo, mas que eram levados ao extremo no... Isso, isso. Depois,
Ricardo Paes Mamede
a cada expressão que nós usamos obriga-nos a uma exigência. Porque economia de mercado pode ser um mundo e um par de botas, não é? Eu muitas vezes uso a expressão economia de mercado, mas talvez fosse mais correto nós dizermos economia com mercados. Isto é, economias em que existem elementos importantes da lógica de decisões descentralizadas dos agentes na afetação dos recursos, e isso acho que é um contributo importante do liberalismo clássico. Agora, a economia de mercado pode ser facilmente entendida como a ideia de que nós temos uma sociedade em que todas as relações económicas devem seguir uma lógica de mercado. Eu acho que isso, na verdade, acho que isso é pura e simplesmente impossível, mas mesmo que fosse possível era altamente indesejável.
José Maria Pimentel
Eu como imaginas, me faz imensa impressão esse tipo de caricatura porque tira a maior parte do sumo que existe que está no espaço intermédio e não entre os tremos. Mas é isso que estávamos a falar, o mercado de trabalho é um ponto interessante para pegar. Eu volto a fazer aquele répte que estava a fazer há pouco. Foi uma coisa em que eu pensei também a preparar esta conversa porque há um lado de discussão ideológica e tu tens tido a coragem de, enquanto economista, te assumir como pessoa de esquerda e fazer esse debate, mas eu acho que dentro do meio académico e sem deixar de ter em consideração o peso das outras ciências, mas quer dizer, a pessoa age com os instrumentos de que dispõe, também existe a possibilidade de haver alguns consensos técnicos pelo menos parciais, quer dizer, por exemplo, esta questão do mercado de trabalho. Se nós tomarmos o modelo, Vamos simplificar e tomar o modelo nórdico como referência com todas as notas de rodapé que estávamos a falar há pouco de não ser diretamente aplicável e não ser sequer necessariamente o melhor. Eu acho que não é, independentemente da gradação que ponhamos nisso, é... Creio que podemos estar de acordo de que é um modelo que tem pontos em que é mais liberalizado do que o modelo que tem sido implementado em Portugal e pontos em que tem por outro lado uma intervenção, não só uma intervenção do Estado, mas também um peso dos sindicatos maior. O que acontece em Portugal muitas vezes é que quando quando se tenta fazer por exemplo, essa questão da flexi-segurança isso foi, acho que tentaram implementar isso, ao invés de estar no tempo do Sócrates, não estou em erro Bom, falava-se muito com isso. Falava-se e depois acho que a coisa não avançou muito. O problema é que, totalmente, depois nunca consegues ter o consenso político, mas que eu creio que podia surgir se tivesse um bocadinho mais ali cerçado num consenso técnico de, ok, para nós avançarmos para aqui temos que dar com uma mão e tirar com a outra, ou seja, no caso, para nós tirarmos com uma mão, no sentido de para nós liberalizarmos e deixarmos mecanismos de mercado atuar no mercado de trabalho, que a meu ver são fundamentais, nós temos também que dar com a outra mão, no sentido de oferecer essa proteção para as pessoas não ficarem desamparadas e não caísse numa injustiça pior. No sentido de, se tu e o Mário Centeno tinhas até até nesse sentido, que depois teve que rever um bocadinho, tanto pelos apoios que teve que ter, até por outros condicionantes, mas para tu teres... Dificilmente faz sentido, do ponto de vista técnico, que tu tenhas limitações enormes ao despedimento, por exemplo. Mas, ao mesmo tempo, não é difícil reconhecer, quer dizer, acho eu, qualquer pessoa que partilhe valores sociais, que tu tens que ter um amparo para alguém que fica despedido, até porque não podes presumir que aquilo foi uma decisão justa, não é? Que aquela pessoa foi tratada justamente. Em muitos casos não será, não é? Portanto, tem que ter um amparo, tem que ter um amparo social do Estado e convém que tenha também um amparo sindical, se quiser, ou outro tipo de instituições. Mas é muito, eu vejo este caminho sempre como muito difícil, não é? E, portanto, é sempre, antes que nos tirem alguma
Ricardo Paes Mamede
coisa, deixam-nos ficar como estamos. É normal, porque repara, Aqueles que defendem uma maior facilidade de despedimento, nunca os ouviste dizer nós reconhecemos que existe um problema fundamental de assimetria de poder na relação entre empregadores e empregadas. Mas vocês não têm que
José Maria Pimentel
dizer... Pois. Mas porquê que quem está do outro lado não diz Ok, sim senhor, fazemos isso, mas fazemos isto também.
Ricardo Paes Mamede
Porque nunca seria aceito. Isto é, tu vês hoje uma situação que é houve a facilidade de despedimento e ao mesmo tempo houve uma facilitação de despedimento com a reforma laboral de 2012. Houve vários elementos que facilitaram o despedimento. Ao mesmo tempo que houve uma diminuição radical dos direitos de quem viria a ser despedido, ao mesmo tempo que houve o princípio de caducidade das convenções coletivas, o que significa que houve um enorme enfraquecimento do poder dos sindicatos. E isto significa que em Portugal não há, por parte, essencialmente, dos representantes das entidades patronais, o menor interesse em construir uma sociedade onde haja um maior reequilíbrio de poder negocial entre empregadores e empregados. Não existe.
José Maria Pimentel
Não é suposto existir. São entidades patronais. Não estou de acordo. Ou seja, é bom que exista, mas não é... Eu acho que uma das coisas
Ricardo Paes Mamede
que os modelos nórdicos nos ensinam é que a consertação social, a paz social é algo que pode ser benéfico para as várias partes. E, portanto, esta tentativa furiosa de estar sempre a partir de uma posição de poder, porque já é uma posição de poder, porque os empregadores em Portugal têm objetivamente uma posição de poder. Partindo dessa posição, exigir que em todas as feiras possíveis da regulação do mercado de trabalho se reduza ainda mais o poder negocial da parte mais fraca, é algo que denota muito pouco de uma predisposição para uma solução que seja mais equitativa e, portanto, é natural que do lado dos sindicatos a reação seja, nós não vos vamos dar neste momento uma benesse, quando a vossa postura nunca foi aceitar que isso fosse compensado de outra forma qualquer.
José Maria Pimentel
Mas chegou-se a falar disso? Quer dizer, nós Agora estamos a entrar num ponto de discussão que eu acho muito interessante, porque eu muitas vezes vejo o debate ser posto nesses termos e eu tenho uma visão muito diferente em relação a isso, que tem que ver até com a questão das instituições e do acemólogo que falávamos há pouco, que é eu não espero que as entidades patronais venham para a mesa de negociação defender os trabalhadores. Eu também não. Se os vierem, ótimo. Eu fico contentíssimo
Ricardo Paes Mamede
se o fizerem. Mas a questão não é essa. A questão é assim...
José Maria Pimentel
Aqui há uma luta de ideias, há uma luta de
Ricardo Paes Mamede
força. Não, mas tu estás a pôr as coisas nesses termos como se houvesse um equilíbrio de poderes entre os empregadores, os representantes das associações patronais e os sindicatos. Não existe, nunca existiu. Quer dizer, tu nunca estiveste em Portugal desde o 25 de Abril, após o PREC, nunca estiveste numa situação em que os governos estão a tomar decisões ao lado dos sindicatos contra os patrões, isso não existe, mas já tiveste dezenas e dezenas e dezenas de situações em que os governos, seja do PS, PSD ou CDS, tomam posições ao lado dos patrões contra os sindicatos. E, portanto, claramente nós não podemos tirar outra conclusão que não seja que é vivemos numa sociedade em que a assimetria de poder é brutal. E quando a assimetria de poder é brutal, é natural que a posição dos sindicatos seja extremamente cautelosa. Eu com isto não estou a dizer que me revejo naquilo que é a postura das organizações sindicais portuguesas no que respeita à consertação social. Acho que já houve alguns momentos importantes onde, principalmente a CGTP, que eu acho que é a confederação sindical mais forte, mais ativa, mais relevante, é uma das instituições mais importantes em Portugal, e o facto de lhe reconhecer isso significa que não tem apreciado criticamente posições que num momento ou outro assumiu em que poderia dar um sinal de predisposição sem custos, pelo contrário, para aquilo que são os direitos dos trabalhadores e optou por não o fazer. Lá estão as suas razões, não quero meter nisso, mas não consegui encontrar nesses momentos argumentos que me convencessem da bondade das
José Maria Pimentel
posições
Ricardo Paes Mamede
em que isso foi assumido. Agora, dito isto, eu consigo compreender que não haja... Vamos lá ver, vamos pôr as coisas em termos… tu estavas a perguntar, mas se isso alguma vez aconteceu… bom, quer dizer, eu faço parte do Conselho Económico e Social, portanto sei o ridículo que seria alguém chegar a uma reunião da Concertação Social, da Comissão Permanente da Concertação Social e dizer, bom, vamos lá aqui a discutir uma solução em que reforçamos brutalmente o poder dos sindicatos, em que aumentamos fortemente o subsídio de desemprego e, em troca disso, concordamos com uma revisão constitucional para abolir o despedimento sem justa causa. Quer dizer, o despedimento sem justa causa é um princípio que, a meu ver, dificilmente pode ser questionado, mas mesmo que seja um despedimento por motivos económicos, que já existe em larga medida, Onde já se chegou na liberalização do despedimento em Portugal, que já se foi muito longe, sem qualquer espécie de contrapartida, mostra que não há condições. Pode vir a haver, Eu espero que venha a haver no futuro essas condições para esse tipo de acordos. Talvez se tivesse sido melhor propor esses acordos mais cedo. Não havia qualquer condição para eles serem aceitos. Qualquer condição. Na forma como a economia portuguesa evoluiu nos últimos 20 anos, e a sociedade e a política portuguesa evoluiu nos últimos 20 anos, não havia qualquer condição de ponto de vista de equilíbrio de forças para conseguir obter ganhos para a posição negocial dos trabalhadores. Era impossível. Bem poderia os sindicatos dizer vamos aqui propor um acordo de sistema. Quer dizer, se tu estás numa posição de força, tu próprio dizias, não cabe aos patrões defender as posições dos sindicatos. E vice-versa? Efectivamente, mas se é assim e se a posição dos últimos anos foi sempre os patrões estarem numa posição de força negocial absoluta, porquê é que eles haviam de abdicar dessa posição negocial absoluta e transferir parte daquilo que é o valor que se vai criando na sociedade para os trabalhadores.
José Maria Pimentel
O que eu digo neste caso, aplicando esse modelo, é que não cabe. É ótimo se o fizerem, liricamente é desejável que ambos defendam o valor comum, mas o que tu tens numa inociação é uma cada parte a defender o seu lado. E existe aí uma luta, obviamente, de defesa de ideias e que depois, idealmente, quando lá está melhor, foram as instituições, mas elas estendam ao ambiente político, mas elas estendam ao resto da sociedade, e daí resultará, idealmente, um ponto de equilíbrio que é melhor do que se tivesse só uma das forças. Acho que devemos
Ricardo Paes Mamede
trabalhar para esse ideal, mas com a consciência, com um realismo muito grande sobre a sociedade em que vivemos e sobre a distribuição de poder na sociedade em que vivemos.
José Maria Pimentel
O que o Banco de Catar fazia há pouco não era em relação aos sindicatos, não era em relação à entidade patronal, era em relação aos economistas. E o que eu respondo em relação aos economistas pode ser feito em relação a uma série de outras áreas. Estou a dizer isto porque calha nós termos ambos, calha tu ser professor de economia e eu ser de ter tirado da economia. E o que acontece é, o que me parece haver aqui é que parece haver potencial para haver um consenso técnico com as suas limitações, certo que têm as suas limitações, mas que permita auxiliar depois as decisões que são tomadas na esfera política. Para que é que servem as ciências, sobretudo as ciências sociais? Servem para criar valor? Servem para várias coisas, obviamente, mas uma das funções, no meu entender, que têm é que é tu tirar as conclusões e acumular conhecimento que depois permita ser útil
Ricardo Paes Mamede
para... Acho que nós temos de ver isso ponto a ponto, até porque sabes que, precisamente por eles... Pelo facto das sociedades serem complexas e os arranjos institucionais serem sempre muito específicos à história de cada país em cada momento, torna muito difícil haver generalizações. Isto é, não tens muitos casos na ciência económica de conclusões robustas. A economia tem muito poucas leis. Nós passamos a vida a falar das leis da economia, mas a verdade é que há pouquíssimos casos em que possamos dizer isto causa aquilo. As verdades locais no máximo. E isso torna muito difícil esse consenso técnico que tu estás a referir. Em alguns aspectos é possível esse consenso técnico. Não diria um consenso, mas uma aproximação a um consenso. Por exemplo, em relação ao salário mínimo. Nós hoje sabemos muito sobre os efeitos do salário mínimo. Nós hoje sabemos que a ideia de que os aumentos do salário mínimo necessariamente levam ao aumento do desemprego, que era aquilo que a teoria clássica da economia clássica nos dizia, é uma conclusão que nós não podemos tirar. Hoje sabemos que, tendencialmente, os aumentos do salário mínimo, em circunstâncias mais ou menos normais de funcionamento da economia, têm efeitos marginais sobre o volume de emprego e que em algumas circunstâncias podem ter efeitos positivos se isso contribuir para um aumento da procura agregada. Depende do local e depende da altura em que é. A questão é essa, não é? Depende do face do ciclo económico. É uma universalidade. Depende do conjunto de instituições, mas apesar disso, hoje podemos dizer que é difícil encontrar um economista que seriamente diga do salário mínimo vai inevitavelmente conduzir ao aumento do desemprego. Mas também o conhecimento empírico leva a dizer, uma pessoa que tem uma postura séria em relação a este tema, que qualquer aumento do salário mínimo deve ser acompanhado de uma monitorização cuidada para ver se alguns dos efeitos que se sabe que pode resultar, alguns efeitos negativos que podem ter, estão ou não a concretizar-se naquele contexto específico. Portanto, no fundo, dá-te pistas para aquilo que é uma boa política pública. Mas não sou tão otimista quanto tu estavas a sugerir sobre a
José Maria Pimentel
possibilidade
Ricardo Paes Mamede
da técnica, do conhecimento técnico, permitir facilmente consensos. É
José Maria Pimentel
o otimismo da vontade, não é? Exatamente. Olha, estamos a terminar o tempo, queria só fazer uma última pergunta que não resisto. Vou cair numa simplificação caricatural, como é que já estávamos a falar há bocadinho. Costuma-se dizer, ou é muito comum, por o debate nos termos de que a direita defende o aumento do bolo e a esquerda está preocupada com a repartição do bolo. O que obviamente é uma caricatura, embora tenha alguma razão de ser, tendo em conta os pontos que são frisados por um lado e por outro. Eu achava interessante ter a tua perspectiva enquanto economista assumidamente de esquerda em relação à expansão do bolo. Discutimos aqui uma série de aspectos, eu já conhecia outros e quem nos estiver a ouvir, se te conhecer, conhece ainda muitos outros aspectos que dizem respeito à repartição do bolo, ou seja, à repartição dos recursos pela Sociedade de Justiça Social. Eu tinha curiosidade, tendo em conta até que tu tens alguma investigação nessa área, qual é o teu aspecto em relação à expansão do bolo, ou seja, ao desenvolvimento económico, à expansão do nosso bem-estar, se quiseres, em Portugal. E isso até me leva a outra coisa que eu não falei há bocadinho, e também se quiseres podes comentar, que tem a ver com as limitações do PIB. Nós vivemos focados no PIB E curiosamente até a própria esquerda fala muito no PIB, o que é curioso, quando claramente é um indicador que está obsoleto. Quer dizer, tens uma série de coisas, tens o capital humano, tens os recursos naturais, que têm muito a ver não só, mas também com a questão das alterações climáticas. Tens a questão do capital social, por exemplo, que eu aqui no podcast falei com o Pedro Magalhães, e que é interessantíssimo e muitas vezes pode ser destruído por medidas que aumentem o PIB, por exemplo, e portanto pode haver um trade-off entre uma medida e outra e nós focando-nos no PIB apenas estamos a ignorar uma série de questões que têm que ver com o desenvolvimento económico ou social num sentido mais lato e que não deixam de ser. Portanto, o Canadá, agora o Serviço de Estatísticas, salve erro do Canadá, que agora começou a calcular um indicador muito interessante, cuja metodologia eu... Quer dizer, cujo rigor metodológico eu não conheço, mas confio, e salvo erro, o que aquilo indicava é que enquanto o PIB tinha crescido tipo 1, 5% nos últimos 30 anos, esta espécie de riqueza no sentido lá, tinha crescido 0, 2%, o que é praticamente zero, e é uma diferença muito grande. E lá está, é um desses, não digo consenso técnico, mas princípio de consenso técnico pode ajudar se calhar a recentrar o debate. Desculpa, Águil, acabei de fazer duas perguntas em
Ricardo Paes Mamede
vez de uma. Elas estão
José Maria Pimentel
de alguma forma relacionadas quando
Ricardo Paes Mamede
pensamos no caso português, porque de facto o PIB é, para além de todos os problemas técnicos da sua medição, para além do facto de nos fazer concentrar as atenções sobre aspectos que não são os únicos relevantes do desenvolvimento das economias, também tem o problema de ser um indicador muito enganador quando é analisado apenas no curto e médio prazo. E acho que a história recente da economia portuguesa mostra-nos isso. Portugal teve um crescimento muito, muito acelerado. Nos 15 anos que antecederam o ano 2000, que antecederam a mudança de século, que antecederam a entrada no euro, e uma parte importante, não toda, mas uma parte importante do crescimento do PIB nesse período, não só foi largamente artificial, foi induzido através de investimentos com carácter fortemente especulativo, como, além disso, colocou sob enorme pressão, por outras palavras, criou uma enorme fragilidade à economia portuguesa, que viria a revelar-se na viragem do século e com um conjunto de choques externos em que a economia portuguesa foi sujeita. E, portanto, isto chama-nos a atenção para o facto de nós podermos assistir a períodos que às vezes são até na vida de uma pessoa parecem prolongados, quer dizer, eu se pensar entre os meus 20 e 25 anos vivi num país que estava em crescimento galopante e em que tínhamos revistas como a Economist a dizer que era a grande New Boy in Town, o grande caso de sucesso das economias europeias E pouco tempo depois estava a entrar num processo de estagnação que dura basicamente até hoje. Portanto, efetivamente, olhar, termos o PIB como objetivo e termos o PIB como referência é problemático. Nós devemos ter uma preocupação que é conseguir garantir que as economias desenvolvem as suas capacidades produtivas de forma sustentável ao longo do tempo, tendo em conta aquilo que são as condições que elas enfrentam para se desenvolver. E desse ponto de vista, também é um dos motivos pelos quais eu olho com muita atenção para o papel do Estado, é que eu quando olho para a história do desenvolvimento das economias a nível mundial, vejo sempre o Estado a ter um papel crucial na estruturação económica para que as economias estejam mais capazes de enfrentar os desafios que têm de enfrentar em cada momento. Eu acho que nós em Portugal temos uma economia que é estruturalmente muitíssimo frágil. É frágil porque temos uma história de muitas décadas de atraso tecnológico, chegámos muito tarde à industrialização, chegámos muito tarde à alfabetização da população, chegámos muito tarde à generalização do ensino superior e depois destruímos ao longo do pós 25 de Abril, destruímos todas as possibilidades que tínhamos de ter âncoras fundamentais de desenvolvimento. Numa economia capitalista nós precisamos ter empresas de grande dimensão, com capital robusto para ancorar processos de desenvolvimento e os processos de privatização que foram altamente elogiados ao longo de todos estes anos, qualquer pessoa que punha em causa as privatizações só poderia ser comunista ou muito pior do que isso, e a verdade é que nós chegamos ao momento atual e não temos âncoras de desenvolvimento. As grandes empresas portuguesas ou desapareceram ou acabaram por ser vendidas a empresas multinacionais cuja preocupação fundamental não é a estruturação do desenvolvimento da economia portuguesa, isto torna ainda mais relevante a necessidade de nós termos um grande ator económico que procure fomentar o desenvolvimento e eu não vejo outro ator económico que tenha a capacidade para o fazer numa economia como a portuguesa que não seja o Estado. Obviamente que o Estado só o pode fazer se funcionar bem, se for escrutinado, se tiver estratégia, mas se não for o Estado eu não estou a ver quem é que o poderá ser. E de facto quando olhamos para a história do desenvolvimento económico vemos que houve sempre políticas públicas pensadas, estruturadas, estratégias bem definidas, boas implementações, aparelhos de Estado a funcionar em condições que criaram, contribuíram para a criação das condições necessárias ao desenvolvimento a prazo e recuperarmos deste atraso secular que a economia portuguesa tem. Termos capacidade de robustecer o nível de conhecimento, o nível tecnológico, termos a capacidade de criar massas críticas, termos a capacidade de tirar partido de algumas competências que já estão instaladas e não as perder rapidamente no processo de desenvolvimento, é um desafio muito grande para a economia portuguesa e que, obviamente, precisam de um setor empresarial robusto, mas precisam de uma estratégia coletiva, uma estratégia nacional que o único ator em condições de a protagonizar é o Estado.
José Maria Pimentel
Políticas públicas podem ser desenvolvidas no sentido de promover o dinamismo do setor privado, ou seja, a intervenção do Estado não é igual ao Estado enquanto produtor ou enquanto prestador de serviços, ou seja, isso que tu estás a dizer, para o meu ver, não é nada incompatível com, por exemplo, medidas da promoção da inovação. Porquê é que eu te perguntava isso, Por exemplo, imagina, do ponto de vista de medidas que promovam o desenvolvimento económico pela via, lá está, da economia do mercado, que lhe queremos chamar, do setor privado, tu se pudestes propor medidas nesse sentido, quer dizer, esta é uma pergunta de algebeira, mas se pudestes propor medidas nesse sentido, quais é que estavam no topo da tua lista?
Ricardo Paes Mamede
Eu, tendo a minha área de especialidade na economia da inovação, eu posso te dar uma lista muito grande do tipo de medidas que eu acho que não é uma medida. Estas coisas não funcionam com uma medida. Não há aquilo que os anglo-saxónicos chamam as balas de prata. Existem conjuntos de medidas que têm para o objetivo assegurar que o sistema económico funciona como um sistema de inovação que é persistente, que é coerente e que se vai desenvolvendo, que vai acumulando competências, que vai acumulando capacidades ao longo do tempo. E essas medidas passam por uma lista enorme de medidas de política económica, muitas delas que já existem em Portugal. Passa por ter processos, apostas em investimentos, em apoiar investimento privado em atividades inovadoras, em atividades mais expostas à concorrência internacional, em atividades que são capazes de deixar na economia portuguesa competências não apenas ao nível técnico, mas também ao nível organizativo e ao nível do conhecimento dos mercados, que são capazes de alavancar outras atividades atrás de si, que são capazes de atrair investimentos sofisticados que Por seu lado também eles vêm contribuir. Políticas que sejam capazes de contribuir para a atração de investimento direto estrangeiro que seja qualificado, que ele próprio contribua para reforçar as capacidades produtivas do país em vez de olhar para o país essencialmente como uma fonte de recursos e de dividendos. Isto é um... Bom, e podemos falar muito mais do que isto, podemos falar no papel fundamental que instituições de transferência têm, como os centros tecnológicos, os centros de formação profissional em cada um dos setores de atividade, as iniciativas que visam a classificação de atividades económicas, no fundo assegurar que agentes económicos estão ligados a uma determinada fileira produtiva, interagem entre si, que cooperam entre si, que colaboram para o desenvolvimento das suas atividades. Eu acho que quando vivemos num mundo de grande abertura comercial, de grande abertura de capitais em que existe um processo de integração económica de escala global, é inevitável que o processo de desenvolvimento económico passe também por preparar as empresas que concorrem em mercado aberto para serem mais robustas, mas isto deve ser feito sempre a partir de uma perspectiva do interesse coletivo, do interesse nacional. Numa economia capitalista a empresa é sempre, sempre o núcleo da inovação. A inovação faz-se na empresa capitalista, sempre. Agora, isso não significa que o Estado se deva abster não apenas de criar condições para que essa inovação surja, mas, tão ou mais importante, assegurar que essa inovação é feita não apenas para benefício da empresa particular, dos seus acionistas, mas para o benefício do conjunto da sociedade como um todo. Claro, porque o Estado
José Maria Pimentel
tem a possibilidade de vir a longo prazo, por exemplo.
Ricardo Paes Mamede
Sim, mas hoje é muito difícil fazer isto, não é absolutamente nada fácil garantir que haja uma política de inovação, uma política de desenvolvimento a prazo que respeite este tipo de orientações. Para já o facto de termos um ciclo político de quatro anos faz com que os agentes políticos beneficiem, valorizem pouco aquilo que são medidas cujos resultados só podem ser vistos daqui a muitos anos e ninguém vai verdadeiramente saber quem é que foi responsável por eles, mas também aquilo que eu dizia há pouco que é na ausência de grandes empresas que possam funcionar, empresas privadas que possam funcionar como âncoras do desenvolvimento económico em parceria com o Estado, isto torna muito mais difícil este tipo de estratégia. Bom, mas nós não podemos limitar-nos a lamentar as condições que temos, temos de trabalhar com as condições que temos e torna ainda mais exigente a intervenção do Estado e, portanto, torna-me ainda mais crítico daqueles que, de forma superficial, dizem que há Estado a mais, porque nestes domínios nós temos mesmo Estado a
José Maria Pimentel
menos. Ricardo, obrigadíssimo por teres vindo, valeu bem a pena e, sobretudo, é engraçado para me lembrar, tu fostes das primeiras pessoas que eu
Ricardo Paes Mamede
convidei para o podcast. É verdade, demorou.
José Maria Pimentel
Esperávamos, mas valeu bem a pena por acaso. Obrigadíssimo. Obrigado. Gostaram deste episódio? Se encontram valor no 45°, existem várias formas de contribuir para a continuidade deste projeto. Podem avaliá-lo na aplicação que utilizam, seja ela o iTunes, Spotify, Stitcher ou outra, e podem também partilhá-lo com amigos e comentá-lo nas vossas páginas ou redes sociais. Se acharem mesmo que merece e puderem fazê-lo, podem ainda tornar-se mecenas deste podcast através do Patreon ou do Paypal. Com esse apoio estão a contribuir para a viabilidade deste projeto, que passa a ser também um bocadinho vosso. Para além disso, obtêm em troca vários benefícios como, por exemplo, o acesso ao backstage do podcast e também a possibilidade de sugerir perguntas aos convidados. No fim do dia, já se sabe, são os ouvintes que tornam possível um projeto destes. Ouvintes como Gustavo Pimenta, João Vítor Baltazar, Salvador Cunha, Ana Matheus, Nelson Teodoro, Paulo Ferreira, Duarte Dória, Gonçalo Martins, entre outros mecenas, a quem agradeço e cujos nomes podem encontrar na descrição deste episódio. Até à próxima!